RESUMO:
A proposta do artigo é discutir a produção de registros em uma pesquisa psicanalítica. Tal pesquisa realizou o acompanhamento de bebês e educadoras em escolas de educação infantil, e o método de registro construído foi desenvolvido em três tempos. O tempo da experiência refere-se ao encontro com o campo, englobando exterioridade, alteridade, mas também reflexividade, transformação. O segundo tempo, que foi a escrita do diário clínico, comporta tanto o aspecto subjetivo como a tentativa de descrever cenas, acontecimentos. O terceiro tempo, da composição do relato clínico, envolve teorização metapsicológica, na qual se busca produzir fechamentos e abrir novas perguntas.
Palavras-chave:
psicanálise; registro; relato clínico
Abstract:
This paper aims to discuss the production of records in psychoanalytic research. The research carried out an accompanying process of babies and educators in kindergarten schools, and the recording method in question was developed in three stages. The time of experience refers to the encounter with the field, encompassing exteriority, alterity, but also reflexivity, transformation. The second time was the writing of the clinical diary, which includes both the subjective aspect and the attempt to describe scenes and events. The third time, the composition of the clinical narrative report, involves theorizing. It’s when we seek to produce some closings and to uncover new questions.
Keywords:
psychoanalysis; registry; clinical report
A intenção epistemo-metodológica da psicanálise - que se propõe a atentar para aquilo que se apresenta no inesperado e fugaz das experiências singulares e, ao mesmo tempo, universais de cada ser humano - aponta para um vínculo singular e ambivalente com a universidade (FONTELES; COUTINHO; HOFFMANN, 2018FONTELES, C. S. L.; COUTINHO, D. M. B.; HOFFMANN, C. A pesquisa psicanalítica e suas relações com a universidade. Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 138-148, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-44142018001013. Acesso em: 31 jan. 2021.
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). Mezan (2006MEZAN, R. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 39n. 70, p. 227-241, 2006.) observa que o território de pesquisa em psicanálise é bastante heterogêneo, podendo ter um desenvolvimento conceitual ou mais diretamente baseado na prática clínica. É da clínica stricto senso que surgem os conceitos fundamentais da psicanálise e os instrumentos com que opera qualquer pesquisa em nossa disciplina, aparecendo de forma mais ou menos explícita nas investigações (MEZAN, 2006MEZAN, R. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 39n. 70, p. 227-241, 2006.). Como salienta Iribarry (2003IRIBARRY, I. N. O que é pesquisa psicanalítica? Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v, 6, n. 1, p. 115-138, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100007. Acesso em:31 jan. 2021.
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), a pesquisa psicanalítica é sempre uma apropriação singular do autor a partir do estudo do método freudiano. Como características desse tipo de pesquisa, o autor destaca o trabalho com o significante e o fato de não ter, entre seus objetivos, a necessidade de fazer uma inferência generalizadora. No espectro mais amplo das investigações psicanalíticas, podemos distinguir a pesquisa em psicanálise daquela que utiliza o método psicanalítico (FIGUEIREDO; MINERBO, 2006FIGUEIREDO, L. C.; MINERBO, M. Pesquisa em Psicanálise: algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 70, p.257-278, 2006.). A primeira pode ter as mais diversas relações com a teoria e não demanda a presença de um psicanalista, ao contrário da segunda. Esta transforma os objetos, os pesquisadores e as formas de investigar, visto que envolve as relações transferenciais e as manifestações contratransferenciais que marcam a singularidade aos achados desse tipo de pesquisa (FIGUEIREDO; MINERBO, 2006FIGUEIREDO, L. C.; MINERBO, M. Pesquisa em Psicanálise: algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 70, p.257-278, 2006.).
Assim, no contexto de um projeto de pesquisa realizado por psicanalistas, no âmbito de um programa de pós-graduação em psicanálise, sentimos a necessidade de nos determos sobre aspectos metodológicos de nossa pesquisa, mais especificamente, sobre o método construído para a produção dos registros de nossa inserção no campo da pesquisa. O presente artigo, portanto, aborda a construção dos registros de um trabalho de pesquisa psicanalítica realizado em escolas municipais de educação infantil de Porto Alegre/RS, cuja proposta, articulada a uma ação de extensão, foi baseada na metodologia IRDI nas creches (KUPFER et al., 2012KUPFER, M. C. M. et al. Metodologia IRDI: uma ação de prevenção na primeira infânciaIn: KUPFER, M. C. M.; BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. (orgs.). Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta, 2012.), uma estratégia de promoção de saúde mental na primeira infância. Em tal pesquisa, realizamos um acompanhamento sistemático da relação entre bebês e educadoras, o qual trabalha sobretudo no enlace entre ambos, facilitando assim que a escola atue como um espaço de subjetivação para os bebês aos seus cuidados (FERRARI et al., 2017FERRARI, A. G. et al. A experiência com a metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 7-33, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142017000100017 . Acesso em:31 jan. 2021.
