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A figuração do sagrado em España heroica : um excurso sociológico

Figuration of the sacred in España heroica: a sociological excursus

Resumo

A proposta deste texto é analisar o filme España heroica (1938), peça de propaganda feita pelo lado sublevado durante a Guerra civil espanhola e produzida na Alemanha. Considerado por alguns estudiosos como o “monumento propagandístico mais consistente da cinematografia nacional”, o objetivo deste estudo é discutir alguns aspectos que a noção de sagrado assume no filme, dentre eles, os relacionados à política. Na metodologia, faremos referência a Pierre Sorlin, que privilegia a forma como o filme está organizado, tomando a construção fílmica como um conjunto de proposições sobre a sociedade - as quais o sociólogo busca compreender. Dado que nosso interesse é pela compreensão da sociedade encenada no filme, evitaremos explicar a obra pelo seu contexto de produção, não discutindo, assim, os aspectos da guerra civil, o estatuto da propaganda, as relações entre Espanha e Alemanha ou a verdade dos fatos encenados no filme.1 1 O artigo é fruto de pesquisa apoiada pela FAPESP. Processo nº 2022/14494-4 - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Palavras-chave
Sociologia do cinema; Análise fílmica; España heroica ; Sagrado; Política

Abstract

The aim of this text is to analyze the film España heroica (1938), a propaganda piece made by the insurgent side during the Spanish Civil War and produced in Germany. Considered by some scholars as the “most consistent propagandistic monument of national cinematography”, the objective of this study is to discuss some aspects that the notion of sacred assumes in the film, particularly those related to politics. The methodological approach draws on the work by Pierre Sorlin who emphasized the way the film is organized, taking the filmic construction as a set of propositions about society, which the sociologist seeks to understand. Since our purpose is to understand the society portrayed in the film, we will avoid explaining it by its production context, thus not discussing: aspects of the civil war, the status of propaganda, the relations between Spain and Germany or the factual accuracy about events presented in the film.

Keywords
Sociology of cinema; Film analysis; heroic Spain; Sacred; Politics

Prólogo

A proposta deste texto é analisar o filme España heroica (1938), peça de propaganda do lado sublevado, realizada durante a Guerra civil espanhola e produzida na Alemanha. Nosso interesse é pela construção do filme e os valores ali veiculados – e não propriamente a guerra e suas etapas, o estatuto da propaganda e suas nuanças ao longo do conflito ou após o seu término, as relações de Espanha e Alemanha na luta anticomunista ou o cotejamento da verdade dos fatos diante das versões mostradas na tela. Mais especificamente, o que pretendemos discutir são alguns blocos de España heroica, tomando a construção fílmica (a “encenação social”) como proposições sobre a sociedade (Sorlin, 197711 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1977., p. 287), as quais o estudioso objetiva compreender.

Em sua proposta para uma sociologia do cinema, dizia Pierre Sorlin:

Estudar a encenação [mise en scène] ou, mais amplamente, o que chamamos a construção, equivale a tentar discernir que estratégia social, quais modelos de classificação e de reclassificação atuam nos filmes

(Sorlin, 197711 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1977., p. 200),

Esse cuidado é uma forma de afastar a análise do fascínio mimético dos filmes, cujo traço dominante é encontrar neles o que já se conhece das sociedades nas quais foram produzidos. O filme, diz o autor, é uma “transposição do mundo” (Sorlin, 197711 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1977., p. 241), “uma reconstituição, implicando um julgamento sobre as relações sociais [rapports sociaux] (...)” (Sorlin, 197711 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1977., p. 241), constituindo “hierarquias, valores, redes de intercâmbios e de influências” (Sorlin, 197711 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1977., p. 237).

No entanto, qual seria a relevância sociológica de fixarmos nossa atenção em apenas um dos filmes produzidos durante o conflito? A resposta, julgamos encontrá-la no trabalho empreendido por Tranche e Sánchez-Biosca (2011)12 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011., em que apontam España heroica como um “filme acontecimento” do lado nacional. Da perspectiva desses autores, em termos de “propaganda cinematográfica”, considerando a “conjuntura histórica” na qual está envolvido, o filme poderia ser denominado de “elo perdido entre os conseguimentos estilísticos da produção falangista e os mais sistemáticos documentários do DNC [Departamento Nacional de Cinematografia, criado em abril de 1938]” (Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, p. 59 – grifos nossos) 2 2 España heroica, cujo subtítulo é Estampas de la Guerra Civil Española, é uma produção teuto-espanhola na qual Joaquín Reig Gozalbes atuou na direção e no argumento (além de ser o locutor na versão espanhola, com a qual trabalhamos aqui). Acerca de Reig Gonzalbes e sua dupla militância (na Falange e no Partido nacional socialista alemão), do apoio e do tipo de apoio dado pelo governo de Berlim ao desenvolvimento da propaganda nacional durante o período (o filme é lançado em 1938, isto é, ainda durante a guerra), além do seu envolvimento na FE de las JONS (Falange Española de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista - junção da Falange com as Juntas), bem como o trabalho realizado na Alemanha desde 1937, ver Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, p. 57. .

É uma convenção admitida sem renovada argumentação que a causa nacional não teve a sua película “acontecimento” ou estandarte, quer dizer, que careceu de um filme que, por seu efeito aglutinador e não apenas pelo conteúdo explícito, tivesse servido de expressão cinematográfica durante a guerra. Não é esta a nossa opinião. Na realidade, existem duas [...]. O díptico está composto por España heroica (Joaquín Reig, 1938) e Romancero Marroquí

(Enrique Domínguez Rodiño, 1938 - 1939) (Tranche; Sánchez-Biosca, 2011, p. 16) 3 3 Formariam o tríptico a produção do Noticiario español e os documentários do Departamento Nacional de Cinematografia – DNC - (criado em abril de 1938). Ainda segundo os autores, “España heroica, desde sua implacável montagem e sua militância anticomunista, e Romancero Marroquí, desde seu cuidado plástico e seu enfoque etnográfico, constituirão os dois pilares sobre os quais se erige o monumento da propaganda nacional”; e por mais que houvesse “limitações técnicas” e que a produção de filmes do lado republicano fosse “provavelmente superior ao esforço nacional, nada garante a ideia de que este fosse retrógrado, pouco criativo e inoperante” (Tranche; Sánchez-Biosca 2011, p. 16 e 17, respectivamente). .

Centraremos nossas análises nesse conjunto significativo que se apresenta como “eslabón perdido”, o “monumento propagandístico mais consistente da cinematografia nacional” (Tranche; Sánchez-Biosca, 201112 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011., p. 58), e o que pretendemos fazer, de uma perspectiva sociológica, é tentar compreender a maneira como, na montagem de elementos sonoros e visuais, estão construídas, no filme, proposições acerca da sociedade e da época (e não a sociedade e a época).

