Open-access O belo animal, o drama pós-catástrofe e o paradigma testemunhal

The beautiful animal, the post-catastrophe drama, and the witness paradigm

Resumo

O estudo parte da noção de “belo animal” para pensar os paradigmas compositivos do drama contemporâneo na esteira das reflexões de Jacques Rancière e Jean-Pierre Sarrazac. Nesse caminho crítico, a imagem anatômica da fábula teatral, ainda presente em teóricos modernos como Hegel e Peter Szondi, é deslocada para uma metáfora teratológica que propõe o mythos como reminiscência e testemunho, político e íntimo, do sujeito ficcional. A lógica sintagmática da ação, o drama-na-vida, é remontada em uma razão inorgânica e regressiva da sequência dos atos, consubstanciando um tratamento estético que, como Paixão e Processo, caracteriza o que denominamos de dramaturgia pós-catástrofe.

Palavras-chave: belo animal; testemunho; drama pós-catástrofe

Abstract

The study starts from the notion of “beautiful animal” to think about the compositional paradigms of contemporary drama, in the wake of Jacques Rancière and Jean-Pierre Sarrazac’s reflections. In this critical path, the anatomical image of the theatrical fable, still present in modern theorists such as Hegel and Peter Szondi, is shifted to a teratological metaphor that proposes the mythos as reminiscence and political and intimate testimony of the fictional subject. The syntagmatic logic of action, the drama-in-life, is reassembled in an inorganic and regressive reason for the sequence of acts, consubstantiating an aesthetic treatment that, like Passion and Process, characterizes what we call post-catastrophe dramaturgy.

Keywords: beautiful animal; testimony; post-catastrophe drama

Résumé

L'étude part de la notion de « bel animal » pour réfléchir aux paradigmes compositionnels du théâtre contemporain, en suivant les réflexions de Jacques Rancière et Jean-Pierre Sarrazac. Dans ce cheminement critique, l'image anatomique de la fable théâtrale, encore présente chez des théoriciens modernes comme Hegel et Peter Szondi, est déplacée vers une métaphore tératologique qui propose le mythos comme réminiscence et témoignage politique et intime du sujet fictif. La logique syntagmatique de l'action, le drame-dans-la-vie, est rassemblée dans une raison inorganique et régressive de la séquence des actes, en consubstantiant un traitement esthétique qui, comme Passion et Processus, caractérise ce que nous appelons la dramaturgie post-catastrophe.

Mots-clés: bel animal; témoignage; drame post-catastrophe

A representação contemplativa deve, mais do que qualquer outra, seguir este princípio. O seu objetivo de nenhum modo é o de arrastar o ouvinte e de o entusiasmar. Ela só está segura de si quando obriga o leitor a deter-se em “estações” para refletir. Quanto maior for o seu objeto, tanto mais distanciada será a reflexão. Walter Benjamin. A origem do drama trágico alemão.

O belo animal

É nos momentos finais da vida, diz Walter Benjamin, que a experiência do moribundo - a “vida vivida” - assumiria pela primeira vez uma forma transmissível. A morte autorizaria a transformação da experiência em uma simbolização passível de ser narrada. Nesse momento, as imagens de toda uma vida aflorariam repentinamente na mente do agonizante, modificando as expressões faciais, os olhares e conferindo autoridade a tudo que a pessoa possa relatar (BENJAMIN, 2012a, p. 224). Em correspondência, no drama, o relato do passado do personagem no limiar da morte assumiria um caráter rememorativo e testemunhal. Localizado em uma posição proeminente - em uma espécie de promontório - o sujeito ficcional que testemunha seu passado só poderia fazê-lo nas margens do túmulo (SARRAZAC, 2011a, p. 19). Última instância de uma vida finita, o testemunho no drama seria o desafio do personagem ao tempo e a morte. Pois, ao testemunhar, laçaria nascimento e morte, princípio e término da vida, no mesmo ato enunciativo.

Em verdade, a representação das imagens da totalidade da vida no drama implicaria modificações na estrutura compositiva da fábula teatral. Para Jean-Pierre Sarrazac, deslocado o início da ação para o final da vida do personagem, toda a fábula deve acompanhar essa inversão, determinando uma mudança fundamental no paradigma da ação no teatro moderno e contemporâneo. Para começar, a metáfora do “belo animal”, por muito tempo base das poéticas clássicas do drama, daria lugar a uma concepção inorgânica da fábula. A imagem do corpo do animal harmônico, que na Poética de Aristóteles definia a unidade de ação, seria deslocada para uma percepção contranatural e disjuntiva das formas dramáticas, “Meu ponto de partida é, portanto, a definitiva não semelhança da fábula com o belo animal aristotélico, é o questionamento da unidade de ação, é o desenvolvimento errático, até mesmo anárquico e, em certa medida teratológico da fábula - ou do que resta dela” (SARRAZAC, 2013, p. 75).

De fato, no capítulo VII da Poética, sintomaticamente denominado “Estrutura do mito trágico. O mito como ser vivente”, Aristóteles compara a ação da tragédia perfeita à extensão de um “belo animal”, harmônico em suas partes e reconhecível de imediato pelo espectador. Comparando o artefato literário à natureza, na intenção de definir a unidade do mythos, o filósofo assemelha a ação da tragédia à grandeza e à ordem de um ser vivente como chave para atingir o belo. Cito:

Além disto, o belo - ser vivente ou o que quer que se componha de partes - não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios) (Poét., VII, 44).

O retorno a Aristóteles e aos princípios da teorização do drama pode parecer um anacronismo crítico. Porém é necessário lembrar que, como afirma Giorgio Agamben, a contemporaneidade inscreve-se no presente “assinalando-o antes de tudo como arcaico”, isto é, como mais próximo da origem. E a origem, como os pressupostos aristotélicos para a textualidade dramática, está tão próxima do contemporâneo quanto continua a exercer influência nele, “como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro, e a criança, na vida psíquica do adulto” (AGAMBEN, 2015, p. 30-31).