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). O acompanhamento tem como referência os Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil - IRDI, que visam primordialmente indicar se o bebê se encontra no processo de constituição como sujeito. A ausência de um ou mais indicadores aponta um desajuste que pode precisar então ser cautelosamente verificado por profissional que tenha treinamento específico para atuar na intervenção clínica com bebês (em estimulação precoce, atendimento pais-bebês ou abordagens semelhantes) (KUPFER; BERNARDINO, 2018KUPFER, M. C. M.; BERNARDINO, L. M. F. IRDI: um instrumento que leva a psicanálise à polis. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 62-82, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/145065 . Acesso em: 31 jan. 2021.
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).
Nesse processo de acompanhamento dos bebês, o registro de nosso tempo, do nosso encontro e de intervenções com bebês e educadoras passou a ser pensado como componente fundamental do nosso método. Sendo assim, a proposta deste artigo é analisar a produção de registros da nossa inserção no campo, no contexto de uma pesquisa psicanalítica. Tal produção de registros foi desenvolvida em três tempos, os quais serão apresentados e discutidos.
DA NARRATIVA DE UMA EXPERIÊNCIA EM PESQUISA PSICANALÍTICA AO RELATO CLÍNICO
A psicanálise, juntamente às demais ciências humanas, coloca algumas questões para a ciência e para a escrita científica. De acordo com Amorim, “a condição singular das ciências humanas torna problemático o postulado da repetibilidade, pois, se e quando ela ocorre, ocorre também algo de singular e irrepetível no encontro do pesquisador com esse tu cujo discurso não pode deixar de ser interpretado” (AMORIM, 2018, p. 23, grifo da autora). Essa dimensão da ordem do singular pode ser restituída tanto pelo trabalho da escrita quanto pelo trabalho da leitura do texto de pesquisa. A autora destaca que, na escrita, a singularidade do encontro entre o pesquisador e seu outro pode ser ouvida no lugar da voz do autor, o qual configura ponto de articulação necessária entre forma e conteúdo do texto.
Se, por um lado, os enunciados científicos são marcados pela univocidade, os enunciados narrativos têm como características a polissemia (multiplicidade de significações) e a polifonia (multiplicidade de sentidos, da ordem do discurso). As ciências humanas, contudo, se situam entre o demonstrar e o narrar, o que, de acordo com Amorim (2018), em nada facilita o trabalho do pesquisador.
Em nossa experiência de acompanhamento da relação entre educadoras e bebês com o suporte da metodologia IRDI, colocou-se a questão de que apenas a presença ou ausência dos indicadores de referência pouco dizia sobre os bebês, as educadoras e sobre o nosso fazer. Ao relatar parte deste trabalho, que ocorre desde 2014, Silva et al. (2021SILVA, M. R.; MEDEIROS, C. B.; ARROSI, K. E.; FERRARI, A. G. “Que bom que ele havia estranhado”: Considerações sobre a metodologia IRDI. Revista Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 25, p. 1-8, 2021.) confirmaram que o IRDI constitui um importante dispositivo clínico norteador para a intervenção com bebês no contexto da educação infantil, e, ao longo deste trabalho, viu-se que esta metodologia se presta muito mais a ser um operador de leitura clínica do que um instrumento de avaliação do desenvolvimento infantil.
No contexto de tal pesquisa, realizamos, em duplas de pesquisadoras, visitas semanais, com duração de 3 a 4 horas, de acompanhamento de turmas de berçário de diferentes escolas de educação infantil da rede municipal de Porto Alegre. Aos poucos, foram desenvolvidas diferentes formas de intervir: realizamos intervenções pontuais em ato junto aos bebês e educadoras; oferecemos momentos de formação; realizamos reuniões junto às direções e coordenações das escolas; oferecemos momentos de escuta às educadoras, aos pais ou outros sujeitos implicados nos cuidados dos bebês; além de realizarmos encaminhamentos, quando necessário. Nesse acompanhamento, e mesmo que com menor frequência, foram realizadas filmagens, procurando capturar momentos específicos dos cuidados ou brincadeiras com os bebês. Os escritos das pesquisadoras sobre a sua experiência nas escolas são lidos e comentados sistematicamente por uma colega pesquisadora e discutidos semanalmente nas reuniões do grupo de pesquisa. Tais escritos se constituíram como parte da própria experiência de intervenção pois, a partir deles, o grupo se põe a pensar as intervenções dentro das escolas. O registro também passou a ser pensado como componente essencial do método de pesquisa, sendo a elaboração da pesquisa desenvolvida em três tempos.
1O TEMPO: TEMPO DA EXPERIÊNCIA
O primeiro tempo da pesquisa refere-se ao tempo do encontro com o campo, com o outro, com seus elementos de surpresa e encantamento, e com a experiência produzida nesse encontro. Como interpreta Larrosa, a experiência é “isso que me passa” (LARROSA, 2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011., p. 5, grifos do autor). A experiência supõe um acontecimento, o passar de algo que não sou eu, alheio a mim, no sentido de que não é uma projeção de mim mesmo. Na experiência, portanto, está colocada uma alteridade, exterioridade, alienação. A experiência, assim, não reduz o acontecimento, mas o sustenta como irredutível. Ao mesmo tempo em que a experiência supõe algo exterior, o lugar da experiência sou eu: “É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias, ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade) onde se dá a experiência” (LARROSA, 2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011., p. 6). Por isso, a experiência também compreende subjetividade, reflexividade e transformação. O lugar da experiência é o sujeito; ela produz efeitos sobre o sujeito, forma-o e o transforma. É sempre única, particular. “Daí que o sujeito da experiência não seja o sujeito do saber, ou o sujeito do poder, ou o sujeito do querer, senão o sujeito da formação e da transformação” (LARROSA, 2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011., p. 7).
