O artigo trata do papel da mobilidade espacial de famílias camponesas entre assentamentos da chamada reforma agrária no desenvolvimento local da região Transamazônica, Estado do Pará. A análise das práticas e narrativas de sujeitos locais no contexto de políticas públicas fundiárias e ambientais evidencia que essa execução vigente não se coaduna com os processos de territorialização concebidos pelos chamados beneficiários de reforma agrária.
Conservação ambiental; Mobilidade espacial; Territorialização.
The article discusses the role of turnover of peasant families at agrarian reform settlements for the local development of the Transamazon region in the State of Pará. Analysis of local practices and narratives in the context of land and environmental policies evidences that their current implementation is not consistent with processes of territorialization designed by so-called beneficiaries of land reform.
Environmental conservation; Spatial mobility; Territorialization
Résumé
L'article examine le rôle de déplacement des familles paysannes entre les lotissements de réforme agraire dans le développement local de la Transamazonienne, dans l'État du Pará. L'analyse des pratiques et des discours des sujets locaux dans le contexte des politiques publiques foncières et environnementales mettent en relief que l'exécution de ces politiques ne s'affinent pas avec les processus de territorialisations conçus par les bénéficiés de la Reforme Agraire
Protection de l'environnement; Mobilité spatiale; Territorialisation
El artículo trata del papel de la movilidad de las familias campesinas de los asentamientos de la llamada reforma agraria en el desarrollo local de la región Transamazónica, Estado de Pará. El análisis de las prácticas y narrativas de los sujetos locales en el contexto de las políticas públicas de acceso a la tierra y políticas ambientales evidencia que la ejecución vigente no se incorpora con los procesos de territorialidad concebidos por los llamados beneficiarios de la reforma agraria.
Conservación ambiental; Movilidad espacial; Territorialidad
1 Introdução
Este artigo enfoca um processo de territorialização, crucial ao desenvolvimento local: o deslocamento de famílias camponesas, empiricamente delimitado a situações consideradas pelo governo brasileiro como sob risco ambiental, nos assentamentos da chamada reforma agrária, em áreas de influência do tramo leste da rodovia Transamazônica. O deslocamento de famílias, a transferência de direitos sobre terras nesses assentamentos e os processos associados à degradação ambiental pelas autoridades serão analisados à luz de narrativas dos sujeitos locais. Para tanto, consideraremos o caráter polissêmico de termos como ambiente, degradação e risco ambiental. Emprestando o neologismo "ambientalização" discutido por Lopes (2004)LOPES, José S. L. A ambientalização dos conflitos sociais. In: ______. A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. p. 17-38. para examinar os conflitos sociais empiricamente identificados, buscaremos "desnaturalizar" essa associação automática entre a mobilidade de camponeses e a degradação ambiental. Problematizaremos a questão pública do ambiente e a noção de territórios para refletir como sua apropriação pela sociedade e pelos operadores do desenvolvimento vem camuflando conflitos sociais cotidianos nas áreas ditas de reforma agrária.
[...] Você pode fazer uma pesquisa nesse assentamento aí. Ninguém tem casa, os colégios tão caindo, as estradas não são suficientes, nem um orelhão pra na hora que você se aperrear, pra fazer uma ligação de urgência. Não tem um posto de saúde! Que reforma agrária é essa, gente? No papel não é assim, é muito diferente... A pessoa que vem pra um mato desse, pra arrumar uma terra, que vem sem dinheiro pra comprar a terra, aquela pessoa não tem nada... Quem não tem uma reserva, logo que chega, a coisa começa a apertar, ele não tem produção pra de imediato fazer um dinheiro e, às vezes, ainda vem a doença. Aí, o que ele vai fazer? Ir embora, vender o lote! (Pedro Pinto, 62 anos, entrevista concedida em abril/2010).
O Sr. Pedro, face aos problemas associados à chamada "venda de lotes" de reforma agrária, dá voz à indignação que recorrentemente emana de entrevistas realizadas junto às famílias que hoje vivem nos assentamentos da Transamazônica. Em pesquisa iniciada em 2007, essas famílias expressam uma perspectiva sobre a mobilidade espacial bastante distinta daquelas que os responsabiliza pelo desmatamento associado à alta taxa de abandono em lotes de assentamento (LUDEWIGS, 2009LUDEWIGS, Thomas et al. Agrarian Structure and Land-cover Change Along the Lifespan of Three Colonization Areas in the Brazilian Amazon. World Development, v. 37, n. 8, p. 1348-1359, ago. 2009.). Seu Pedro vive, desde 2004, num Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), uma das modalidades "especiais" de regularização fundiária, criadas para conciliar a política de distribuição de terras e a conservação ambiental.
