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De procedimentos e alguma barbárie

About procedures and some barbarism

Resumo

O conceito de procedimento desenvolvido pelo escritor argentino César Aira no ensaio “La nueva escritura” é o ponto de partida com o qual se busca, num gesto crítico que encena certa barbárie, especular em torno de uma provocação do chileno Roberto Bolaño: haveria um “surrealismo clandestino na América Latina”?

Palavras-chave:
surrealismo; arquivo; procedimento; barbárie

Abstract:

The concept of procedure developed by the Argentine writer César Aira in his essay “La nueva escritura” is the starting point with which, in a critical gesture that stages a certain barbarism, this paper seeks to speculate around a provocation by the Chilean Roberto Bolaño: could there be a “clandestine surrealism in Latin America”?

Keywords:
surrealism; archive; procedure; barbarism

Resumen

El concepto de procedimiento desarrollado por el escritor argentino César Aira en el ensayo “La nueva escritura” es el punto de partida con el que, en un gesto crítico que escenifica cierta barbarie, se busca especular en torno a una provocación del chileno Roberto Bolaño: ¿habría un “surrealismo clandestino en América Latina”?

Palabras-clave:
surrealismo; archivo; procedimento; barbárie

Começo este artigo pela primeira parte de seu título - os procedimentos. Isso significa olhar um tanto a Oeste e a Sul, mais especificamente para o uso e o valor da ideia de procedimento num escritor argentino que publica pequenas e muitas ficções, César Aira. Ao longo do tempo, o autor de Como me tornei freira, O congresso de literatura e A costureira e o vento formulou sua noção de procedimento em diferentes ensaios, tais como Ars narrativa, de 1993, Raymond Roussel - a chave unificada, de 2011, e A nova escritura, de 1998. Neste último, com um olho no presente e outro no passado, a ideia está vinculada sobretudo às práticas artísticas das vanguardas históricas: César Aira proporá que a arte que lhe interessa é o conjunto de práticas sociais reinventadas no início do século XX - práticas cuja duração, segundo ele, ainda se faz (ou deveria) se fazer sentir.1 1 Sob outra ótica, a questão da duração das práticas vanguardistas na produção contemporânea vem sendo discutida no Brasil por Marcos Siscar. Suas considerações sobre o tema do “fim das vanguardas” no contexto das produções crítica e poética brasileiras das últimas décadas apontam para um desejo mais ou menos coletivo de “‘virar a página’ da história” vanguardista, desejo que também seria o índice de um impulso não confessado em direção à ruptura tipicamente vanguardista (SISCAR, 2016, p. 68-69).

Tal reinvenção teria sido uma resposta radical, entre o fim do século XIX e o início do século XX, ao esgotamento formal com que se depararam os fazeres artísticos - então ultraprofissionalizados, presos a um regime autônomo e a uma concepção burguesa e personalista de arte. Fez-se necessário, portanto, segundo o mito de origem contado por Aira, recomeçar do zero. E a ferramenta material encontrada para fazê-lo por cubistas, dadaístas, surrealistas, construtivistas, entre outras correntes, foi a do procedimento.

(...) entendidas como articuladoras de procedimentos, as vanguardas permanecem vigentes, carregando o século de mapas do tesouro que aguardam para ser explorados. Construtivismo, escrita automática, ready-made, dodecafonismo, cut-up, acaso objetivo, indeterminação. Os grandes artistas do século XX não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse (AIRA, 2007bAIRA, César. A nova escritura. In: Pequeno manual de procedimentos. Tradução de Eduard Marquardt. Curitiba: Editora Arte & Letra, 2007b. p. 11-18., p. 13).

Recorrer ao procedimento significou recolocar o processo no lugar de destaque em que se havia entronizado o resultado, mas também, como diz Aira, significou legar ao futuro um mapa do tesouro. Ou mesmo, como formulado em seu texto sobre Raymond Roussel, deixar uma espécie de testamento às gerações que vieram depois. Aira nos lembra que em Como escrevi alguns de meus livros, compilação de textos que Roussel deixou preparada para que fosse publicada postumamente, o escritor francês revela que criou alguns de seus escritos graças ao uso do Procedimento, com “P” maiúsculo: em vez da memória ou da imaginação, foram o acaso, e as combinações linguísticas e lexicais passíveis de serem realizadas com ele, que conduziram a escrita de trabalhos como Locus Solus.2 2 É o antropólogo Michel Leiris quem, em 1936, resume com clareza o Procedimento de Roussel ao comentar os segredos revelados no livro póstumo: “Deduz-se do ensaio introdutório que dá título ao livro, e do que se sabe, por outro lado, da maneira como trabalhava Roussel, que a criação literária dele podia se decompor em três fases: primeiro, a fabricação de trocadilhos ou de frases de duplo sentido (partindo de “qualquer coisa”, escreve ele), esses aspectos formais fortuitos suscitando os elementos a confrontar e pôr em obra; depois, o estabelecimento de uma trama lógica que unisse entre si estes elementos, por mais insólitos e diferentes que fossem; finalmente, a formulação dessas relações, da forma mais realista possível, em um texto escrito com o máximo de rigor, sem qualquer preocupação da forma pela forma, obedecendo apenas às regras de uso da gramática e do estilo. São necessárias várias reflexões sobre esse método” (LEIRIS, 2013, p. 61). Mas por que contar a todas as pessoas que parte de sua obra não tenha sido uma expressão de seu gênio? “Me parece que é meu dever revelá-lo, pois tenho a impressão de que escritores do futuro poderiam talvez explorá-lo com proveito”.3 3 Pensando a partir do futuro, um bom uso de tal mapa pode ser aquilo que escritores contemporâneos como o norte-americano Kenneth Goldsmith (2011), por exemplo, praticam sob o nome de “uncreative writing” e que a crítica literária Marjorie Perloff chamou de “gênio não original” (2013). (ROUSSEL apudAIRA, 2020AIRA, César. Raymond Russel ou a chave unificada. Revista Landa, v. 8. n. 2, p. 314-325, 2020. , p. 321)