Outra dimensão da experiência, segundo o mesmo Larrosa (2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011.), seria a do movimento, do percurso, de modo que o sujeito da experiência seria como um território de passagem, paciente, passional. A experiência, do lado da paixão, não depende de um fazer intencional, mas da suspensão da lógica da ação: é escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, vulnerabilidade. O autor coloca como um dos seus propósitos “des-empirizar” (LARROSA, 2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011., p. 15) a experiência, distanciando a experiência de um experimento, ao modo das ciências experimentais, destacando sua dimensão subjetiva. Salienta também sua singularidade, pois, “na experiência, a repetição é diferença, a mesmidade é alteridade” (LARROSA, 2011LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, 2011., p. 17).
A fim de pensar essa experiência produzida pelo encontro, sentimos necessidade de recorrer a Winnicott, quem escreve: “Poderíamos quase dizer que as pessoas que cuidam de um bebê são tão desamparadas em relação ao desamparo do bebê quanto o bebê o é. Talvez haja até mesmo um confronto de desamparos” (WINNICOTT, 1968/1998WINNICOTT, D. W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe o bebê: convergências e divergências (1968). In: WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 91). O autor aborda como, para se construir um interior e um exterior, para existir então um consciente e um inconsciente, é preciso se dar uma experiência de confiabilidade que passa por um conjunto de fenômenos comunicacionais primitivos (de reciprocidade na experiência física, brincadeiras onde nasce o prazer pela experiência, o rosto da mãe como protótipo do espelho, comunicações silenciosas), em que a verbalização por si só perde o seu significado. A psicanálise partiu de uma base de verbalização, porém, boa parte do nosso trabalho clínico passa também por aspectos pré-verbais, visto que muita coisa depende da maneira como usamos as palavras, da atitude que se oculta por trás das interpretações, atitude esta que “se reflete nas nuanças, no ritmo e em milhares de outras formas que podemos comparar à variedade infinita da poesia” (WINNICOTT, 1968/1998WINNICOTT, D. W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe o bebê: convergências e divergências (1968). In: WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 85).
A experiência, seja em contextos terapêuticos ou não, tem a ver com um encontro consigo mesmo e um ser criativo, algo que qualquer indivíduo, criança ou adulto, encontra no brincar (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.). O autor defende que um paciente em análise possa ter a oportunidade de, em um ambiente facilitador (pela regressão à dependência), melhor integrar aspectos do ego, reviver de outra forma situações já vividas que não puderam de fato ser experienciadas (WINNICOTT, 1994WINNICOTT, D. W. O medo do colapso. In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.). Os bebês que acompanhamos nas escolas, em suas primeiras descobertas de si mesmos, necessitam de uma provisão ambiental suficientemente boa e, quanto menores os bebês, maior a necessidade de uma continuidade dos cuidados maternais, sem a qual a sensação de realidade pode ficar ausente - nesse caso, o bebê não se sentiria existindo, não teria experiências, pois o eu aqui implica uma soma de experiências (WINNICOTT, 1956/2000WINNICOTT, D. W. Preocupação materna primária (1956). In: WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.). Na proposta de pensar um ambiente que não interrompa o “continuar a ser” dos bebês, nosso trabalho requer das pesquisadoras a abertura a um encontro genuíno com os bebês e a uma escuta sensível e disponível junto às educadoras que ali se encontram. Dentro das salas de aula, as pesquisadoras procuram colocar-se em postura disponível, mas não invasiva, alternando entre observar o que ali se passa e interagir com os bebês e as educadoras - através de brincadeiras, conversas, auxílio nas tarefas de cuidado - algo que vai acontecendo espontaneamente. As educadoras, por vezes, se veem desamparadas e sobrecarregadas pelo trabalho, e as pesquisadoras ali presentes, transferenciadas, se veem atravessadas por essa experiência de forma muito intensa. Assim sendo, nessa experiência - território de passagem -, acabamos por averiguar sobre as possibilidades de brincar... as dos bebês, as das educadoras, e as nossas.
2O TEMPO: ESCRITA DO DIÁRIO CLÍNICO
Logo após o seu momento de acompanhamento nos berçários, cada pesquisadora deveria produzir um diário clínico. Mas, por que um diário? O que significa produzir um diário?
