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A ESTREIA DA ARTE BRASILEIRA NA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DE ARTE DE VENEZA (1950)

THE DEBUT OF BRAZILIAN ART AT THE VENICE INTERNATIONAL ART EXHIBITION (1950)

EL DEBUT DEL ARTE BRASILEÑO EN LA EXHIBICIÓN INTERNACIONAL DE ARTE DE VENECIA (1950)

RESUMO

Após uma falida tentativa de estreia na 24ª Bienal de Veneza (1948), o Brasil fez seu debuto na 25ª edição (1950), sob gestão e financiamento de Francisco Matarazzo Sobrinho. Reconstruindo o percurso de afirmação de Matarazzo junto à entidade italiana e à luz dos registros históricos referentes à recepção deste debuto, este artigo examina o duplo lugar concedido à arte brasileira pela mídia internacional: um, repleto de descaso, ao reproduzir exaustivamente o texto do catálogo expositivo produzido pelos próprios brasileiros, ao posto de uma análise personificada e séria do conjunto; outro, propagador de estereótipos, como “espírito primitivo indígena”, “truculência popularesca”, “iconografia exótica e violenta” e “primitivismo selvagem”.

PALAVRAS-CHAVE
Arte moderna brasileira; Bienal de Veneza; Estereótipos; Francisco Matarazzo Sobrinho

ABSTRACT

Following a failed attempt to participate in the 24th Venice Biennale (1948), Brazil made its premiere at the 25th Venice Biennale (1950), under the management and financed by Francisco Matarazzo Sobrinho. Reconstructing the path leading to the affirmation of Matarazzo with the aforementioned Italian entity and in accordance with the historical records referring to the reception of this debut, this article shall examine the duality of the placing attributed to Brazilian art by the international media: one displaying negligence in exhaustively reproducing the exhibition catalogue text written by the Brazilians themselves, subject to personified and serious analysis of the group, and another propagating stereotypes, such as the “primitive indigenous spirit”, “popular truculence”, “exotic and violent iconography” and “savage primitivism”.

KEYWORDS
Brazilian Modern Art; Venice Biennale; Stereotypes; Francisco Matarazzo Sobrinho

RESUMEN

Después de un intento fallido de estrenar en la 24ª Bienal de Venecia de la posguerra (1948), Brasil hizo su debut en la 25ª edición (1950), con un conjunto de 12 artistas y 58 obras reunidas por el antiguo Museo de Arte Moderno de São Paulo, bajo la gestión y financiamiento de Francisco Matarazzo Sobrinho. Reconstruyendo el camino de afirmación de Matarazzo en la entidad italiana y a la luz de los registros históricos referentes a la recepción de este debut, este artículo examina el doble lugar concedido al arte brasileño por los medios de comunicación internacionales: uno lleno de desdén, al reproducir exhaustivamente el texto del catálogo expositivo producido por los propios brasileños, al puesto de un análisis personificado y serio del conjunto; otro propagador de estereotipos, como “espíritu primitivo indígena”, “truculencia popularesca”, “iconografía exótica y violenta” y “primitivismo salvaje”.

PALABRAS CLAVE
Arte moderno brasileño; Bienal de Venecia; Estereotipos; Francisco Matarazzo Sobrinho

As bases da solidificação relacional entre o Brasil e Exposição Internacional de Arte de Veneza 1 1 A aplicação do termo “Bienal de Veneza” como abreviação de Exposição Internacional de Arte de Veneza, é relativamente recente. O termo apareceu pela primeira vez na década de 1930, em contexto fascista. A própria instituição e inúmeras fontes bibliográficas adotaram em definitivo a terminologia. se põem ao final década de 1940 e ao longo da década de 1950 dentro das esferas de atuação de Francisco Matarazzo Sobrinho. Capitalizador de todo o processo expositivo na Itália, Matarazzo desponta, em São Paulo, como um dos esteios do sistema cultural apto para lançar-se na promoção artística internacional.

O raio de alcance direto de sua atuação ganha nitidez na criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, nas Bienais de São Paulo, na Fundação Bienal e no antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo 2 2 Cunhado pela historiadora da arte Ana Gonçalves Magalhães ( 2013), o termo “antigo MAM” é utilizado neste trabalho buscando evitar equívocos entre a instituição fundada por Francisco Matarazzo Sobrinho e o atual Museu de Arte Moderna de São Paulo. O contemporâneo MAM, formulado a partir da dissolução do antigo MAM, sustentou deste último o nome jurídico, seguindo, todavia, uma estratégia institucional e de acervo completamente diversa daquela estabelecida por Matarazzo. (1948-1962). No que tange a especificidade do tema tratado neste artigo, prioriza-se a significação potencialmente internacionalizante deste último.

Há, por certo, uma exaustiva literatura dedicada aos desdobramentos das bienais do antigo MAM, não sendo o caso de aqui nos determos em tal discussão. Pouco se discute, porém, seja do ponto de vista da historiografia da arte, seja do ponto de vista das pesquisas em teoria e crítica da arte, a historicidade das salas brasileiras curadas pelo antigo MAM, em Veneza.

Em linhas gerais, entre os anos de 1948 e 1950, a massiva troca de correspondências reveladas entre Francisco Matarazzo Sobrinho e Rodolfo Pallucchini 3 3 Professor e crítico de arte italiano, Rodolfo Pallucchini desempenhou o cargo de secretário geral em cinco bienais, de 1948 a 1956. As exposições realizadas sob sua gerência são comumente recordadas pela montagem de mostras retrospectivas e individuas entorno de figuras que oferecessem uma reconstituição histórica dos movimentos de vanguardas furtivos do sistema durante os anos das ditaduras fascistas e nazistas. Pablo Picasso, por exemplo, renegado desde 1910, só encontrou espaço em Veneza pelas mostras retrospectivas de Pallucchini. conduz a uma consciência histórica mútua, da qual Matarazzo retêm os fundamentos práticos para lançar um dos projetos mais audaciosos da América Latina e Pallucchini alinha-se estrategicamente aos seus pares de instituições museológicas internacionais, para legitimar, no pós-guerra, o papel de Veneza e da Itália no continente americano.

