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A Tarefa Histórica da Psicologia Indígena diante dos 60 anos da Regulamentação da Psicologia no Brasil

The Historical Task of Indigenous Psychology and the 60 years of Psychology Regulation in Brazil

La Labor Histórica de la Psicología Indígena frente a los 60 años de Regulación de la Psicología en Brasil

Resumo

A constituição da psicologia como profissão e área acadêmico-científica se nutriu de saberes psicológicos presentes no campo cultural. A ciência e a profissão desdobram tais saberes em atenção a demandas do campo social. Quando esses conhecimentos, práticas e demandas são ingênua ou intencionalmente tomados como gerais e universais, há o risco de se reproduzir violências epistêmicas, eliminando as oportunidades de partilha e contribuição dos diversos pontos de vista culturalmente situados na construção daquilo que, desdobrando tradições greco-romanas, judaicas e cristãs vem sendo nomeado como psicologia. Diante dos 60 anos da regulamentação da Psicologia no Brasil, embora nas últimas décadas tenha havido algum esforço de escuta das demandas indígenas, em Pindorama ainda há um longo percurso para que as contribuições desses povos impliquem profundas retificações semânticas, implicando revisões conceituais e teórico-práticas. Este artigo defende que qualificar a psicologia como indígena visa oportunizar o diálogo de indígenas psicólogas e psicólogos, e quaisquer pessoas interessadas em refletir sobre o enraizamento dos conhecimentos e práticas psicológicas nas tradições que os originaram.

Palavras-chave:
Dialogicidade; Violência Epistêmica; Psicologia Indígena; Etnocentrismo; Descolonização

Abstract

As a profession and academic-scientific area, Psychology was nourished by psychological knowledge that circulate on the cultural sphere, which the discipline unfolds in practices to meet social demands. When this knowledge, these practices and demands are naively or intentionally taken as universal, we risk reproducing epistemic violence, suppressing opportunities for sharing and contribution by different points of view culturally situated in the construction of what, based on Greco-Roman, Jewish and Christian traditions has been called psychology. Sixty years after the regulation of Psychology in Brazil, despite the efforts made in the last decades to listen to the Indigenous demands, Pindorama has a long way to go before these contributions ensue deep semantic ramifications, leading to conceptual and theoretical-practical revisions. This paper argues that qualifying psychology as Indigenous aims to provide opportunities for dialogue for indigenous psychologists, other psychologists, and anyone interested in reflecting on the diverse roots of psychological practices.

Keywords:
Dialogicity; Epistemic Violence; Indigenous Psychology; Ethnocentrism; Decolonization

Resumen

La constitución de la Psicología en tanto profesión y campo académico-científico estuvo conformada de saberes psicológicos presentes en el campo cultural. La ciencia y la profesión despliegan tales saberes en atención a las demandas del campo social. Cuando estos saberes, prácticas y demandas son considerados ingenua o intencionalmente como generales y universales, existe un riesgo de reproducir violencias epistémicas, eliminando oportunidades para compartir y aportar desde los diferentes puntos de vista culturalmente situados en la construcción de lo que desde tradiciónes griegas, romanas, judías y cristianas se viene nombrando la Psicología. Frente a los 60 años de regulación de la Psicología en Brasil, si bien en las últimas décadas hubo algún esfuerzo por escuchar las demandas indígenas, en Pindorama aún queda un largo camino por recorrer para que los aportes de estos pueblos impliquen profundas correcciones semánticas y revisiones conceptuales, teóricas y prácticas. Este artículo argumenta que calificar la Psicología como indígena pretende brindar espacios de diálogo entre psicólogas y psicólogos indígenas, y los demás interesados en reflexionar sobre el arraigo de las prácticas psicológicas en diferentes tradiciones.

Palabras clave:
Dialogicidad; Violencia Epistémica; Psicología Indígena; Etnocentrismo; Descolonización

A regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil aconteceu em 1962. Antes disso, contudo, diversos saberes e práticas psicológicas já se encontravam disseminadas no campo social. A constituição da psicologia como área acadêmico-científica se nutriu de saberes psicológicos presentes no campo cultural. O conhecimento científico, sempre social e culturalmente situado, desdobra informações, reflexões e demandas emergentes no campo social e cultural, produzindo transformações. A atenção que a psicologia brasileira, como ciência e profissão, historicamente oferece a vozes e necessidades sociais, por sua vez, é seletiva. Ao passo que modos de vida e valores de determinadas tradições - particularmente originárias dos mundos greco-romano, judaico e cristão - encontram grande ressonância nas teorias, sistemas e técnicas empregadas pelos profissionais da psicologia; modos de vida indígenas e afro-brasileiros muito lentamente começam a se aproximar e problematizar o território das epistemologias de base.

Neste artigo, será argumentado que o compromisso ético da psicologia impõe a realização da urgente tarefa de diálogo com pessoas, comunidades e concepções indígenas a respeito dos diferentes processos focalizados pela ciência e pela profissão. A profissional da psicologia faz um juramento, comprometendo-se a pautar o trabalho “nos princípios da qualidade técnica e do rigor ético”, a contribuir “para o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão”, “na direção das demandas da sociedade”, e a promover “saúde e qualidade de vida de cada sujeito e de todos os cidadãos e instituições” (Resolução CFP nº 002, 2006Resolução CFP n. 002/2006. (31 mar. 2006). Estabelece referência para os símbolos oficiais da psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://crpsp.org/uploads/legislacao/1530/B-BiLSg8xEMwFeZ3Fg6GPpsLRkRD0rrW.pdf
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, p. 1). As pessoas e comunidades indígenas, como parte da sociedade brasileira, vem historicamente apresentando suas demandas e não podem, portanto, ser excluídas do compromisso juramentado. Cabe à psicologia explicitar como, fundamentar porque, e avaliar os efeitos de suas práticas (ou da ausência delas) junto a pessoas e comunidades presentes.

Finalmente, será argumentado que, para que a relação da psicologia com os povos indígenas não reproduza violências de raiz colonialista, tais como as perpetradas pelas imposições de valores dominantes sobre grupos sociais vulnerabilizados, é necessário que se elabore a experiência do choque-cultural, com nítidas implicações para revisão dos caminhos de atuação profissional.

Para qualquer que seja o objeto da psicologia - consciência, inconsciente, comportamento etc. - e as metodologias empregadas para conhecer e intervir sobre o fenômeno psicológico, existem análogos e reflexões próprias a partir de sistemas indígenas de organização da experiência. A compreensão das aproximações e afastamentos em relação a essas reflexões tende a nos dar a medida: a) dos limites da universalidade e generalidade das teorias e sistemas dominantes da psicologia; b) dos ajustes conceituais e técnicos necessários em relação a essas teorias e sistemas; c) das possibilidades de se descolonizar a pesquisa e a prática profissional; e d) da necessidade de revisar a história do conhecimento psicológico, explicitando a contribuição dos saberes indígenas para os modos de vida e as reflexões presentes na constituição das psicologias contemporâneas.