Verificamos o diário como um gênero discursivo presente tanto no domínio literário de discurso quanto no domínio cotidiano (COSTA, 2009COSTA, S. R. Dicionário de Gêneros Textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.). Entre as capacidades de linguagem dominantes dos indivíduos, como relatar, narrar, argumentar, descrever ações, avaliar, poetar..., nosso diário se relaciona à de relatar, que se liga ao domínio social da comunicação voltado à documentação e memorização de ações humanas, exigindo uma representação pelo discurso de experiências vividas situadas no tempo (COSTA, 2009COSTA, S. R. Dicionário de Gêneros Textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.). Mas talvez também abarque a dimensão do narrar, no que se refere à ficção, quando há uma fusão entre autor e narrador. Pensamos na palavra “diário” por entendermos essa produção como algo que está para além de um relato descritivo, pretensamente objetivo. Ainda que se busque certa coerência no que diz respeito à linearidade e à sequência dos fatos externos percebidos, existe uma dimensão extremamente pessoal em uma escrita que se propõe a falar deste “isso que me passa”. A palavra diário traz, ao mesmo tempo, a ideia de algo cotidiano, dos acontecimentos, e a ideia de algo pessoal e íntimo. Isso corresponde à nossa experiência, uma vez que duas pesquisadoras presentes em uma mesma manhã em uma turma podem trazer aspectos muito diferentes vivenciados e observados nessa mesma manhã.
Cabe aqui a relação deste tipo de registro com o relato presente no método Bick de observação de bebês (BICK, 1964BICK, E. Notes on infant observation in psycho-analytic training. The International Journal of Psychoanalysis, n. 45, p. 558-566, 1964.), que consiste na observação semanal, por uma hora, de um bebê e sua mãe/família imediata em sua casa ao longo de seus dois primeiros anos de vida, observação que será relatada pelo observador e supervisionada em grupo. Como explicitam Caron e Lopes (2014CARON, N. A.; LOPES, R. C. S. Aprendendo com as mães e os bebês sobre a natureza humana e a técnica analítica. Porto Alegre: Dublinense, 2014.), o método se divide em três momentos: a observação, o relato da observação e a supervisão em grupo.
Quanto ao primeiro momento do método Bick, as autoras referem que, nessa situação, o observador/analista “fica disponível para viver uma experiência junto com o bebê e a mãe” (CARON; LOPES, 2014CARON, N. A.; LOPES, R. C. S. Aprendendo com as mães e os bebês sobre a natureza humana e a técnica analítica. Porto Alegre: Dublinense, 2014., p. 18, grifo das autoras). Quanto ao segundo momento, referem:
O observador apoia-se em palavras simples, tentando relatar os detalhes da observação, ainda sem o intuito de ter significados, como nos indica Bick (1964BICK, E. Notes on infant observation in psycho-analytic training. The International Journal of Psychoanalysis, n. 45, p. 558-566, 1964.), mas tentando achar aquelas que contenham uma experiência que ainda é anterior à verbal e que é frequentemente vivenciada através de sensações corporais, sons, cheiros e imagens. Talvez o maior desafio deste segundo momento seja a própria transmissão: como transmitir uma experiência que foi vivida predominantemente de forma sensorial, sem o apoio da lógica e da razão? (CARON; LOPES, 2014CARON, N. A.; LOPES, R. C. S. Aprendendo com as mães e os bebês sobre a natureza humana e a técnica analítica. Porto Alegre: Dublinense, 2014., p. 21).
Nestes trechos, vemos algo de muito semelhante ao que vivenciamos em nosso trabalho, e um importante desafio desse segundo momento seria a necessidade de colocar as vivências em palavras e levá-las ao grupo, o que “também evidencia um caráter evacuativo e criativo importante para o observador” (CARON; LOPES, 2014CARON, N. A.; LOPES, R. C. S. Aprendendo com as mães e os bebês sobre a natureza humana e a técnica analítica. Porto Alegre: Dublinense, 2014., p. 22). O primeiro momento, que, no método Bick, seria somente de observação, para nós é de intervenção. Ainda assim, existem grandes semelhanças no tipo de registro, no envolvimento do pesquisador/observador com a escrita e nas dificuldades que podem vir a ser enfrentadas nesse registro. Há uma semelhança no ensejo de “viver uma experiência junto com” e o desafio de colocar isso em palavras. Contudo, o que colocamos em ato nas escolas e a partir do material dos diários se distancia bastante do método Bick, visto que as duplas observam mas também intervêm, buscando então descrever e também transmitir algo dessa experiência, a qual inclui suas próprias ações.
Sobre as gravações em vídeo, vale destacar que de forma alguma elas servem para suplantar a escrita dos diários, mas, sim, procuram registrar cenas específicas dos cuidados e das interações presentes para compor nosso material de análise. Ao examinar diferentes formas de registro de sessões de psicoterapia (áudio, transcrição e relato pela memória da psicoterapeuta de sessões consecutivas de um tratamento), Silva et al. (2014SILVA, M. R. et al. Registros de sessão terapêutica: relato, gravação ou transcrição? Considerações sobre as diferenças entre os registros. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p.121-138, 2014.) encontraram que a essência do material permanecia a mesma em conteúdo, embora os relatos de memória destacassem a experiência da terapeuta, o que se perdia nas transcrições. Enquanto ouvir as gravações permitia escutar o tom da voz e perceber aspectos afetivos da relação entre psicoterapeuta e paciente, o relato da terapeuta mostrou-se o registro que melhor contextualizava e dava vivacidade ao material. O relato inclui aspectos não verbais, que acabam por emergir nas entrelinhas do discurso verbal, nos gestos, nos olhares. Inclui contextualizações que aproximam as pesquisadoras/leitoras do conteúdo emocional das sessões. O psicoterapeuta, no relato, apresenta uma leitura própria do seu paciente e da transferência.