No que diz respeito à poética airiana, ler tal mapa e traçar, a partir dele, um percurso, significa criar personagens que inventam receitas de como fazer, bem ao modo surrealista ou dadaísta: penso em Una novela china, Las curas milagrosas del doctor Aira e La trompeta de nimbre; penso também na aposta de Aira em prol do automatismo da escrita e na prática daquilo que ele chama de “huida hacia delante” - um modo de abandonar uma narrativa e começar outra, sempre tão distinta da anterior e nunca passível de ser retomada ou corrigida, numa dinâmica de escrita entre ruptura e continuidade bastante paradoxal e instigante.4 4 A esse respeito, conferir os comentários de Contreras (2019) e da Rosa (2019), bem como a formulação do próprio Aira em Ars narrativa (1994). Particularmente, quanto ao surrealismo, como o próprio Aira afirma em entrevista, o que de mais forte o liga ao movimento é a “formidável recuperação de livros e autores, e de releituras enriquecidas (...)” (AIRA, 2007aAIRA, César. “Asimetrías. Uma entrevista com César Aira”, por Benjamin S. Johnson. Artecontexto, n. 14, p. 28, 2007a., p. 28). Isso inclui, além de Raymond Roussel, o romance gótico, os românticos alemães e, claro, Lautréamont.

Numa fórmula elaborada pela crítica argentina Sandra Contreras, seria possível dizer que a literatura de Aira realiza uma operação importante: “(...) uma mudança na biblioteca vanguardista do romance argentino contemporâneo: uma singular volta às vanguardas históricas no fim do século XX” (CONTRERAS, 2019CONTRERAS, Sandra. Relato e sobrevivência. In: O congresso de literatura - Ensaios sobre César Aira. Copenhague/Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 5-48., p. 12). Singular porque se trata de um gesto que ultrapassa a produção ficcional de Aira à medida que o procedimento5 5 Em seu texto, Aira não faz nenhuma referência ao notório texto de Victor Chklovski, “A arte como procedimento”. Nesse que foi uma espécie de manifesto do formalismo russo, Chklovski defende a necessidade de se pensar a gênese do texto literário (e, mais amplamente, do objeto artístico) para além das vertentes historicistas, sociológicas e biográficas que reinavam até então, e não apenas na Rússia. Reivindicando um campo próprio para a despesa e a economia na língua poética, argumentando que a arte deve se valer de procedimentos que gerem uma experiência estética de estranhamento, capaz de desautomatizar a percepção do público, ele afirma: “E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que a pedra é pedra, existe o que se chama arte (...) O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento de singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção (...) O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já ‘passado’ não importa para a arte” (CHKLOVSKI, 1978, p. 45). Vale observar que se em Chklovski os exemplos de procedimento giram sobretudo em torno de Tolstoi, que não chamaria as coisas por seu nome, mas as descreveria como se as visse pela primeira vez, em Aira os procedimentos são cada vez menos vinculados a uma ideia de autoria ou a um estilo. pode servir a um só tempo como ferramenta artística e operador crítico, permitindo que o manejemos enquanto o vemos agir na literatura de outros autores. Singular também porque não se trata de seguir uma tradição ou, como se costumava dizer, de simplesmente assumir uma influência; tampouco de realizar, numa lógica que seria pós-modernista, um jogo ambíguo de apropriação e distanciamento irônicos sempre marcados pelo prefixo pós, ou seja, pela perspectiva linear de um “vir depois”. Aira realiza uma operação anacrônica, mais de aliança do que de filiação, à medida que insere a si e às vanguardas num mesmo tempo presente quando diz: “O vanguardista cria um procedimento próprio, um cânone próprio, um modo de recomeçar do zero o trabalho da arte. Faz isso porque em sua época, a nossa, os procedimentos tradicionais se mostraram concluídos, já feitos (...)” (AIRA, 2007bAIRA, César. A nova escritura. In: Pequeno manual de procedimentos. Tradução de Eduard Marquardt. Curitiba: Editora Arte & Letra, 2007b. p. 11-18., p.17, grifo do autor). E singular ainda mais uma vez à medida que operar uma mudança na biblioteca vanguardista com foco nos procedimentos significa reordenar as forças operantes nesse espaço - que, por sinal, é heterotópico, se aceitarmos a proposição de Michel Foucault num texto publicado postumamente, Outros espaços: a biblioteca, como o museu, seria um exemplo de lugar de desvio, lugar em que se pretende encerrar todos os tempos num só (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: N-1, 2013. , p. 25).