A ciência e a profissão como desdobramento de saberes, práticas e demandas do campo social

Ao discutir a história dos saberes psicológicos, Massimi (2018Massimi, M. (2018). História dos saberes psicológicos. Paulus.) explicita como os modos de vida e as elaborações discursivas das sociedades europeias, da antiguidade ao renascimento, configuraram campos de reflexão e prática profissional característicos do que passa a ser nomeado de psicologia, no século XVI, por filósofos humanistas cristãos. O clássico artigo de Krstic (1964Krstic, K. (1964). Marko Marulic the author of the term “psychology”. Acta Instituti Psychologici Universitatis Zagrabiensis, (36), 7-13.) aborda a origem do termo psicologia, observando que remonta à personagem grega Psyché (ρυχη), cuja narrativa se encontra na obra de literatura latina Metamorfoses, de Apuleio, publicado no século II d.C. A narrativa da história do Cupido (ou Eros, em sua versão Grega) e Psyché começa a partir do quarto livro dessa obra (capítulo V) e vai até o sexto livro (capítulo III). Krstic (1964)Krstic, K. (1964). Marko Marulic the author of the term “psychology”. Acta Instituti Psychologici Universitatis Zagrabiensis, (36), 7-13. observa, ainda, que na composição do termo que dá origem à área de conhecimento, articulado ao nome Psyché está o afixo - λογια (-logia), que permite supor a disponibilidade de elaboração de uma crítica racional de dimensões humanas referidas na narrativa do mito. Foi Rudolf Göckel (1547-1628) quem publicou, em 1590, o documento mais antigo em que o termo psicologia foi encontrado, “ρυχολογια hoc est de hominis perfectione, anima, ortu”, cuja tradução poderia ser: “psicologia a respeito da perfeição humana, da alma, do crescimento”. Poucos anos depois, em 1594, Otto Casmann (1562-1607) publica o livro Psychologia anthropologica, em Hanau, Alemanha. Krstic (1964)Krstic, K. (1964). Marko Marulic the author of the term “psychology”. Acta Instituti Psychologici Universitatis Zagrabiensis, (36), 7-13. enfatiza, contudo, que o termo psicologia já estava presente nas aulas do professor alemão Philip Melanchthon (1497-1560), que faz referências a uma publicação de Marko Marulić (Croácia, 1450-1524), realizada por volta dos anos de 1520.

A chegada em Pindorama - termo indígena que designa a terra das Palmeiras, posteriormente nomeada de Brasil, com referência ao lugar de onde se retirava madeira utilizada na tinturaria, comercializada na Europa -, dos modos de vida, discursos e práticas orientadoras de uma nascente psicologia na Europa se dá no mesmo tempo do massacre perpetrado pelos invasores às sociedades aqui existentes. A invasão foi definidora de novos modos de vida, discursos e práticas que continuam a impulsionar o avanço da psicologia em muitas direções ainda hoje.

Para o historiador búlgaro radicado na França, Tzvetan Todorov (1939-2017), a invasão de Abya Yala - termo Kuna, povo originário de um território a que se sobrepõe, atualmente, o estado do Panamá, que significa “Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América” (Porto-Gonçalves, 2009Porto-Gonçalves, C. W. (2009). Entre América e Abya Yala: Tensões de territorialidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 20, 25-30. http://dx.doi.org/10.5380/dma.v20i0.16231
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, p. 26) - proporcionou ao homem nativo do continente Europeu o encontro mais significativo de sua história, provocador de um sentimento de estranheza radical de maior intensidade em comparação ao encontro com outros povos nas invasões colonialistas dos diversos territórios indígenas ao redor do mundo (Todorov, 2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982).). Diante desse encontro, o homem europeu perpetrou o maior genocídio da história da humanidade.

Mas não é somente porque este é um encontro extremo e exemplar, que a descoberta da América é essencial para nós hoje em dia: junto com esse valor paradigmático, existe outro, de causalidade direta. A história do globo é, obviamente, feita de conquistas e derrotas, de colonização e descoberta dos outros, mas, como vou tentar mostrar, é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente. Mesmo que qualquer data que permita separar duas épocas seja arbitrária, nenhuma é mais adequada para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico. Nós somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia - desde que a palavra começo tenha algum significado. (Todorov, 2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982)., p. 8).

Estimativas apontam que em toda Abya Yala, 90 a 96% da população indígena era exterminada de 1500 a 1900. No México foram, aproximadamente, 20 milhões de pessoas, 18 milhões nos Estados Unidos, 10 milhões nos países andinos e 4 milhões no Brasil. Números produzidos por ações militares de combate, doenças, fome, trabalhos forçados, punições corporais sob escravidão, deslocamentos forçados a lugares inóspitos etc. (Cannabrava, 2019Cannabrava, P., Filho. (31 maio 2019). Maior genocídio da humanidade foi feito por europeus nas Américas: 70 milhões morreram. Diálogos do Sul. https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/direitos-humanos/58765/maior-genocidio-da-humanidade-foi-feito-por-europeus-nas-americas-70-milhoes-morreram.
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; Viezzer, 2020Viezzer, M. (22 jun. 2020). Moema Viezzer fala sobre o genocídio de 70 milhões de indígenas na história das Américas. Jornal da USP. https://jornal.usp.br/atualidades/moema-viezzer-fala-sobre-o-genocidio-de-70-milhoes-de-indigenas-na-historia-das-americas/
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).

Um encontro extremamente violento funda a nova identidade do homem europeu, dando origem à modernidade e à construção de uma noção planetária de mundo. A psicologia herda, como substrato de seus discursos e práticas, o processo colonialista de larga escala, em que os povos indígenas transformaram as bases existenciais, políticas e epistemológicas do homem moderno, colocando-o diante de impasses e feridas ainda abertas.

O International Work Group for Indigenous Affairs (IWGIA) aponta a existência de mais de 5 mil povos indígenas em todo o planeta. De acordo com o Banco Mundial, os indígenas correspondem a aproximadamente 476 milhões de pessoas habitando seus territórios, a que foram sobrepostas fronteiras de estados nacionais de cerca de 90 países. Embora os indígenas correspondam a 6% da população mundial, correspondem a 15% da população em situação de extrema pobreza, com expectativa de vida 20 anos abaixo da expectativa de vida das pessoas não consideradas indígenas em todo o mundo.

Figueiredo (2007a)Figueiredo, L. C. (2007a). A invenção do psicológico: Quatro séculos de subjetivação 1500-1900 (7a. ed.). Escuta (Trabalho original publicado em 1992). aborda o impacto psicossocial sofrido pelos europeus quando do seu encontro com a diversidade das coisas, das pessoas, modos de vida, línguas e religiosidade. A abertura do mundo feudal, a diluição dos limites, a diversificação e complexidade das formas de vida, o encontro com novos seres, ao mesmo tempo em que ampliou os horizontes do conhecimento e da cultura na Europa, trouxe também inquietação, confusão, dispersão e medo da mistura:

Os limites da própria civilização ocidental cristã (os limites da cristandade) estavam postos em questão. O inimigo externo mais próximo era o turco-otomano [mas…] Embora [certa] retração da cristandade [pela expansão do império turco-otomano] estivesse sendo compensada pela expansão em direção à África, Ásia e América, também essas fronteiras novas tinham inúmeras ameaças, desde os perigos reais e imaginários envolvidos nas grandes navegações até o contato com formas radicalmente distintas de alteridade e, portanto, realidades imprevisíveis e potencialmente hostis. (Figueiredo, 2007aFigueiredo, L. C. (2007a). A invenção do psicológico: Quatro séculos de subjetivação 1500-1900 (7a. ed.). Escuta (Trabalho original publicado em 1992)., pp. 36-37).