Pesquisar o infans, aquele que ainda não fala, implica um deslocamento da escuta de volta para o olhar. A leitura de bebês, como proposta por Jerusalinsky e Berlinck (2008JERUSALINSKY, J.; -BERLINCK, M. T. Leitura de bebês. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 13, n. 24, p.122-131, 2008. Disponível em:Disponível em:https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/68525/0 . Acesso em: 31 jan. 2021.
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), diz respeito à mudança de eixo de intervenção que ocorre quando intervimos na primeira infância, visto que o sujeito, na primeira infância, comparece pela produção e organização corporal, não pela fala ou por um brincar que arme uma extensão simbólica. Os autores questionam até que ponto uma observação enveredada pela via de um registro detalhado possibilitaria efetivamente uma abertura aos fenômenos ou implicaria uma aposta na tentativa de capturar pela descrição, nos mínimos detalhes, aquilo que é observável, o valor do acontecimento. É fato que, quando se trata de intervir com a constituição do sujeito, são inúteis registros fidedignos ou horas e horas de filmes se aquilo que é dado a ver no corpo do bebê não é lido em rede com os discursos que sustentam a existência desse bebê e se tal leitura não se opera em transferência com os pais (ou as educadoras) e o bebê. O sintoma manifesto no corpo do bebê pode dar lugar, então, a uma operação de leitura clínica. Deve ser tomado como enigma, como declaração. O dado a ver no corpo e a produção do bebê precisam ser alinhavados com a escuta do discurso parental (ou, no caso, de quem ocupa a função de cuidado) e, especialmente, o modo como esse discurso se coloca em ato nos cuidados do bebê (JERUSALINSKY; BERLINCK, 2008JERUSALINSKY, J.; -BERLINCK, M. T. Leitura de bebês. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 13, n. 24, p.122-131, 2008. Disponível em:Disponível em:https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/68525/0 . Acesso em: 31 jan. 2021.
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).
Para além do ponto de vista discursivo, nos parece importante levar em conta a própria experiência emocional que o acompanhamento pode significar para poder narrar o “dado a ver”. Toda possibilidade de elaboração realizada pelo grupo, enquanto rede, deve passar pelas nossas sensações, visto que, desde o primeiro tempo (o da experiência), há uma primeira narrativa se compondo que precisa ser elaborada. Diários clínicos não são novidade na tradição psicanalítica, encontrando referência especialmente na figura de Ferenczi. O Diário clínico, de Ferenczi (1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes, 1990.), é composto de notas e comentários escritos entre janeiro e outubro de 1932. Seu autor faleceu em maio de 1933 e o diário ficou sob a guarda de Balint, que também veio a falecer antes de sua publicação. No Diário, Ferenczi aborda temáticas que já vinham sendo tratadas em sua obra, com diversos exemplos clínicos, mas especialmente discute os seus pensamentos, seus processos psíquicos e a sua prática clínica. Em uma postura bastante crítica ao modo como a psicanálise vinha sendo praticada, propicia reflexões sobre a importância de, no contexto de uma regressão terapêutica ao infantil, adotar-se uma postura sensível, descontraída e genuína. Ele defende a maior sinceridade possível do analista e inclusive a confissão, em alguns casos, de vivências íntimas do analista (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes, 1990.).
Entendemos que Winnicott e Ferenczi, mesmo que por caminhos diferentes, defendem a disponibilidade do analista para uma certa sintonia afetiva que permita acessar vivências não representadas. Ambos propuseram uma abertura a aspectos não-verbais da comunicação. Pensando nisso, o diário clínico seria uma forma de descrever as cenas vividas, mas também registrar associações, sentimentos, impressões.
Cada pesquisadora que se dispõe a realizar o acompanhamento nas escolas, passa um turno por semana junto aos bebês e suas educadoras, experiência que oscila naturalmente entre o sentir com (e viver uma experiência junto com) e realizar uma leitura clínica que tem como operadores os IRDIs. Ainda que se esteja desde o início intervindo, consideramos aqui como intervenção a simples presença em reserva (FIGUEIREDO, 2012FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar. São Paulo: Escuta , 2012.), o olhar, a pergunta, o colo, a disponibilidade para brincar junto. Nos diários clínicos que produzimos, por vezes pode haver uma certa literalidade, seja por uma tendência à via descritiva, seja por se tratar de uma primeira tentativa de colocar em palavras algo ainda pouco elaborado; e há sempre, nesse relato, uma dimensão de intimidade, pois quem relata escreve sobre verdadeiros encontros afetivos, experiências nas quais se encontra implicado. Há, na literalidade, um apelo pelo sentido - não necessariamente o sentido produzido entre significantes, mas o sentido que provém das experiências afetivas (GONDAR, 2017GONDAR, J. Interpretar, agir e ‘sentir com’. In: REIS, E. S.; GONDAR, J. Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.).