O intercâmbio entre Veneza e o Brasil em nenhuma outra circunstância repetiu-se de modo tão ativo e contundente como neste primeiro instante. Da parte italiana, capitaneados pela Bienal de Veneza, os conjuntos italianos expostos nas bienais do antigo MAM expandiam-se por toda a América Latina em mostras itinerárias. Da parte brasileira, desde a estreia na 25ª Bienal de Veneza (1950) até 1962, o antigo MAM intermediava as salas 4 4 O Brasil inaugurou seu pavilhão apenas em 1964. Antes disso, de 1950 a 1962, fez uso de salas nacionais no Palácio Central dedicadas a países sem pavilhões próprios. Nesse período, expunha, geralmente, ao lado de outras nações latino-americanos como Argentina, Uruguai, Colômbia e Venezuela. nacionais, detendo o poder de selecionar, financiar e exportar mais de 50 artistas e centenas de obras de arte, das mais variadas categorias, a endereços estéticos.

Entretanto, se no campo das relações institucionais a Bienal de Veneza e o antigo MAM performaram uma relação horizontal, no campo das artes, a literatura receptiva à arte brasileira em Veneza movimentou-se em direção contrária. Embora o número de artistas ali expostos soe exorbitante, é preciso atentar que muitos deles, “manadas de ruminadores dos novos verbos” ( CAMILUCCI, 1950, p. 665CAMILUCCI, Marcello. Gli stranieri alla Biennale Veneziana. Vita e Pensiero, Milão, fascículo 12, p. 660-667, dezembro, 1950.), desiludindo a expectativa europeia pelos estereótipos nacionais, foram alocados de contorno aos nomes de Candido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti e Lasar Segall – os únicos a receberem irrisória (des)atenção das mídias.

Nesse rumo, reconstruir os acenos da recepção coeva à arte brasileira através da pesquisa em artigos e retalhos de jornais da época, não foi tarefa das mais fáceis. Bastou uma consulta acurada ao Arquivo Histórico de Arte Contemporânea de Veneza (ASAC), 5 5 Todas as cartas utilizadas e citadas ao longe deste texto estão presentes no Arquivo Histórico de Arte Contemporânea de Veneza, o ASAC, no Fondo Archivio Storico, Serie Paesi 1940-1968. para reiterar-se o consueto: nações centrais à elaboração das artes modernas ocidentais, como a França, a Espanha, a Itália, a Inglaterra e os Estados Unidos, com especial domínio da primeira e do último, conservaram os seus protagonismos em copiosas pastas arquivísticas a testemunhar a lógica recursiva de todos os “ismos”. Os “outros”? Silêncio.

Nancy Jachec ( 2007, p. 155–156JACHEC, Nancy. Politics and Painting at the Venice Biennale, 1948-64: Italy and the “idea of Europe”. Manchester: Manchester University Press, 2007.), uma das poucas estudiosas a englobar os “outros” na literatura das bienais do pós-guerra, atribuiu a dificuldade de análise estética dos países “periféricos” às suas participações esporádicas em Veneza, citando a esse propósito o Egito, a Venezuela, a Turquia, o Irã e o Brasil. No caso brasileiro não podemos concordar com tal afirmação, visto que, desde a sua estreia em 1950, o Brasil participou continuamente de todas as edições do evento, initerruptamente. Atualmente, vale lembrar, está ali representado pelo artista alagoano Jonathas de Andrade. 6 6 Referimo-nos à participação do artista na 59ª Bienal de Veneza, no ano de 2022.

Com foco ainda no Brasil, Jachec arriscou uma interpretação sintética dos conjuntos brasileiros expostos de 1950 até 1956, enquadrando e reconhecendo o discurso modernista brasileiro como uma vertente política da modernização enunciada pelos governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Se valendo de uma soma de estereótipos que desaguam no obtuso conceito de “arte regional”, na tentativa de relembrar Emiliano Di Cavalcanti e Candido Portinari, erra o nome deste último, chamando-o “José Portinari”.

O aparente desinteresse pela análise de outros discursos culturais, todavia, poderia trajar a sensação de que as alteridades pouco ou nada contribuíram às bienais do período, ou então, reiterar-se os holofotes postos em direção à apenas algumas nações como fatalismo diacrônico, pois afinal este era, a priori, o modo de se enquadrar a história da arte antes das tendências pós-coloniais entrarem em cena. Nada mais equivocado, como veremos adiante. A atenção à arte brasileira se revelou de fato mínima, contudo, a dimensão desta negligência não pode ser compreendida se não pelo prisma das relações de poder, compactuadas conscientemente por enunciados soberbos, sedentas pela (re)construção do “outro primitivo” para a sobrevivência do “eu civilizado”.

Antigo MAM e MASP: a arte moderna em disputa (1947-1950)

O arco cronológico que marca as negociações capitaneadas pelo antigo MAM para a estreia brasileira na 25ª Bienal de Veneza (1950LA XXV BIENNALE DI VENEZIA. La partecipazione straniera. Rivista Emporium, Bergamo, v. CXII, n. 670, pp. 146-166, outubro, 1950) oferece múltiplos caminhos de reflexão artística, política e econômica. Na reconstrução desse período, a figura de Pietro Maria Bardi, então diretor do Museu de Arte de São Paulo, emerge enfaticamente em uma disputa pouco amigável contra Matarazzo pelo domínio da narrativa moderna brasileira em Veneza.

O primeiro registro de comunicação entre a Bienal de Veneza e o Brasil, no entanto, direciona-se para um efêmero ator: o imigrante napolitano Pasquale Fiocca, dono da Galeria Domus. Em uma breve missiva à direção da Bienal, em novembro de 1947, Fiocca demonstrou intenções de enviar a Veneza algumas obras de arte para representar o Brasil. Sem, entretanto, mencionar qualquer referência a algum artista ou plano logístico. 7 7 FIOCCA, Pasquale. Carta [para] Bienal de Veneza (Veneza, Itália). 20 nov. 1947, São Paulo.