O que define a contemporaneidade seria sua face arcaica, aquilo que nela pulsa desde a origem. Assim, a contemporaneidade do drama, em uma dinâmica de proximidade e distanciamento, seria a relação do teatro com suas próprias origens críticas que, por sinal, “em nenhum ponto pulsa com mais força que no presente” (AGAMBEN, 2015, p. 31; SARRAZAC, 2017, p. XXII). Para Sarrazac, essas origens estariam no entardecer do drama moderno, quando a imagem aristotélica do “belo animal”, enquanto metáfora orgânica da fábula teatral, entraria em colapso e exigiria um novo paradigma de composição.

No entanto, é necessário diferenciar. O “belo animal”, de Jean-Pierre Sarrazac, enquanto metáfora do modelo aristotélico-hegeliano, é um constructo teórico expressamente associado ao drama burguês e a como ele se configurou até o séc. XIX. Apesar da centralidade das teorizações de Aristóteles e de Hegel nesse debate, Jean-Pierre Sarrazac está atento às transformações estéticas da modernidade teatral e não da tragédia clássica. Daí que a luz de suas análises, alicerçadas no confronto cerrado com a textualidade dramática, iluminam mais a escrita teatral moderna do que as poéticas antigas. Logo, a terminologia aristotélica-hegeliana deve ser entendida como classificação do drama do séc. XIX e seu avatar, a peça-bem-feita. Além disso, o “belo animal”, do crítico francês, é um análogo terminológico do “drama absoluto”, de Peter Szondi e suas crises. Terminologias que, em verdade, continuam devedoras da definição hegeliana do drama mais do que das proposições aristotélicas.

Não é necessário muito esforço para perceber, nos pressupostos de Peter Szondi sobre o “drama absoluto”, o palimpsesto hegeliano da dialética da ação dramática. No filósofo idealista alemão, o drama é entendido como uma concepção orgânica que conecta ação dramática e caracterização dos personagens. A poesia dramática é, para o filósofo, a síntese do princípio de objetividade da épica e do princípio de subjetividade da poesia lírica. Sendo uma ação que se realiza no exterior, na realidade objetiva, o drama dependeria da interioridade e das paixões de personagens conscientes de seus objetivos. Caracterizada como a realização exterior das vontades dos sujeitos ficcionais, a ação não seria meramente resultado das circunstâncias exteriores, mas ato de uma interioridade em movimento e em busca de seus fins. Do mesmo modo, sendo a exteriorização de vontades e paixões, o drama também não seria mero refém de um eu encapsulado e encerrado em si mesmo. Na ação, a subjetividade dos agentes teria, necessariamente, de ser exteriorizada, fluindo para fora de um ser que, consciente dos seus fins determinados, age em contradição com outros personagens.

A dialética do drama obedeceria a uma ordem racional na qual o fio condutor da ação é o indivíduo que, motivado por suas paixões interiores, busca determinados fins e, em razão da natureza dos fins individuais almejados, entra em choque e conflito com subjetividades adversas à sua motivação. Tudo o mais, personagens e situações secundárias (sub-ações), teriam que concorrer para os fins determinados do personagem da ação principal. O drama é uma construção estética na qual o caráter que move a ação condiciona todas as outras ramificações da fábula a esse centro conturbado e conflituoso. Logo, o desejo que motiva a ação, eixo que enquadra a trajetória do agente, em contradição com caracteres de valores e fins opostos, também impõe uma rigorosa unidade orgânica.

Apesar da natureza íntima das paixões ser o móvel interno da representação teatral, a fábula não se restringe às figurações do passado, de sentimentos e de estados emocionais. As situações dramáticas apenas ganham sentido e valor pela atuação dos sujeitos ficcionais, pela revelação de suas intenções e fins perseguidos. Por um lado, é somente pela ação, pelas intenções e decisões tomadas em ato e nas colisões com o contraditório que ficamos conhecendo o caráter e os valores dos personagens que definem o movimento da ação. Por outro lado, ao agir, ao tomar resoluções em busca de seus objetivos, os desejos do personagem são confrontados pela realidade externa que, dialeticamente, influi sobre seu estado de alma e interfere na efetiva exiguidade de suas intenções. Há, portanto, no instante da realização da ação, uma articulação dupla: a ação seria resultado das paixões que motivam o personagem a agir na realidade objetiva, e a manifestação exterior, sendo “vontade cumprida” na forma de ação, também influiria no movimento dos personagens em busca de seus fins.

Ressalte-se que a ação seria dramática somente se, em sua progressão e consoante a essência dos fins perseguidos pelo agente, a busca principal inspirasse e confrontasse paixões e fins opostos, moralmente justificados. Por isso, a ação do drama teria o desenvolvimento saturado por uma série de conflitos, choques e oposições que dificultam a realização dos desejos que motivam o indivíduo. É justamente esse terreno ficcional clivado de circunstâncias adversas, formando um cenário densamente conflituoso, que define a unidade da ação da fábula hegeliana como movimento que progride inapelavelmente para a catástrofe. Dependendo de como os conflitos são articuladores na economia do texto dramático, a totalidade da ação tece uma tensão conflitiva insustentável que, inconciliável, consome a contradição primeira em catástrofe final: “Por um lado, tudo tende para a explosão deste conflito e, por outro lado, o desacordo e a contradição entre maneiras de pensar, fins e atividades contrárias exigem uma solução, de modo que tudo converge para este resultado” (HEGEL, 1984, p. 291).