Nessa biblioteca de procedimentos, é para o surrealismo - o acaso objetivo, a escrita automática, a promenade e a montagem - que me interessa olhar, uma vez que esse arquivo não é uma exclusividade argentina quando se trata de literatura hispano-americana produzida nas últimas décadas. Penso em outros dois nomes, cujas ficções diferem tanto entre si quanto com relação à de Aira e que guardam conexões inusitadas com alguns procedimentos surrealistas e vanguardistas: o chileno Roberto Bolaño e o mexicano-peruano Mario Bellatin.

Se, neste artigo, Aira é antes de mais nada um interlocutor crítico, da literatura de Bellatin mencionarei somente alguns aspectos; o foco incidirá sobre trabalhos de Bolaño. Antes, porém, gostaria de voltar à imagem da biblioteca que apareceu aqui de forma direta, quando me referi à fórmula de Sandra Contreras, mas também indireta, na maneira com que Aira se dirige ao cânone heterocrônico que os surrealistas elegeram para si e a que ele, Aira, teve acesso: ali também uma biblioteca, ou melhor, um arquivo da cultura, se entendermos que o arquivo não é unicamente o lugar físico onde estão depositadas certas produções discursivas registradas em anotações, cartas, documentos, diários etc., mas, como indicou Michel Foucault, a positividade de um conjunto de enunciados, a possibilidade de sua existência, de sua emergência e de sua circulação em um determinado momento histórico. N’Arqueologia do saber, de 1969, ele diz:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas. O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade (FOUCALT, 2020FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2020 [1969]. , p. 158).

Se aos surrealistas coube fazer emergir, de uma só vez, Roussel e algumas estrelas distantes - Lautréamont, românticos alemães e romances góticos -, aproximando autores cujos projetos e localizações históricas eram distintos, aos escritores hispano-americanos aqui referidos parece valer a pena fazer funcionar, em suas ficções, procedimentos surrealistas e mesmo duchampianos - a respeito de Duchamp, penso, por exemplo, em El gran vidrio, de Bellatin (2007BELLATIN, Mario. El gran vidrio: Tres autobiografias. Barcelona: Anagrama, 2007.), em que três narrativas autobiográficas são construídas a partir do olhar e de jogos em torno do visível, oscilando entre transparência e opacidade; no romance 2666, lembro da recriação, por parte do professor de literatura Amalfitano, do Ready-made infeliz que Duchamp, durante sua estadia na Argentina, deu de presente de casamento à irmã, em 1919.

Para além disso, há um processo de recomposição da biblioteca vanguardista e especificamente surrealista - refiro-me à estranha conexão que Bellatin estabelece com o poeta e artista visual peruano César Moro em Efecto invernadero (1999BELLATIN, Mario. Efecto invernadero. Lima: Ediciones Copé, 1999.), e nas alusões que Bolaño faz a surrealistas como o obscuro Guy Rosey no conto “Últimos entardeceres na terra” (2008BOLAÑO, Roberto. Últimos entardeceres na terra. In: Putas assassinas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. p. 36-62.). Mais particularmente, tenho em mente também suas especulações, num texto crítico em homenagem a Nicanor Parra chamado “Ocho segundos com Nicanor Parra” (2004), sobre a existência de um “surrealismo latino-americano clandestino” no final do século XX.

Olhando para essa constelação - César Aira, Roberto Bolaño, Mario Bellatin e procedimentos vanguardistas, sobretudo surrealistas -, sei o que me espera se decidir escavar o surrealismo latino-americano tanto em sua modalidade, como quer Bolaño, clandestina, quanto em sua vertente autodeclarada ou histórica. Afinal, por “surrealismo latino-americano” pode-se entender, como diz o crítico Jorge Schwartz, “um número elevado de participantes, seja pelos momentos e países diferenciados em que ele surge, seja por aquilo que se pode entender como sendo estritamente surrealista, seja, por fim, pelo próprio caráter polêmico do movimento” (SCHWARTZ, 2008SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 2008., p. 449). Seria preciso atentar, então, para dois aspectos.

O primeiro diz respeito ao deslocamento que ocorreu (ou não) nas poéticas de surrealistas europeus quando de suas passagens pela América Latina - penso em Robert Desnos em Havana, Henri Michaux no Equador, André Breton no México; Benjamin Péret no México e no Brasil; Paul Élouard, ele também no México; e, antes de interromper uma lista que poderia se estender, penso em Antonin Artaud, igualmente no México, em 1936, quando travou contato com o povo Taraumara - e, embora seu rompimento com o movimento surrealista tivesse ocorrido anos antes, um olhar anárquico ou anarquivista, para usar o termo de Reinaldo Marques (2015MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.), poderia, por que não, nos ajudar a lançar outras e anacrônicas perspectivas sobre o surrealismo latino-americano via Artaud no México.

O segundo aspecto seria aquele dos latino-americanos que aderiram ao surrealismo em suas diversas fases, em diferentes períodos históricos: César Moro no Peru e em Paris, Alejo Carpentier e Miguel Asturias em Cuba, Aldo Pellegrini na Argentina, o movimento Mandrágora no Chile, Maria Martins nos Estados Unidos, Murilo Mendes no Brasil, Octavio Paz no México, Aimé e Suzanne Césaire na Martinica.