Nesse ponto, uma objeção pode ser levantada. Afinal, como lembram Tranche e Sánchez-Biosca, España heroica é um filme de montagem, em que os produtores trabalharam com materiais preexistentes, inclusive (e decisivamente, veremos) provenientes do lado republicano, e não filmaram uma só sequência. Como analisar as relações ali encenadas pelos sublevados (valores, hierarquias etc.) se não foram eles a produzirem as imagens? A resposta nos leva a esclarecer três aspectos desta investigação. O primeiro, é que enfatizaremos, do material apropriado pelo lado nacional, os significados que obtiveram a partir da nova montagem (e não os planos isoladamente). O segundo, mostrar como España heroica, ao apropriar-se de trechos de filmes de orientação republicana, ao retirá-los de seu contexto interno, dos filmes de origem, não os fazem falar por si, mas a falar outra coisa. Em terceiro, ao fazê-lo, España heroica nos conta uma história (uma Espanha que é salva das mãos do inimigo), cria uma ficção. De modo a abordar essa tessitura de imagens, utilizaremos como apoio, ao longo das análises, dois outros filmes, Reportaje del movimiento revolucionario en Barcelona (de Mateo Santos, 1936) e Espagne 1936 (de Jean-Paul Le Chanois, com roteiro de Luis Buñel,1937). 4 4 Em algumas passagens localizamos a minutagem do filme. De modo a melhor localizar a discussão para o(a) leitor(a), utilizamos o conteúdo disponível na página da Filmoteca Española: Colección Guerra Civil. As entradas de España heroica, Espagne 1936 e Reportaje estão listadas na filmografia que segue o texto. O primeiro, porque teve suas imagens utilizadas por España heroica; o segundo, para melhor localizar alguns contrapontos construídos pelo filme de Reig Gonzalbes.5 5 Segundo Tranche e Sánchez-Biosca, España heroica aparecia, desde o título, como “resposta frontal” à Espagne 1936 (2011, p. 58). A versão com a qual trabalharemos é a preservada, a francesa, dirigida ao público estrangeiro (a espanhola chamou-se España leal en armas, v. DVD La Guerra filmada). Não fizemos a menção à parte da série Los aguiluchos de la FAI (1936), também utilizada no texto, em razão de passarmos muito rapidamente pelo filme.

Acontece de muitos pesquisadores, em particular, historiadores, já terem se debruçado sobre a Guerra de Espanha, a propaganda e o cinema dos lados em luta, bem como a genealogia das imagens que circularam durante e após o conflito e mesmo, como é o caso de Tranche e Sánchez-Biosca, a origem das imagens (apropriadas) que compõem España heroica. Sobre isso, é importante dizer, nosso estudo não trará novidades. Escudamo-nos, contudo, nas palavras de Carlo Ginzburg ao se referir às dificuldades que se nos apresentam quando decidimos enfrentar uma obra já esquadrinhada por muitos antes de nós. Dizia o autor,

[i]sso, no entanto, não nos dispensa da obrigação moral e intelectual de arriscar a nossa própria interpretação. O que significa para nós, hoje, o discurso de Valla sobre a doação de Constantino?

(Ginzburg, 20028 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 66).

No mesmo sentido, e no limite da nossa competência e de nossas possibilidades, o significado para nós, hoje, de estudar uma produção associada ao lado nacional, realizada ainda durante a guerra (1938), é tentar compreender uma de suas dimensões, a encenação do sagrado, isto é, como o filme anuncia, por meio dos elementos expressivos que o compõem, sonhos e valores (a Espanha una e eterna, a verdadeira Espanha etc.) nos quais se encena a política como algo separado e distante do mundo comum.

A Espanha, a heroica – bloco introdutório

Apontemos aspectos da abertura geral de Espagne 1936, antes de España heroica, de modo a compará-las. O filme de Jean-Paul Le Chanois, realizado em 1937, inicia-se com vários letreiros descendo contra uma tela escura, em bloco que dura mais de um minuto. Nele, o filme apresenta-se como “uma grande reportagem cinematográfica”. São “documentos”, lê-se, filmados na Espanha por “diferentes operadores, em condições difíceis e frequentemente sob risco de vida”, e não tarda para que as forças em luta sejam nomeadas (“aqueles que a opinião pública chama de ‘rebeldes’ e ‘governamentais’, ’nacionalistas’ e ‘vermelhos’”), bem como a missão que carrega o filme: “o cinema deve seguir os acontecimentos do mundo, deve reproduzi-los, difundi-los e levá-los ao conhecimento dos homens de todos os países [...] e não tem outro objetivo do que servir a causa da história”.

Em España heroica, por sua vez, se não há letreiros com informações situando historicamente o espectador ou declarando os objetivos do filme (“a causa da história”), há um bloco introdutório que lhe serve tanto de abertura quanto de perspectiva acerca do tema sobre o qual se propõe tratar. Se em Espagne 1936 é fundamental, desde o início, apontar os eventos aos quais “o cinema deve seguir” (além de reproduzir e difundir) e nomear os lados em luta, España heroica opta por uma digressão a respeito da Espanha, mais precisamente, uma apresentação do que é ser Espanha (a essência, definida pelo passado), antes de mostrá-la, efetivamente, como o país no qual se passam os eventos relacionados à guerra. Tal bloco introdutório ocorre logo após uma série de cartelas, nas quais vemos, em sequência, a menção à “Cinematografica Nacional, CINA”, uma saudação em letras grandes, “A película sensacional de Hispano film-produktion Berlin”, e o surgimento do título, quebrado em duas telas: España heroica e Estampas de la guerra civil. Por fim, o nome de J. Reig Gonzalbes. A duração do bloco, de aproximadamente cinco minutos, sinaliza, de pronto, a importância que terá para o filme.

Sob música leve e alegre, são-nos mostradas várias imagens de Espanha, lugares geográficos e históricos, arquiteturas e monumentos, acompanhadas da explanação de um locutor – o próprio Reig Gonzalbes. São sequências que mostram a terra e o céu de Espanha (bem como uma passagem curta de homens trabalhando sob o sol), e os diferentes estilos culturais de apropriação arquitetônica (como El Escorial, dentre outros), além de símbolos e monumentos relacionados ao passado imperial. A referência ao trabalho, pensado, em termos amplos, como transformação da natureza pela atividade humana, conquanto seja uma passagem curta, aparece em relação estreita com os elementos árvore e terra (planos de pessoas colhendo frutos e de alguém arando o solo), culminando com a informação de que a Espanha é um produto de reis, imperadores. Em outros termos, isto é, considerando o que é mostrado, mas não dito, a Espanha é composta por pessoas que trabalham a terra e lá colhem seus frutos, são iguais na lida e diante da natureza que lhes dá sustento, sendo conduzidas por reis e imperadores que tornaram, outrora, grande a nação. A ideia de equilíbrio e harmonia reinantes nessas sequências, aliás, aparece resumida na locução que a inaugura: “Espanha foi sempre um país cobiçado”, mas todos os povos que lá chegaram para a submeter (“fenícios, gregos, cartagineses, romanos, godos e árabes”) acabaram por ser “absorvidos” pela “força étnica do solo espanhol”.