A presença do medo das fronteiras e dos seres fronteiriços faz emergir intensas reações emocionais. A variedade das coisas e pessoas pode levar à um sentimento de perda do controle, gerando misturas e combinações extremamente ameaçadoras à estabilidade e à ordem do mundo, desde um ponto de vista específico. Diferentes estratégias foram construídas como esforços para reorganizar o caos emergido nessa circunstância sociocultural de tamanha complexidade. Ao longo dos séculos seguintes, transformações socioculturais foram objeto de reflexão na vida intelectual do homem europeu: a reforma religiosa, a busca de construção de sistemas filosóficos consistentes, em que as deduções racionais estariam no centro da organização dos fenômenos, o fortalecimento de estudos empíricos, de Galileu a Newton, ao empirismo de Francis Bacon, e assim por diante. É nesse ensejo que o retorno às ideias presentes em fortes narrativas amplamente difundidas nas tradições greco-romanas, judaicas e cristãs, bem como a argumentação de filosofias clássicas, ganham força. Soluções inovadoras, ancoradas em concepções oriundas de cosmologias fundamentais das tradições europeias emergiram como possibilidades de preenchimento de lacunas e incertezas de um mundo natural e social em desequilíbrio (Cassirer, 1994Cassirer, E. (1994) A filosofia do iluminismo. Editora da Unicamp (Trabalho original publicado em 1932).). No processo de elaboração de novas ideias e soluções, a tradição cultural oferece preconcepções e preconceitos (Gadamer, 2008Gadamer, H. G. (2008). Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes. (Trabalho original publicado em 1960).; Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: Compartilhamento e diferença nas relações eu outro. Hucitec.) que preenchem as lacunas provocadas pelas rupturas das novas experiências de vida. O encontro com a alteridade potencializa o reencontro consigo mesmo, num processo que implica transformação.

Nesse ensejo, as práticas e saberes psicológicos da tradição dos povos originários da Europa entram em relação com práticas e saberes indígenas de Pindorama e Abya Yala, constituindo uma fronteira marcada por tensões. Saberes psicológicos “trazidos de fora”, podem ser refletidos e transformados pelas novas experiências em atenção às demandas sociais emergentes, mas uma atenção ainda pouco inclusiva das experiências, compreensões e soluções desde a tradição dos povos originários de Pindorama e Abya Yala.

A reprodução histórica de violências epistêmicas pela psicologia como ciência e profissão

As ciências modernas e a psicologia reiteraram, por longo tempo, concepções evolucionistas de sociedade, conhecimento e desenvolvimento humano, tendo como centro do processo o desenvolvimento das capacidades intelectuais do cérebro:

Teóricos do Iluminismo do século dezoito tendiam a pensar a história humana como a história da ascensão humana da selvageria primitiva à ciência moderna e civilização. A ideia de que a razão humana deveria ascender e eventualmente triunfar sobre as forças brutas da natureza foi a peça central de suas filosofias. Ainda, eles eram comprometidos com a doutrina segundo a qual todos os seres humanos, de todos os lugares e tempos, compartilhavam um conjunto básico de capacidades intelectuais, e, nesse sentido, poderiam ser considerados iguais. Essa era a doutrina da “unidade psíquica da humanidade”. Diferenças em níveis de civilização foram atribuídas ao desenvolvimento desigual dessas capacidades comuns. Era como se os povos supostamente primitivos estivessem em um estágio inicial na busca de um currículo básico comum à humanidade como um todo. Resumindo, para esses pensadores do século dezoito, os seres humanos diferiam em grau de outras criaturas com respeito à sua forma anatômica, mas, contudo, se distinguiam de tipo do resto do reino animal na medida em que eram dotados de mentes - ou seja, com as capacidades da razão, imaginação e linguagem - que poderiam estar sujeitos a seu desenvolvimento histórico próprio no quadro de uma forma corporal constante. O impacto imediato da teoria da evolução humana de Darwin, conforme estabelecida em A Descendência do Homem, subverteu essa distinção. O cientista e o selvagem, insistia Darwin, não estão separados pelo desenvolvimento diferencial de capacidades intelectuais comuns a ambos, mas por uma diferença de capacidade comparável àquela que separa o selvagem do macaco. “Diferenças desse tipo entre os homens superiores das raças superiores e os mais baixos selvagens”, ele escreveu, “são conectadas por gradações sutis” (Darwin 1874: 99). E essas diferenças estão, por sua vez, em função do desenvolvimento gradual de um órgão do corpo, o cérebro (1874: 81-2). Ao longo da história humana, supunha-se que o avanço da civilização marchava de mãos dadas com a evolução do cérebro - e com as faculdades morais e intelectuais - através de um processo de seleção natural no qual “tribos tinham suplantado outras tribos”, os grupos vitoriosos sempre incluindo uma grande proporção de “homens bem-dotados” (1874: 197). Essa era a “sobrevivência do mais forte” de Spencer. O selvagem infeliz, escalado para o papel dos vencidos na luta pela existência, estava, cedo ou tarde, destinado à extinção. (Ingold, 2004Ingold, T. (2004). Beyond biology and culture. The meaning of evolution in a relational world. Social Anthropology, 12(2), 209-221., pp. 210-211).

A questão do etnocentrismo europeu presente na obra de Wundt, que se desdobrou em formulações teóricas de forma mais ou menos refletida em psicologias desenvolvidas ao longo século XX, especialmente antes da 2ª guerra mundial, quando as ciências humanas passam a refletir com maior volume e densidade sobre as características socioculturais e psicológicas subjacentes à consecução e aceitação do holocausto por parcela significativa da população no momento em que o assassinato de milhões de judeus ocorria. O etnocentrismo se ligava a uma fascinação que tomou conta da Europa a respeito dos modos de vida das “pessoas naturais” (os indígenas, por exemplo) em oposição aos seus próprios modos de vida, que afirmavam ser os da “pessoa dotada de cultura” (Valsiner, 2000Valsiner, J. (2000). The social mind: Construction of the idea. Cambridge University press., p. 284). Consideravam que os primeiros eram menos desenvolvidos que os segundos:

Muitas projeções das construções das psicologias europeias a respeito do “homem primitivo” eram evidentes no século dezenove (cf., Mason, 1996; Mitter, 1992). Não é de se surpreender que Wundt (e muitos psicólogos do século XX; veja Van der Veer, 1996a, 1996d) tomaram a avaliação consensual da oposição entre “cultura” e “natureza” como aplicada à distinção europeia “nós - eles” (Valsiner, 2000Valsiner, J. (2000). The social mind: Construction of the idea. Cambridge University press., p. 284).