A lista (que nem de longe se esgota com os nomes aqui citados) aponta para algumas perguntas óbvias: quantos surrealismos existiram na América Latina? Quantos ainda poderão existir? Ou, agora me aproximando de Bolãno, quantos existiram e existem subterraneamente? Valeria a pena ler em rede alguns de seus trabalhos, bem como de Bellatin e Aira, não em busca de origens e influências, mas de encontros fundados em procedimentos que funcionam como operadores de um arquivo cultural anacrônico, ou mesmo heterocrônico, caso se deseje buscar um olhar renovado sobre o surrealismo na América Latina contemporânea? Na rejeição do realismo mágico, ou do real maravilhoso, em sua não adesão ao realismo naturalista, Bolaño, Bellatin e Aira se rebelam contra duas das maiores tendências estéticas na literatura da América Latina no século XX. E enquanto Bolaño e Aira aproximam-se dos surrealistas com mais, digamos, franqueza, Bellatin, em coerência com seu complexo projeto (auto)ficcional, não assume uma ligação direta,6 6 Em entrevista a Cadão Volpato por ocasião da tradução de Cães heróis no Brasil, ele teria dito: “(...) as vanguardas me aborrecem. Não acho que as obras surgidas naqueles períodos sirvam para ser apreciadas, mas sim para a gente se maravilhar com seus mecanismos. Quando entendemos os elementos que as sustentam, o encanto se acaba” (VOLPATO, 2012, n. p.). embora não se furte a nos remeter a procedimentos de montagem em Flores, Cães heróis e Lições para uma lebre morta, esta última também uma alusão direta, mas não a emulação, da famosa performance do alemão Joseph Beuys.

Já aí, nessas diferenças, a impossibilidade de pensar num arquivo de procedimentos como um conjunto estável, coerente e unidirecional - por isso mesmo tão interessante, a meu ver. Outra incoerência bem-vinda é o fato de Bolaño e Aira terem em comum, em sua prática escritural, a literatura de Jorge Luis Borges, um dos maiores responsáveis pelo descrédito do surrealismo na Argentina de Pellegrini. E há ainda outro nome a mencionar, o de Julio Cortazar, que, com Rayuela, de 1963, talvez tenha publicado o romance que fez o surrealismo reviver ou mesmo sobreviver.

Como afirma a crítica argentina Graciela Speranza no ensaio “Roberto Bolaño e o surrealismo”, Rayuela foi arquivada, no cânone argentino, como - e aqui cito Speranza lamentando os vaticínios de Martin Prieto e Beatriz Sarlo - a “soma e a divulgação daquilo que foi acumulado pelas vanguardas, somado ele mesmo às utopias revolucionárias”, ou ainda como um trabalho “voluntarista e juvenil” (SPERANZA, 2012SPERANZA, Graciela. Roberto Bolaño y el surrealismo. In: Atlas portátil de América Latina. Barcelona: Editorial Anagrama, 2012. [E-book]. , posição 1812).

Bolaño, como se sabe, conseguiu aproximar o impossível do ponto de vista de uma certa recepção crítica: Borges e Cortázar, a paixão de bibliotecário por livros, autores esquecidos e citações apócrifas com o gosto pelo vitalismo vanguardista, bem como pelos jogos de sentido que o romance de Cortázar, graças às técnicas do acaso objetivo e da montagem, colocou em prática. Também desafiou seus contemporâneos a respeito da onipresença e onipotência de Octavio Paz no México e na América Latina, ridicularizando-o em Os detetives selvagens. Tampouco se furtou a dirigir seus ataques a Pablo Neruda, tanto dentro quanto fora do espaço ficcional, apontando a inferioridade de seu projeto poético frente ao de outro chileno, Nicanor Parra. Bolaño sabia que se encontrava num território em disputa, o da América Latina e seu arquivo literário.

Está em jogo, com ele, a tentativa de reordenar todo um campo da cultura. Em outras palavras, trata-se de retomar um lema vanguardista, arte e vida,7 7 Para além de Bolaño, não poderia esse binômio ser também aproximado de Bellatin e Aira? Do primeiro, à medida que faz de sua persona de autor e de sua vida duas instâncias muitas vezes indistintas, mas sobretudo porque muitas vezes estende sua prática escritural (e seu conceito de escrita) para bem além do livro. Para ficarmos com apenas um exemplo, lembremos que no pequeno Cães heróis há certas dobras que borram a separação entre ficção e realidade: em entrevista, o autor afirma ter, certa vez, conhecido um treinador de cães da raça belga malinois. Tal qual o personagem principal de seu romance. O encontro teria se dado após Bellatin ler um anúncio de jornal. (cf. VOLPATO, 2012) Uma vez publicado o livro, Bellatin trataria de realizar uma espécie de audição pública do texto, em que colocou uma plateia de pagantes à mercê de um cão da raça belga malinois durante bastante tempo. Quanto a César Aira, não seria sua prática escritural uma demonstração do binômio arte e vida à medida que, para continuar escrevendo, ele se obriga a parar, a interromper, fazendo disso uma prática que implica seu próprio corpo? num desempenho performático em que o extra e o intra diegético se contaminam: muitos dos pontos de vista expostos em textos críticos (como os de Entre paréntesis) guardam relação com questões trabalhadas nas ficções. Se em Os detetives selvagens, por exemplo, os poetas do real-visceralismo, movimento neovanguardista que já nasce fracassado, estão sempre lendo e discutindo literatura fora de ambientes literários, nunca sabemos o que escrevem. Importa mais ver o que chamo de performances de leitura dos protagonistas Arturo Belano e Ulises Lima.8 8 Em minha dissertação de mestrado, Em meio às vísceras: ensaios sobre o ato de leitura em dois romances de Roberto Bolaño, tentei elencar as muitas vezes em que os personagens de 2666 e Os detetives selvagens aparecem em cenas como se estivessem executando rubricas de performances - mas sempre performances em que o objeto livro está em cena. Além disso, Ulises Lima, Arturo Belano, bem como os críticos europeus de 2666 - todos parecem obedecer a um imperativo não dito: o de se deslocar em decorrência de suas leituras (LIMA, 2013). Importa também que nós, enquanto leitores dos leitores-personagens, tentemos descobrir seu paradeiro e o que lhes acontece após sua fuga da capital mexicana rumo ao deserto e em busca de uma vanguardista desaparecida há décadas, Cesárea Tinajero.