Objeto estético que expressa o mundo interior da alma dos personagens no presente da ação, seguindo a dinâmica entre avanço e colisão com as manifestações exteriores da realidade objetiva, os caracteres do drama só realizam os fins que perseguem violando as instâncias que o contradizem. Todavia, não podemos esquecer que, para Hegel, o drama não teria como princípio a colisão entre subjetividades de fins opostos (HEGEL, 1984, p. 324-325), mas a possibilidade de conciliação entre os agentes em disputa. Com isso, efetuado o apaziguamento das conflagrações, haveria a justa manifestação dos fins morais que motivaram o conflito, pois, a moral, causa e fim derradeiro de todas as tragédias humanas, seria a realização profana da ordem superior e substancial, o divino.

Assim, a ação dramática faria parte de um corpo ficcional regido pela razão e pela inter-relação de todos os membros que compõem a totalidade orgânica do mythos. A ação dramática que progride pela sucessão de conflitos teria uma intriga coesa em que todos os episódios relacionam-se sistematicamente até unificar a trajetória do agente no centro da fábula. De maneira que, condensando os fatos secundários no sintagma da ação, os eventos miúdos contribuem para a progressão dramática e para os fundamentos dialéticos do drama, quiçá, imagem menor do sistema de relações que rege o todo da realidade sensível.

Por sua vez, aceitando Hegel como ponto culminante do pensamento dialético, Peter Szondi assume um lugar na tradição crítica que relaciona teoria estética e historicidade das formas dramáticas. Para o ensaísta húngaro, o drama é a arte que atua na esfera do “entre”. Isto é, tendo como base o diálogo dos personagens, o drama depende das relações inter-humanas e da presença de um sujeito livre capaz de tomar decisões (o indivíduo consciente de seus fins em Hegel). Somente pelo poder de decisão, a interioridade desse sujeito autônomo - o indivíduo burguês - poderia vir à tona nas situações dramáticas e nas trocas intercomunicativas. Dessa forma, é na esfera do “entre”, das relações intersubjetivas, que tal sujeito expressa-se linguisticamente através do diálogo com outros personagens.

Como a ação dramática só poderia reconhecer o que advém dessas esferas, todo o espaço do drama obedeceria a uma dialética fechada sobre si mesma; aberta, provisoriamente, somente quando a progressão dramática desencadear as ações no presente da enunciação das cenas. É esse fechamento do mythos que daria ao drama o caráter de “absoluto”, ou melhor, uma fábula sem relação com nada que extrapole o diálogo e as relações intersubjetivas entre sujeitos dotados da capacidade de decidir. “Por ser pura relação, para poder entre outras palavras, ser dramático, ele [o drama] deve desvencilhar-se de tudo o que é exterior. O drama não conhece nada fora de si.” (SZONDI, 2011, p. 25).

Mantendo-se nessa realidade ficcional fechada, o drama aceitaria somente o tempo presente, dando a impressão de que as ações ocorreriam no momento de sua representação em cena. O que, em termos, também o caracterizaria como primário. Porque, colocando-se a si mesmo em cena, o drama não seria a representação secundária de algo dado: “Sua ação, como cada uma de suas réplicas, é originária, realiza-se no ato mesmo de seu surgimento” (SZONDI, 2011, p. 26). Na verdade, preservando os rastros da estética idealista, a fábula deveria se individualizar do mundo exterior como “realidade vivente” representada em ato no movimento sintagmático das ações (HEGEL, 1984, p. 301).

Consentindo apenas com o tempo presente, à medida que as coisas acontecem, o drama seria uma sequência absoluta de presentes e, dessa forma, instituiria seu próprio tempo. Nessa razão, a descontinuidade temporal das cenas iria contra o princípio fundamental da sequência de presentes absolutos, rompendo o antes e o depois das relações inter-humanas. “Por isso”, nota Szondi, “cada momento [do drama] tem de conter em si o germe do futuro, ser prenhe de futuro” (SZONDI, 2011, p. 27; COSTA, 2012, p. 15). É, portanto, uma concepção dialética da ação dramática, na qual as relações intersubjetivas possibilitam o diálogo, e este, por sua vez, engendra a sequência das ações em um presente que se renova constantemente.

Todavia, em que pese os vestígios de Hegel na definição das linhas dialéticas de conformação da ação, parece que, no decorrer do tempo, o “drama absoluto” teria se transformado em “forma ideal” para uma sociedade ávida por mero divertimento no teatro. Iná Camargo Costa, estudiosa do teatro épico, problematiza o “drama absoluto” de Szondi enquanto uma forma-mercadoria ideologicamente comprometida com a produção cultural e o entretenimento burguês, para a qual convergem, de fato, proposições aristotélico-hegelianas. Em um contexto no qual a forma cultural sedimentaria a ideologia das classes dominantes, o drama seria a “régua e compasso” de uma fábula adequada à recepção e ao consumo dessa sociedade:

Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do séc. XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social construída a partir de indivíduos [...] e tem por objeto a configuração das suas relações, chamadas intersubjetivas, através do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática, e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre-iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. Através do diálogo, as relações vão se criando e entrelaçando de modo a produzir uma espécie de tecido, por isso mesmo chamado de enredo ou entrecho, devendo ter claramente início, meio e fim (de preferência nesta ordem), com direito a nó dramático, nó cego, desenlace, etc. Um dos valores mais cuidadosamente cultivados nesta concepção dramática de enredo é o suspense: o público não pode saber de antemão o final da história, devendo ficar “preso” a ela pela curiosidade em relação ao desfecho, e os autores conhecem técnicas sofisticadíssimas para preservar e arrastar esse suspense até o fim (COSTA, 2012, p. 15).

Enfim, é esse “drama absoluto” (imagem desgastada do “belo animal” de Aristóteles) e seu avatar, a peça-bem-feita, que entraria em crise na modernidade, à medida que essa forma, comprometida com os valores burgueses, torna-se desajustada para configurar os conteúdos pulsionais, históricos e as contradições sociais que necessitavam ser expressas no palco (SZONDI, 2011, p. 30; SARRAZAC, 2012, p. 82).