A passagem é peculiar, pois resguarda dos planos em que temos elementos da natureza – terra, céu, árvores, pessoas colhendo frutos – uma espécie de força eterna que a todos acalenta, envolve e transforma, absorvendo-os: o solo no qual resplandece a Espanha imperial. Observado esse encadeamento, a presença dos elementos da natureza, que poderiam sugerir a prevalência da ideia de mundo bucólico, ganha, com a justaposição às muitas referências arquitetônicas (imagens pinçadas de várias regiões do país), outra dimensão, que nos remete continuamente à ideia de grandiosidade conquistada ao longo da história. Em contrapartida, a afirmação de que vários povos tentaram em vão submeter a Espanha não vem acompanhada de planos que remetam a guerras, lutas e cizânias. Ao contrário, são imagens solares, com música leve e plácida ambiência, sugerindo que as desarmonias já foram “absorvidas”, e que se houve violência ao longo da história, tal aspecto perdeu-se no passado remoto6 6 Perspectivar a história sem o elemento de violência que a acompanha, e não cessa de a acompanhar, é uma forma de olhar as aquisições de bens culturais abstraídas dos enfrentamentos no interior das sociedades, da luta entre os diferentes segmentos que as compõem. A esse respeito, é interessante lembrar a tese VII de Walter Benjamin (1994, p. 225): “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais”. . Em suma, o filme apresenta um outrora plasmado em um equilíbrio que ressoa nas imagens de monumentos, construções imponentes e na figura do trabalho ligado à natureza, unindo-os, trabalhadores, reis e conquistas civilizacionais, à terra. Se Espagne 1936 tinha por missão apresentar os acontecimentos ao mundo, España heroica, vemos, antes de ir aos eventos do presente, deteve-se na construção de uma imagem da Espanha, a da nação, imemorial e una (após absorver as cizânias da história).7 7 O início de Espagne 1936 (1min09s), ao falar da crise da República, trazia um monumento equestre girando, figurando a situação incerta do país. Em España heroica, arquiteturas e monumentos estão bem estabelecidos e irradiam a paz, a harmonia e a grandeza (sonhadas) do país.

A partir dos próximos blocos, as imagens serão as de atualidades filmadas, tal como em Espagne 1936. Somos então apresentados a uma Espanha inserida no movimento do tempo, em particular, no passado recente, cujo início dá-se com a queda da monarquia, no começo dos anos de 1930. Como diz o locutor em España heroica, a monarquia “caiu porque havia terminado a sua missão”. O país é mostrado cindido, e a marca desse novo tempo é construída por meio de vários planos em que são exibidas diferentes lideranças falando aos seus seguidores, imagem identificável por colocar, em cenas distintas, repetidamente, imagens de multidão ante um orador, os quais gesticulam e ocupam púlpitos improvisados, em posição destacada. A cesura dessas sequências com as da abertura proporciona a primeira contraposição à “alta Espanha de Isabel e Fernando” e, dado que a monarquia cumpriu sua missão, a república, ajuíza o locutor, perde-se entre as “correntes políticas” (prefigurada nos planos dos vários líderes diante de várias multidões), que são “incompatíveis com sua [do povo] psicologia étnica e que favorecem mais e mais o funesto particularismo do povo espanhol”. A fragmentação de orientações, caminhos e lideranças, e os planos com agrupamentos de pessoas que logo se desfazem parecem reforçar a ideia de união precária, provisoriedade, em suma, uma “jovem república” incapaz de manter os espanhóis em uma unidade, recorrendo à força “para sufocar o ímpeto dos protestos das massas impacientes” (7min34s). É como se o Governo da República fosse incapaz de, caída a monarquia, responder à grandeza da Espanha (construída no bloco introdutório), ao passo que as “correntes políticas”, identificadas não como forças (interesses) em luta no interior de uma sociedade, senão como um problema, faz sobressair os “particularismos” do povo (identificado como “massas impacientes”).

A música, nessa passagem de España heroica, ganha tons tensos e dimensiona tal esfacelamento, e logo nos deparamos com várias tomadas de desfiles e manifestações em que identificamos mulheres, jovens e crianças, alguns deles erguendo o punho cerrado. Tais planos são apenas a primeira manifestação da estratégia de España heroica, que, excetuando o bloco introdutório e o final (ainda falaremos dele), sempre apresenta os dois lados em luta, construindo-os por meio da comparação, em que o lado nacional (sublevado) é associado à ordem; o governo da República, ao provisório, ao precário, em suma, ao despreparo para lidar com um presente iluminado por um outrora grandioso. Não avançaremos, porém, nessas comparações (importantes) acerca da caracterização dos dois lados, ou na nomeação que España heroica lhes dá: o exército de Franco e os brigadistas, os nacionais e as “forças republicano-marxistas”, por exemplo. Tentaremos privilegiar outro aspecto, seguindo uma pista deixada pelo filme, o de que o problema não é propriamente a República (que é “jovem”), ou as “correntes políticas” que favorecem o “particularismo do povo espanhol”, mas algo maior, que coloca em risco a Espanha (a apresentada no bloco introdutório). Essa força será paulatinamente construída como ameaçadora, o que justifica tanto a “reação”, termo utilizado para justificar a sublevação, quanto o medo de que a Espanha deixe de ser Espanha.

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À primeira vista, tal força poderia ser pensada como fruto da tensão entre nacional e internacional, tal qual aparecia em Espagne 1936. No entanto, ali, nacional e internacional possuíam duas aplicações bastante práticas: a primeira, mostrar que, à diferença dos governamentais, os rebeldes tinham o apoio bélico e reconhecimento da Itália e da Alemanha (países que aparecem representados pelos seus símbolos, líderes e cenários mais famosos: a suástica e o fascio, Hitler e Mussolini, a multidão que os escuta); a segunda, mostrar que a República atua em fóruns internacionais como autodefesa, em nome de valores que transcendem o governo, como no bloco de aproximadamente quatro minutos dedicado à Sociedade das Nações (SDN - Société des Nations ou League of Nations), em que se convida para lutar na Espanha “todos aqueles dispostos a morrer antes de deixar-se levar pela força e pela violência”. Em Espagne 1936, lutar contra a “força e a violência”, notemos, faz da Espanha parte da Europa (e do mundo), e tais valores não são construídos como não afeitos ao mundo espanhol, mas como partilhados para além de fronteiras, como vemos no discurso da deputada comunista Dolores Ibárruri (La Pasionaria), para quem a luta seria pela “paz”, pela “democracia” e pela “liberdade”.

Em España heroica, contudo, os valores são os da Espanha natural, imemorial, grandiosa, imperial, a de Isabel e Fernando. Internacional é a República (pelos ideais que propaga, pela presença dos brigadistas e pela procedência das armas tomadas pelos nacionais como butim de guerra). A ajuda externa recebida pelos sublevados não é assunto, e Alemanha e Itália, conquanto a saudação entre os nacionais a elas remeta, não são mencionadas8 8 A rigor, desaparece também das imagens, salvo por uma bandeira com o símbolo nazista, que aparece rapidamente aos 1h17min50s, no bloco final, nas marchas celebrativas. .