O real-visceralismo e seus líderes são duplos do coletivo de vanguarda que Bolaño e seu amigo Mario Santiago fundaram na Cidade do México, em meados dos anos 1970. Batizado de infrarrealismo, ao que me consta permaneceu desconhecido da crítica e do público até a publicação de Os detetives selvagens, uma vez que nenhum de seus poetas conseguira publicar. No manifesto do grupo escrito por Bolaño há a reedição de uma máxima bretoniana: “Lachez tout/Partez sur les routes”, e aqui cito a versão dos infrarrealistas, versão em que a passagem de tempo, e com ela o gesto de citação, é explicitada pelo uso de um advérbio de modo: “Déjenlo todo, nuevamente” (BOLAÑO, 1976BOLAÑO, Roberto. Primeiro manifesto infrarrealista. Bolaño e as Estrelas Entrevista do Escritor Chileno Roberto Bolaño, 1976. Disponível em: https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/06/21/primeiro-manifesto-infrarrealista/. Acesso em: 11 maio 2022.
https://estrelaselvagem.wordpress.com/20...
, n. p.). Isso significava nunca ficar “tempo demais em um mesmo lugar, como os guerrilheiros, os ovnis, como os olhos brancos dos prisioneiros na prisão perpétua” (BOLAÑO, 1976BOLAÑO, Roberto. Primeiro manifesto infrarrealista. Bolaño e as Estrelas Entrevista do Escritor Chileno Roberto Bolaño, 1976. Disponível em: https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/06/21/primeiro-manifesto-infrarrealista/. Acesso em: 11 maio 2022.
https://estrelaselvagem.wordpress.com/20...
, n. p.). E, para que a matriz surrealista ficasse clara como água, caso ainda restasse alguma dúvida quanto a ela, o manifesto terminava com a repetição da palavra de ordem de Breton, dessa vez em caixa alta: “ABANDONEM TUDO NOVAMENTE /LANCEM-SE PELOS CAMINHOS” (BOLAÑO, 1976BOLAÑO, Roberto. Primeiro manifesto infrarrealista. Bolaño e as Estrelas Entrevista do Escritor Chileno Roberto Bolaño, 1976. Disponível em: https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/06/21/primeiro-manifesto-infrarrealista/. Acesso em: 11 maio 2022.
https://estrelaselvagem.wordpress.com/20...
, n. p.).

Essa é a senha - e a partir daqui sigo Speranza no já referido ensaio - que permite aos infrarrealistas se afastarem das vanguardas institucionalizadas, de Octavio Paz, do boom latino-americano e seu exótico realismo mágico. É também a marca inaugural de uma arte da errância que faz da viagem e da mobilidade seus princípios constitutivos; uma arte entregue a uma força que apaga a origem e dá lugar a uma incrível proliferação de espaços e relatos, como vemos nos dois maiores romances de Bolaño - Os detetives selvagens (2006BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Tradição de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.) e 2666 (2010BOLAÑO, Roberto. 2666. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2010. ). Não por acaso transatlânticos, e não por acaso tendo no deserto mexicano seu ponto de entropia.

Quanto à pergunta que Bolaño faz no texto sobre Parra, quanto à existência de um surrealismo clandestino nas últimas décadas do século XX, ela ocorre quando o autor alude a André Breton, e aqui cito Bolaño: “Breton falou da necessidade de que o surrealismo passasse à clandestinidade, submergisse nas cloacas das cidades e das bibliotecas”9 9 No original: “Breton habló de la necesidad de que el surrealismo pasara a la clandestinidad, se sumergiera en las cloacas de las ciudades y de las bibliotecas.” (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Ocho segundos con Nicanor Parra. In: Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama , 2004., p. 93, tradução da autora). Para Speranza, é significativo que esse interesse em encontrar os vestígios do surrealismo tenha partido não de um europeu, mas de um chileno exilado primeiro no México e, depois, na Espanha. Afinal, relegado a cruzadas formalistas dos modernos e às reciclagens dos pós-modernos, o surrealismo teria despertado desdém, suspeita ou incômodo nas retrospectivas de arte e literatura latino-americanas das últimas décadas: “(...) é como se, com a mesma velocidade com que floresceu no começo do século XX, tivesse apagado seus laços com o presente, para ser exumado, de tanto em tanto tempo, como objeto histórico, profilaticamente fechado no passado”10 10 No original: “(...) como si con la misma velocidad con que floreció a comienzos del siglo, hubiese borrado sus lazos con el presente, para ser exhumado de tanto en tanto como objeto histórico, profilácticamente clausurado en el pasado.” (SPERANZA, 2012SPERANZA, Graciela. Roberto Bolaño y el surrealismo. In: Atlas portátil de América Latina. Barcelona: Editorial Anagrama, 2012. [E-book]. , posição 1824, tradução da autora).