Gondar (2017GONDAR, J. Interpretar, agir e ‘sentir com’. In: REIS, E. S.; GONDAR, J. Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.) traz elementos elucidativos também para pensarmos o caráter de intimidade presente no tempo da experiência. Discutindo as obras de Freud e Ferenczi, a autora observa que, em Freud, temos a interpretação como a principal intervenção própria da psicanálise - para se chegar ao sentido oculto, o desejo recalcado; já Ferenczi tem a via do afeto como via privilegiada de comunicação para se ter contato com aquilo que se encontrava incomunicável. Se, em Freud, os afetos são meios para se chegar à elaboração interpretativa, Ferenczi situa o simbólico pela via do afeto e da sensibilidade corporal: em Ferenczi, a perlaboração em si seria eminentemente afetiva, e qualquer intervenção seria resultado de uma oscilação entre poder sentir com e a capacidade de julgamento crítico (GONDAR, 2017GONDAR, J. Interpretar, agir e ‘sentir com’. In: REIS, E. S.; GONDAR, J. Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.). No momento da escrita do diário, o pesquisador não precisa (e não deve) se preocupar com a organização do material, nem com realizar ligações com a teoria - trata-se de uma escrita livre e que oscila entre a descrição, a linearidade e a particularidade afetiva da experiência vivida.
Dada a complexidade da experiência, o diário clínico se apresentou como método mais adequado para tentar registrar o que se passava no campo de nossa pesquisa-intervenção. Assim, um diário deveria ser escrito logo após as visitas às escolas, contendo cenas, palavras das educadoras, atos dos bebês, mas também sentimentos e dúvidas da pesquisadora, reflexões e preocupações. Sendo o acompanhamento realizado em dupla, dois diários são produzidos sobre cada momento de acompanhamento, os quais são lidos por um terceiro pesquisador (que faz apontamentos na forma de comentários no texto) e compartilhados nas reuniões semanais do grupo. Essas discussões formam uma espécie de supervisão: vamos construindo uma forma de fornecer múltiplos olhares para elaborar e dar sustentação ao acompanhamento realizado. Além disso, durante as reuniões semanais, uma pessoa fica responsável por fazer um pequeno relato das discussões propiciadas pela leitura dos diários, e, dessa forma, são tecidas narrativas do processo em andamento.
3O TEMPO: RELATO CLÍNICO
Este momento, proposto como um terceiro tempo de nosso processo de pesquisa, envolve a teorização metapsicológica, algo a ser trabalhado nas dissertações, artigos, trabalhos. Após o final do acompanhamento das turmas nas escolas, diferentes aspectos podem ser selecionados e então mais bem examinados no material disponível - diários clínicos, anotações, vídeos - permitindo um recorte, uma análise teórico-clínica.
Relatar é contar uma experiência, narrar algo que já ocorreu. Questiona Ferrari (2011FERRARI, H. Qué nos enseña Freud acerca del relato clínico psicoanalítico. XXXIIISimposio Anual de la Asociacion Psicoanalitica de Buenos Aires, 2011, p.121-127.): o que torna psicanalítico o relato? Freud criou o relato psicanalítico, e o saber analítico que emana do relato se constitui entre a referência à imediatez do material clínico e o recurso teórico da metapsicologia: através dela se pode explicar os fatos, buscar uma certa universalização do saber a partir de um caso. O relato clínico é fundamentalmente realizado pós-escritura - o clínico tem que relatar, e a metapsicologia seria um dispositivo inédito, improvisado por Freud, criado para dar forma de racionalidade ad hoc a esse imperativo de não esquecer o inconsciente. Dessa forma, a metapsicologia seria a maneira de ler o relato clínico (nosso diário) em chave psicanalítica. Em psicanálise, o relato deve estar atravessado por fundamentos metapsicológicos, condição que permite que este seja também um relato científico (FERRARI, 2011FERRARI, H. Qué nos enseña Freud acerca del relato clínico psicoanalítico. XXXIIISimposio Anual de la Asociacion Psicoanalitica de Buenos Aires, 2011, p.121-127.). Os conceitos com os quais trabalhamos são sempre flexíveis e passíveis de questionamento a partir de novos desenvolvimentos.
Como discute Porge (2009PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan, Hoje. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.), para Freud, transmitir a verdade clínica passa pelo relato com sua dimensão de ficção. No conjunto de textos de Freud, não é possível traçar uma fronteira entre os elementos factuais da história (do sujeito, da doença, do tratamento...) e a teoria que os engloba - os diferentes registros, no relato, encontram-se intrincados (PORGE, 2009PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan, Hoje. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.). A escuta analítica reclama um texto e outorga a Freud a vocação de relator de casos. Mas tem que encontrar a maneira de relatar respeitando o ponto de vista da fantasia sem render-se à cumplicidade que encerra o relato na sua ficção (FERRARI, 2011FERRARI, H. Qué nos enseña Freud acerca del relato clínico psicoanalítico. XXXIIISimposio Anual de la Asociacion Psicoanalitica de Buenos Aires, 2011, p.121-127.).
Assim, entendemos que o relato clínico articula a descrição à teorização, a qual engloba certa dimensão de ficção. Sobre o conceito de ficção, Saer questiona a oposição entre verdade e ficção, e afirma:
Mas que ninguém se confunda: não se escreve ficções para se esquivar, por imaturidade ou irresponsabilidade, dos rigores que o tratamento de ‘verdade’ exige, mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo da situação, caráter complexo de que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um empobrecimento. Ao dar o salto em direção ao inverificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento. Não dá as costas a uma suposta realidade objetiva: muito pelo contrário, mergulha em sua turbulência, desdenhando a atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como é essa realidade. (SAER, 2009SAER, J. J. O conceito de ficção. O Sopro. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro . Acesso em:27 jan. 2021.
http://www.culturaebarbarie.org/sopro... , p. 2).