O drama pós-catástrofe

Nas escritas dramáticas modernas e contemporâneas o mythos não aceitaria mais a metáfora orgânica do belo animal. A imagem do belo animal e sua crise seria a própria crise do paradigma organicista da fábula. Retirada da biologia, a compreensão da fábula como totalidade fisiológica seria uma metáfora central da estética do teatro e teria promovido o desenvolvimento do drama no decorrer do tempo. Seguindo um modelo positivo da fábula, para além da “invenção de mundos imaginários”, o belo animal seria uma “estrutura de racionalidade” e um modelo de teatro em que o pensamento se realiza no ato da representação (RANCIÈRE, 2017, p. 128).

O “modelo positivo” da ação dramática também estaria refletido nas imagens do corpo orgânico, ordenado entre as partes, expressa pela analogia do organismo no qual todos os membros estão coordenados e submetidos a um centro ordenador. Nessa imagem orgânica, a representação teatral seria o lugar da efetivação visual de um esquema intelectual, organizado em ações e no debate de discursos (RANCIÈRE, 2017, p. 128). Não obstante, tal ordem das representações estaria comprometida com um paradigma hierarquizado do corpo orgânico bem ordenado e em uma associação entre concepções estéticas e organização do corpo social. Nela, os membros superiores teriam poder de comando sobre os inferiores, isto é, o homem da livre iniciativa deveria atuar sobre a vida dos “homens sem qualidade” (RANCIÈRE, 2013, p. 15).

Para Rancière, as mutações estéticas da modernidade teriam se desenvolvido como uma “interminável ruptura” com o modelo hierárquico do corpo, da fábula e da unidade da ação (RANCIÈRE, 2013, p. 14-15). Opondo-se às imagens orgânicas de totalidade das formas, o regime estético das artes poderia ser simbolizado por uma estátua cujo corpo estaria mutilado. Faltando partes que completem esse corpo metafórico, o paradigma estético da literatura e das artes se constitui contra a ordem das representações que o definia como “corpo de membros bem ajustados”, a literatura como fluxo narrativo e a fábula como ações ordenadas: “O modelo do vivo é, agora, o sistema nervoso, uma rede sem fim de fibras e de sinapses que não se deixa aprisionar em uma unidade de um organismo ou mobilizar na unidade de ação.” (RANCIÈRE, 2017, p. 130).

O desvio da fábula, do “belo animal” para o sistema nervoso, não é outro senão a preconização da morte da fábula como um organismo identificável na natureza. Se a prescrição do esfacelamento e morte do belo animal não cansa de se repetir no drama moderno, também é significativo que a textualidade dramática continue produzindo formas dissonantes, deslocadas para metáforas mais adequadas a uma visão descentralizada da fábula (KUNTZ, 2012, p. 43).

Dessa forma, o que denominamos de drama pós-catástrofe está relacionado às transformações que ocorreram no seio das escritas dramáticas desde o final do séc. XIX, notadamente a desterritorialização da fábula teatral. Opondo-se às concepções críticas que entendem a crise do drama moderno, como teorizado por Peter Szondi, como um percurso teleológico e progressivo para o teatro épico, e descartando as defesas da ruína do drama, Jean-Pierre Sarrazac defende que, na modernidade teatral, o drama teria passado por uma mudança de paradigma. Para o crítico francês, é justamente as bases teleológicas do “modelo crísico” de Szondi que precisariam ser revistas, ou melhor, o que na análise das peças deixava entrever a sombra de Hegel e, de certo modo, a de Brecht do Pequeno Organon para o teatro (SARRAZAC, 2011b, p. 39; SARRAZAC, 2017, p. XVI).

O belo animal estaria se desfazendo desde a crise do drama, mas diferentemente de Peter Szondi, o ensaísta francês não entende essa trajetória do teatro moderno como evolução para o épico. As dramaturgias modernas e contemporâneas confirmariam, na verdade, uma mudança de paradigma na qual as escritas dramáticas tenderiam para a perda da tensão e do conflito, mas não da ação propriamente dita que, por sua vez, não seguiria mais a lógica sintagmática. Haveria a substituição da concepção orgânica do drama, devedora das concepções aristotélica-hegelianas, para uma progressiva ruptura interna à escrita teatral, na qual as tensões (e contradições necessárias) teriam aberto a fábula para a dinâmica da desordem, do colapso e da reinvenção.

É nesse sentido que, desde o final do séc. XIX, a forma dramática não cessaria de desabar sobre si mesma e, a cada obra teatral, significaria que o drama se “reinventa para se reerguer” (SARRAZAC, 2017, p. XVIII). Adotando uma “desordem organizadora”, a fábula deixaria a lógica aristotélica-hegeliana, baseada no ordenamento sintagmático das ações, no primado do tempo presente, no diálogo e nas relações intersubjetivas, para seguir uma lógica paradigmática. Nessa mudança, a disposição dos atos acolheria princípios mais afins à fragmentação, à montagem e ao registro de uma fábula sem unidade definida: “A forma sem começo, sem fim ou meio impõe-se desde então como matriz do drama moderno” (SARRAZAC, 2017, p. 12). Princípios reguladores do belo animal - como a ordem, a extensão e a completude - não seriam mais preponderantes na cena teatral. A diegese seria, inclusive, incorporada ao drama que, por sua vez, aproxima-se de modalidades como as formas do épico, do discurso filosófico e da forma-testemunho.