É através do retorno da entidade italiana ao galerista que desponta pela primeira vez o nome de Francisco Matarazzo Sobrinho. De acordo com os italianos, a Bienal já estava negociando a participação brasileira com o “Centro de Arte Moderna de São Paulo”, representado por Matarazzo. 8 8 PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Pasquale Fiocca (São Paulo, Brasil). 1 dez. 1947, Veneza.

Muito embora não se encontre nem no Arquivo Histórico de Arte Contemporânea de Veneza (ASAC), tampouco no Arquivo Histórico Wanda Svevo, qualquer correspondência que reconstrua tal interlocução, é possível supor que interlocuções estavam em curso antes mesmo de novembro de 1947.

Partido de lá para cá, o primeiro registro conservado de contato entre Francisco Matarazzo Sobrinho e Veneza, remonta a 8 de janeiro de 1948. Neste documento, redigido por Rodolfo Pallucchini, apreende-se as dificuldades de Matarazzo para alinhar suas motivações com o governo federal brasileiro. Matarazzo, aparentemente, buscou saber se sua instituição, o antigo MAM, estaria apta para apresentar oficialmente o Brasil, retirando assim, de todo o processo, a interferência estatal. 9 9 PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Francisco Matarazzo (São Paulo, Brasil). 8 jan. 1948, Veneza.

Pallucchini, todavia, esclareceu que os artistas brasileiros só poderiam obter o status de representantes nacionais se fossem autenticados pela esfera pública, caso contrário, os envios de Matarazzo estampariam tão somente o antigo MAM, jamais o Brasil.

Certamente não interessou a Matarazzo abdicar do prestígio de capitanear um conjunto nacional, posto aquele institucional. Tão logo decidido esse ponto, o convite oficial para a participação brasileira na 24ª edição de 1948, foi enviado para o embaixador do Brasil em Roma, Pedro de Moraes Barros. 10 10 PONTI, Giovanni. Carta [para] Pedro M. Barros (Roma, Itália). 22 jan. 1948, Veneza. O embaixador, por sua vez, era encarregado de transmiti-lo ao Ministério da Educação e Saúde, Clemente Mariani, do governo de Eurico Gaspar Dutra, no Brasil.

Muito embora o nome do país já estivesse estampado no catálogo, o Brasil declinou deste convite e deixou a sua sala completamente vazia. Não é o caso de entrar aqui nos termos de tal declínio. Vale pontuar, entretanto, o desdobramento da questão à luz do ácido artigo de Mário Pedrosa:

Quando os nomes da comissão foram revelados o espanto foi unânime. É que a Bienal de Veneza é reservada especialmente à “arte moderna”. Não há ingresso ali para essa coisa que se chama, por força do hábito, de “arte” embora acrescida de “acadêmica”. O ministro da Educação, no entanto, não levou em conta o tradicional critério artístico da Bienal. Do contrário, não teria entregado a delicada tarefa de seleção dos pintores a serem representados em Veneza, a três senhores sabidamente hostis às manifestações de arte moderna. (...) Tiveram a audácia de excluir um Portinari ou um Segall da representação brasileira! Ora, se nossa pintura moderna é conhecida lá́ fora, deve-se o fato àqueles dois nomes. (...) Isso mesmo me deu a entender o professor Pallucchini, ao referir-se ao ensejo que iam ter de conhecer a obra do nosso artista. (...) Francamente, diante de tanta burrice, é de se perguntar se não seria melhor abrir mão do convite?

( PEDROSA, 1948, p. 11PEDROSA, Mário. O Brasil na Bienal de Veneza. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, maio, 1948.)

Os “três senhores sabidamente hostis às manifestações da arte moderna” citados por Pedrosa, são os “acadêmicos”, nomeados pelo Ministro Mariani para organizar a sala brasileira em Veneza: Oswaldo Teixeira, Manuel Santiago e Georgina de Albuquerque.

O fato de uma comissão seletiva ligada ao órgão público ter sido montada e uma lista de artista ter sido publicada – com direito a polêmica – demonstra que em 1948 as linhas entre a iniciativa pública e privada estavam pouco definidas. Isto significa que Matarazzo, até aquele instante, não detinha um plano logístico, formal ou curatorial estabelecido para dar conta da expansão internacional.

Rodolfo Pallucchini, entretanto, longe de dimensionar as circunstâncias vigentes em território nacional, insistiu pelo envio das obras brasileiras mesmo com atraso, justificando que, tal qual os Estados Unidos, o Brasil poderia inaugurar sua sala tardiamente. 11 11 PONTI, Giovanni. Carta [para] Pedro M. Barros (Roma, Itália.) 22 jan. 1948, Veneza. Não adiantou. Em 15 de junho de 1948 – isto é, mais de um mês após o início do evento –, o embaixador Pedro Moraes Barros dirigiu-se sucintamente ao secretário geral informando-o que, “por razões técnicas”, o Brasil não se faria presente.

Colhidas as lições da malograda tentativa, por todo o ano de 1949 percebe-se muito claramente que Matarazzo empenhou-se para atempar, por ele mesmo, uma comunicação clara, direta e assertiva que definisse funções e logísticas tanto em território nacional quanto internacional. Se um ano antes a desordem e a pouca clareza entorno de quem decidia o quê soavam uma constante, agora as discussões pareciam fluir de modo dinâmico: à esfera pública, direcionava-se somente o convite ao governo brasileiro que, por sua vez, deixaria a seleção dos artistas, das obras, a curadoria da sala, os catálogos e todos os gastos financeiros do processo de envio, instalação e retorno das obras, a cargo da esfera privada, ou seja, de Matarazzo.

Despontava-se assim o momento de decidir-se quem e, sobretudo, o quê retrataria o Brasil nesta nova conjuntura. Aqui, desde logo, Giovanni Ponti, o então presidente da Bienal de Veneza, explanou as suas expectativas para a produção artística brasileira. De acordo com Ponti, o Brasil deveria seguir os exemplos das outras nações enviando poucos e representativos artistas que calibrassem a ideia do “tipicamente brasileiro”, facilmente reconhecível pelo público europeu. Lasar Segall, Emiliano Di Cavalcanti e Candido Portinari, despontam entre os escolhidos.