Apesar de "especiais", os investimentos governamentais nesses assentamentos não têm sido satisfatórios para o desenvolvimento local concebido pelos camponeses. Por outro lado, segundo os agentes governamentais a cargo do PDS em 2008, esse enfoque ambiental e a reforma agrária não se efetivam porque "o PDS está assolado por esse entra-e-sai de gente que não quer nada com a terra". Segundo o relatório de servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) responsáveis pelo levantamento ocupacional no PDS Anapu, ali "há um intenso mercado de compra, venda e troca de terra" (INCRA, 2010INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA. Relatório Circunstanciado de Vistorias da Supervisão Ocupacional no PDS Anapu I (SM0067000), elaborado pela área técnica do Incra em Santarém em 4 de agosto de 2010.). Estimativas desses agentes e de lideranças locais variam entre 70 a 90% quanto ao percentual de lotes repassados do ocupante original para novas famílias.
Propomo-nos, através deste artigo, discutir essa transferência informal de direitos de acesso a terras públicas destinadas a projetos de assentamento de reforma agrária na Transamazônica. Consideraremos esse grupo social, categorizado como agricultores familiares e conceituado como camponeses, como sujeito e não como mero objeto da intervenção governamental na questão agrária.
Entre novembro de 2007 e outubro de 2008, através da Rede de Estudos das Condições Amazônicas de Vida e Ambiente1 1 A Rede de Estudos das Condições Amazônicas de Vida e Ambiente congrega 20 instituições, abrangendo 150 localidades em sete países da América Latina, sendo coordenada pelo Centro Mundial Agroflorestal (ICRAF). A pesquisa na Transamazônica foi realizada através de parceria entre o ICRAF e o Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará. (RAVA), coletamos dados socioeconômicos através de questionários estruturados em 181 domicílios junto a duas modalidades de assentamento: 1) assentamento convencional, a Expansão do Projeto de Assentamento (PA) Itapuama, município de Altamira, Pará; e 2) assentamento "especial" com ênfase ambiental: PDS de Anapu (dividido em PDS Virola-Jatobá e PDS Esperança), no município de Anapu, Pará. Consideramos nesta pesquisa os três sítios: o PA e os dois PDS. A alta taxa de deslocamento das famílias e a transferência de lotes, especialmente no PDS Virola-Jatobá nos intrigou a ponto de, no período de 2009 a 2011, enfocarmos a dissertação da primeira autora no tema da mobilidade espacial das famílias.
Dados qualitativos, obtidos através de observação direta e participante, registro de histórias de vida e narrativas em entrevistas abertas, evidenciaram a relevância da autonomia relativa necessária à reprodução do modo de vida camponês na tomada de decisão sobre os deslocamentos dessas famílias, para a formação de seus territórios. Esses dados foram avaliados no contexto de políticas públicas fundiárias e ambientais, cujo conteúdo e forma de execução não têm favorecido a permanência do chamado beneficiário nas terras destinadas a assentamentos de reforma agrária da Transamazônica. A integração entre os dados quantitativos e qualitativos revela também a importância das redes de parentesco, vizinhança e compadrio que, através de mecanismos de solidariedade e reciprocidade, mantêm as famílias na terra, em situações de ineficiência ou ausência do Estado.
Pressões motivadas pelo alarme global ante impactos das mudanças climáticas têm demandado estudos fundados na problemática ambiental, de caráter operativo e instrumental, considerando como ponto de partida a autoevidente degradação ambiental (ALMEIDA, 2008aALMEIDA, Alfredo W. B. Biologismos, geografismos e dualismos: notas para uma leitura crítica de esquemas interpretativos da Amazônia que dominam a vida intelectual. In:______. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008a. p. 15-126.). A resultante urgência em operacionalizar intervenções para reduzir o desmatamento, por exemplo, dificulta a leitura crítica e prioritária das causas dos deslocamentos, já tomando suas consequências pelo viés do formato operativo, como metas de aumento da taxa de retenção dos clientes da reforma agrária. Porém, apesar das profundas marcas que permanecem nas vidas dessas pessoas em deslocamento, há uma carência de estudos sobre as efetivas causas dessas cicatrizes sociais sob o ponto de vista dos próprios sujeitos. Há uma menor visibilidade aos estudos fundados numa problemática relacional, em que as relações sociais e os conflitos decorrentes são o ponto de partida. Nesse sentido, é importante que cientistas sociais contribuam crítica e substantivamente em estudos que associem questões ambientais à mobilidade das famílias. Para estudar esse fenômeno, nos debruçamos inicialmente sobre histórias de vida, para entender como essas famílias haviam ali chegado, para então buscarmos compreender quais eram os condicionantes que os levaram a sair.
2 A mobilidade ontem: uma fuga ao cativeiro do "trabalho para o patrão" na "terra de dono"
A mobilidade de grupos camponeses tem sido associada à própria constituição de sociedades na Amazônia, como lócus do chamado capitalismo autoritário. No histórico dos sistemas de repressão da força de trabalho, tanto na própria Amazônia quanto em outros contextos, registram-se as fugas ao "cativeiro" dos patrões, em busca às chamadas "terras livres" (VELHO, 1976VELHO, Otávio G.Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: DIFEL, 1976.). De forma espontânea, já desde a década de 20 e, posteriormente, combinada com a forma dirigida pelo Estado, a partir dos anos 60, esse movimento é referido pelos entrevistados como uma fuga ao "cativeiro do patrão" em "terra de dono". O termo "cativeiro" é recorrente nas entrevistas coletadas no PA e nos PDS. As situações e noções referidas ao cativeiro têm sido analisadas por teóricos de diferentes perspectivas (MARTINS, 1979MARTINS, José S. O cativeiro da terra. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1979.; VELHO, 1995______. O cativeiro da besta-fera. In: VELHO, O. G. Besta fera: recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. p. 13-44.).