Processo complexo, os caminhos do drama moderno e contemporâneo estariam compreendidos em uma evolução dinâmica, heterodoxa, quiçá caótica, na qual o mythos, ao se desvencilhar da imagem do belo animal, toma a aparência dos animais híbridos de algumas narrativas de Kafka (SARRAZAC, 2002, p. 53; KUNTZ, 2012, p. 42-43). De fato, no conto Um cruzamento, a que se refere Sarrazac, o animal, metade gato metade cordeiro, é um ser que possui naturezas interseccionadas, com características e comportamentos felinos e caprinos. Diferente do belo animal, apontado por Aristóteles como espelho da ação trágica, na parábola kafkiana a imagem monstruosa do animal, composto por características e comportamentos duplos, rasura as afinidades entre arte e natureza que sustentavam a imagem clássica.

Herança do falecido pai do narrador, o animal não se reconhece na presença nem de gatos nem de cordeiros. Ser essencialmente diferente das duas matrizes cruzadas, o animal rejeita, assim, a classificação taxonômica conhecida. Podendo, inclusive, vir a assumir características anatômicas e afetivas de outras criaturas, mesclando atitudes e comportamentos animais com humanos, em uma metamorfose sem limites (KAFKA, 2002, p.98-100). Sua possível e adiada morte, suscitada pelo narrador como libertação de uma condição corporal incerta, transparece como fim de um ser que desafia as leis da natureza.

Na imagem do animal híbrido estaria a metáfora da heterogeneidade das formas nas escritas dramáticas modernas e contemporâneas, inscrições da fábula que tenderiam à decomposição e remontagem da ação (KUNTZ, 2012, p. 42; RYNGAERT, 2013, p. 96; SARRAZAC, 2002, p. 54). Sem núcleo nevrálgico e híbrido, como o animal de Kafka, o drama contemporâneo multiplica os possíveis da fábula e recusa seu esgotamento. Composto de partes e recursos estéticos de outros gêneros do discurso, é uma simbiose de textos, modos e modulações literárias que, inclusive, prescindem de unidade orgânica. Sarrazac fala de um desenvolvimento teratológico e errático do drama que seria marcado pela “junção descosida de ações”, pela “estrutura episódica” e pela “junção de elementos refratários uns aos outros” (SARRAZAC, 2013, p.75, SARRAZAC, 2011b, p. 45).

Em verdade, as concepções de Jean-Pierre Sarrazac sustentam-se na oposição entre “o drama absoluto” (o belo animal) a que chamará de drama-na-vida e os possíveis da fábula - o “sistema nervoso” de Jacques Rancière - que denominará de drama-da-vida. Entre as duas modalidades, acentuam-se as ressignificações da catástrofe em uma ação que não se caracteriza mais pelo conflito e pela progressão dramática, mas que assume, efetivamente, um caráter retrospectivo na intenção de abarcar todo o itinerário de uma existência:

O drama-na-vida remete para uma forma dramática assente em uma grande reviravolta da sorte - passagem da felicidade à infelicidade ou o contrário -, num grande conflito dramático, composto por um “princípio, meio e fim”. Em suma assente num desenvolvimento ao mesmo tempo orgânico e lógico da ação. Por seu lado, o drama-da-vida não se limita àquilo que Sófocles chama uma “jornada fatal”: ele contraria as unidades de tempo, lugar e até de ação e a sua duração sobre toda uma vida. Para abarcar a totalidade da existência, o drama da vida recorre à retrospecção - até aí o privilégio do épico - e a procedimentos da montagem. De fato, o drama-da-vida marca uma mudança decisiva na medida do drama, quer dizer, na sua duração, mas também no seu ritmo interno. O drama-na-vida correspondia intimamente a um momento da vida dos heróis; a duração do drama-da-vida é inversamente proporcional à intensidade da existência do drama comum (SARRAZAC, 2011b, p. 40).

O modelo do drama-na-vida, da racionalidade positiva e do saber, seria adequado para a representação da linearidade do tempo humano, “ele se desenrola sempre no sentido da vida, quer dizer, do nascimento para a morte”, aceitando, muitas vezes, a correlação determinista entre “destino e fatalidade” (SARRAZAC, 2017, p. 52). Já o drama-da-vida quebraria a contiguidade dos eventos e, em sentido involutivo e lacunoso, levaria a ação para trás, “contra a vida de alguma forma”. Por isso, o drama alteraria o sentido da ação, compondo-se como dramaturgia “não do ‘antes’, mas do pós-catástrofe” (SARRAZAC, 2009, p. 87).

A catástrofe, não custa lembrar, era definida na Poética como “uma ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e os mais casos semelhantes” (Poét. XI, 64). Catástrofe que, no mythos complexo, ocorria preferencialmente após a peripeteia e a anagnorisis. E mais, sendo o desdobramento compositivo imediato da reviravolta da situação da ação, a catástrofe era assistida pela produção de um efeito violento e comovente, o pathos.

No teatro moderno, a grande reviravolta do drama é uma ação na qual a catástrofe, o evento extremo e lutuoso de uma vida, já aconteceu. De categoria estrutural alocada no final da fábula - um evento terrível que selava o destino trágico do herói - a catástrofe passa a ser fundacional, deflagradora mesmo da ação dramática (KUNTZ; NAUGRETTE; RIVIÈRE, 2012, p. 47; SARRAZAC, 2013, p. 78). Os desastres da vida dos personagens já foram significativamente consumados quando a peça inicia, restando as complexas tentativas de elucidação desses eventos.

Nesse sentido, o deslocamento da catástrofe modifica potencialmente a estrutura da fábula, visto que, na modernidade, uma peça teatral não seria mais escrita em função do seu fim trágico, em uma crescente progressão até a resolução do conflito. Acometido de “dispositivos de retorno”, o drama da “catástrofe já acontecida” não obedece mais à progressão dramática e seu continuum, desfazendo o sentido da ação em uma série de momentos relativamente autônomos (SARRAZAC, 2017, p. 20). Segundo o ensaísta, a ação seguiria o encadeamento das diferentes situações e acontecimentos que, simultaneamente, fizeram com que “se chegasse à catástrofe e o que teria permitido, o que permitiria que ela fosse evitada, o que permitiria que se tivesse tomado outro caminho” (SARRAZAC, 2013, p. 84). Um encadeamento, portanto, não mais sintagmático, mas paradigmático dos atos que compõem a fábula.