Matarazzo, chamado para oferecer o seu juízo sobre tal pedido, sem entrar em grandes detalhes, sublinhou a impossibilidade de cumpri-lo por uma questão de “neutralidade”:

A respeito do seu convite para que o Museu organizasse as mostras individuais (Portinari, Segall e Di Cavalcanti), ainda que muito nos honraria, não podemos levar em consideração. (...) De fato, dificilmente o Museu poderia manter uma linha de neutralidade se, ainda que por encargo da Bienal, já déssemos a preferência por 3 artistas. 12 12 MATARAZZO, Francisco. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 9 fev. 1950, São Paulo. Tradução nossa.

A tal neutralidade, no entanto, deve ser compreendida à luz da fidelidade do pintor Lasar Segall a Pietro Maria Bardi, e, por consequência, ao MASP. Quanto a isso, na esteira da má fama originada pela falha de gestão de Matarazzo em 1948, Bardi dirigiu-se à Rodolfo Pallucchini, em 1949:

Posso prever-te desde já o que acontecerá: em 50’ se repetirá o mesmo que ocorreu na edição passada, e isto acarretará o atraso do envio das obras, e ainda que elas chegassem, seriam todas de artistas inúteis para a Bienal. Me permito, por isso, de aconselhá-lo a enviar um convite pessoal ao maior pintor brasileiro, Lasar Segall, que poderia apresentar suas obras de 1908 até hoje (…) aproveito a ocasião para informá-lo que o amigo Chateaubriand está a sua disposição para qualquer coisa que lhe possa interessar. 13 13 BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 24 ago. 1949, São Paulo. Tradução nossa.

Ao propor uma retrospectiva de Lasar Segall, Bardi direcionava-se rigidamente aos princípios teóricos das mostras históricas do pós-guerra e, também, à promoção do “tipicamente brasileiro”.

Não obstante indicasse uma melhor adequação ao escopo de Pallucchini (vale lembrar que até aquele momento Matarazzo não expusera nenhum projeto curatorial), havia outros pesos, que não artísticos, em jogo:

A respeito da participação brasileira na próxima Bienal devo informá-lo, em via amigável e reservada, que recebi nestes últimos dias uma oferta do Presidente do Museu de Arte Moderna, na qual ele assume todas as despesas de transporte e seguros do Brasil em Veneza, para organizar uma exposição de Pettorutti e Segala (sic) e Cavalcanti. O Presidente do Museu oferece ainda um prêmio de 500.000 liras para dedicarmos a quem bem desejarmos, com a máxima liberdade por parte da Comissão da Bienal. (…) Essa oferta é muito interessante para a Bienal a qual não podemos certamente recusar. Eu tentarei encontrar um modo, se me permite, de inclui-lo no comitê desta Mostra Brasileira. 14 14 PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Pietro Maria Bardi (São Paulo, Brasil). 26 dez. 1949, Veneza. Tradução nossa.

O secretário referia-se à carta de Matarazzo, recebida pela Bienal 25 dias antes daquela de Bardi, na qual em nome do antigo MAM, Matarazzo sublinhou, logo na primeira linha, o interesse em dedicá-los um prêmio em dinheiro.

Ao contrário do que Pallucchini afirmou a Bardi, Matarazzo jamais citou a possibilidade de montar uma exposição de Segall em Veneza, ou mesmo apontou como certo o envio de qualquer artista. O que ele sugeriu foi a criação de uma comissão seletiva na qual participariam ele próprio e Pallucchini, ao lado de alguns críticos de arte divididos entre São Paulo e Rio de Janeiro: Sérgio Milliet, Quirino da Silva e Geraldo Ferraz, entre os paulistas, Mario Barata, Tomás Santa Roma e Mário Pedrosa, entre os cariocas. Essa comissão não saiu do papel.

Bardi, distante de mesurar as ações de Matarazzo, porém ciente da pauta econômica, escreveu uma carta à mão para atacar não só o seu rival, como o próprio Pallucchini pela ignorância “imperdoável” do sistema artístico brasileiro:

Recebi a sua carta do dia 26. (…) Você foi muito mal-informado a respeito das coisas por aqui, ao que chegou a dizer que Pettoruti é brasileiro, ele é argentino, nunca pisou no Brasil e não existe por aqui um pintor chamado Segala (talvez se trate de Lasar Segall, aquele artista que eu lhe propus uma mostra na minha carta do dia 24 de agosto. Destes erros, acredito que poderá compreender qual é o nível dos seus correspondentes recente. 15 15 BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 2 jan. 1950, São Paulo. Tradução nossa.

Ao evidenciar o completo desconhecimento de Pallucchini, Bardi colocou-o em uma situação delicada por duas razões complementares: de um lado, por não ter conferido as fontes recebidas, escancarando a indiferença pela cultura brasileira, de outro, por ter dado crédito à um correspondente (Matarazzo) ignorante do próprio país.

Bardi, ainda, atacou abertamente os interesses econômicos da Bienal de Veneza, apontando que caso soubesse que o dinheiro atuava naquelas decisões, Assis Chateaubriand teria duplicado as ofertas do seu concorrente. Menosprezou, por fim, à própria credibilidade institucional do antigo MAM:

Eu imaginava a participação do Brasil como uma escolha inteligente, e representativa, não uma patifaria entre amigos deste Museu de Arte Moderna que tem um belo nome, mas que fundamentalmente possui apenas um bar, coisinha modesta e precária.