Credite-se esse gesto à tentativa, por parte da crítica, de desvincular a literatura e a arte latino-americanas das pechas de fantástica e exótica. Com Rayuela, porém, nos lembra Speranza, o jogo recomeçaria: promenade, acaso objetivo, beleza convulsiva, máquina celibatária, labirinto batailleano são manejados num romance que espacializa a narrativa - e a leitura -, produzindo assim uma via alternativa aos surrealismos oficiais e aos latino-americanismos de então.

Levando em conta, digamos, a conquista de Cortázar e a paixão livresca de Borges, para a teórica argentina seria possível olhar para os dois grandes romances de Roberto Bolaño e ver ali a boîte-en-valise de Duchamp - compilação em miniatura de seus trabalhos com a qual o artista atravessou o Atlântico - ser convertida em “romances-caixa-de-relatos”: as vidas são errantes (personagens como Cesarea Tinajero, por exemplo, deixam tudo para trás a ponto de desaparecer), as derivas se dão ao acaso e os encontros e desencontros se multiplicam à medida que os projetos vanguardistas fracassam e a violência abunda. Estamos diante de máquinas narrativas que multiplicam o relato até onde podem. Estamos diante também de encenações de um Arquivo do Mal na América Latina do século XX.

Como se sabe, na “Parte dos crimes”, em 2666, por centenas de páginas nos deparamos com uma narrativa que emula um discurso forense ou simplesmente policial para contar os incontáveis feminicídios em série ocorridos na cidade fictícia de Santa Teresa e em sua referente mexicana, Ciudad Juárez. Trabalhadoras de chão de fábrica, em sua maioria, são encontradas mortas em terrenos baldios ou lixões, com os corpos geralmente marcados por indícios de violência sexual. Pela via da repetição a que nos submete o narrador, nos damos conta de que a vida dessas mulheres infames, e aqui parafraseio Michel Foucault, só é digna de ser registrada caso o Estado sinta a necessidade de inventariá-las quando sua própria violência contribuiu para tal apagamento.

Em Bolaño, o Arquivo do Mal surge claramente também em outro romance, História da literatura nazista na América, em que encontramos uma série de biografias de escritores e artistas ligados ao fascismo, ao nazismo e às ditaduras militares. E, de maneira mais difusa, vemos que o arquivo e o mal operam também n’Os detetives selvagens, cuja estrutura narrativa consiste num diário que aparece no começo e no final, sendo atravessado por uma enorme quantidade de depoimentos, marcados, à maneira de documentos, com data e local, mas ordenados de forma não-linear.

*

Quanto à outra parte do título deste artigo, “alguma barbárie”, tem ela também a ver com a ideia de arquivo, mas igualmente com o uso que Walter Benjamin faz do termo em dois de seus textos, Experiência e pobreza e Sobre o conceito de história (tese número 7). No primeiro, como sabemos, a ideia de barbárie é saudada como um fazer estético e artístico salutar colocado em prática justamente pelas vanguardas históricas, que diante do empobrecimento da experiência coletiva - causado, entre outros motivos, pela mecanização das relações de trabalho e pelas coerções exercidas pelos regimes colonial-capitalistas - teriam preferido fazer algo inteiramente diferente a continuar seguindo a já mofada cartilha humanista do século XIX enquanto o mundo explodia diante de seus olhos: “Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco (...)” (BENJAMIN, 2010bBENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I . Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense , 2010b. p. 114-119. (1ª edição brasileira 19974). , p. 116).

Já na tese de número 7, o termo barbárie aparece como senha de dominação e manipulação históricas que a perspectiva dos vencedores exerceu sobre o discurso historiográfico. Ao dizer que todo documento de cultura é um documento de barbárie e que aquilo que as nações autoproclamadas civilizadas chamavam de bens culturais não eram senão os despojos das conquistas realizadas à base de exploração e violência, Benjamin convocava o historiador a esquecer a ilusão da objetividade historicista e partir para um gesto epistemológico anacrônico e interessado: o de escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 2010aBENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2010a. p. 222-234. (1ª edição brasileira1994). ).

Tendo em vista esses dois aspectos do termo "barbárie", eu diria que o procedimento como dispositivo arquivístico pode ser uma espécie de pharmakon, remédio e veneno, à medida que, por que não, corre-se o risco de fazer dele, e dos resultados que engendra, simples e inofensivos “documentos de cultura” das vanguardas a identificar de romance em romance, de autor em autor, numa inócua conduta formalista. Por outro lado - e aqui gostaria de voltar à noção de testamento para o futuro de que César Aira lança mão em seu ensaio sobre Raymond Roussel -, supor a existência de uma barbárie implicada no manejo dos procedimentos pode significar não um ato de celebração a quem quer que seja, não um monumento sobre o qual depositar nossa admiração.