Espanhas

Como apontou o sociólogo e historiador Santos Juliá (2006, p. 288 - 289)9 JULIÁ, Santos. Historias de las dos Españas. 6ª edición. Madrid: Taurus historia, 2006.,

A maior e mais decisiva originalidade do discurso da guerra elaborado pelos insurgentes consistiu em partir dessa retórica das duas Espanhas para construir sobre suas cinzas o mito da única Espanha verdadeira, autêntica, em luta de morte contra a outra Espanha, que não era, em realidade, uma verdadeira Espanha, senão a Anti-Espanha. As raízes desse mitologema podem remontar-se à tradição católica reacionária e integrista do século XIX, que considerava antinacional o que era não católico ou anticatólico [...], levando ao extremo a ideia [...] de que a única unidade possível da nação espanhola radicava na religião católica.

O ponto de viragem que reconfigura o par dentro e fora, Espanha e não-Espanha acontece com o seguimento de uma imagem desenhada (8min34s), na qual vemos o martelo e a foice subindo sobre o mapa da Europa (o qual inclui a ponta norte da África, como a sinalizar que os ecos do grande império espanhol ainda são ouvidos). Tal desenho em España heroica não esconde que o inimigo (o comunismo) assoma no horizonte, e se não é o evento9 9 O evento seria o assassinato de José Calvo Sotelo, ministro entre 1925 e 1930, líder monárquico e deputado, assassinado em 13 de julho de 1936. que “precipita a hora de uma reação...”, é o verdadeiro motivo contra o qual se deve lutar.

Notemos, contudo, que até aqui não temos menção à igreja católica e nem comunistas claramente identificados espalhados pelas ruas – ao menos não tão destacados quanto a presença das siglas CNT-FAI (Condeferación Nacional del Trabajo - Federación Anarquista Ibérica). Se é comum encontrarmos o punho erguido e cerrado, tais gestos mais ajudam a identificar o lado das pessoas de determinado grupamento (frente ao exibido pelo outro lado, que é a saudação semelhante à encontrada na Itália e na Alemanha) do que o apoio ao comunismo. Há, contudo, uma sequência na qual España heroica apresenta esse inimigo (sobrepondo-o à CNT – FAI), dá-lhe uma persona, fá-lo agir e interagir, associa-o ao punho erguido e aborda a contraposição com a igreja. Trata-se de uma sequência de planos já bastante conhecida e comentada, um trecho apropriado do Reportaje del movimiento revolucionário em Barcelona, o primeiro filme anarco-sindicalista (v. Noguer, 199310 NOGUER, Ramón Sala. El cine en la España republicana durante la guerra civil, 1936 – 1939. Bilbao: Ediciones Mensajero, 1993., p. 50), doravante mencionado apenas como Reportaje.

España heroica identifica, como mencionado acima, a origem da força externa que, atuando ao lado da república, afasta a Espanha de seu destino: a Rússia.10 10 Segundo Santos Juliá (2006, p. 289), para certa intelectualidade da direita à época, o “vírus” estrangeiro podia ser francês ou russo. Como nosso interesse são as proposições construídas em España heroica, trataremos apenas do comunismo. Nisso não há mistério. Os blocos que trazem planos fechados de inscrições na parede com “Viva Rusia” (que dialogam explicitamente com as saudações à Espanha e a Franco),11 11 À altura do 15min20s, uma faixa traz em maiúsculas, “Viva a España”, tendo acima e abaixo, em letras menores, saudação a Franco e ao exército, respectivamente. Na locução “general Franco” é “aclamado caudilho da Espanha nova”. acompanhadas do desenho do martelo e da foice, deixam claro quem é o antagonista da trama (para efeito informativo, o locutor utiliza, às vezes, o termo “forças republicano-marxistas”). O que chama a atenção, no entanto, é a maneira como as forças anarquistas são encenadas. Afinal, elas estão lá, são exibidas na tela e, mesmo assim, parecem inexistir para o filme. Isso é interessante porque, apropriando-se da produção cinematográfica dos sindicatos anarquistas, é recorrente identificarmos, no filme de Reig Gonzalbez, automóveis ou paredes com inscrições pintadas com as iniciais da CNT – FAI.12 12 Sobre a CNT-FAI e a força distinta que tiveram em Barcelona e Madrid, além de Noguer (1993) e Crusells (2000), ver o filme Celuloide Colectivo (2009), que traz entrevistas com vários estudiosos de cinema e de história da Espanha. Na altura dos 20min20s, por exemplo, ouvimos, entre ruídos confusos e gritos (tais sons são diegéticos, o que é raro) um “viva a CNT”. Em outro exemplo, nas sequências da tomada de Siétamo, apropriadas de Los aguiluchos de la FAI, na altura dos 23min30s ouvimos várias frases trocadas entre combatentes do lado republicano. Tais falas, no entanto, e isso é digno de nota, não servem para dar voz aos anarquistas.13 13 As iniciais (CNT-FAI), se aparecem e são verbalizadas e ouvidas, parecem desinvestidas de importância. Deixadas de lado, prevalecem em España heroica as inscrições que remetem à Rússia – “Para seguridad de vuestro hogar. Ingresad en el Partido Comunista”, “Sed comunista significa la victoria” etc. –, além dos desenhos com a caveira, a estrela, o martelo e a foice - que, como lembrava Francastel (1987, p. 167), funcionam como signos assim como os objetos fílmicos. Ao longo do filme também veremos “Viva o comunismo libertário rv”, outra inscrição grafada em alfabeto cirílico além de anúncios ou documentos em língua estrangeira. Todos esses signos, intercalados com imagens de destruição, reiteram a identidade e o qualificativo da força inimiga.

Façamos, pois, uma breve digressão por certos trechos de Reportaje antes de retomarmos a España heroica, que os ressignificou.

“Um prodígio de espontaneidade”, nas palavras de Basílio Patino, Reportaje foi o primeiro documentário rodado durante a guerra. Filmado entre 19 e 24 de julho de 1936 e produzido pela CNT-FAI14 14 “Editado por la oficina de informacion y propaganda de la CNT-FAI”, como aparece na abertura, trata de acontecimentos relacionados ao 18 de julho de 1936, e reuniu condições técnicas para exibição apenas duas semanas após a sublevação malograda em Barcelona. com direção de Mateo Santos,15 15 No filme Celuloide colectivo, de onde também retiramos as palavras de Patino, Mateo Santos é descrito como o líder dos cinegrafistas, para quem o cinema deveria ser entendido como “arma de classe”, como instrumento ideológico de libertação e meio de educação. Segundo consta na Ficha técnica de La guerra filmada, o filme é o único registro da produção anarquista que traz o Hino da Internacional (a música está, inclusive, na sua abertura). “mostra como a sublevação militar foi abortada na Ciudad Condal e o novo elemento de ordem social implantado pelas forças anarco-sindicalistas com uma linguagem anticlerical” (Crusells, 20004 CRUSELLS, Magí. La guerra civil española: cine y propaganda. Barcelona: Ariel História, 2000., p. 22).