Pallucchini não reagiu aos ataques de Bardi. A sua resposta evasiva, cordial e diplomática, tardaria meses até chegar ao MASP. Bardi, contudo, não se manteve em silêncio. Apenas uma semana após os insultos a Pallucchini, reenviou praticamente o mesmo conteúdo ao seu amigo próximo, Umbro Apollonio 16 16 BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Umbro Apollonio (Veneza, Itália). 6 jan. 1950, São Paulo. Tradução nossa. . Appolonio, naquele tempo o diretor do Arquivo Histórico de Arte Contemporânea de Veneza, à diferença de Pallucchini, posicionou-se subitamente:

A respeito da participação do Brasil na Bienal devo dizer-te que efetivamente as coisas se desenvolveram em modo tal que foi difícil não aceitarmos ofertas muito precisas e muito vantajosas. Pallucchini, que não via com bons olhos a participação do Brasil na Bienal, por causa das situações vivenciadas no ano passado, quando se encontrou diante das ofertas concretas do Museu de Arte Moderna em assumir todas as despesas inerentes a organização de duas ou três mostras individuais e, ainda, a oferta de um prêmio intitulado com o nome do Museu, não pode certamente renegar. Teria sido bom e oportuno se nos tivesse chegado com antecedência alguma proposta concreta da parte do teu Museu e, então, talvez as coisas pudessem ter tomado outro caminho. (...) A respeito de Pettorutti (te digo isso em via reservada), iremos conferir sua nacionalidade e tentaremos resolver esse problema de forma diplomática. 17 17 APPOLONIO, Umbro. Carta [para] Pietro Maria Bardi (São Paulo, Brasil). 13 jan. 1950, Veneza. Tradução nossa.

As comunicações em tons pouco diplomáticos de Bardi colocaram a Bienal de Veneza em uma situação no mínimo dúbia. Matarazzo, por um lado, assegurava o benefício econômico e uma larga teia de atuação, seja nos órgãos diplomáticos, seja nas principais instituições culturais do Brasil. Bardi, por outro lado, autoridade amplamente afirmada no sistema das artes europeu, personificava a segura porta de entrada da cultura italiana na América Latina.

A resolução da Bienal de Veneza partiu de Pallucchini com uma tentativa de acordar o encontro entre Bardi e Matarazzo, tanto em nível financeiro quanto artístico. O secretário geral proporia uma colaboração curatorial entre o antigo MAM e MASP na gestão das salas nacionais e, ainda, uma colaboração financeira das instituições para construir, nos jardins da Bienal, o pavilhão do Brasil. A ideia de Pallucchini, no entanto, durou menos que qualquer ação: os museus não entraram em um acordo, Matarazzo concretizou o seu domínio pela arte moderna em Veneza e o pavilhão nacional foi construído apenas em 1964, às portas do golpe militar.

Uma bienal de identidades

A Bienal de Veneza foi uma das primeiras instituições artísticas modernas a articular e confrontar, através da arte, as identidades nacionais. Distante de projetar a arte enquanto autorreferencial autônomo, as edições exercitaram continuamente a díade identidade/alteridade, seguindo a lógica comunitária dos pavilhões nacionais.

Em uma ótica retrospectiva, de 1895 a 1948, a Bienal de Veneza hospedou um terreno autocelebrativo para taxonomias de tradições, sobretudo europeias. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, no entanto, assistimos a uma transmutação das suas frentes de reflexão para enquadrar-se, também em nível artístico, às exigências político-econômicas de uma sociedade saída do fascismo/nazismo e às portas da Guerra Fria.

Na organização da primeira edição logo após o fim do conflito, em 1948, emergiu a necessidade de propor uma nova fisionomia institucional que não se baseasse mais no estatuto de ingerência fascista. Isso explica o contínuo fortalecimento das relações internacionais com países alinhados ao discurso da liberdade e democracia, sobretudo os Estados Unidos, e o condicionamento da abertura expositiva à América Latina.

Em uma leitura atenta das propostas de Pallucchini às Bienais de 1948 a 1954, observa-se o encaminhamento de uma certa ideia de história da arte que resgata as bases do seu passado pelo prisma das mostras retrospectivas, projetando-se, contudo, em direção ao futuro por meio da validação de culturas jamais ali representadas.

Corroborando esta perspectiva, com a adesão de vinte e duas nações, no dia 8 de junho de 1950, debutaram em Veneza, Argentina, Colômbia, México e Brasil; todos expostos lado a lado em salas nacionais (a do Brasil sendo a Sala 53) dispostas no interior do Pavilhão Central (Figuras 1, 2, 3).

Figura 1.
Fotografia da parte interna da Sala brasileira na 25ª Bienal de Veneza, 1950. ASAC, Fototeca, Veneza.
Figura 2.
Fotografia da parte interna da Sala brasileira na 25ª Bienal de Veneza, 1950. ASAC, Fototeca, Veneza.
Figura 3.
Fotografia da parte interna da Sala brasileira na 25ª Bienal de Veneza, 1950. ASAC, Fototeca, Veneza.

Para a organização da sala brasileira, o antigo MAM montou uma comissão seletiva na qual participou Sérgio Milliet, Lourival Gomes Machado, Quirino da Silva e Ciro Mendes. O grupo, restrito ao círculo de dominação de Matarazzo, é bastante diverso daquele anteriormente apontado à Pallucchini. E, de fato, uma centena de artistas e críticos reagiram a homogeneidade político-cultural reclamando, dentre outras coisas, a inclusão de outros nomes à comissão, como Osório César, Ibiapaba Martins e Maria Eugenia Franco (cf. O ESTADO DE SÃO PAULO, 1950, p. 2O ESTADO DE SÃO PAULO. XXV Bienal de Veneza: protesto dos artistas. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 2, abril, 1950.).

Da parte italiana, o posicionamento não se alterou. Às vésperas de receberem a lista de confirmação dos artistas selecionados pelo Brasil, Pallucchini reiterou o pedido:

Uma vez que a responsabilidade de constituir a Mostra já foi atribuída, pedindo a colaboração do Museu de Arte Moderna, do qual o Sr. é presidente, estou seguro de que será possível seguir os conceitos fundamentais sugeridos por nós, e largamente aplicados por todas as nações participantes, de nos enviar apenas poucos artistas, porém representativos. Confio, assim, que serão mantidos os nomes de Portinari, Segall e Cavalcanti. 18 18 PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Francisco Matarazzo (São Paulo, Brasil). 26 mar. 1950, Veneza. Tradução nossa.