Na reconversão da progressão da ação, a paisagem teatral é contaminada por dispositivos retrospectivos, enquanto operações fundamentais no desenho de uma dramaturgia da intrasubjetividade tomada, muitas vezes, por gestos testemunhais e confessionais. Por esse motivo, o caráter nostálgico, reparador e investigativo pelo qual muitas peças teatrais parecem ser dominadas. Nelas, a fábula seria processada em “um sentido quase judiciário”: os atos interviriam cada vez menos de acordo com o encadeamento dramático (o “belo animal”) e mais conforme o gesto de reconstituição e instrução processual dos acontecimentos passados (SARRAZAC, 2017, p. 10). E, como toda reconstituição, os fatos passados apareceriam em pedaços, em testemunhos e revelações dispersos no corpo do drama.

Dada a inversão da organização da fábula, o drama não seria mais representado, no sentido de uma ação a ser representada em cena sequencialmente, revelando as situações à medida que acontecem diante do espectador. Mas o que seria encenado seria um “voltar-se para o drama”. Se no drama a ação conflituosa e catastrófica já ocorreu, consumado que foi o evento terrível, restaria agora processar a ação passada. Tentar entendê-la, esquadrinhá-la, reprocessar os acontecimentos seja por via do personagem que rememora, a Paixão, seja por terceiros, o Processo. Em ambas as modulações da textualidade teatral, claramente devedoras das reconfigurações da catástrofe e das inscrições da memória em cena, o teatro refaz os sentidos de uma ação sustentada pelo movimento da reprise, da repetição e do testemunho, político ou íntimo, de uma violência primordial fundadora do mythos.

O paradigma testemunhal

A aproximação entre fábula teatral e forma-testemunho, apesar da orientação judiciária atribuída por Sarrazac, encontra em Bertolt Brecht uma significativa tentativa de justaposição entre mímesis e diegesis. É no ensaio sobre a “cena de rua” que o diretor alemão insere, efetivamente, a forma-testemunho na teoria da ação do drama épico e na modernidade teatral. Para Brecht, na “cena de rua” estaria o modelo de uma cena-padrão do teatro épico, situação na qual um narrador-testemunha presencia e relata um acontecimento - um acidente de trânsito - para terceiros. A cena exemplar conteria o esquema teórico do teatro épico (inclusive a luta de classes), facilmente reconhecido em qualquer episódio quotidiano.

No ato do narrador-testemunha, as versões do motorista e do acidentado deveriam ser contrapostas, de maneira que “os circunstantes tenham possibilidade de formar um juízo crítico sobre o acidente” (BRECHT, 1978, p. 67). Para atingir esse efeito, Brecht estabelece uma dissociação entre a cena da narração (a narração da testemunha) e o acontecimento (a cena representada). Estabelecida a separação, o narrador deveria desempenhar seu trabalho a partir de uma atuação distanciada (“com uma determinada reserva, com certa distância”), evitando, dessa forma, a delimitação clara dos caracteres (SARRAZAC, 2017, p. 179).

Aparentemente trivial, essa aposta na atuação distanciada era uma clara atenção à não identificação entre narrador-testemunha e vítima do acidente, evidenciando a intenção de sempre submeter a cena a uma atitude crítica. “Em suma, o ator não deve jamais abandonar a atitude de narrador; tem de nos apresentar a pessoa que estiver descrevendo como alguém que lhe é estranho; no seu desempenho não deverá nunca faltar a sugestão de uma terceira pessoa” (BRECHT, 1978, p. 73). Nessa atuação em terceira pessoa, estaria a duplicidade típica que o narrador-testemunha deveria empregar, mantendo a distinção entre ator (narrador) e personagem:

Não se esquece jamais, e nem tampouco permite que ninguém se esqueça, de que quem está em cena não é a pessoa descrita, mas, sim, a que faz a descrição. Ou seja, o que o público vê não é uma fusão entre quem descreve e quem está sendo descrito, não é um terceiro, autônomo e não contraditório, com contornos diluídos do primeiro (o que faz a descrição) e do segundo (o que é descrito), tal como é costume deparar-se no teatro que por aí se faz habitualmente. As opiniões e os sentimentos do indivíduo que descreve e do que é descrito não estão sintonizados (BRECHT, 1978, p. 74).

Sem penetrar totalmente na personagem, permanecendo “na soleira”, o ator mantem-se estranho às figuras que vivenciaram o acontecimento relatado. Em verdade, para o teatro de Brecht, o trabalho cindido do ator-personagem deveria se assemelhar às atitudes e gestos da testemunha ocular do acidente de trânsito, sem autonomia e influenciável pelas intervenções do dramaturgo. Por isso, para Jean-Pierre Sarrazac, a estrutura ator-personagem do drama épico constitui-se como reflexiva, sendo “inteiramente orientada para o testemunho” (SARRAZAC, 2017, p. 179).

Na categoria do “estranho”, Walter Benjamin também encontrara o exemplo mais simples de um sujeito épico que aparece repentinamente e testemunha uma cena familiar. Para Benjamin, o estrangeiro teria a mesma função que o sujeito épico para Peter Szondi, a de comentar as cenas do drama que se passam com outras figuras ficcionais, caracterizando, na verdade, uma espécie de voz do dramaturgo inscrita nesse personagem-narrador. “Mas há um olhar”, diz o filósofo, “perante o qual as cenas mais banais da vida de hoje se apresentam de uma forma muito diferente, é o olhar do dramaturgo no teatro épico” (BENJAMIN, 2017a, p. 102; SARRAZAC, 2017, p. 180).