Levando em conta o trabalho de autores clássicos da psicologia, em sua grande maioria, a questão da cultura, ainda que com diferentes acepções, é focalizada como um aspecto central. Exemplos disso podem ser encontrados no que Wundt propôs como psicologia dos povos; nos estudos de etologia humana que visavam “. . . as relações entre o indivíduo e seu ambiente social e material” (Jahoda, 1982Jahoda, G. (1982). Psychology and anthropology: A psychological perspective. Academic Press Inc., p. 12); nas leituras de Freud sobre as diversas culturas e povos e em sua incorporação de elementos presentes nos textos sociológicos e etnográficos à teoria psicanalítica; nas tentativas de generalização das hipóteses sobre o desenvolvimento cognitivo elaboradas por Piaget, nas tentativas de Vygotski de mostrar a relevância dos aspectos socioculturais na estruturação da linguagem e do pensamento humano, dentre tantas outras referências a autores clássicos da psicologia.

O conhecimento construído sobre os povos indígenas, por sua vez, foi guiado historicamente pela busca daquilo que se julgava lhes faltar, quando comparados com outras sociedades, sejam elas europeias, desde uma perspectiva eurocêntrica, ou outras sociedades reificadas em estudos científicos na África, Ásia e Oceania. Diversas comparações também foram estabelecidas entre os povos indígenas e as ficções que povoavam as lendas do mundo ocidental. Colombo, influenciado pela literatura de Marco Polo, esperava encontrar o Império chinês para poder propagar a fé cristã. Ele também acreditava, como era usual em seu tempo, em “. . . ciclopes e sereias, amazonas e homens com rabos, e sua crença, tão forte como em São Pedro, portanto, permitia a ele encontrá-los” (Todorov, 2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982)., p. 21).

Colombo considerou ter alcançado o Paraíso, ideia que o fez guiar sua tripulação a destinos que poderiam confirmar sua crença. Seus diários, exaustivamente estudados por Todorov (2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982).), parecem ser um claro exemplo de integração entre imaginações e percepções num processo ativo de cognição da realidade, com fortes implicações para a orientação pessoal, coletiva e social. Todorov (2011)Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982). compreendeu a relação entre Colombo e os povos originários das terras pelas quais passou como uma conversa entre surdos e mudos, em que “aquilo que ele ‘entendia’, então, era simplesmente um sumário dos livros de Marco Polo e Pierre d’Ailly” (p. 44). Como para Gândavo1 1 Pêro de Magalhães Gândavo (Braga, 1540-1580) foi um historiador e cronista português autor do livro História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, em que se encontra uma conhecida compreensão que se difundiu sobre os povos indígenas: “A língua de que usam toda pela costa é uma . . . . Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela f, nem l, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei: e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medido” (Gândavo, 1576, fl. 33). (e outras personalidades da época), um dos entendimentos de Colombo sobre os nativos era de que eles eram desprovidos de tudo que fosse significativamente relevante: “Fisicamente nus, os indígenas eram também, nos olhos de Colombo, desprovidos de toda propriedade cultural; eles eram caracterizados, em certo sentido, pela ausência de costumes, ritos, religião” (Todorov, 2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982)., pp. 48-49).

A psicologia religiosa do século XVI desconfiava que a pessoa indígena não possuía alma. Os espanhóis encaminharam Comissões de inquérito para verificar essa questão, que se tornou um tópico de intenso debate na primeira metade do século XVI (Lévi-Strauss, 1952Lévi-Strauss, C. (1952). Race and history. Unesco.). Naquele tempo, o julgamento moral das práticas indígenas, observadas e reportadas pelos frades espanhóis, ao invés de procedimentos de pesquisa naturalística, guiaram o debate (por exemplo, no caso Valladolid, 1550-1551 em Todorov, 2011Todorov, T. (2011). A conquista da América: A questão do outro. Martins Fontes. (Texto original publicado em 1982).). A polêmica permaneceu mesmo após o reconhecimento de que os povos indígenas eram aptos a entender a fé católica e desejavam recebê-la, como reportado na bula pontifícia do Papa Paulo III, proferida em 2 de junho de 1537.

No seu período de gestação, a psicologia moderna se vinculou a um ambiente científico que entendia os povos indígenas como pertencentes a um estágio mental menos desenvolvido, dada a avaliação de que viviam em condições primitivas de humanidade, desprovidos das transições necessárias à superação de “uma série de passos intermediários na direção das grandes civilizações mais desenvolvidas” (Wundt, 1916Wundt, W. (1916). Elements of folk psychology: Outlines of a psychological history of the development of mandkind. George Allen and Unwin Ltd., p. 4). Curiosamente, os critérios para determinar o primitivismo de uma sociedade humana eram a ausência de um Estado Nacional militarmente organizado e de uma religião nacional (oposta às religiões naturais), com a prática do proselitismo, ou seja, moralmente guiadas por um princípio de universalização. Já para a psicologia do século XX, as cosmologias dos povos indígenas ao redor do mundo foram confundidas com lendas a serem superadas pelas narrativas e argumentações científicas. A educação assumiu o papel de universalizar a perspectiva ocidental naturalista como a imagem correta do mundo.

No gesto de comemoração dos 60 anos da regulamentação da Psicologia no Brasil, é preciso não esquecer que o Brasil foi o berço de teses eugenistas que concebiam a limpeza étnica, eliminação de pessoas e comunidades indígenas e afro-brasileiras, como condição para o progresso nacional (Bomfim, 2012Bomfim, M. (2012). A América latina: Males de origem. Fundação Darcy Ribeiro.). Concepções psicológicas pseudocientíficas foram bastante difundidas em teses de psicologia (Masiero, 2005Masiero, A. L. (2005). A psicologia racial no Brasil (1919-1929). Estudos de Psicologia, 10(2), 199-206. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2005000200006
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) que buscavam promover a evolução psíquica da espécie humana, o melhoramento psíquico ou aperfeiçoamento mental, estabelecendo comparações hierárquicas entre etnias, associando a condição étnica à profilaxia das então chamadas moléstias mentais.

A partir do controle das políticas imigratórias e do processo de miscigenação, os eugenistas almejavam homogeneizar a “raça nacional”, por meio de um processo de branqueamento - um caminho que desde o século XIX seduzia as elites nacionais -, ou assumindo uma identidade mestiça - como defendia um grupo de intelectuais . . . (Souza, Santos, Coelho, Hannesh, & Rodrigues-Carvalho, 2009Souza, V. S., Santos, R. V., Coelho, M. C. S., Hannesh, O., & Rodrigues-Carvalho, C. (2009). Arquivo de antropologia física do museu nacional: Fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde, 16(3), 763-777. https://doi.org/10.1590/S0104-59702009000300012
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, p. 766).