No lugar de três, estreamos com doze: Candido Portinari (7 pinturas), Emiliano Di Cavalcanti (4 pinturas), Roberto Burle Marx (3 pinturas), Milton Dacosta (3 pinturas), Cícero Dias (4 pinturas), Flávio de Carvalho (4 pinturas, 5 desenhos), José Pancetti (4 pinturas), Alfredo Volpi (4 pinturas), Bruno Giorgi (2 esculturas), Victor Brecheret (2 esculturas), Livio Abramo (8 gravuras), Oswaldo Goeldi (8 gravuras).

Ao enviar um conjunto tão vasto 19 19 A Argentina, por exemplo, foi representada por apenas um artista; o México, por quatro; a Colômbia, por nove. , ao que tudo indica, Matarazzo buscava, de um lado, equilibrar pratos para colmar os egos artísticos nos confins nacionais; e, do outro, apresentar uma possível história evolutiva que imprimisse na Europa a “batalha do modernismo” brasileiro 20 20 Ao contrário da arquitetura modernista brasileira, que já havia se firmado internacionalmente uma década antes daquela ocasião, as artes visuais lutaram para ter alguma projeção exterior. De fato, se nos compêndios da história ocidental a arquitetura brasileira era um capítulo de absoluta importância, até mais ou menos os anos 1970, no âmbito da narrativa da história da arte ocidental não aconteceu o mesmo. :

Entre aqueles que o júri considerou merecedor da honra de representar o país, Di Cavalcanti e Flávio de Carvalho são os pioneiros da batalha do modernismo no Brasil. Os outros, mais jovens, são já a expressão da época atual e falam na linguagem internacional da pintura atual. É sem dúvida por esse motivo que eles bebem menos das fontes do regionalismo e são mais próximos das correntes em voga na Europa.

( CATÁLOGO, 1950, p. 221CATÁLOGO. XXV Biennale di Venezia. Venezia: Alfieri Edizioni, 1950., tradução nossa)

Escrito por Sérgio Milliet, o texto introdutório da sala brasileira, com especial referimento à parte aqui reportada, foi reproduzido copiosamente pelos mais variados periódicos da época. Republicado em mais de cinco idiomas, às vezes alteravam-no algumas poucas palavras, noutras repetiam-no literalmente.

O conjunto representado na sala brasileira, por mais vasto que fosse, não garantiu o interesse da crítica, com exceção de Candido Portinari: “um homem baixinho de 47 anos, que gosta de pintar quadros enormes dramatizando o sofrimento que envolve a vida das pessoas humildes de seu país” ( LIFE MAGAZINE, 1950, p. 108LIFE MAGAZINE. Cross Section of Today’s Art. Life Magazine, Chicago, vol. 29, n. 24, pp. 101-109, dezembro, 1950.). Emiliano Di Cavalcanti foi lembrado em poucas linhas, uma das quais aqui reportaremos, por sua “truculência popularesca”. As obras de Portinari, por outro lado, concederam o combustível apropriado para se legitimar o raciocínio essencialmente colonialista de continuidade do “centro” para a “periferia”:

O conjunto brasileiro também indica que os nossos problemas estéticos estão vivos ali naquele imenso país no qual o espírito primitivo indígena ativamente tende a fecundar-se pelo polem que chega da velha Europa, fecundação que dá os seus melhores frutos em Candido Portinari.

( JACHEC, 2007, p. 147JACHEC, Nancy. Politics and Painting at the Venice Biennale, 1948-64: Italy and the “idea of Europe”. Manchester: Manchester University Press, 2007., tradução nossa)

A semântica do poder que emerge deste discurso traz consigo uma especificidade linguística, debatida por Eric Michaud ( 2005MICHAUD, Eric. Histoire de l’art: Une discipline à ses frontière. Paris: Hazan, 2005.), na qual compreende-se a montagem da história da arte ocidental baseada, fortemente, em elementos comparativos nacionais e raciais. Ao definir-se o “outro primitivo” e periférico, automaticamente delimitou-se a hierarquia dominante do “eu civilizado” central. Tal estratégia manipulatória manteve-se ativa na escrita da história da arte até os anos 1980, para não dizer até hoje.

Acrescenta-se, também, o desempenho ativo das exposições de arte nessa dinâmica hierárquica. Basta analisar-se como o recurso do “primitivo” foi aplicado em exposições precedentes à Bienal de Veneza, como por exemplo, nas Grandes Exposições Universais. A participação do “primitivo” neste contexto expositivo emergiu da necessidade – analisada por Tony Bennett ( 1988BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. New Formations, Londres, n. 4, pp. 73-103, primavera, 1988.) – de criar-se uma compensação social e cultural para o espectador “civilizado”:

No contexto do imperialismo no final do século XIX foi, sem dúvida, o emprego da antropologia dentro do complexo expositivo que se revelou mais central para o seu funcionamento ideológico. Pois desempenhou o papel crucial de ligar as histórias das nações e civilizações ocidentais às de outros povos, porém separando as duas ao proporcionar uma continuidade interrompida na ordem dos povos e das raças – de modo que os povos “primitivos” se alocavam completamente dissociados e fora da história, ocupando uma zona crepuscular entre natureza e cultura.

( BENNETT, 1988BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. New Formations, Londres, n. 4, pp. 73-103, primavera, 1988., pp. 89-100, tradução nossa)

Esta zona crepuscular trazida à tona por Bennett, transmuta-se nos enunciados receptivos à arte brasileira através de recursos estruturais binários oscilantes entre dois extremos (pacífico-miséria):

O Brasil não teve uma revolução que unisse o espírito de toda a nação. Neste país, a última grande empreitada foi a abolição da escravidão negra, ainda no Oitocentos. País pacífico, não ignora a miséria, os problemas econômicos e sociais que se encontram em diversas regiões. Em Candido Portinari, o mais conhecido entre os artistas, é a piedade pela vida do homem brasileiro quem dá o tom. Muito apreciamos a truculência popularesca de Emiliano Di Cavalcanti.