É nesse sentido que, na teoria de Brecht, o drama constitui-se como um significativo esforço para restituir, por meio da forma-testemunho, a estrutura do Processo no teatro moderno (SARRAZAC, 2013, p. 82). Nota-se que a dialética entre vítima do acidente e narrador-testemunha só seria possível por uma outra dialética que ocorreria entre mimesis e diegesis, isto é, uma constante oscilação entre narrador-testemunha e personagem, entre figuras ficcionais que falam por si mesmas e narrador que testemunha o que se passou com terceiros (SARRAZAC, 2011a, p. 15). Nesse entrecruzamento de regimes discursivos, o drama épico aproxima-se do gênero híbrido e teria como princípio a inserção do ponto de vista do narrador (o narrador-testemunha) entre os episódios da ação representada.

Essas implicações estendem-se a uma fábula que processa acontecimentos já consumados, o acidente de trânsito em Brecht, a cena familiar em Benjamin. E que, por isso, na estrutura invertida da fábula que caracteriza o Processo, reconstitui retrospectivamente os eventos que, de modo efetivo, concorreram para produzir a catástrofe. Observa-se que, nesse caso, na dramaturgia como Processo, o desenvolvimento da ação seria suspenso para vigorar o seu comentário distanciado, o debate entre narrador-testemunha e ouvintes.

Quando o objetivo da representação teatral é permitir aos espectadores formar uma opinião a respeito dos acontecimentos constitutivos da fábula, é todo o movimento do teatro que se vê invertido. A marcha do teatro não se faz mais, segundo o princípio lógico e orgânico do fluxo dramático, das causas em direção às consequências, mas, ao contrário, inversamente, segundo um processo recorrente, num remontar dos acontecimentos a suas causas. É assim que o desenrolar da ação é incessantemente interrompido por seu próprio comentário (SARRAZAC, 2013, p. 79-80).

Na Paixão, a outra modalidade de tratamento testemunhal da fábula moderna, a experiência individual de uma única personagem seria dominante sobre a ação dramática. Na escala de Sarrazac, a Paixão é a representação teatral do itinerário de uma vida em sofrimento, o drama do homem que refaz as estações e provações da sua existência, como no modelo cristão da via crucis, o caminho doloroso (SARRAZAC, 2017, p. 57). Por esse motivo, na Paixão, a memória da trajetória de sofrimentos do ser humano designa um drama no qual o personagem atua como testemunha de si mesmo e, nesse sentido, recupera a imagem do personagem-testemunha enquanto mártir (martus). Isto é, aquele que sobreviveu à catástrofe, aos acontecimentos extremos e, por conseguinte, pode narrar a experiência de que fora paciente.

De certo modo, o drama como Paixão reabilita o potencial dramático da experiência traumática. Pois o personagem dominante, ao sobreviver à experiência dolorosa, pode perlaborar os acontecimentos passados, ainda que por meio de elipses, repetições e de fragmentos desconexos. Na Paixão, em vez de desenvolver o drama-na-vida do conflito e dos caracteres com fins opostos, as cenas reapresentam partes descontínuas da agônica trajetória do agente. Nisso, na vã tentativa de tecer os fios de tempo que dariam sentido à sua existência, o personagem-testemunha pode, inclusive, reviver os fatos que o abalaram, atualizando a experiência negativa que fundou o trauma: “Instrumento extremamente flexível na medida em que, não sendo um narrador externo, essa personagem-recordante fica permeável a todas as emoções que permitem a lembrança, ou melhor, a revivescência do drama anterior” (SARRAZAC, 2017, p. 177).

Enquanto o drama como Processo adota o comentário crítico e jurídico das ações, reivindicando a verdade e a reparação das injustiças sofridas pelas vítimas, na Paixão a experiência do personagem sobrevivente delineia uma representação literária que se defronta diretamente com as aporias da forma-testemunho. Modalidade narrativa que, preliminarmente, representa a barbárie dos campos de concentração e extermínio nazista, a forma-testemunho acolheria em seu seio um paradoxo ético fundamental, como apontado por Primo Levi em Os afogados e os sobreviventes. Para o escritor italiano, os deportados que sobreviveram à Shoah não seriam as autênticas testemunhas, visto que não teriam se confrontado com o limite da morte (LEVI, 2004, p. 72). Os que realmente fitaram “a Górgona” foram mortos ou retornaram mudos e, por isso, nada podem contar, não podem testemunhar por suas próprias vozes. No entanto, são eles, os muçulmanos, os mortos-vivos (os não sujeitos, diz Primo Levi) que seriam as testemunhas integrais por excelência.

Resultado da imensa experiência biológica e social perpetrada pelos nazistas no lager, os muçulmanos não discerniriam mais qualquer “limite ético” e, ainda em vida, teriam perdido a faculdade da palavra, a capacidade de recordar, de observar e de expressar-se (SARLO, 2007, p. 35; LEVI, 1988, p. 132). Os sobreviventes, por sua vez, não conheceram “a função última do campo”, pois não teriam sido submetidos a ela por completo e, por isso, não teriam nada muito interessante para dizer. Os sobreviventes só poderiam falar no lugar dos que foram silenciados pela máquina de dessubjetivação que domina o campo. Assim, para Levi, o testemunho dos sobreviventes estaria marcado pela ausência daqueles que não podem se pronunciar, transformados que foram no não-humano (LEVI, 2004, p. 73; AGAMBEN, 2008, p. 124).