As palavras do locutor ao abrir o filme são duras: o povo “magnífico em seu furor” impediu o sucesso da “sórdida aliança” entre “militares sem honra”, a “alta burguesia” e “os negros corvos da igreja”, do Vaticano. Além de mostrar uma série de edifícios destruídos, caracterizados como “redutos do fascismo (...) purificados pelo incêndio”, há ruas bloqueadas por barricadas, homens e mulheres em armas, pendurados em caminhões que saem da cidade para frentes de luta, crianças com o punho erguido e fechado, além de mostrar prédios ocupados e utilizados pela CNT-FAI (“vanguarda deste vasto movimento”). De todas essas sequências, destaquemos dois trechos cuja referência direta é a igreja.

A primeira dessas passagens tem início aos 7min30s do Reportaje. A câmera nos mostra a fachada de algumas igrejas atacadas e, em seguida, o interior delas, com as paredes quase sem imagens sacras e exibindo marcas da destruição. Pouco depois, um plano mais aberto, diante da porta del convento de las Salesas vemos uma pequena multidão reunida (não é possível identificar o que dizem), e, mais atrás, algumas imagens que só conseguiremos distinguir quando não apenas a câmera lhes der destaque, mas sobretudo quando a fala do locutor a elas se justapuser:

A Igreja Católica, neste e em outros acontecimentos, desnudou sua alma podre, desfez em poucas horas a mentira fabulosa de vinte séculos. Esses cadáveres petrificados em seus caixões constituem a mais dura diatribe já lançada contra o catolicismo (8min30).

Ataúdes abertos expondo cadáveres petrificados na porta do convento, à luz do sol, identificados pelo locutor como sendo corpos de monjas e frades enterrados ali há séculos, e que teriam sido martirizados no interior da igreja, parece servir de prova clara e cabal contra “a igreja católica”. Em Reportaje, as sequências imediatamente anteriores, que traziam o interior de igrejas destruídas, exibindo ruínas ainda fumegantes, somadas à associação, na fala do locutor, entre igreja, alta burguesia e militares desonrados na luta contra o povo, desdobra-se ainda em outro pequeno trecho, que segue ao do convento, quando são vistos homens (não uniformizados) armados no manicômio de Santa Eulália. Nessas sequências, assistimos a alguém fazer das estátuas sacras barricada para a sua arma, as mesmas estátuas que, se deduz, serão levadas ao pátio do manicômio para alimentar a fogueira na qual queimam vários objetos.

Os dois trechos são fundamentais para a construção da identidade dos contendores por parte do Reportaje: de um lado, a aliança entre a igreja, a alta burguesia e os militares desonrados, do outro, o povo, como mostram (e a locução é atuante) os planos de prédios públicos, igrejas, conventos, manicômios atacados e reapropriados pela população (em um plano, por exemplo, vemos a fachada de uma pequena igreja, cheia de gente, com a seguinte inscrição: “casa del Pueblo. CNT-FAI”). Nesse ponto de Reportaje, é nítido que o inimigo mais visado é o mundo clerical, a instituição igreja, o “Vaticano”, e não a religião, como podemos notar nessa referência:

Não apenas nos quartéis, mas também nas igrejas, conventos e edifícios públicos, convertidos em fortalezas, abrem fogo contra o povo, dando com sua criminal agressão [...] o mais rotundo desmentido às doutrinas de amor e de concórdia do Cristo que preside esses templos da hipocrisia e da maldade, e simuladas sob a máscara da religião por eles escarnecida e violada (4min30s Reportaje).

Se a luta pela defesa da cidade contra uma sublevação político-militar, em que há disputa bélica, a destruição e incêndios em prédios da municipalidade são consequências esperadas, a presença na tela de igrejas, das estátuas sacras e de corpos desenterrados parecerem requerer uma espécie de legenda por parte da locução, uma explicação, conforme a exemplificada acima: a de que tais edifícios serviam de esconderijo aos inimigos do povo. As imagens da fachada do convento do Reportaje, porém, utilizadas por España heroica, ganharão novos sentidos, seja pela nova seleção de planos justapostos, seja pela locução (ou ausência dela), seja pela música.

A sequência em que aparece tal apropriação é curta (entre 10min50s e 11min20s de España heroica, não mais de 30 segundos). No entanto, ela é bastante expressiva. Já o era em Reportaje, quando as monjas desalojadas de suas tumbas e expostas diante do convento serviam para desmascarar, segundo a narração, as “mentiras fabulosas” do inimigo, a instituição igreja. España heroica, porém, no momento decisivo, o da exibição dos corpos expostos diante do convento, não traz narração.

O referido trecho, curtíssimo, tem início com o aparecimento, na tela, de alguém que nos é identificado, pelo locutor, como sendo o embaixador russo enviado à Espanha, personagem ausente em todo o Reportaje. Ele está ao lado de algumas pessoas, dentre as quais, uma, também em destaque no plano, uniformizada e erguendo o punho cerrado. Um corte, e temos uma tomada do convento, a mesma de Reportaje. A maior parte da multidão ali aglomerada faz o mesmo gesto, está de costas para o convento e, parece, de frente para a câmera. Novo corte, e temos de volta à tela o embaixador (“Moisés Rosenberg”), ainda ao lado da pessoa uniformizada que ergue o punho – e vemos muitas outras fazendo o mesmo gesto atrás do dignatário russo, filmado levemente de baixo para cima. Nenhuma dessas figuras está nos planos de Reportaje, sublinhe-se mais uma vez. O embaixador, então, mexe sutilmente a cabeça, em sinal de concordância, e dá um rápido sorriso. Seguem-se três novos cortes, com planos mais aproximados e de ângulos diferentes dos corpos das monjas expostos. Dado que as figuras do embaixador e do convento nunca aparecem juntas em nenhum desses planos, é a justaposição que sugere a ideia de que o espetáculo ao qual a multidão acode é apreciado por Rosenberg (e com o qual concorda, sorrindo e afastando-se), como se a exibição macabra na fachada do convento tivesse sido feita especialmente para o visitante ilustre (cujo nome não era “Moisés”, mas Marcel Rosenberg).16 16 Sobre o local em que está o embaixador (provavelmente em Madrid, não Barcelona), e o nome Marcel (e não Moisés), ver Tranche e Sánchez-Biosca (2011, p. 63). Na mesma página, os autores destacam a presença do “portão” (verja) como o elemento de cena que estabelece o laço entre as sequências do embaixador e a do convento (“España heroica assimila o portão que aparece no fragmento do embaixador com o portão do átrio de entrada do convento de las Salesas”). Apenas adicionamos outro, o da concentração de pessoas em ambas as sequências.