( SCHOENENBERGER, 1950, p. 3SCHOENENBERGER, Gualtiero. Alla XXV Biennale di Venezia: A messicani e brasiliani l’arte impegnata. Libera Stampa, Lugano, p. 03, setembro, 1950., tradução nossa)

É muito interessante perceber o quanto o poder de um discurso pode moldar comportamentos e padrões. Os homólogos opostos trabalhados por todo esse texto forjam significativamente a representação nacional a um tipo de perfil comportamental – uma redução caricata de um traço de temperamento bipolar que concede a lógica plausível para a desigualdade.

Estabelecer uma tipologia geral para a definição do comportamento brasileiro ressoava o grande e, literalmente, o único interesse demonstrado. A recepção do Brasil foi, em larga medida, uma longa acumulação de instâncias textuais previamente acordadas ao campo dos estereótipos.

A articulação do “outro” através de um repertório estereotipado não é certamente um fenômeno recente, contudo se potencializou na era dos nacionalismos. Segundo Benedict Anderson ( 1996, p. 25ANDERSON, Benedict. Comunità immaginate. Roma: Manifestolibri, 1996.), as nações modernas não são outra coisa senão comunidades políticas imaginadas por um grupo soberano que funde e negocia continuamente suas fronteiras através da projeção de imagens. Essas imagens, por sua vez, são formadas por meio de elementos comparativos com uma alteridade. É preciso construir um “outro” para existir um “nós”.

A edificação desses elementos comparativos, entretanto, longe de basear-se na observação empírica e real do “outro”, forja-se na generalização de clichês e preconceitos (o último degrau do estereótipo), manipulados não só para escantear a existência daquele “outro”, mas também para circunscrever àquele “nós” na diferenciação da sua autoimagem.

Corroborando tal perspectiva, as únicas imagens reproduzidas pelas mídias da época são de autoria de Candido Portinari: Meninos abraçados, 1945 (Figura 4) e Vítimas da seca, 1945 (Figura 5). Tomando-as lado a lado, percebe-se o fetiche pelo símbolo da pobreza.

Figura 4.
Candido Portinari, Meninos abraçados, 1945. Óleo sobre tela, 100 x 81 cm. Coleção particular, Rio de Janeiro.
Figura 5.
Candido Portinari, Vítimas da seca, 1945. Óleo sobre tela, 180 x 150 cm. Coleção particular, Rio de Janeiro.

Este tipo de iconografia, camuflada de denúncia sintética de uma realidade, traz consigo um potente papel político, ideológico, econômico e cultural: se articulada com maestria, delimita conceitos mascarados de verdade, sem, contudo, precisar recorrer a ela.

Tais conceitos, trabalhados no visual e potencializados no textual, dificilmente são postos em xeque, visto que desmanchá-los desequilibraria um sistema que se autoalimenta e autoafirma em função dessa produção. De consequência, não é à toa que nada tenha sido dito das técnicas e das práxis pictóricas sustentadas pelas obras de arte. A arte brasileira foi ilustrada por discursos raciais e etnográficos, servindo antes de tudo como vitrine atrativa para suprir a necessidade do sentir europeu pela contemplação “piedosa” do seu contraposto “exótico”. Nesses termos, o “exotismo”, conceito muito bem trabalhado por Edward Said ( 2007SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), pululou na crítica do historiador italiano, Liscio Magagnato:

O pavilhão sul-americano – especialmente o brasileiro, e mais ainda o mexicano –, despertaram um vivo interesse, ainda mais entre os visitantes europeus que os conhecia tão pouco, no sentido pictórico, da civilização daqueles países, porém o éxito coletivo não teve razões absolutamente estéticas, ou seja, talvez tenha sido determinado por motivos de curiosidade, de estupor pelos insólidos procedimentos técnicos, e pela surpresa do descobrimento de uma iconografia exótica e violenta. (…) A julgar por essa Bienal, Emiliano Di Cavalcanti e Candido Portinari, por seus modos expressionistas e temas populares, se ligam diretamente com a experiência mexicana.

( MAGÁGNATO, 1950, p. 19MAGÁGNATO, Liscio. Artistas de la América Latina en la XXV Bienal. Histonium: revista mensual ilustrada, Buenos Aires, XII, n. 137, pp. 18-19, 1950., tradução nossa).

Na prática, ao render-se ao discurso estereotipado do “exótico e violento”, (re)compactuava-se, ao mesmo tempo, com as fronteiras identitárias dos enunciados estéticos daqueles próprios países, gerando entorno deles mesmos uma projeção idealizada, superior, celebrativa. Nestes termos, não foi à toa a insistência dos dirigentes da Bienal de Veneza por Candido Portinari, Lasar Segall e Emiliano Di Cavalcanti, três artistas que revocam os estereótipos do “tipicamente brasileiro”.

Pode-se afirmar que a recepção crítica da arte brasileira na estreia em Veneza subtraiu desta qualquer mínima possibilidade de discussão ou imersão estética expositiva. Se o dinheiro e os benefícios de Matarazzo ocuparam um lugar de valor nos bastidores curatoriais, não é possível confirmar o mesmo para a dimensão artística. Nesta perspectiva, incorporando o recurso binário por eles aplicado, parece factível, por fim, abonar: primitivos, porém economicamente atrativos.

SOBRE A AUTORA

Dunia Roquettié historiadora da arte e investigadora no Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST – Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, com financiamento da Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT). Doutora em História da Arte pela Universidade Ca’ Foscari de Veneza (Itália), Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo, apresentou as suas pesquisas na Universidade de Harvard, IUAV Venezia e Queen’s Belfast, entre as mais recentes.