Os ideais eugenistas, socialmente disseminados e legitimados por uma área de conhecimento com pretensões científicas, em um dado momento histórico, produziram efeitos sociais que se relacionam à desqualificação das raízes ancestrais indígenas, influenciando, fortemente, parte da população suas possibilidades de se reconhecer e autocompreender. Fragilidades afetivas e intelectuais se relacionam, por exemplo, com vergonha e medo das próprias origens, manutenção de tabus, esquecimento de práticas e de narrativas autoafirmativas e valorativas da condição indígena. Para além da eugenia, em sua dimensão organicista, muitas vezes os processos educacionais, em desrespeito aos direitos recentemente conquistados por uma educação diferenciada, têm cumprido um papel de negação dos saberes indígenas e adequação à cultura dominante da escolarização para o trabalho assalariado (Lima, Martim, & Guimarães, 2019Lima, R. V., Martim, J. A., Guimarães, D. S. (2019). Nhembo’ea Reko Regua: Trajectories of the Mbya Guarani struggle for a differentiated education. In P. Hviid, M. Märtsin (Eds.), Cultural psychology of education, vol. 10: Culture in education and education in culture (pp. 107-124). Springer.; Macena & Silva Guimarães, 2016Macena, P. L., & Guimarães, D. S. (2016). A psicologia cultural na fronteira com as concepções Mbya Guarani de educação. In Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (Ed.), Psicologia, laicidade e as relações com a religião e a espiritualidade, vol. 2. Na fronteira da psicologia com os saberes tradicionais: Práticas e técnicas (pp. 135-147). Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.). Cabe perguntar: quais espaços de escuta e reflexão conjunta com pessoas indígenas estão abertos nos contextos de formação profissional em psicologia e nos órgãos reguladores da profissão no Brasil? De que modo as concepções indígenas são contempladas nas compreensões que o profissional estabelece sobre os processos psicológicos com que lida em seu exercício profissional?

Os indígenas apresentam demandas e problematizam entendimentos

O Banco Mundial (https://www.worldbank.org/en/topic/indigenouspeoples#1) reconhece que o legado de desigualdade e exclusão torna as comunidades indígenas mais vulneráveis aos impactos de mudanças climáticas e desastres naturais, incluindo pandemias como a da Covid-19. Essas vulnerabilidades são mais intensificadas entre os indígenas devido às dificuldades de acesso às políticas públicas de saúde, água potável, saneamento básico, crises econômicas e restrições de mobilidade que impactam, sobremaneira, o bem-viver segundo os modos de vida de cada povo, a segurança e a soberania alimentar (Sobrevila, 2008Sobrevila, C. (2008). The role of indigenous peoples in biodiversity conservation: The natural but often forgotten partners. The World Bank.).

Particularmente, no Brasil, até meados dos anos 1970, as políticas públicas apostavam no desaparecimento inevitável dos povos indígenas, orientando a integração das pessoas ao Estado Nacional como medida protetiva ao seu extermínio. Contudo, de acordo com o Censo do IBGE de 2010, hoje temos uma população autodeclarada indígena de 896.917 pessoas. Dessas, 324.834 vivem em cidades e 572.083 nas áreas rurais. Os indígenas correspondem a 0,47% da população total do país.

A disponibilidade da psicologia enquanto classe profissional, para adentrar o campo da atenção psicossocial às comunidades indígenas remonta a uma deliberação do 4º Congresso Nacional de Psicologia, de 2001, que recomendou uma abordagem estruturada aos povos indígenas. Seguindo essa deliberação, em 2004, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) realizou uma parceria com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), organização católica que afirma ter o propósito de fortalecer o processo de incremento da autonomia dos povos indígenas por meio da construção de um projeto alternativo, multiétnico, popular e democrático. Essa parceria visou a realização do Seminário Nacional Subjetividade e Povos Indígenas (Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região, 2010Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (2010). Psicologia e povos indígenas. CRPSP.), que teve a colaboração de 50 líderes comunitários de diferentes partes do Brasil. Um dos resultados desse seminário foi a criação, em 2008, do Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indígenas, no âmbito do Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (CRPSP).

No ano de 2012, teve início no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) a Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rede Indígena), que iniciou suas atividades como projeto de extensão com apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP (PrCEU-USP).

No segundo semestre de 2014, considerando a percepção da equipe da Rede Indígena de demandas das comunidades por maior visibilidade da luta para assegurar seus direitos à demarcação das terras, foi proposta a realização de fóruns sobre a presença indígena em São Paulo. Ao todo foram seis encontros que perduraram até maio de 2015, e cinco deles aconteceram no Instituto de Psicologia da USP. Os fóruns eram abertos à participação da comunidade acadêmica e da comunidade externa à Universidade. A cada edição, foram convidados palestrantes Guarani e lideranças indígenas de povos que se encontravam em contexto urbano. O registro audiovisual foi disponibilizado na internet, pelo serviço de IPTV-USP (Internet Protocol Television da Universidade de São Paulo), com o consentimento dos palestrantes indígenas convidados.

Achatz e Silva Guimarães (2018Achatz, R. W., & Silva Guimarães, D. (2018). An invitation to travel in an interethnic arena: Listening carefully to Amerindian leaders’ speeches. Integrative Psychological and Behavioral Sciences, 52(4), 595-613. https://doi.org/10.1007/s12124-018-9431-0
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) tomaram as comunicações indígenas transcritas dos fóruns para uma análise e discussão que incluiu discursos indígenas proferidos em encontros organizados pelo Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (2010)Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (2010). Psicologia e povos indígenas. CRPSP., acontecidos anos antes. O material analisado permitiu uma imersão em expressões de pessoas pertencentes a diversos povos indígenas - Mbya Guarani, Pankararu, Xavante, Baniwa, Tupi-Guarani, Terena e Krenak - que vivem no estado de São Paulo. Os interlocutores dos indígenas eram, prioritariamente, psicólogos ou pessoas vinculadas à psicologia. As falas indígenas visaram possibilidades e limites de mútua inteligibilidade e construção de parcerias, considerando a intensidade dos desconhecimentos mútuos que os interlocutores tinham uns dos outros. Foram delineados quatro conjuntos de experiências a partir da análise feita: a) a demarcação de posições, em que as lideranças indígenas interpelam o psicólogo ora como um estrangeiro genérico, ora questionando a especificidade de sua posição na interlocução com os povos indígenas; b) expressão de sentimentos como raiva, medo, dor e preocupações, denunciando de forma intensa as atitudes do homem branco em relação às pessoas e comunidades indígenas, após o reconhecimento dos interlocutores como capazes de escuta e acolhimento; c) consideração da possibilidade de ação conjunta, tendo em vista as diferenças marcadas entre indígenas e psicólogos; e d) finalmente, são apontadas as necessidades de retificações semânticas no diálogo: noções como território, saúde, doença, qualidade de vida, bem-viver, pessoa, dentre muitas outras, não são significadas de modo idêntico entre psicólogos e indígenas. A compreensão das trajetórias de significação no encontro demanda uma atenção constante aos termos do diálogo, seus múltiplos sentidos, modos de dialogar, situações em que certos diálogos são possíveis ou impossibilitados.

Em 2015, A Rede Indígena foi formalizada como serviço do Instituto de Psicologia, vinculado ao Laboratório de Interação Verbal e Construção de Conhecimento do Departamento de Psicologia Experimental. Em 2017, foi inaugurada a Casa de Culturas Indígenas, uma construção tradicional Mbya Guarani denominada Xondaro kuery Xondaria kuery onhembo’ea ty apy, espaço de aprendizado de nossos saberes ancestrais. No mesmo ano, com a visita de dois docentes indígenas do povo Maori (Darrin Hodgetts e Shiloh Groot, vinculados a universidades de Aotearoa Nova Zelândia) à Casa de Culturas Indígenas, a noção de Psicologia Indígena foi introduzida no âmbito da atuação da Rede, que se ampliou na interlocução com reflexões de indígenas psicólogos originários de territórios ainda mais diversificados.