Nos estudos sobre a fronteira, a mobilidade de famílias camponesas pode ser explicada pelas chamadas frentes de expansão constituídas por segmentos do campesinato atraídos pelas "terras livres", que romperam a fronteira demográfica, adentrando territórios indígenas. Outras perspectivas ou análises de uma situação posterior situam essa mobilidade no enfrentamento às ações governamentais incentivadoras do rompimento da fronteira econômica por uma frente pioneira constituída por agentes da economia capitalista, empresários que buscaram subjugar a economia camponesa (MARTINS, 1997______. Fronteiras: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997.). O trabalho livre de patrão marca essa economia camponesa. Como nos conta o senhor Pedro, nascido em um quilombo no município de Codó, Estado do Maranhão, hoje residente no PDS Anapu:
[...] Estou por aqui assim. Corri toda essa região por um pedaço de terra. Sou um homem que nunca gostei de trabalhar paraninguém. É que naquelas épocas, quando eu fui nascido, a terra não tinha dono, era liberta. No lugar que você chegasse, você fazia morada, fazia sítio, fazia tudo... Essas terras... foi começado o rebuliço do tempo do Sarney para cá, de fazendeiro comprando terra, tomando terra, começando a matar gente e fazendo essa abusão toda (Senhor Pedro, morador do PDS Anapu, 2008).
Essa concepção de mundo e de trabalho, por parte de um campesinato cuja gênese ocorre em meio a processos de escravidão, destribalização, desterritorialização e migrações forçadas, demonstra a atualidade da instituição da liberdade no controle, pela unidade familiar camponesa, sobre sua própria força de trabalho. Nas entrevistas abertas, com homens e mulheres, moradores mais antigos e recentes, de diferentes origens, é recorrente a alusão ao trabalho liberto, trabalho sem patrão, trabalho para mim mesmo, como sustentação de um modo de vida próprio ao campesinato amazônico. Essa concepção é observada hoje e ajuda a explicar os deslocamentos.
Em consonância com as histórias de vida obtidas a partir das entrevistas em campo, tanto nos PDS quanto no PA, a trajetória do senhor Roberto Nascimento, 62 anos, morador do PDS Virola-Jatobá, ilustra uma situação comum ao conjunto do grupo social estudado. Sua história de vida, apesar de tão particular, ilustra uma concepção compartilhada com aqueles que, embora apresentem configurações diferenciadas para as variáveis e fatores que influenciam sua mobilidade, têm em comum o fundamento da reprodução da família vinculada ao desenvolvimento local de uma coletividade camponesa: o trabalho livre na "terra sem dono".
Nascido em 1948, em Ipoeira, Estado do Ceará, filho de agricultores, seu Roberto migrou com os pais e onze irmãos para o Estado do Piauí, em 1959. Nessa época, eram constantes os deslocamentos de famílias do Ceará para outros estados, sendo este, um meio para fugir da seca e da fome.
De acordo com seu Roberto, o seu pai sempre dizia: "meus filhos, sem terra não tem como criar todos vocês aqui... têm que arrumar uma terra pra trabalhar". Ele articulava essa noção de terra de trabalho (GARCIA, 1983GARCIA Jr, Afrânio R. Terra de trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.) com a noção de trabalho liberto, pois "trabalhar pros outros não dava futuro". Porém, devido à família não ter conseguido uma terra no Estado do Piauí, acabaram por se submeter durante três anos às precárias condições de trabalho "cativo":
Em 1962, influenciado por parentes que moravam em Pio XII, Estado do Maranhão, e devido às "fofocas" sobre a facilidade de acesso à terra e a "fartura" nela disponível, a família para ali decidiu se mudar:
[...] Quando a gente chegou ao Maranhão, a gente viu mais facilidade, porque tinha muito peixe, tinha farinha, tinha muito arroz. Aí a gente viu a coisa começar a melhorar. Mas meu pai sempre dizia pra nós: meus filhos, tenho que arrumar uma terra para trabalhar, para criar vocês. Pois, quando chegamos ao Maranhão, fomos trabalhar para uns parentes nosso, não era terra da gente... Aí a gente saiu de lá porque a vontade do meu pai era arrumar uma terra pra trabalhar. [...] Lá em Pindaré, nós fomos trabalhar pra nós mesmo. Mas de lá de onde nós morávamos para a cidade de Pindaré, eram três dias de viagem de canoa, aí a gente botava 18, 20 saco de farinha na canoa, e descia pra Pindaré. [...] A situação era muito difícil. [...] Lá a malária pegou nós, e o meu pai se desgostou de vez e fomos embora pra Vitorino Freire... A terra, o meu pai abandonou.