  • ANDERSON, Benedict. Comunità immaginate. Roma: Manifestolibri, 1996.
  • BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. New Formations, Londres, n. 4, pp. 73-103, primavera, 1988.
  • CAMILUCCI, Marcello. Gli stranieri alla Biennale Veneziana. Vita e Pensiero, Milão, fascículo 12, p. 660-667, dezembro, 1950.
  • CATÁLOGO. XXV Biennale di Venezia. Venezia: Alfieri Edizioni, 1950.
  • JACHEC, Nancy. Politics and Painting at the Venice Biennale, 1948-64: Italy and the “idea of Europe”. Manchester: Manchester University Press, 2007.
  • LA XXV BIENNALE DI VENEZIA. La partecipazione straniera. Rivista Emporium, Bergamo, v. CXII, n. 670, pp. 146-166, outubro, 1950
  • LIFE MAGAZINE. Cross Section of Today’s Art. Life Magazine, Chicago, vol. 29, n. 24, pp. 101-109, dezembro, 1950.
  • MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo, Realismo, Vanguarda: pintura italiana no Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013.
  • MAGÁGNATO, Liscio. Artistas de la América Latina en la XXV Bienal. Histonium: revista mensual ilustrada, Buenos Aires, XII, n. 137, pp. 18-19, 1950.
  • MICHAUD, Eric. Histoire de l’art: Une discipline à ses frontière. Paris: Hazan, 2005.
  • O ESTADO DE SÃO PAULO. XXV Bienal de Veneza: protesto dos artistas. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 2, abril, 1950.
  • PEDROSA, Mário. O Brasil na Bienal de Veneza. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 11, maio, 1948.
  • SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • SCHOENENBERGER, Gualtiero. Alla XXV Biennale di Venezia: A messicani e brasiliani l’arte impegnata. Libera Stampa, Lugano, p. 03, setembro, 1950.
  • 1
    A aplicação do termo “Bienal de Veneza” como abreviação de Exposição Internacional de Arte de Veneza, é relativamente recente. O termo apareceu pela primeira vez na década de 1930, em contexto fascista. A própria instituição e inúmeras fontes bibliográficas adotaram em definitivo a terminologia.
  • 2
    Cunhado pela historiadora da arte Ana Gonçalves Magalhães ( 2013MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo, Realismo, Vanguarda: pintura italiana no Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013.), o termo “antigo MAM” é utilizado neste trabalho buscando evitar equívocos entre a instituição fundada por Francisco Matarazzo Sobrinho e o atual Museu de Arte Moderna de São Paulo. O contemporâneo MAM, formulado a partir da dissolução do antigo MAM, sustentou deste último o nome jurídico, seguindo, todavia, uma estratégia institucional e de acervo completamente diversa daquela estabelecida por Matarazzo.
  • 3
    Professor e crítico de arte italiano, Rodolfo Pallucchini desempenhou o cargo de secretário geral em cinco bienais, de 1948 a 1956. As exposições realizadas sob sua gerência são comumente recordadas pela montagem de mostras retrospectivas e individuas entorno de figuras que oferecessem uma reconstituição histórica dos movimentos de vanguardas furtivos do sistema durante os anos das ditaduras fascistas e nazistas. Pablo Picasso, por exemplo, renegado desde 1910, só encontrou espaço em Veneza pelas mostras retrospectivas de Pallucchini.
  • 4
    O Brasil inaugurou seu pavilhão apenas em 1964. Antes disso, de 1950 a 1962, fez uso de salas nacionais no Palácio Central dedicadas a países sem pavilhões próprios. Nesse período, expunha, geralmente, ao lado de outras nações latino-americanos como Argentina, Uruguai, Colômbia e Venezuela.
  • 5
    Todas as cartas utilizadas e citadas ao longe deste texto estão presentes no Arquivo Histórico de Arte Contemporânea de Veneza, o ASAC, no Fondo Archivio Storico, Serie Paesi 1940-1968.
  • 6
    Referimo-nos à participação do artista na 59ª Bienal de Veneza, no ano de 2022.
  • 7
    FIOCCA, Pasquale. Carta [para] Bienal de Veneza (Veneza, Itália). 20 nov. 1947, São Paulo.
  • 8
    PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Pasquale Fiocca (São Paulo, Brasil). 1 dez. 1947, Veneza.
  • 9
    PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Francisco Matarazzo (São Paulo, Brasil). 8 jan. 1948, Veneza.
  • 10
    PONTI, Giovanni. Carta [para] Pedro M. Barros (Roma, Itália). 22 jan. 1948, Veneza.
  • 11
    PONTI, Giovanni. Carta [para] Pedro M. Barros (Roma, Itália.) 22 jan. 1948, Veneza.
  • 12
    MATARAZZO, Francisco. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 9 fev. 1950, São Paulo. Tradução nossa.
  • 13
    BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 24 ago. 1949, São Paulo. Tradução nossa.
  • 14
    PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Pietro Maria Bardi (São Paulo, Brasil). 26 dez. 1949, Veneza. Tradução nossa.
  • 15
    BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Rodolfo Pallucchini (Veneza, Itália). 2 jan. 1950, São Paulo. Tradução nossa.
  • 16
    BARDI, Pietro Maria. Carta [para] Umbro Apollonio (Veneza, Itália). 6 jan. 1950, São Paulo. Tradução nossa.
  • 17
    APPOLONIO, Umbro. Carta [para] Pietro Maria Bardi (São Paulo, Brasil). 13 jan. 1950, Veneza. Tradução nossa.
  • 18
    PALLUCCHINI, Rodolfo. Carta [para] Francisco Matarazzo (São Paulo, Brasil). 26 mar. 1950, Veneza. Tradução nossa.
  • 19
    A Argentina, por exemplo, foi representada por apenas um artista; o México, por quatro; a Colômbia, por nove.
  • 20
    Ao contrário da arquitetura modernista brasileira, que já havia se firmado internacionalmente uma década antes daquela ocasião, as artes visuais lutaram para ter alguma projeção exterior. De fato, se nos compêndios da história ocidental a arquitetura brasileira era um capítulo de absoluta importância, até mais ou menos os anos 1970, no âmbito da narrativa da história da arte ocidental não aconteceu o mesmo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2022
  • Aceito
    28 Fev 2023
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