A emergência da psicologia indígena como campo de saber internacionalizado

A oposição entre pensamento superior e pensamento inferior (Marková, 2016Marková, I. (2016). The dialogical mind: Common sense and ethics. Cambridge University Press.) esteve marcadamente relacionada, de um lado, às oposições entre logos, racionalidade e ciência; e mito, irracionalidade e pajelança, de outro lado. No âmbito dessa oposição, uma profissional ou pesquisadora da psicologia pode entender a relação psicologia e povos indígenas como uma área que é difícil de superar, demandando um conjunto de ações intermediárias para liberar a passagem: a) a necessidade de aprender a língua do povo indígena com quem se desenvolve o trabalho e constrói o conhecimento; b) a necessidade de se deslocar até as comunidades indígenas, por vezes distantes e de difícil acesso a partir das cidades em que estão situados os serviços de psicologia e as universidades; c) a necessidade de se adaptar a novas condições ambientais, rotinas sociais e reorganização de vivências cotidianas; d) aprender a lidar com a suspeita que os indígenas expressam em relação aos conhecimentos científicos e à figura do pesquisador (Smith, 2018Smith, L. T. (2018). Descolonizando metodologias: Pesquisa e povos indígenas. Editora UFPR.) e profissional da psicologia (Achatz & Silva Guimarães, 2018Achatz, R. W., & Silva Guimarães, D. (2018). An invitation to travel in an interethnic arena: Listening carefully to Amerindian leaders’ speeches. Integrative Psychological and Behavioral Sciences, 52(4), 595-613. https://doi.org/10.1007/s12124-018-9431-0
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); e) prestar contas de sua implicação com a luta contra a colonialidade e seus impactos danosos às comunidades humanas e seus ambientes; e f) sustentar uma disponibilidade regular para escuta, implicação e reserva (Figueiredo, 2007bFigueiredo, L. C. (2007b). A metapsicologia do cuidado. Psychê, 11(21),13-30.) nos percursos de familiarização entre pessoas que buscam objetivos comuns, envolvendo a saúde e o bem-viver.

A superação das barreiras permitiria ao profissional e pesquisador da psicologia seguir atuando segundo as teorias e sistemas psicológicos já estabelecidos, sem a necessidade de maiores revisões conceituais e metodológicas? A consideração da fronteira da psicologia indígena, para além das barreiras que afastam esses dois mundos, demanda ultrapassar atitudes dogmáticas, em que a pesquisadora ou profissional da psicologia se aferra a pressupostos teórico-metodológicos previamente selecionados e desqualifica concepções e práticas indígenas como irrelevantes para sua reflexão epistêmica e adequação técnica. A consideração da fronteira entre psicologia e povos indígenas também deveria prevenir o profissional da psicologia do ecletismo, que, por sua vez, acaba por desqualificar as especificidades nas relações entre saberes e práticas constitutivas de pessoas e comunidades distintas.

As psicologias indígenas vivem um momento de pequeno, mas significativo, reconhecimento e visibilidade, que suscita reflexões no campo da psicologia geral. O indígena não é mais visto como exceção, minoria ou exótico quando reconhecemos que o mundo é constituído pela diversidade de povos, vinculados a distintas tradições culturais, com suas maneiras de constituir as experiências e os sentidos das experiências vividas. Indígena é um termo latino que se refere àquele ou àquilo que é nativo de um dado território, gerado em sua própria terra. Os saberes psicológicos são historicamente gerados por pessoas situadas em diferentes territórios e se estabelecem como conhecimentos científicos a partir de tradições historicamente vinculadas a partes específicas do planeta. Portanto, toda psicologia é indígena com referência ao território de que suas ideias são nativas, e deixa de sê-lo quando essas ideias são impostas ou tomadas, irrefletidamente, como naturais, independentes dos contextos de sua emergência. Essa questão, central para o debate internacional sobre a teorização e a prática psicológica, situa as psicologias indígenas no centro de questões sobre a relação entre o particular e o geral na construção do conhecimento psicológico, para além das especificidades de cada tradição que fundamenta saberes psicológicos singulares.

As concepções indígenas encontram obstáculos em suas tentativas de entrar em diálogo com as psicologias produzidas em contexto WEIRD (acrônimo de Western, Educated, Industrialized, Rich e Democratic) (Li, Hodgetts, & Foo, 2019Li, W. W., Hodgetts, D., & Foo, K. H. (Eds.), Asia-pacific perspectives on intercultural psychology. Routledge.). Um desses obstáculos diz respeito ao fato de que concepções e práticas baseadas em algumas tradições culturais não compartilham dos mesmos critérios ontológicos e epistemológicos para guiar a construção de conhecimento (Hwang, 2017Hwang, K. K. (2017). The rise of indigenous psychologies: In response to Jahoda’s criticism. Culture & Psychology, 23(4):551-565. https://doi.org/10.1177%2F1354067X16680338
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; Jahoda, 2016Jahoda, G. (2016). On the rise and decline of “indigenous psychology”. Culture & Psychology , 22(2), 169-181. https://doi.org/10.1177/1354067X16634052
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). O reconhecimento das diferenças tende a ser acompanhado da pressuposição de que o conhecimento científico seria, em todos os casos, superior a outros sistemas de conhecimento. Diversos exemplos, contudo, questionam tais preconceitos.

Sobrevila (2008Sobrevila, C. (2008). The role of indigenous peoples in biodiversity conservation: The natural but often forgotten partners. The World Bank.) discute a existência de uma sobreposição entre áreas que preservam a biodiversidade mundial e os territórios indígenas. No entanto, diferenças entre as concepções indígenas e científicas criam barreiras para colaborações significativas, dada a crença amplamente difundida de que o conhecimento científico seria superior a outros saberes. Park, Hongu e Daily (2016Park, S., Hongu, N., & Daily, J. W. (2016). Native American foods: History, culture, and influence on modern diets. Journal of Ethnic Foods, 3(3), 171-177. https://doi.org/10.1016/j.jef.2016.08.001
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) discutem o impacto dos alimentos indígenas na dieta mundial, reportando estudos que apontam que cerca de 60% do suprimento alimentar mundial é originário dos povos Ameríndios. No âmbito das diversidades linguísticas e culturais, somente no Brasil re(existem) 305 povos falantes de 274 línguas indígenas, e estima-se que eram mil línguas faladas no Brasil antes da invasão colonialista (Centro Brasileiro de Estudos Da América Latina, 2020Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (2020). Línguas Ameríndias: Ontem, hoje e amanhã. Fundação Memorial da América Latina.). No âmbito das diversidades sexual e de gênero, diversos povos Ameríndios compreendiam a existência de, pelo menos, seis possibilidades de estilos de gênero (gender styles): mulher; homem; não-homem - mulher biológica que assume alguns aspectos de papéis masculinos -; não-mulher - homem biológico que assume alguns aspectos de papéis femininos -; lésbicas; e gays (Brown, 1997Brown, L. B. (1997). Two spirit people: American Indian lesbian women and gay men. Routledge.). Construíram possibilidades de experimentação da sexualidade por séculos violentamente rechaçadas pelos colonizadores (Fernandes & Arisi, 2017Fernandes, E. R., & Arisi, B. M. (2017). Gay indians in Brazil: Untold stories of the colonization of indigenous sexualities. Springer.). No âmbito de diversidades políticas, cabe destacar o reconhecimento do papel da Confederação Iroquesa na conformação da democracia norte-americana que inspirou diversas democracias ao redor do mundo. Para os indígenas a ampla participação e consulta à comunidade nos processos de tomada de decisão é uma prática socialmente difundida e sustentadora das liberdades individuais. Tal prática é referida em reflexões sobre concepções de sociedade e movimentos de democratização significativos no mundo Europeu (Melo Franco, 1976Melo Franco, A. A. (1976). O índio brasileiro e a revolução francesa: As origens brasileiras da teoria da bondade natural. José Olympio.). Além dessas, são inúmeras as contribuições em diversas áreas do conhecimento, nas artes, na medicina e psicoterapia.