Em 1966, novamente sem terra, voltaram a trabalhar em fazendas, mas sem o problema da malária e do isolamento. Nesse mesmo ano, Seu Roberto casou-se e continuou trabalhando, geralmente em locais onde residiam alguns de seus familiares. Porém, por não ter obtido melhoria nas condições de vida ao longo desses anos trabalhando em fazendas, e por já possuir quatro filhos, em 1980 seu Roberto com incentivo da esposa decidiu morar no lote de seu sogro em Vitorino Freire. Após passar dois anos morando como agregado e trabalhando como diarista, partiu para o garimpo Cachoeira, em Santa Luzia do Pará, buscando "se livrar da vida de diarista e arrumar um dinheiro mais fácil pra comprar uma terra". Mas não obteve sucesso.
Seu Roberto resolveu então sair em busca de uma terra em Gurupi. Como seu pai lhe ensinara, os riscos da dependência no trabalho para patrão eram altos. Contudo muitos anos se passaram até ficar sabendo através de um amigo da disponibilidade de terra no município de Anapu. Logo, decidiu, no ano de 2001, ir em busca da terra própria. Em 2002, conseguiu um lote no PDS Virola-Jatobá, onde se encontra residindo até hoje, mas enfatiza as dificuldades em permanecer:
[...] Olhe, vou lhe dizer uma coisa, nesses últimos anos eu tenho passado por grandes dificuldades aqui dentro. Era filho, mulher e eu, todos doentes. Aí comecei a vender o que tinha pra tratar da família. Primeiro vendi a produção da roça que era pra comer, depois vendi todo equipamento da casa de farinha. Vendi forno, vendi tudo! Por último, vendi uma árvore, e foi o que me ajudou escapar. Eu já estava com o lote à venda, e só não vendi porque não achei comprador.
Segundo seu Roberto, o fator que contribuiu para a sua permanência no assentamento durante as fases de maiores dificuldades foi a solidariedade dos vizinhos:
[...] Olhe, quando eu fiquei aqui dentro desse lote sozinho e doente, a minha sorte, o meu socorro era essa vizinha bem aí, a Maria. Ela que fazia as coisas pra mim. [...] E quando falta um óleo, alguma coisa, o socorro são os vizinhos. Aqui é assim, um dia a gente precisa deles, no outro eles precisa da gente, e assim, vamos se ajudando aqui dentro.
Essa narrativa, em sua essência é uma alegoria representativa das experiências do grupo, descreve como a decisão tanto de deslocamento como a de permanência na terra depende de um conjunto de fatores, incluindo problemas de acesso a serviços públicos de saúde e educação, e a busca por melhores condições econômicas. A importância das redes de solidariedade, quer seja por parentesco, compadrio ou vizinhança, também se destaca nas narrativas.
A narrativa mostra que, desde a década de 50, seu Roberto vem se deslocando, numa fuga ao cativeiro da fome, da seca, da falta de terra, mas, sobretudo do trabalho sob comando do patrão. Essa busca pela autonomia na terra que lhe permitiria exercer o trabalho sob comando da própria família parecia terminar na passagem do século, ao chegar à terra da chamada reforma agrária. Porém, seu Roberto, hoje sexagenário, tem visto muitos de seus vizinhos abandonarem seus lotes no assentamento, especialmente os mais jovens, mesmo sem a conhecida figura do patrão.
Essa narrativa encontra eco nos estudos clássicos sobre o campesinato (CHAYANOV, 1981CHAYANOV, Alexander V. Sobre a Teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In: SILVA, J. G.; STOLCKE, V. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, [Original 1929], 1981. p. 133-163.; SHANIN, 2005SHANIN, Teodor. A definição de camponês: conceituações e desconceituações – o velho e o novo em uma discussão marxista. Revista NERA, Presidente Prudente, SP, ano 8, n. 7, p. 1-21, jul./dez. 2005. [Original: A definição de camponês: conceituações e desconceituações. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 26, p. 43-80, 1980].; WOLF, 1976WOLF, Eric. Sociedades camponesas. Tradução de Oswaldo C. C. da Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1976.), que ressaltam a autonomia relativa do campesinato, com o controle da força de trabalho da unidade familiar de produção sendo a condição essencial para sua reprodução (articuladas a outras, tais como: o acesso a terra e o estabelecimento rural familiar como unidade básica da organização econômica e social; a produção agrícola, pecuária, extrativa e ou artesanal como principal fonte de sobrevivência; a vida em povoados atrelada a cultura específica das pequenas comunidades rurais; e a subordinação a setores econômicos mais poderosos).
Autores contemporâneos discutem essa autonomia relativizando o conceito clássico de camponês nos atuais contextos, em que identidades coletivas e demandas de base étnica são afirmadas em conflitos sociais recolocados. Conceitos mais reticulares, tal como etnicidade, contrapostos àqueles binários e de delimitação estrita, como classe social que, apesar de sua relevância teórica e política, "historicamente tem proporcionado pouca base para a profunda solidariedade sentida entre os subalternos" (KEARNEY 1996KEARNEY, Michael. Reconceptualizing the Peasantry: Anthropology in Global Perspective. Boulder: Westview Press, 1996., p. 172). Nessa retícula, pessoas atualmente conceituadas como camponesas se aglutinariam em torno de uma etnicidade, como uma forma de política transformativa na busca de novas identidades e processos de territorialização.