Pode significar ver nos procedimentos os itens de um testamento do qual se faria um uso diverso, iconoclasta - uso capaz de conferir historicidade a diferentes aspectos da vida social, estando a violência entre eles: o surrealismo, em Bolaño, para além de uma questão formal, se confirmaria com mais força no absurdo que o Mal é capaz de produzir e na fatura literária daí resultante.

Tal conduta não deveria obediência ao dogma do pluralismo (este último entendido como uma operação discursiva que tem como uma de suas bases a proclamação do fim das vanguardas, das utopias e até da história). Afinal, nem tudo cabe num testamento - do qual pode-se, inclusive, abdicar: estamos na América Latina, região marcada por um projeto colonial ainda hoje em ação e pelo racismo cotidiano, por saltos modernizadores impostos à força, por ditaduras civis-militares sanguinárias, por silêncios, latências e intervalos à espera das literaturas e seus arquivos.

Referências

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  • AIRA, César. “Asimetrías. Uma entrevista com César Aira”, por Benjamin S. Johnson. Artecontexto, n. 14, p. 28, 2007a.
  • AIRA, César. A nova escritura. In: Pequeno manual de procedimentos Tradução de Eduard Marquardt. Curitiba: Editora Arte & Letra, 2007b. p. 11-18.
  • AIRA, César. Raymond Russel ou a chave unificada. Revista Landa, v. 8. n. 2, p. 314-325, 2020.
  • BELLATIN, Mario. Efecto invernadero Lima: Ediciones Copé, 1999.
  • BELLATIN, Mario. El gran vidrio: Tres autobiografias. Barcelona: Anagrama, 2007.
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  • BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política Obras escolhidas I . Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense , 2010b. p. 114-119. (1ª edição brasileira 19974).
  • BOLAÑO, Roberto. Primeiro manifesto infrarrealista. Bolaño e as Estrelas Entrevista do Escritor Chileno Roberto Bolaño, 1976. Disponível em: https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/06/21/primeiro-manifesto-infrarrealista/ Acesso em: 11 maio 2022.
    » https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/06/21/primeiro-manifesto-infrarrealista/
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  • BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens Tradição de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • BOLAÑO, Roberto. Últimos entardeceres na terra. In: Putas assassinas Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. p. 36-62.
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  • GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative writing: managing language in the digital age. Nova York: Columbia University Press, 2011.
  • LEIRIS, Michel. Como escrevi alguns de meus livros. Sopro (Dossiê Raymond Roussel), n. 98, p. 61, 2013.
  • LIMA, Natalie. Em meio às vísceras: ensaios sobre atos de leitura em dois romances de Roberto Bolaño. 2013. 104 p. Dissertação (Mestrado) - Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
  • MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
  • PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2013.
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  • SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 2008.
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  • VOLPATO, Cadão. A vida contada em livros. Valor Econômico, 3 de fevereiro de 2012.Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2012/02/03/a-vida-contada-em-livros.ghtml Acessado em: 03 mar. 2023.
    » https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2012/02/03/a-vida-contada-em-livros.ghtml
  • 1
    Sob outra ótica, a questão da duração das práticas vanguardistas na produção contemporânea vem sendo discutida no Brasil por Marcos Siscar. Suas considerações sobre o tema do “fim das vanguardas” no contexto das produções crítica e poética brasileiras das últimas décadas apontam para um desejo mais ou menos coletivo de “‘virar a página’ da história” vanguardista, desejo que também seria o índice de um impulso não confessado em direção à ruptura tipicamente vanguardista (SISCAR, 2016SISCAR, Marcos. De volta ao fim - O “fim das vanguardas” como questão da poesia contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016., p. 68-69).
  • 2
    É o antropólogo Michel Leiris quem, em 1936, resume com clareza o Procedimento de Roussel ao comentar os segredos revelados no livro póstumo: “Deduz-se do ensaio introdutório que dá título ao livro, e do que se sabe, por outro lado, da maneira como trabalhava Roussel, que a criação literária dele podia se decompor em três fases: primeiro, a fabricação de trocadilhos ou de frases de duplo sentido (partindo de “qualquer coisa”, escreve ele), esses aspectos formais fortuitos suscitando os elementos a confrontar e pôr em obra; depois, o estabelecimento de uma trama lógica que unisse entre si estes elementos, por mais insólitos e diferentes que fossem; finalmente, a formulação dessas relações, da forma mais realista possível, em um texto escrito com o máximo de rigor, sem qualquer preocupação da forma pela forma, obedecendo apenas às regras de uso da gramática e do estilo. São necessárias várias reflexões sobre esse método” (LEIRIS, 2013LEIRIS, Michel. Como escrevi alguns de meus livros. Sopro (Dossiê Raymond Roussel), n. 98, p. 61, 2013., p. 61).
  • 3
    Pensando a partir do futuro, um bom uso de tal mapa pode ser aquilo que escritores contemporâneos como o norte-americano Kenneth Goldsmith (2011GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative writing: managing language in the digital age. Nova York: Columbia University Press, 2011.), por exemplo, praticam sob o nome de “uncreative writing” e que a crítica literária Marjorie Perloff PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2013.chamou de “gênio não original” (2013).