Reportaje, como vimos, elegeu como um de seus inimigos a instituição católica, cujos templos, “convertidos em fortalezas, abrem fogo contra o povo”, e é dessa encenação que o Cristo, como valor, “amor e concórdia”, é preservado na locução, não sendo, portanto, confundido, com os representantes da instituição. Ao se apossar de tais imagens e juntá-las com outras de origens diversas, contudo, España heroica constrói uma nova dimensão da luta, que é a que nos interessa, a de que algo está em perigo (e a visita do embaixador o provaria), daí a destruição das estátuas e das igrejas. Ao encenar essa nova dimensão, o filme deixa em segundo plano a articulação dos trabalhadores anarquistas de Espanha, a CNT-FAI, mesmo presentes na tela. A distinção, sublinhada na locução do Reportaje, entre a instituição religiosa e a figura Cristo também desaparece, e na nova montagem de España heroica, um sentido particular assoma, a de que há um inimigo que se aproximou e tocou o que deveria para sempre ficar preservado, o “solo” espanhol, sagrado, que agora corre perigo (representado pelos planos de igrejas queimadas, estátuas sacras arruinadas e cadáveres de clérigos desenterrados). Espaços e objetos que deveriam permanecer intocados e distantes, pois seriam dignos de respeito ou medo - afinal, como apontava Émile Durkheim (2001, p. 486)5 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2ª ed. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulus, 2001., comentando Robertson Smith, “os seres profanos […] devem abster-se de qualquer contato com as coisas impuras como também com as coisas muito santas”.

No entanto, em España heroica não é propriamente a igreja católica (suas construções e estátuas) que é o sagrado. Tais objetos fazem parte, isto é, exprimem algo maior, a Espanha “verdadeira”, intocada (porque localizada em um passado imemorial). Assim, tais sequências, mais aquelas que encenam o fuzilamento de monumentos católicos, as que mostram a destruição das tradições bascas (em Guernica), a menção a Covadonga (quando, diz o locutor, as brigadas de Navarra encontraram o santuário “berço da reconquista, vazio” e a “tumba de Don Pelayo aberta e profanada”) mais as que narram a defesa “heroica” de El Alcázar de Toledo17 17 Tais blocos, não abordados neste texto, deverão ser objetos de estudo futuro. ajudam a construir a ideia de que os valores de uma Espanha correm perigo.

Detenhamo-nos um pouco mais sobre Durkheim e no seu esforço de definição da religião. Lá o autor destacava,

o aspecto característico do fenômeno religioso é o fato de que ele pressupõe uma divisão bipartida do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas são aquelas que os interditos protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas às quais esses interditos se aplicam e que devem permanecer à distância das primeiras. As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações que essas mantêm entre si e com as coisas profanas. Enfim os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o homem deve se comportar com as coisas sagradas (2001, p. 72).

Notemos que tanto a montagem de Reportaje quanto a de España heroica levam em conta essa divisão bipartida (sagrado e profano) ao trazerem para a tela a igreja católica como personagem da narrativa. O primeiro, acusando-a nominalmente, como na locução “simuladas sob a máscara da religião por eles escarnecida e violada”; o segundo, sugerindo-a por meio das sequências nas quais igrejas e estátuas de santos aparecem em ruínas. Formas distintas de construção, mas em ambos a instituição é figurada. No entanto, e isso chama atenção, se em Reportaje a igreja é qualificada, pela locução, como um dos inimigos do povo, em España heroica a justaposição de imagens de igrejas destruídas, estátuas em ruínas e cadáveres em conventos (“fragmentos sensíveis do mundo sensível”, para chamá-los como Sorlin) não é o sagrado profanado na tela, mas uma das formas pelas quais España heroica constrói o inimigo da Espanha. Em outros termos, o avanço sobre o que deveria permanecer interditado não se dá apenas sobre estátuas católicas, mas, sobretudo, como vem sendo construído desde o bloco inicial, sobre o passado imemorial, tempo em que a violência foi “absorvida”. O sagrado, por definição um mundo à parte (Durkheim, 20015 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2ª ed. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulus, 2001., p. 384), no filme nacional não está relacionado à igreja, senão a uma ideia de Espanha – e o sentimento religioso é projetado nesse espaço-tempo separado do presente, dos enfrentamentos – que só pode ser vivida professando certos valores e de acordo com uma série de comportamentos (rituais). España heroica, nessa leitura, não apenas subverte o sentido que tais planos possuíam em Reportaje, mas, ao fazê-lo, encena a existência de uma Espanha eterna, verdadeira e una, acima das correntes políticas e dos valores que, se viessem a vicejar, a negariam. Em suma, uma Espanha sagrada. Se entendermos, pois, as crenças religiosas como “representações que exprimem a natureza das coisas sagradas”, os planos e passeios de câmera que exibem igrejas e estátuas quebradas encenam não a instituição católica, mas colaboram, na composição do filme, para caracterizar o sentimento religioso de participar de uma ideia de Espanha.

Consequentemente, quando España heroica abdica da locução, não é porque é capaz de fazer as imagens de Reportaje falarem por si mesmas, isoladamente, mas porque conseguiu fazer o referido trecho, originalmente na composição de um filme de orientação republicana, falar diferente por meio da construção. A esse respeito, prestemos atenção à presença da música, pois ela, não a locução, sugere o avanço do perigo que o inimigo representa. Isso ocorre logo após a aparição de Rosenberg e da locução informar que a Rússia manda seu embaixador à Espanha. Nesse ponto, a voz de Reig Gonzalbes silencia, e desde o leve sorriso do embaixador até a inscrição, feita sobre uma parede, “Formad, el Partido Comunista. Os dará Pan Paz y Trabajo”, isto é, enquanto são exibidos os cadáveres das monjas e frades, ouvimos apenas a música de tons aflitivos, que perdura por aproximadamente um minuto e meio, até que novamente retome os acordes tristes que acompanham as igrejas destruídas e as estátuas sacras despedaçadas ou arruinadas. É a música, progressivamente aflitiva, que associa o embaixador russo aos cadáveres dos clérigos, e faz emergir o perigo que ameaça a existência dessa Espanha, vista como eterna.

A composição do quadro (multidão, portão, escadaria e múmias expostas), sem a voz explicativa que havia em Reportaje, faz ver, com música de acordes agônicos, o perigo iminente que nega a Espanha intocada – a anti-Espanha, como na citação de Santos Juliá.

A comunidade dos vivos e dos mortos

Avancemos até o bloco final (a partir de 1h13min40s). Ele é dedicado às marchas dos falangistas e do exército (modelos para vida em uma nova Espanha). Nesse ponto, encenado como se a vitória já tivesse sido conquistada,18 18 As sequências parecem sugerir a celebração da vitória final, a qual só viria acontecer, no entanto, um ano depois de pronto o filme (abril de 1939, abril de 1938). O que vemos é a “montagem de imagens de desfiles militares, e de Franco em Salamanca, Burgos e Sevilha” (cf. DVD La guerra filmada, 2009, p. 33). os elementos que gostaríamos de destacar, além dos desfiles, serão o líder e os heróis - os vivos (seguidores) e os caídos por causa da guerra.