Como discutem Fulgêncio e Coelho (2018FULGÊNCIO, L.; COELHO, D. As relações entre a empiria e a teoria na psicanálise: uma discussão de dois psicanalistas pesquisadores. In: FULGENCIO, L. et al. (orgs.). Modalidades de pesquisa em psicanálise: Métodos e objetivos. São Paulo: Zagodoni, 2018.), praticar a psicanálise (e pensamos que também a pesquisa psicanalítica) pode ser uma experiência que nos depara com o traumático, também com a angústia, as falhas e o fracasso, sendo a ciência um método que reconhece o fracasso e consegue retirar dele um impulso ao trabalho (WINNICOTT, 1968/1998WINNICOTT, D. W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe o bebê: convergências e divergências (1968). In: WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1998.). A formulação teórica pode ser pensada como forma de elaboração do traumático, e elaboração de uma experiência singular, lugar de endereçamento privilegiado do impacto que a escuta e a transferência causam no analista (FULGÊNCIO; COELHO, 2018FULGÊNCIO, L.; COELHO, D. As relações entre a empiria e a teoria na psicanálise: uma discussão de dois psicanalistas pesquisadores. In: FULGENCIO, L. et al. (orgs.). Modalidades de pesquisa em psicanálise: Métodos e objetivos. São Paulo: Zagodoni, 2018.). Podemos pensar que, aqui, dar conta do aspecto “traumático” tem a ver com dar testemunho de uma experiência e fazer algo a partir dela que retome a possibilidade de partilha, transmissão, difusão e criação de conhecimento. Caso contrário, tal relato serviria apenas como mecanismo de elaboração para o próprio clínico, e não como contribuição para o campo da psicanálise.
Entram em jogo, portanto, problemas posteriores à questão do registro - problemas relativos às formas de tratamento de um material e como torná-las publicáveis. Existem algumas metodologias consagradas de pesquisa qualitativa, como a análise do discurso ou a análise de conteúdo, porém, nesses tipos de análise, não se inclui elementos fundamentais à pesquisa psicanalítica como o trabalho com a escuta, com a abstinência e com os aspectos transferenciais (SILVA; MACEDO, 2016SILVA, C. M.; MACEDO, M. M. K. O método psicanalítico de pesquisa e a potencialidade dos fatos clínicos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 36, n. 3, p. 520-533, 2016.). Dentre as metodologias qualitativas, os estudos de caso são bastante utilizados na pesquisa psicanalítica. Iribarry (2003IRIBARRY, I. N. O que é pesquisa psicanalítica? Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v, 6, n. 1, p. 115-138, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100007. Acesso em:31 jan. 2021.
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) salienta a proposição diferenciada de estudo de caso, denominada construção do caso (FÉDIDA, 1992FÉDIDA, P. Nome, figura e memória: a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1992.), que retoma sua orientação metodológica em Freud e melhor abarca a singularidade da pesquisa psicanalítica. Trata-se não apenas de utilizar a teoria para informar se a dimensão empírica se confirma ou não, para que haja a construção do caso é preciso que a situação psicanalítica de supervisão sirva como espaço de interlocução entre o analista (pesquisador) e a alteridade supervisora. Haveria então uma memória restaurada, não seguindo uma ordem cronológica, mas uma memória lógica que faz aparecer, por meio de um relato, acontecimentos cuja expressão literária muda, colocando em evidência as transferências implicadas (FÉDIDA, 1992FÉDIDA, P. Nome, figura e memória: a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1992.).
Em nossa pesquisa, o principal material de análise são os diários clínicos, anotações e associações construídas no a posteriori a partir de uma nova escuta da situação de intervenção já encerrada, quando já é possível estabelecer um problema e um recorte específicos. No nosso caso, por se tratar de um contexto para além dos moldes de atendimento individual em consultório, encontramos afinidade com a estratégia clínico-interpretativa proposta por Dockhorn e Macedo (2015DOCKHORN, C. N. B. F.; MACEDO, M. K. Psicanálise, pesquisa e universidade: labor da especificidade e do rigor. Perspectivas en Psicología, Mar del Plata, v. 12, n. 2, p. 82-90, 2015.). A investigação psicanalítica em um outro enquadramento, ainda assim envolvendo o fenômeno da transferência, permite problematizar e intervir em um contexto de psicanálise ampliada. Mantendo o rigor do método psicanalítico, a estratégia toma a escuta, a abstinência, a transferência e a interpretação como alicerces na pesquisa.