E mais, o testemunho do sobrevivente não se assenta em um gesto vicário das vozes que não conseguiram se salvar. Ele ocupa um lugar enunciativo que não lhe corresponde e, justamente porque não atingiu o fundo da degradação e da morte no campo, seu testemunho é a transmissão de uma experiência deficiente e incompleta. A testemunha nem pode ser constituída moralmente como representante dos que submergiram, uma vez que pode testemunhar apenas porque não pereceu no lugar dos outros. Nas palavras de Camillo Penna:

A impossibilidade do testemunho consiste precisamente no fato de sua possibilidade ser fundada na fala que falta, daquele que essencialmente não fala, daquele que ausente e que o testemunho presentifica por procuração, mas que ao mesmo tempo fala através de mim, enquanto eu que falo me silencio. O testemunho é a enunciação cuja legitimidade repousa sobre uma ilegitimidade, a ilegitimidade da sobrevida; mas é enquanto fala do, e para, o outro que ele pode ilegitimamente existir (PENNA, 2013, p. 62).

Na impossibilidade de testemunhar, contraposta à possibilidade de falar, estaria o espaço intersticial que alimenta o paradoxo do testemunho, e onde um sujeito ausente fala através do discurso do outro. Para Agamben, o que resta desse paradoxo é a impotência de uma fala que transparece e se realiza por meio do testemunho do sobrevivente. O sobrevivente, então, testemunharia a partir de uma impossibilidade e, ao fazê-lo, permite que o muçulmano, o inumano, também testemunhe através de sua voz. No testemunho, sobrevivente e muçulmano, homem e não-homem, entrariam em “uma zona de indistinção na qual é impossível estabelecer a posição de sujeito, identificar a ‘substância sonhada’ do eu e, com ela, a verdadeira testemunha” (AGAMBEN, 2008, p. 124; CASTRO, 2012, p. 99). Na enunciação testemunhal, o “sujeito” que fala seria uma voz bifurcada para essas duas instâncias oriundas do campo, o homem e sua própria negação. A possibilidade de falar através da impossibilidade de falar definiria, em síntese, a estrutura e a potência básica do testemunho. “O sujeito do testemunho, a testemunha, é por isso um sujeito inevitavelmente cindido; sua consistência é a desconexão entre possibilidade e impossibilidade, entre sujeito e não sujeito, entre o humano e o inumano.” (CASTRO, 2012, p. 98-99).

O drama, como Paixão testemunhada, também seria acometido por esse discurso em nome de terceiros, pela enunciação de uma voz fraturada que, no palco, enuncia os fatos passados condicionada, muitas vezes, por uma delegação moral. Como no testemunho da Shoah, na Paixão haveria uma espécie de duplicação da voz testemunhal, uma fala bipartida entre o sujeito que testemunha as suas vivências e a voz que não pode se pronunciar, mas a quem o personagem se esforça para atribuir a palavra (SARRAZAC, 2013, p. 81; SARRAZAC, 2017, p. 184). A voz que fala no drama da Paixão estaria, portanto, contaminada pela presença do não-homem, daquele a quem se empresta a voz para, de alguma forma, romper a mudez de seu sofrimento.

No pensamento de Jean-Pierre Sarrazac, para além de níveis de registros, a forma-testemunho seria estrutural à economia textual das escritas dramáticas modernas e contemporâneas. Paixão e Processo assinalariam, inclusive, os rastros latino e jurídico que acompanham a dupla definição terminológica da palavra testemunha. A testemunha como testis, “aquele que se põe como terceiro (terstis) em um processo ou em um litígio entre dois contendores”. E o superstes, que orienta a testemunha como um indivíduo que “viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso” (AGAMBEN, 2008, p. 27; PENNA, 2013, p. 70).

A testemunha congrega, desse modo, os dois movimentos de sentido, aquele que presencia um evento e fala no tribunal como terceiro em um pleito jurídico, atestando a própria palavra - o drama como Processo. E aquele que, sendo o sujeito da experiência, sobreviveu aos eventos testemunhados - o drama como Paixão. Logo, o drama como testemunho é tanto de um sujeito que fala para além da sua experiência quanto o daquele que se expressa a partir da experiência a que sobreviveu. Em uma e na outra, no limite da representação, estaria sempre a sombra de uma experiência atroz que não poderia ser enunciada.

As duas formas organizadoras da fábula, a Paixão e o Processo, deflagradoras de um teatro do retorno, necessitam ser compreendidas de modo conjugado e complementar. Pois, como conclui Sarrazac, “no cruzamento entre a Paixão e o Processo, está o espaço por excelência do drama moderno e contemporâneo: o lugar onde o íntimo (testemunhar sobre si mesmo) e o político (testemunhar sobre o mundo) se interpenetram” (SARRAZAC, 2013, p. 89). Em ambas as modalidades do drama pós-catástrofe, a representação da vida em toda sua extensão (o voltar-se sobre o drama-da-vida) engendra uma cena na qual a teoria da ação aristotélica-hegeliana, o “belo animal”, torna-se frágil para dar conta da fábula aberta ao passado, à forma-testemunho e aos processos mnemônicos da personagem-recordante.

Quiçá seja essa forma compósita da dramaturgia como testemunho, misto de mimesis e diegesis, a que se refere Walter Benjamin quando fala de uma tradição que chegara ao teatro de Brecht, vinda dos diálogos de Platão e da Paixão do Cristo medieval, por um caminho “mal sinalizado”, uma “trilha furtiva e de contrabando”. Nessa tradição, o sábio e observador imparcial, o narrador-testemunha, figura como o herói não trágico por excelência de um drama que desafia seus limites (BENJAMIN, 2017b, p. 25). E a que se atém Jean-Pierre Sarrazac quando, baseado na mesma genealogia da “Paixão do Homem”, conclui que o drama de Sócrates-Cristo seria o modelo da proposta mais moderna para a ação dramática (SARRAZAC, 2013, p. 92). Uma fábula teatral na qual confluem a testemunha e o mártir, a “imitação” e o “relato direto” e, em cuja textualidade, a separação entre ficção e realidade estaria sob o signo do indecidível.

Referências

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  • Parecer Final dos Editore
    s Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
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