Estudando os processos de territorialização protagonizados por camponeses na Amazônia, Almeida (2008b)______. Processos de territorialização. In: ______. Terra de quilombo, terras indí genas, "babaçuais livre", "castanhais do povo", faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus, AM: PGSCA, UFAM, 2008b. 192 p. alerta para um processo de "ambientalização" dos conflitos sociais que ocorre quando o Estado implementa suas modalidades de regularização fundiária e regras ambientais associadas, sem considerar as especificidades dessa categoria.
As políticas ambientais e agrárias ressentem, neste sentido, da incorporação dos fatores é tnicos e identitá rios nos seus instrumentos de intervençã o direta e daqueles outros recursos técnicos que lhes possam permitir uma compreensão mais precisa das modalidades de uso comum vigentes. Definir oficialmente unidades de conservação apenas pela incidência de espécies e operar com as categorias cadastrais e censitárias convencionais significa incorrer no equí voco de reduzir a questã o ambiental a uma açã o sem sujeito. (ALMEIDA, 2008b______. Processos de territorialização. In: ______. Terra de quilombo, terras indí genas, "babaçuais livre", "castanhais do povo", faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus, AM: PGSCA, UFAM, 2008b. 192 p., p. 122).
Nesse sentido, retomamos a proposição de Lopes (2004)LOPES, José S. L. A ambientalização dos conflitos sociais. In: ______. A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. p. 17-38. em que, devido aos diferentes significados que o termo "ambiente" assume para cada um dos diferentes atores sociais, é preciso identificar e distinguir as formas específicas de entendimento, de uso e de contextos desse termo, pois tendo uma "aparência unânime", ele esconde projetos políticos diferentes. Por isso, a relação que o camponês tem com a natureza, através de uma concepção própria e historicamente construída de "ambiente", pode entrar em conflito com a relação com a natureza proposta em políticas e programas ambientais. Nessa "ambientalização" de conflitos, podem surgir novos "cativeiros" para o campesinato, mesmo em áreas libertas do clássico "patrão". A expressão desses "novos cativeiros" será examinada na próxima seção.
3 A mobilidade hoje: ainda uma fuga aos novos cativeiros nas terras de reforma agrária com enfoque ambiental
Se, nas décadas passadas, a mobilidade dos camponeses era associada à busca à terra liberta, numa fuga ao cativeiro do "trabalho para patrão em terra de dono", o que provocaria, hoje, o abandono de lotes por aqueles que lograram alcançar as "terras de reforma agrária"? Que fatores impedem que esses lotes correspondam à almejada "terra liberta", a tornar-se o território necessário ao desenvolvimento local? Haveria novos "patrões" a expulsá-los da terra tão duramente conquistada?
A memória coletiva permite o registro das precariedades materiais vividas durante a fuga ao cativeiro do patrão e o reconhecimento de que comparativamente as condições melhoraram. Porém, atualmente, os entrevistados associam a mobilidade das famílias a outros "cativeiros": à falta de acesso a serviços públicos, como saúde e educação principalmente; e à necessidade de buscar melhores condições para responder à demanda das atuais necessidades de sua unidade familiar de consumo. Ressalta-se que, se as condições materiais melhoraram, as percepções da necessidade de consumo também mudaram. Não apenas para os jovens casais, mas também para os mais idosos, como o senhor Severino dos Santos, 62 anos, morador do PDS Virola-Jatobá:
[...] Hoje, muitas pessoas têm na cabeça assim, que no assentamento a gente precisa só de comer. [...] Hoje a coisa não estão só assim, de precisar só de jantar e de terra, nós precisamos de outras coisas que possa transformar nossas vidas [...] Além de comer, nós precisamos de colégio bom, que aqui não tem, nós precisamos de um posto telefônico, nós precisamos de um posto de saúde, nós precisamos de uma usina de pilar arroz pra gente não precisar ir lá pra Anapu, e nós precisamos de recurso pra nós viver, pra nós termos uma vida melhor (Severino dos Santos, 62 anos, entrevista em abril/2010).
As dificuldades de saúde são aparentes numa amostra de 48 famílias no PDS Virola-Jatobá, que registraram, apenas no ano de 2007, quinze casos de malária, três de dengue, um de leishmaniose e três outras doenças graves. O senhor José Santana, 65 anos, hoje residente na cidade de Anapu e ex-morador do PDS Virola-Jatobá, após contrair malária seis vezes no ano de 2006, vendeu o lote e mudou-se para a cidade.
Da mesma forma que a questão de saúde, o cativeiro da falta de serviços de educação é foco de opressão às famílias. As escolas de ensino fundamental são deficientes, e a falta de oferta de ensino após a 4ª série tem levado à divisão de famílias, permanecendo geralmente a esposa junto aos filhos pequenos na cidade durante o período de aula, enquanto os chefes de família e filhos maiores, que não se encontram estudando, permanecem trabalhando no lote.