Mezan (1998MEZAN, R. Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.) ressalta, a partir de Freud, como a teoria clínica é exatamente o que permite fazer conexão entre a singularidade de um caso e o domínio da metapsicologia. Alguma coisa deve estabelecer um elo, de forma que o conceito possa se relacionar ao caso (MEZAN, 1998MEZAN, R. Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.). Pensamos que o tempo do relato clínico permite, portanto, operar em diferentes níveis de abstração, desde dados da observação clínica e interpretações clínicas para esses dados, até as construções, teorias clínicas e avanços metapsicológicos conceituais. Para que a teoria clínica possa ser pensada, é preciso que se utilize de uma composição metapsicológica: a metapsicologia define as grandes classes de objetos psíquicos e as modalidades básicas de relação entre eles. No plano da metapsicologia, podem estar latentes diferentes concepções filosóficas sobre o que é o ser humano (MEZAN, 1998MEZAN, R. Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.), por isso, também precisamos elucidar a quais autores nos remetemos.
Neste terceiro tempo, abrem-se novas perguntas à teoria, quiçá novas teorizações. É um tempo de cortes e costuras, no qual se busca produzir alguns fechamentos ou conclusões, mas sempre abrindo novas perguntas. Assim, uma vez que admitimos a incompletude de nossos conhecimentos e nos dispomos a aprender coisas novas, enfatizamos que, nesse terceiro momento da pesquisa, não é suficiente apenas compartilhar nossa experiência e/ou relacioná-la aos textos clássicos da psicanálise, em um “excesso de transferência”, como já denunciado por Beividas (1999BEIVIDAS, W. O excesso de transferência na pesquisa em psicanálise. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 12, n. 3, 00, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-79721999000300008. Acesso em: 31 jan. 2021.
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). É necessário questionar a teoria, colocando a ela novas perguntas e novas possibilidades de respostas - ainda que sempre parciais.
A escrita do relato clínico é, assim, autoral, incluindo proposições teóricas - de maior ou menor abrangência, de acordo com as possibilidades oferecidas tanto pelo material da pesquisa quanto pela trajetória anterior do autor. Tal utilização do relato clínico no contexto da pesquisa universitária com a psicanálise já se encontra referida na literatura (GONÇALVES, 2018GONÇALVES, T. G. A experiência de maternidade no contexto de descoberta tardia da gravidez. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2018.; SEHN: LOPES, 2019SEHN, A. S.; LOPES, R. C. S. A vivência materna da função de cuidar no período de dependência da criança. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, v. 35 (spe), p. 1-11, 2019.), não sendo uma criação no âmbito de nosso projeto de pesquisa. O que propomos aqui seria a sua inclusão como o terceiro tempo de um processo de pesquisa em psicanálise.
DA EXPERIÊNCIA AO RELATO CLÍNICO
Ao compor um grupo de pesquisa que faz parte de um programa de pós-graduação em psicanálise, mas que realiza pesquisas fora do contexto analítico tradicional, faz-se sempre presente a necessidade de examinar e descrever nosso método de pesquisa. Neste trabalho, buscamos descrever nossos procedimentos de registro, ao nos depararmos com a importância destes na construção de toda a experiência da pesquisa e do material produzido. O registro foi desenvolvido em três tempos, os quais foram aqui descritos e embasados teoricamente: 1º tempo - Tempo da experiência, 2º tempo - Escrita do diário clínico e 3º tempo - Composição do relato clínico.
Tais tempos buscam dar testemunho de um trabalho de pesquisa que se co-constrói no encontro com o outro - bebês, educadoras, coordenações, mães e pais... - em uma experiência que modifica tanto o campo quanto as pesquisadoras. Dessa forma, o registro produzido não se pretende estéril ou excessivamente objetivo. Ao contrário, aponta para subjetividades transformadas, mas que precisam ser comunicadas no campo de uma realidade compartilhada, de modo a contribuir para a produção de conhecimento em psicanálise.
Tal organização metodológica vem sendo uma ferramenta bastante útil em nosso trabalho de pesquisa. Como afirma Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.), acreditamos que a criação original só pode se dar com base na tradição. Reafirmamos, assim, que tal organização nestes três tempos encontra suas raízes fortemente fincadas na psicanálise de Freud, Lacan, Winnicott e Ferenczi. Mas também referimos autores/colegas contemporâneos que já vêm utilizando procedimentos semelhantes (GONÇALVES, 2018GONÇALVES, T. G. A experiência de maternidade no contexto de descoberta tardia da gravidez. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2018.; KESSLER, 2017KESSLER, H. P. O balanço e o tempo: a escrita da experiência na Casa dos Cata-Ventos. Dissertaçãode Mestrado defendida no PPG Psicanálise: Clínica e Cultura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2017.; SEHN; LOPES, 2019SEHN, A. S.; LOPES, R. C. S. A vivência materna da função de cuidar no período de dependência da criança. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, v. 35 (spe), p. 1-11, 2019.; FERRARI; BELTRAMI; FRANTZ, 2015FERRARI, A. G.; BELTRAMI, A. A.; FRANTZ, M. Z. Quem conta um conto, aumenta um ponto: escrita e transmissão do caso na clínica com crianças. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 21, n. 2, p.398-413, 2015. Disponível em: https://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2015V21N2P396. Acesso em: 31 jan. 2021.
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). A partir dessas e outras fontes, produzimos a costura que apresentamos aqui, acreditando que possa ser útil a outros psicanalistas que, como nós, buscam produzir pesquisa a partir de suas experiências.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Nov 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
31 Jan 2021 -
Aceito
05 Out 2022