Povos ameríndios acreditavam que a doença afetava toda a família da pessoa doente. Eles sabiam que boas relações com a família, amigos e toda a comunidade eram importantes para tornar-se e permanecer saudável. Incluindo a família do paciente e a comunidade no tratamento tornava mais provável sua efetividade. Os membros da família e outras pessoas na comunidade provinham o apoio para a pessoa doente. Pesquisas atuais mostram que essas relações são importantes para uma boa saúde. Estar rodeado de pessoas cuidadosas aumenta as chances de uma maior longevidade comparado a pessoas que vivem isoladas. (Keoke & Porterfield, 2005Keoke, E. D., & Porterfield, K. M. (2005). American Indian contributions to the world: Medicine and health. Facts on File., p. 102).

São inúmeras as contribuições indígenas às ciências modernas e ao modo de vida da sociedade contemporânea, porém, muitas dessas contribuições permanecem ocultadas, por exemplo, pela autoria acadêmica ou assinatura de patentes que exclui a contribuição indígena em relação a tais saberes. As comunidades indígenas passam, então, a fazer alianças estratégicas com universidades em todo o mundo (Smith, 2018Smith, L. T. (2018). Descolonizando metodologias: Pesquisa e povos indígenas. Editora UFPR.), visando a ampliação de parcerias na luta por direitos e, também, para que possam dar visibilidade às suas construções de conhecimentos sobre temas social e cientificamente relevantes, que fortalecem a continuidade das vidas indígenas e de suas concepções sobre a vida.

A tarefa histórica da Psicologia Indígena

Na medida em que a emergência das ciências modernas e da psicologia pode ser considerada, ao menos em parte, um complexo movimento de elaboração do conjunto diversificado de situações extremamente ameaçadoras à estabilidade e à ordem do mundo construído pela civilização ocidental cristã, cabe destacar algumas tarefas históricas das psicologias indígenas. Uma dessas tarefas diz respeito à construção de conhecimentos sobre práticas e discursos psicológicos que perpetuam violências de raiz colonialista. Outra tarefa se volta à elaboração de conhecimentos que permitam a orientação e formação psicológica por meio da crítica, análise e interpretação de eventos concretos em que tais violências se fazem presentes. Uma terceira tarefa demanda a identificação e construção de conhecimentos alternativos, baseados na efetividade ética de suas proposições. Desse modo, a psicologia indígena é aquela comprometida com criação das possibilidades de partilha da diversidade de entendimentos e práticas sociais de bem-viver, que difere entre povos e comunidades.

Ao estudar a história das ideias científicas, Vygotski (1991Vygotski, L. S. (1991). El significado histórico de la crisis em psicología. In L. S. Vygotsky, Obras escogidas vol. I: Problemas teóricos y metodológicos de la psicología (pp. 257-407). A. Machado Libros, S. A.) aponta que tais ideias surgem num contexto sociocultural, lida com pressupostos e teorias preexistentes, já estabelecidas como conhecimento científico e estabelecem relação com as exigências objetivas sobre os fenômenos-tema focalizados. Nesse sentido, demandas oriundas de desafios práticos da profissão e da pesquisa guiam os processos de construção das teorias e sistemas psicológicos, ao nos colocarem diante do acontecimento imprevisto. O acontecimento, que excede às categorias de conhecimento pré-existentes, exige uma reflexão filosófica com implicações para a metodologia da ciência, na medida em que a responsabilidade ética não autoriza ao psicólogo exercer sua profissão de forma ingênua e despreocupada. Desse modo, cada vez que examinamos os acontecimentos concretos, nos vemos obrigados a analisar os princípios que fundamentam a técnica psicológica. A intervenção psicológica se torna fruto de uma análise descritivo-explicativa da experiência, sendo que essa elaboração, por sua vez, é sobredeterminada por muitos pontos de vista.

Por exemplo, Quintero Weir (2021Quintero Weir, J. A. (8 abr. 2021). Da “virada ontológica” ao tempo de volta do nós. Amazonia Latitude. https://amazonialatitude.com/2021/04/06/da-virada-ontologica-ao-tempo-de-volta-do-nos/#:~:text=%E2%80%9CVirada%20Ontol%C3%B3gica%E2%80%9D%20ou%20o%20Fim%20do%20mito%20da%20ci%C3%AAncia&text=Apesar%20disso%2C%20agora%20ele%20parece,em%20um%20grande%20problema%20global.
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) nos situa diante de acontecimentos que marcam a reflexão antropológica contemporânea em torno da noção de virada ontológica. A noção de virada ontológica aponta para a multiplicidade de predicações, distintas do naturalismo ontológico, fundacional das ciências ocidentais modernas. Tais predicações orientam ações e reflexões na construção de conhecimento pelas diversas sociedades ao redor do planeta - naturalismo, animismo, totemismo e analogismo (Descola, 2005Descola, P. (2005). Par-delà nature et culture. Gallimard.). A virada ontológica proposta pelo perspectivismo ameríndio (Lima, 1996Lima, T. S. (1996). O dois e seu múltiplo: Reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, 2(2), 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
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; Viveiros de Castro, 1996Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana , 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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), por sua vez, vai em direção à impossibilidade de alguma pessoa se colocar em um ponto de vista exterior às predicações de sua tradição. Os predicados subjazem como fundação para todo conhecimento racional possível, que se expressa como desdobramento deles (Silva Guimarães & Simão, 2021Silva Guimarães, D., Simão, L. M. (2021). Dialogical metapsychology in semiotic-cultural constructivism: Open perspectives for an indigenous psychology. Human Arenas. https://doi.org/10.1007/s42087-021-00246-7
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). Na direção da reflexão sobre os fundamentos ontológicos dos conhecimentos xamânicos, o perspectivismo ameríndio concebe o multinaturalismo como predicado que instrui reflexões filosóficas a partir do ethos indígena. Tal concepção tem implicações teórico-metodológicas para processos de construção de conhecimento inclusivo dos pontos de vista indígenas, na medida em que a ontologia naturalista, que funda as ciências modernas, é entendida como uma maneira particular de constituir a distinção entre a ordem dos fenômenos objetivos e subjetivos, em meio a outras possibilidades de conceber esse tipo de distinção ou propor outras distinções (Viveiros de Castro, 1996Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana , 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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, 2004Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 1-22., 2006Viveiros de Castro, E. (2006). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (2a. ed.). Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 2002).).