Após a ocupação das áreas de assentamento, o serviço de educação demora anos para chegar, e quando chega, o ensino é oferecido apenas de 1ª a 4ª série. Quando o município consegue implantar o ensino fundamental completo, a distância entre a casa e a escola atrelada à falta de transporte acabam dificultando o acesso de todos os alunos. As estruturas são precárias e os equipamentos e materiais inexistentes.
A questão do acesso à educação tem graves implicações para a família camponesa, como sugerem essas notas de trabalho de campo feitas pela segunda autora em fevereiro de 2008:
[...] Quando saímos do PDS não era tão tarde, mas a estrada estava tão ruim que chegamos ao escurecer. Enquanto eu entrevistava seu Mário na carroceria do caminhão, seus filhinhos miravam a estrada à frente, cabeças erguidas, o vento no rosto, o olhar confiante. Apenas um parecia apreensivo, quem saberá se pela temeridade de trafegarmos no escuro entre as crateras da estrada ou pelas incertezas de seu futuro. Eles sabiam que o pai iria deixá-los na cidade, na casa de uma mulher que ainda desconheciam. Os relatos de seu Mário sobre as dificuldades enfrentadas contextualizaram a ausência da mãe, após a separação do casal. As doenças, a escola distante, a constante mudança de vizinhos. Agora, o pai precisava tratar da roça, que era a única fonte de recursos que a família teria naquele ano. Os meninos ficariam na cidade para ir à escola, até que o pai realizasse a colheita e pudesse deixar o lote para ir buscá-los. A divisão da unidade familiar é recorrente nas narrativas das famílias no PDS. Com a unidade familiar violada, as crianças são as mais penalizadas.
Verifica-se que a somatória de fatores que variam em torno da precariedade e/ou ausência dos serviços públicos prestados à educação, saúde, de apoio técnico e creditício à produção agrícola, e aos limites biofísicos (solos com fertilidade e estrutura física não apropriada para determinados cultivos, a exemplo do cacau) e reduzido capital inicial, são apontados como as principais causas de deslocamento das famílias. Esses deslocamentos são mecanicamente assumidos pelas autoridades como a causa principal de degradação ambiental, tendo que ser combatidos através de regras mais rigorosas de intervenção no desmatamento. Em termos fundiários, tem-se a Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284, de 2 de março de 2006) que proíbe assentamentos de reforma agrária convencionais em áreas com cobertura florestal primária.
Porém, nas atuais políticas de governo, observamos empiricamente que ações associadas a uma aparentemente insuspeita preocupação ambiental, que bem expressam o caráter polissêmico do termo, representam apenas uma das faces de um modelo de desenvolvimento, cuja outra face se expressa através de contínuos incentivos a empreendimentos industriais e agropecuários associados à economia globalizada, ao extrativismo empresarial predatório e a obras de infraestrutura (usinas hidrelétricas e projetos de mineração) articuladas a ações governamentais federais como o Avança Brasil e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Esse conjunto contraditório firma-se através de políticas e programas que, tanto pelo lado desenvolvimentista quanto pelo lado ambientalista, desfavorecem a integridade do direito à terra, essencial ao desenvolvimento local segundo a concepção expressa pelos entrevistados.
Assim, mesmo em estudos realizados após a execução mais rigorosa de normativas de cunho ambiental e da criação da Lei de Gestão de Florestas Públicas em 2006, verifica-se que os recursos protegidos foram aqueles que as comunidades já vinham protegendo na prática, e que a regularização fundiária não tem melhorado a seguridade da posse da terra (PACHECO et al., 2009PACHECO, Pablo et al. Acesso à terra e meios de vida: examinando suas interações em três locais no Estado do Pará. Belém, PA: CIFOR/LAET/ARCA, 2009.). Faz-se necessário, portanto, que as famílias tenham não somente o domínio sobre a terra, mas também, condições necessárias para fazer com que a terra cumpra com sua função social. Ações proativas nesse sentido vêm sendo implementadas, conquanto seja incerto se o ritmo e intensidade com que se concretizam logrará resultados efetivos. Na próxima seção, examinaremos algumas das proposições incentivadas pelo governo, assim como as estratégias econômicas adotadas pelas famílias assentadas.
4 Ações propositivas para estimular a produção nos assentamentos e meios de vida adotados pelos camponeses
A ação propositiva do governo para refrear a mobilidade espacial das famílias, com o intuito de conciliar a distribuição de terras e a intervenção no desmatamento, tem sido inicialmente limitar assentamentos em áreas florestadas, permitindo apenas Assentamentos Especiais como os PDS na Transamazônica. Dentre os principais incentivos para que esse enfoque ambiental se concretize, incluem-se a implementação de sistemas agroflorestais (SAFs) com cacau como principal componente e os Projetos de Manejo Florestal Comunitário (PMFC).
4.1 O cacau em SAFS
Diferentemente da pecuária, criticada pelas consequências ambientais do desmatamento para implantação de pastagens e erosão de margens de igarapés pelo gado, o cacau como espécie nativa compondo um SAF é tido como substituto ambientalmente correto para as florestas. Contrapondo-se a estabilidade de preço do cacau, nesta última década, à instabilidade do preço do gado bovino na região da Transamazônica e às restrições ambientais a esta última atividade, verificou-se o aumento significativo do plantio de cacau em estabelecimentos localizados em áreas com solos considerados pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) como não apropriados para a referida cultura.