O curioso desse bloco é uma espécie de ato oficiado em nome dos mortos por Espanha (aproximadamente aos 1h15min), cuja organização remete a várias passagens de O triunfo da vontade13 O TRIUNFO da vontade. Dir. Leni Riefenstahl. P&B. Alemanha, 1936. 104 min. (ainda que em escala muito menor, pois faltam ao filme espanhol as famosas circunvoluções de militantes em torno do Führer, os efeitos de luz, tornando indiscerníveis dia e noite, ou a grande marcha das bandeiras (que tomavam toda a tela no filme de Leni Riefenstahl). Ainda assim, a encenação é peculiar. Nesse trecho, um púlpito erigido sob a figura de uma águia, visto ao longe e ao escurecer – o plano é aberto e a câmera parece distante -, um homem faz a saudação fascista (e deduzimos que este seja Franco) ante os seus apoiadores. Seguem-se 20 segundos nos quais uma pintura de José Antonio (Primo de Rivera) sofrerá a sobreposição de uma fotografia de Franco, compondo assim o quadro de influência da Nova Espanha naquele momento específico (o líder vivo que sucede o mártir). O interessante não é notar que a celebração militar reafirma sentimentos comuns tal como o fazem as cerimônias religiosas ou as que envolvem a gravidade do luto coletivo, mas a conexão, no filme, entre o líder (o sacerdote) que, atuando em um altar (o púlpito), observa quieto e circunspecto os ritos seguidos por uma comunidade de crentes que ora marcham sob a águia, ora perfilam-se diante de uma imensa cruz – quando os mortos são evocados. A sequência, mais do que uma celebração, é como se nos apresentasse a comunidade moral na qual estão unidos os que a ela aderem (como diria Durkheim, 20015 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2ª ed. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulus, 2001., p. 76-77). Comunidade que se define pelo confisco da política a uma esfera da vida separada, uma atividade que será exercida por poucos. Uma voz diegética (ao menos assim parece, pois não vemos quem a pronuncia) que chama pelo nome de algumas personalidades (à qual todos respondem “presente”) e realiza três convocações por todos os “Mortos pela Espanha” parece operar a acoplagem entre um dos grupos em luta e a comunidade moral reclamada no bloco introdutório. Nessa liturgia, os gritos de “Viva Franco” se misturam aos de “Arriba España” e “Espanha grande”, e os derradeiros planos de multidão nas ruas diante do líder que as saúda voltam a celebrar a comunhão dos escolhidos. Ao som de Cara al sol (hino da Falange), três bandeiras tremulando contra o céu claro, que voltou a se abrir, encerram o filme.

Considerações finais

Reig Gonzalbes contou, em 1938, como os nacionais obtinham o material da “Espanha vermelha”. Ao avanço das forças nas cidades conquistadas, o material de propaganda (republicano) era buscado, classificado e arquivado. Tal material teria, dizia, “grande valor documental, já que ninguém pode duvidar de sua legitimidade, dada sua procedência”. Desse modo, “a verdade sobre a España roja” é contada pelos documentos cinematográficos que produziram, “em que eles mesmos nos mostram seu caos e nos apresentam a sua barbárie sem atenuantes de nenhum gênero” (Reig Gonzalbes apud Tranche; Sánchez-Biosca, 201112 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011., p. 61).

O comentário nos ilumina. Não porque concordemos com ele, em que o material cinematográfico tomado dos “rojos” fala por si. É justo o contrário: España heroica, na montagem, o faz falar de outra forma e, ao fazê-lo, encena o social de outro modo, uma sociedade sonhada segundo os valores afins a certo grupo social. A afirmação do cineasta de que os “documentos cinematográficos” do lado republicano trazem, nas imagens, a prova da barbárie baseia-se na crença mimética de que as imagens em movimento poderiam captar a visão de mundo de um país católico como a Espanha, nos quais planos de igrejas e estátuas atestam a “barbárie” do outro lado, sem importar a construção. No contexto da guerra, poder-se-ia argumentar, considerando as imagens que circularam à época, como as de igrejas e estátuas arruinadas, tais fragmentos do mundo sensível poderiam ser reconhecidos na tela, causando o espanto das pessoas à época. Nosso ponto, porém, é outro: España heroica propõe uma narrativa e é nela que os planos em destaque ganham sentido. Em outros termos, debruçamo-nos não nos fragmentos do mundo sensível na tela para os reconhecer, mas na compreensão dos valores encenados em virtude do lugar que ocupam na composição do filme.

A Espanha não é de todos, mas dos eleitos. Eles aparecem no bloco final e parecem acenar à Espanha imemorial do bloco introdutório. Como apontara Giorgio Agamben (2007, p. 58)1AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Silvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. em outro registro, as coisas sagradas (ou religiosas) eram aquelas que pertenciam aos deuses, e assim “elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens”, a religião “subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada” (p. 58). É o que vemos em España heroica, um processo de subtração: o do tempo e o do espaço no qual atuam as “correntes políticas”, tirando do horizonte os valores de uma Espanha (aquela vista como outra, a que luta contra o fascismo). É como se política na nova Espanha precisasse ser restituída a um mundo separado, para o exercício de iniciados, espelhando a Espanha de outrora, imperial. O caráter que esse distanciamento da política assume no filme não é para garantir espaço para que o não-idêntico, o outro, se expresse nas “correntes políticas”. Esse distanciamento pontua o desejo de uma unidade que, quanto mais impossível de ser obtida, mais exige o sacrifício de todos aqueles que dela não farão parte, os que querem participar (da política), não participando da unidade que os nega e segrega.