  • 4
    A esse respeito, conferir os comentários de Contreras (2019CONTRERAS, Sandra. Relato e sobrevivência. In: O congresso de literatura - Ensaios sobre César Aira. Copenhague/Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 5-48.) e da Rosa (2019DA ROSA, Victor. César Aira e o uso intensivo das reticências. In: O congresso de literatura - Ensaios sobre César Aira . Copenhague/Rio de Janeiro: Zazie Edições , 2019. p. 99-128.), bem como a formulação do próprio Aira em Ars narrativa (1994AIRA, César. Ars Narrativa. Criterion, n. 8, 1994.).
  • 5
    Em seu texto, Aira não faz nenhuma referência ao notório texto de Victor Chklovski, “A arte como procedimento”. Nesse que foi uma espécie de manifesto do formalismo russo, Chklovski defende a necessidade de se pensar a gênese do texto literário (e, mais amplamente, do objeto artístico) para além das vertentes historicistas, sociológicas e biográficas que reinavam até então, e não apenas na Rússia. Reivindicando um campo próprio para a despesa e a economia na língua poética, argumentando que a arte deve se valer de procedimentos que gerem uma experiência estética de estranhamento, capaz de desautomatizar a percepção do público, ele afirma: “E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que a pedra é pedra, existe o que se chama arte (...) O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento de singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção (...) O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já ‘passado’ não importa para a arte” (CHKLOVSKI, 1978CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: Teoria da literatura, formalistas russos. Organização de Dionisio de Oliveira Toledo. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. p. 39-56., p. 45). Vale observar que se em Chklovski os exemplos de procedimento giram sobretudo em torno de Tolstoi, que não chamaria as coisas por seu nome, mas as descreveria como se as visse pela primeira vez, em Aira os procedimentos são cada vez menos vinculados a uma ideia de autoria ou a um estilo.
  • 6
    Em entrevista a Cadão Volpato por ocasião da tradução de Cães heróis no Brasil, ele teria dito: “(...) as vanguardas me aborrecem. Não acho que as obras surgidas naqueles períodos sirvam para ser apreciadas, mas sim para a gente se maravilhar com seus mecanismos. Quando entendemos os elementos que as sustentam, o encanto se acaba” (VOLPATO, 2012VOLPATO, Cadão. A vida contada em livros. Valor Econômico, 3 de fevereiro de 2012.Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2012/02/03/a-vida-contada-em-livros.ghtml . Acessado em: 03 mar. 2023.
    https://valor.globo.com/eu-e/noticia/201...
    , n. p.).
  • 7
    Para além de Bolaño, não poderia esse binômio ser também aproximado de Bellatin e Aira? Do primeiro, à medida que faz de sua persona de autor e de sua vida duas instâncias muitas vezes indistintas, mas sobretudo porque muitas vezes estende sua prática escritural (e seu conceito de escrita) para bem além do livro. Para ficarmos com apenas um exemplo, lembremos que no pequeno Cães heróis há certas dobras que borram a separação entre ficção e realidade: em entrevista, o autor afirma ter, certa vez, conhecido um treinador de cães da raça belga malinois. Tal qual o personagem principal de seu romance. O encontro teria se dado após Bellatin ler um anúncio de jornal. (cf. VOLPATO, 2012VOLPATO, Cadão. A vida contada em livros. Valor Econômico, 3 de fevereiro de 2012.Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2012/02/03/a-vida-contada-em-livros.ghtml . Acessado em: 03 mar. 2023.
    https://valor.globo.com/eu-e/noticia/201...
    ) Uma vez publicado o livro, Bellatin trataria de realizar uma espécie de audição pública do texto, em que colocou uma plateia de pagantes à mercê de um cão da raça belga malinois durante bastante tempo. Quanto a César Aira, não seria sua prática escritural uma demonstração do binômio arte e vida à medida que, para continuar escrevendo, ele se obriga a parar, a interromper, fazendo disso uma prática que implica seu próprio corpo?
  • 8
    Em minha dissertação de mestrado, Em meio às vísceras: ensaios sobre o ato de leitura em dois romances de Roberto Bolaño, tentei elencar as muitas vezes em que os personagens de 2666 e Os detetives selvagens aparecem em cenas como se estivessem executando rubricas de performances - mas sempre performances em que o objeto livro está em cena. Além disso, Ulises Lima, Arturo Belano, bem como os críticos europeus de 2666 - todos parecem obedecer a um imperativo não dito: o de se deslocar em decorrência de suas leituras (LIMA, 2013LIMA, Natalie. Em meio às vísceras: ensaios sobre atos de leitura em dois romances de Roberto Bolaño. 2013. 104 p. Dissertação (Mestrado) - Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.).
  • 9
    No original: “Breton habló de la necesidad de que el surrealismo pasara a la clandestinidad, se sumergiera en las cloacas de las ciudades y de las bibliotecas.”
  • 10
    No original: “(...) como si con la misma velocidad con que floreció a comienzos del siglo, hubiese borrado sus lazos con el presente, para ser exhumado de tanto en tanto como objeto histórico, profilácticamente clausurado en el pasado.”

Editado por

Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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