No caso do PDS Virola-Jatobá e Expansão do PA Itapuama, além dos limitantes de solo, a pouca experiência dos agricultores no desempenho de tal atividade aliada à falta de assistência técnica e de crédito adequado, tem comprometido ainda mais a possibilidade de sucesso nas áreas implantadas. Para os agricultores no PDS Virola-Jatobá, a alternativa proposta pelo governo provoca um efeito inverso: a possibilidade econômica e ambientalmente interessante dos SAFs de cacau, com investimentos próprios e insuficientes, trans-forma-se em custoso alvo fadado ao fracasso, dilapidando ainda mais os recursos humanos e financeiros das unidades familiares.
4.2 O manejo florestal comunitário
Outra alternativa seria a integração das áreas de florestas pela unidade de produção familiar através do manejo florestal. Mas, como veremos abaixo, esta também tem sido dificultada por diversos fatores, a exemplo de um Plano de Manejo Florestal Comunitário implementado no ano de 2006, no PDS Virola-Jatobá, com recursos do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) e com apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Em 2006, moradores dos PDS de Anapu receberam capacitações através do Programa de Apoio ao Manejo Florestal na Amazônia (PROMANEJO). Em 2007, o mesmo programa financiou novas capacitações e assessorias, num total de cerca um milhão de reais visando à formação de uma cooperativa e a implantação de um PMFC, através de um acordo empresa-comunidade. Se as famílias já tinham dúvidas sobre um PMFC, definitivamente não desejavam a inserção de uma empresa como executora do mesmo.
Após quase um ano de discussões, as famílias do PDS Esperança rejeitaram a proposta, enquanto as do PDS Virola-Jatobá aceitaram. Para estas, o acordo com a empresa foi aceito porque as ameaças e as reais invasões de madeireiros ilegais se mostraram maiores que os riscos de uma empresa que se submetera ao monitoramento dos órgãos governamentais, os quais se comprometeram a acompanhar a iniciativa. Porém, o que se pode afirmar é que a atividade de exploração madeireira tal como realizada em acordos empresa-comunidade diverge da autonomia da unidade familiar de produção. Isso não quer dizer em absoluto que o pagamento feito pela empresa à Associação local pela compra de toras no pátio, deduzidos os custos de exploração e seu próprio lucro, não seja bem-vindo pelas 122 famílias que o recebem. Tampouco quer dizer que o valor pago seja justo.
De forma geral, para o PDS Virola-Jatobá, que era profundamente afetado pela situação de violência agrária, mudanças ocorridas com o projeto gradativamente contribuíram com a retirada dos madeireiros ilegais que, na ausência de uma fiscalização efetiva, invadiam e saqueavam os recursos florestais dos lotes mais distantes, apesar das inúmeras denúncias feitas. Apesar desse progresso, o projeto continua enfrentando a cada ano a inadequada burocracia para a autorização dos planos operacionais anuais (POA). Essa dependência a profissionais assessores e a órgãos públicos desorganizados também nada contribui com a autonomia da unidade familiar.
Os pagamentos recebidos pela Associação representam valores significativos em comparação à soma dos resultados de todas as atividades produtivas das famílias. Porém, apesar das famílias entrevistadas declararem satisfação com os retornos financeiros, os US$ 1.974,23 recebidos por cada família em 2010, por exemplo, não impediram novas saídas do PDS Virola-Jatobá naquele e no seguinte ano. Assim, com a continuidade da mobilidade é difícil se constituir e organizar uma "comunidade" e redes de solidariedade como o meio de enfrentar parte das dificuldades vividas no cotidiano.
4.3 Meios de vida adotados nos assentamentos
Em 2010, o INCRA emitiu uma Instrução Normativa restringindo significativamente os chamados acordos empresa-comunidade, o que apresentará novos desafios para o PDS. Analisando as alternativas vividas pelas famílias que permanecem no PA e nos PDS, verifica-se através de dados coletados trimestralmente, entre novembro de 2007 e outubro de 2008, que os valores de ingressos (Tabela 1) são provenientes de diferentes atividades desenvolvidas pelos próprios camponeses que se complementam com auxílios de programas sociais do Governo Federal.
Valores de ingressos anuais para domicílios (n=181), por categoria de ingressos e localidade (out./2007 a set./2008). PDS, Anapu e PA, Altamira.
Como esperado, através desses dados observamos que, entre 2007 e 2008, as famílias dos PDS tiveram parte considerável de sua renda proveniente da venda da mão de obra familiar, principalmente na fase inicial de instalação no lote. Verifica-se que a venda de mão de obra e as transferências sociais, a exemplo da aposentadoria e da Bolsa Família, representam ingressos que expressam a falta de autonomia da unidade familiar de produção camponesa. Porém os valores na Tabela 1 devem ser interpretados sob a perspectiva de que representam um período bastante dinâmico para residentes do PDS. No período em questão, a produção de cacau em ambos os PDS era bastante limitada, ao contrário de 2011, quando os SAFs de cacau já pro duziam volumes relevantes no PDS Esperança, situação inversa ao PDS Virola-Jatobá, onde limitações edáficas impediam o desempenho satisfatório da atividade, conforme mencionado.