  • 1
    O artigo é fruto de pesquisa apoiada pela FAPESP. Processo nº 2022/14494-4 - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 2
    España heroica, cujo subtítulo é Estampas de la Guerra Civil Española, é uma produção teuto-espanhola na qual Joaquín Reig Gozalbes atuou na direção e no argumento (além de ser o locutor na versão espanhola, com a qual trabalhamos aqui). Acerca de Reig Gonzalbes e sua dupla militância (na Falange e no Partido nacional socialista alemão), do apoio e do tipo de apoio dado pelo governo de Berlim ao desenvolvimento da propaganda nacional durante o período (o filme é lançado em 1938, isto é, ainda durante a guerra), além do seu envolvimento na FE de las JONS (Falange Española de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista - junção da Falange com as Juntas), bem como o trabalho realizado na Alemanha desde 1937, ver Tranche e Sánchez-Biosca, 201112 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011., p. 57.
  • 3
    Formariam o tríptico a produção do Noticiario español e os documentários do Departamento Nacional de Cinematografia – DNC - (criado em abril de 1938). Ainda segundo os autores, “España heroica, desde sua implacável montagem e sua militância anticomunista, e Romancero Marroquí, desde seu cuidado plástico e seu enfoque etnográfico, constituirão os dois pilares sobre os quais se erige o monumento da propaganda nacional”; e por mais que houvesse “limitações técnicas” e que a produção de filmes do lado republicano fosse “provavelmente superior ao esforço nacional, nada garante a ideia de que este fosse retrógrado, pouco criativo e inoperante” (Tranche; Sánchez-Biosca 201112 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011., p. 16 e 17, respectivamente).
  • 4
    Em algumas passagens localizamos a minutagem do filme. De modo a melhor localizar a discussão para o(a) leitor(a), utilizamos o conteúdo disponível na página da Filmoteca Española: Colección Guerra Civil. As entradas de España heroica, Espagne 1936 e Reportaje estão listadas na filmografia que segue o texto.
  • 5
    Segundo Tranche e Sánchez-Biosca, España heroica aparecia, desde o título, como “resposta frontal” à Espagne 1936 (2011, p. 58). A versão com a qual trabalharemos é a preservada, a francesa, dirigida ao público estrangeiro (a espanhola chamou-se España leal en armas, v. DVD La Guerra filmada). Não fizemos a menção à parte da série Los aguiluchos de la FAI (1936), também utilizada no texto, em razão de passarmos muito rapidamente pelo filme.
  • 6
    Perspectivar a história sem o elemento de violência que a acompanha, e não cessa de a acompanhar, é uma forma de olhar as aquisições de bens culturais abstraídas dos enfrentamentos no interior das sociedades, da luta entre os diferentes segmentos que as compõem. A esse respeito, é interessante lembrar a tese VII de Walter Benjamin (1994, p. 225)2 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222–232.: “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais”.
  • 7
    O início de Espagne 1936 (1min09s), ao falar da crise da República, trazia um monumento equestre girando, figurando a situação incerta do país. Em España heroica, arquiteturas e monumentos estão bem estabelecidos e irradiam a paz, a harmonia e a grandeza (sonhadas) do país.
  • 8
    A rigor, desaparece também das imagens, salvo por uma bandeira com o símbolo nazista, que aparece rapidamente aos 1h17min50s, no bloco final, nas marchas celebrativas.
  • 9
    O evento seria o assassinato de José Calvo Sotelo, ministro entre 1925 e 1930, líder monárquico e deputado, assassinado em 13 de julho de 1936.
  • 10
    Segundo Santos Juliá (2006, p. 289)9 JULIÁ, Santos. Historias de las dos Españas. 6ª edición. Madrid: Taurus historia, 2006., para certa intelectualidade da direita à época, o “vírus” estrangeiro podia ser francês ou russo. Como nosso interesse são as proposições construídas em España heroica, trataremos apenas do comunismo.
  • 11
    À altura do 15min20s, uma faixa traz em maiúsculas, “Viva a España”, tendo acima e abaixo, em letras menores, saudação a Franco e ao exército, respectivamente. Na locução “general Franco” é “aclamado caudilho da Espanha nova”.
  • 12
    Sobre a CNT-FAI e a força distinta que tiveram em Barcelona e Madrid, além de Noguer (1993)10 NOGUER, Ramón Sala. El cine en la España republicana durante la guerra civil, 1936 – 1939. Bilbao: Ediciones Mensajero, 1993. e Crusells (2000)4 CRUSELLS, Magí. La guerra civil española: cine y propaganda. Barcelona: Ariel História, 2000., ver o filme Celuloide Colectivo (2009)3 CELULOIDE Colectivo. El cine en guerra. Dir. Oscar Martín. Roteiro Óscar Martín e David Martín. P&B e Colorido. Espanha, 2009. 84 min., que traz entrevistas com vários estudiosos de cinema e de história da Espanha.
  • 13
    As iniciais (CNT-FAI), se aparecem e são verbalizadas e ouvidas, parecem desinvestidas de importância. Deixadas de lado, prevalecem em España heroica as inscrições que remetem à Rússia – “Para seguridad de vuestro hogar. Ingresad en el Partido Comunista”, “Sed comunista significa la victoria” etc. –, além dos desenhos com a caveira, a estrela, o martelo e a foice - que, como lembrava Francastel (1987, p. 167)7 FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visão e imaginação. Lisboa: Edições 70, 1987., funcionam como signos assim como os objetos fílmicos. Ao longo do filme também veremos “Viva o comunismo libertário rv”, outra inscrição grafada em alfabeto cirílico além de anúncios ou documentos em língua estrangeira. Todos esses signos, intercalados com imagens de destruição, reiteram a identidade e o qualificativo da força inimiga.
  • 14
    Editado por la oficina de informacion y propaganda de la CNT-FAI”, como aparece na abertura, trata de acontecimentos relacionados ao 18 de julho de 1936, e reuniu condições técnicas para exibição apenas duas semanas após a sublevação malograda em Barcelona.
  • 15
    No filme Celuloide colectivo, de onde também retiramos as palavras de Patino, Mateo Santos é descrito como o líder dos cinegrafistas, para quem o cinema deveria ser entendido como “arma de classe”, como instrumento ideológico de libertação e meio de educação. Segundo consta na Ficha técnica de La guerra filmada, o filme é o único registro da produção anarquista que traz o Hino da Internacional (a música está, inclusive, na sua abertura).
  • 16
    Sobre o local em que está o embaixador (provavelmente em Madrid, não Barcelona), e o nome Marcel (e não Moisés), ver Tranche e Sánchez-Biosca (2011, p. 63)12 TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino. Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011.. Na mesma página, os autores destacam a presença do “portão” (verja) como o elemento de cena que estabelece o laço entre as sequências do embaixador e a do convento (“España heroica assimila o portão que aparece no fragmento do embaixador com o portão do átrio de entrada do convento de las Salesas”). Apenas adicionamos outro, o da concentração de pessoas em ambas as sequências.
  • 17
    Tais blocos, não abordados neste texto, deverão ser objetos de estudo futuro.
  • 18
    As sequências parecem sugerir a celebração da vitória final, a qual só viria acontecer, no entanto, um ano depois de pronto o filme (abril de 1939, abril de 1938). O que vemos é a “montagem de imagens de desfiles militares, e de Franco em Salamanca, Burgos e Sevilha” (cf. DVD La guerra filmada, 20096 DVD La guerra filmada. (Inclui Livro de sinopses). Filmoteca Española. Governo de España. Ministerio de Cultura. Icaa, 2009., p. 33).

Referências

  • 1
    AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Silvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • 2
    BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222–232.
  • 3
    CELULOIDE Colectivo. El cine en guerra. Dir. Oscar Martín. Roteiro Óscar Martín e David Martín. P&B e Colorido. Espanha, 2009. 84 min.
  • 4
    CRUSELLS, Magí. La guerra civil española: cine y propaganda. Barcelona: Ariel História, 2000.
  • 5
    DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa 2ª ed. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulus, 2001.
  • 6
    DVD La guerra filmada. (Inclui Livro de sinopses). Filmoteca Española. Governo de España. Ministerio de Cultura. Icaa, 2009.
  • 7
    FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visão e imaginação Lisboa: Edições 70, 1987.
  • 8
    GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • 9
    JULIÁ, Santos. Historias de las dos Españas 6ª edición. Madrid: Taurus historia, 2006.
  • 10
    NOGUER, Ramón Sala. El cine en la España republicana durante la guerra civil, 1936 – 1939. Bilbao: Ediciones Mensajero, 1993.
  • 11
    SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma Paris: Aubier Montaigne, 1977.
  • 12
    TRANCHE, Rafael R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El pasado es el destino Propaganda y cine del bando nacional em la Guerra Civil. Madrid: Filmoteca Española / Ediciones Cátedra, 2011.
  • 13
    O TRIUNFO da vontade. Dir. Leni Riefenstahl. P&B. Alemanha, 1936. 104 min.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2022
  • Aceito
    22 Fev 2023
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