Dentre os acontecimentos que marcam a reflexão antropológica contemporânea em torno da noção de virada ontológica, Quintero Weir (2021Quintero Weir, J. A. (8 abr. 2021). Da “virada ontológica” ao tempo de volta do nós. Amazonia Latitude. https://amazonialatitude.com/2021/04/06/da-virada-ontologica-ao-tempo-de-volta-do-nos/#:~:text=%E2%80%9CVirada%20Ontol%C3%B3gica%E2%80%9D%20ou%20o%20Fim%20do%20mito%20da%20ci%C3%AAncia&text=Apesar%20disso%2C%20agora%20ele%20parece,em%20um%20grande%20problema%20global.
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) ressalta que o contexto em que a tal “virada” está sendo reclamada à ciência é uma realidade em que os brancos se veem às voltas com a severa ameaça dos efeitos do chamado período Antropoceno ou Capitaloceno. A escuta dos povos que falam aos brancos de seu lugar de ver/sentir/viver emerge como possibilidade de evitar a morte, abrindo espaços à vida de todos, incluindo as do Ocidente. Quintero Weir (2021)Quintero Weir, J. A. (8 abr. 2021). Da “virada ontológica” ao tempo de volta do nós. Amazonia Latitude. https://amazonialatitude.com/2021/04/06/da-virada-ontologica-ao-tempo-de-volta-do-nos/#:~:text=%E2%80%9CVirada%20Ontol%C3%B3gica%E2%80%9D%20ou%20o%20Fim%20do%20mito%20da%20ci%C3%AAncia&text=Apesar%20disso%2C%20agora%20ele%20parece,em%20um%20grande%20problema%20global.
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conclui que o mito da ciência e tecnociência, com suas pretensões de domínio da natureza e do mundo, “para um possível crescimento e acumulação infinitas explorando a Terra, que é finita, chegou ao limite de sua falsidade” (para. 46). Na medida em que o extermínio do outro resulta no extermínio de si mesmo, faz-se necessário refletir sobre as possibilidades de partilha em que todos participem, demandando a elaboração das formas de viabilizar essa partilha.

Portanto, é tarefa histórica da psicologia indígena oportunizar o reconhecimento de dimensões vedadas, resistentes e obscuras da experiência, explicitando a necessidade da partilha dos saberes psicológicos no diálogo com os saberes indígenas como condição para o avanço da psicologia na direção de demandas sociais prementes do mundo contemporâneo, marcado pela intensificação de polarizações prejudiciais à vida no planeta. Os modos de vida dos povos indígenas de Pindorama e Abya Yala são marcadamente diferentes das tradições que construíram a ciência da psique, mente ou comportamento. Em sua tarefa histórica, a psicologia indígena busca identificar e evitar a reprodução de adesões colonialistas que marcam a história das ciências, embora não se possa ter completa certeza de que, em sua pretensão de afastamento de proposições colonialistas, o profissional da psicologia não acabe reproduzindo, impensadamente, valores que adaptam a violência colonial a novas circunstâncias. Cabe, portanto, a elaboração de instrumentos para a análise e interpretação de respostas psicológicas, capazes de identificar e combater a violência epistêmica (Teo, 2011Teo, T. (2011). Empirical race psychology and the hermeneutics of epistemological violence. Human Studies, 34(3), 237-255. https://doi.org/10.1007/s10746-011-9179-8
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), que pode se manifestar explícita ou implicitamente, reflexiva ou pré-reflexivamente, consciente ou inconscientemente, nos discursos e práticas psicológicas.

Considerações finais

Em 60 anos de regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil, parcela significativa da população brasileira permanece pouco conhecida ou pouco referida na formação profissional. Grande parte da psicologia insiste em se afirmar como universal e geral, ainda que não estabeleça a crítica do posicionamento cultural de suas concepções de base, enraizadas em tradições historicamente vinculadas aos modos de vida e formas expressivas greco-romanas, judaicas e cristãs. Ao não estabelecer a crítica de seu posicionamento étnico e cultural, a psicologia tende a reproduzir violências epistêmicas, na medida em que não experimenta a alteridade na relação com tradições culturais diversificadas.

A alteridade é entendida aqui como uma dimensão de si mesmo, dos outros e das coisas que é impossível de ser assimilada. Pressupõe que no espaço das elaborações teórico-conceituais em que os fenômenos são identificados, nomeados e ganham inteligibilidade, a experiência significativa será aquela capaz de deslocar o profissional de suas preconcepções, demandando esforço reflexivo. A psicologia como ciência e profissão deve permanecer, portanto, como espaço aberto à crítica, a partir de todos os pontos de vista comprometidos com a verdade de sua enunciação. Mas por que psicologia indígena?

Dentre tantos motivos, qualificar a psicologia indígena visa oportunizar o diálogo de indígenas psicólogas e psicólogos, e quaisquer pessoas interessadas em refletir sobre o enraizamento das práticas psicológicas em tradições diversas, problematizando as dominâncias, neste momento histórico em que a psicologia permanece amplamente fechada ao reconhecimento da parcialidade étnica e cultural de suas proposições.

A psicologia indígena aqui proposta, por sua vez, implica a compreensão de que a universalidade da psicologia deve apontar para a efetivação do espaço da partilha, tendo em vista especificidades indígenas que não são plenamente assimiláveis desde um ponto de vista exterior. O abandono da pretensão assimilacionista, assim como das reservas multiculturalistas - em que os indígenas são tomados como exóticos, não fazendo sentido a relação psicologia e povos indígenas - sustenta o investimento na constituição de espaços disponíveis para o diálogo entre diferentes. Estabelece-se, assim, uma relação entre o geral da partilha potencial e o singular das condições concretas de efetivação de cada partilha, tendo em vista a especificidade de concepções e práticas vinculadas às respectivas tradições das pessoas que se disponibilizam para as trocas.

A psicologia é ciência e profissão que se debruça sobre fenômenos historicamente situados, sendo que os cinco séculos de constituição da psicologia moderna são os mesmos em que as maiores violências coloniais foram perpetradas em relação aos povos indígenas de Pindorama e Abya Yala. A opção por não se posicionar diante de fatos históricos constitutivos dos campos de estudo e atuação da área é falsa, uma vez que a negligência segue produzindo efeitos em todas as sociedades em escala mundial. A psicologia, inevitavelmente, está posicionada ante os efeitos do colonialismo, muitas vezes implícitos nas teorias e irrefletidos nas práticas profissionais.

O espaço da partilha, como oportunidade de intercâmbio respeitoso e de aprendizado na reciprocidade das contribuições que cada tradição tem a oferecer ao campo da psicologia pode se dar: a) na medida em que refinamos nossos recursos analítico-interpretativos das violências epistêmicas que persistem nos discursos e práticas psicológicas e acabam sendo reproduzidas nas intervenções concretas, e b) no processo de cultivo e fortalecimento de alternativas reflexivas e experienciais, por exemplo, por meio do aprendizado das estratégias e concepções indígenas de coexistência e produção de diversidades em todos os territórios. Os argumentos aqui defendidos nos afastam de uma relação somente pontual e localizada da psicologia com pessoas e comunidades indígenas, como se fosse a psicologia de uma minoria, para pensar a condição indígena das psicologias.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2022
  • Aceito
    05 Maio 2022
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