Interessante observar também que, apesar da restrição legal à criação de gado no PDS, e da renda proveniente de criações ali ser menor do que no PA, os residentes do PDS compensam essa lacuna através de outras atividades. Controlando-se a diferença nos anos de ocupação, verifica-se que a renda média total não difere substancialmente entre PDS e PA, apesar de no PA termos um valor significativo proveniente de criações, no caso, predominantemente bovinos. Assim, há indicativos de que a restrição legal à atividade pecuária, considerada ambientalmente inadequada ao ecossistema, pode ser contornada pelos camponeses, e melhor o seria, se houvesse investimentos públicos adequados para alternativas à pecuária.
5 Considerações finais
Este artigo argumenta que a problemática ambiental, tal como definida hoje pelo governo e planejadores do desenvolvimento, determina um quadro operacional que minimiza, ignora ou afronta conceitos apropriados ao entendimento do modo de vida camponês e sua autonomia relativa no desenvolvimento local. Ao desconsiderar o caráter polissêmico de "ambiente", adotando apenas o entendimento contido nas leis e outros instrumentos formais, camufla-se os conflitos existentes tanto na realidade cotidiana dos camponeses, quanto os conflitos que permeiam a própria formulação e execução dessas leis e instrumentos formais. Ocorre o que Lopes (2004)LOPES, José S. L. A ambientalização dos conflitos sociais. In: ______. A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. p. 17-38.designa como a "naturalização" de um processo social. O deslocamento das famílias é automaticamente assumido como a causa natural de degradação ambiental e, por isso, tomado como objeto de intervenção e punição, sem que se evidenciem as relações sociais que originam e sustentam esse processo social. Essa naturalização ocorre porque a ameaça ao meio ambiente é uma urgência cujo combate exige unanimidade, e essa unanimidade eclipsa as diferentes relações com a natureza e os decorrentes conflitos sociais que, em sua raiz, provocam o deslocamento. Enquanto a relação do empresário com a natureza se realiza através da economia de mercado, a relação do agricultor familiar com a natureza se estabelece pela economia camponesa. Porém, o Estado os assume iguais, ou parceiros em potencial, na unânime luta pelo meio ambiente.
No período inicial da colonização, o INCRA ameaçava retomar os lotes dos "clientes de reforma agrária" que não desmatassem e implantassem benfeitorias. Agora, na tentativa de frear os deslocamentos, devido à sua associação ao desmatamento, a ameaça seria inversa àquela de duas ou três décadas atrás: "se derrubares, tu vais perder tua terra!" Mas as contradições permanecem, pois as alternativas oferecidas não se coadunam tampouco com a alegada intenção de conservação ambiental. Nos trabalhos de campo realizados, registramos que nem os SAFs de cacau (em terras inadequadas e sem os investimentos necessários), nem o manejo florestal comunitário (nos moldes em que vem sendo executado pela empresa ou, com a nova Instrução Normativa, pelos próprios assentados, mas sem o devido apoio) têm logrado garantir a autonomia dos camponeses e assegurar sua permanência na terra. Esclarecemos aqui que o problema não são os SAFs nem o PMFC, em si potenciais instrumentos na melhoria da relação entre a sociedade e o ambiente para o desenvolvimento local, mas a concepção etnocêntrica e autoritária de ambiente que sustenta a forma e os objetivos com que são executados. Na situação empírica estudada, apenas a expectativa sobre os SAFs de cacau nos solos propícios do PDS Esperança, como atividade que pode ser executada sob o comando da própria família e que gera retornos que suprem as demandas da unidade familiar de consumo, tem contribuído efetivamente para a permanência das famílias na terra.
Se, nas décadas passadas, a mobilidade dos camponeses era associada à fuga ao cativeiro do "trabalho para patrão em terra de dono", hoje, o abandono de lotes por aqueles que lograram alcançar as "terras de reforma agrária" se deve a fatores percebidos como novos "cativeiros". Nas situações estudadas, um novo cativeiro aparece travestido como o "meio ambiente", tal como o entendem os atuais "patrões", ou seja, aqueles que lhes impõem uma concepção de ambiente que lhes é alheia e lhes tolhe a autonomia que funda seu modo de vida (e que não necessariamente irá de fato proteger a natureza). Se essa concepção promove o ocultamento dos conflitos sociais inerentes na relação dos grupos com a natureza, o deslocamento das famílias continuará a ocorrer nessas terras tão duramente conquistadas.
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A Rede de Estudos das Condições Amazônicas de Vida e Ambiente congrega 20 instituições, abrangendo 150 localidades em sete países da América Latina, sendo coordenada pelo Centro Mundial Agroflorestal (ICRAF). A pesquisa na Transamazônica foi realizada através de parceria entre o ICRAF e o Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2015
Histórico
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Recebido
11 Dez 2013 -
Revisado
24 Jul 2014 -
Aceito
22 Ago 2014