Resumos
Descrevemos um aparato de baixo custo e apresentamos um vídeo curto que podem ser utilizados pelo professor em sala de aula para demonstrar e ilustrar um paradoxo cinemático aparente descrito por Galileu Galilei em uma carta para Guidobaldo del Monte e também em Duas Novas Ciências. A solução cinemática desse paradoxo aparente também é discutida.
paradoxo de Galileu; paradoxo cinemático
We describe a low-cost demonstration setup and present a short video that can be used by the teacher to discuss an apparent kinematical paradox described by Galileo in a letter to his friend Guidobaldo del Monte and also in Two New Sciences. The kinematical solution of this apparent paradox is also discussed.
Galileo paradox; kinematical paradox
ARTIGOS GERAIS
O paradoxo cinemático de Galileu
Galileo's kinematical paradox
M.F.B. Francisquini; V. Soares, A.C. Tort1 1 E-mail: tort@if.ufrj.br.
Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brazil
RESUMO
Descrevemos um aparato de baixo custo e apresentamos um vídeo curto que podem ser utilizados pelo professor em sala de aula para demonstrar e ilustrar um paradoxo cinemático aparente descrito por Galileu Galilei em uma carta para Guidobaldo del Monte e também em Duas Novas Ciências. A solução cinemática desse paradoxo aparente também é discutida.
Palavras-chave: paradoxo de Galileu, paradoxo cinemático.
ABSTRACT
We describe a low-cost demonstration setup and present a short video that can be used by the teacher to discuss an apparent kinematical paradox described by Galileo in a letter to his friend Guidobaldo del Monte and also in Two New Sciences. The kinematical solution of this apparent paradox is also discussed.
Keywords: Galileo paradox, kinematical paradox.
1 Introdução
Em uma carta datada de 29 de novembro de 1602, destinada a seu amigo e admirador Guidobaldo del Monte (1545-1606), Galileu Galilei (1564-1642) descreve um paradoxo cinemático aparente que decorre de seus estudos da cinemática dos corpos em queda livre [1]. Eis o trecho relevante na tradução livre dos autores:
Seja o diâmetro AB no círculo BDA [Fig. 1] perpendicular ao horizonte, e a partir do ponto A sejam desenhadas linhas ao longo da circunferência, tais como AF, AE, AD, AC: eu provo que corpos iguais caem em tempos iguais ao longo da vertical BA e nos planos inclinados CA, DA, EA, FA. Assim, se eles começarem o movimento no mesmo momento a partir das posições B, C, D, E, F, eles chegarão no mesmo momento no ponto A, sendo a linha FA tão pequena quanto se desejar.
Em outras palavras: dado um círculo vertical, um corpo que cai livremente ao longo do diâmetro e um corpo que desliza ao longo de uma corda chegam ao pé do círculo ao mesmo tempo. Evidentemente as forças resistivas devem ser ignoradas e ambos os corpos devem ser abandonados a partir do repouso. Além da carta a del Monte, o paradoxo também é descrito no último livro de Galileu, Duas Novas Ciências [2].
A apresentação e discussão em sala de aula deste paradoxo (aparente) parece-nos muito interessante e de grande valor pedagógico por sua capacidade em motivar nossos alunos [3]. Com esta finalidade os presentes autores idealizaram uma demonstração de baixo custo deste paradoxo cinemático e um vídeo curto que pode ser visualizado no endereço http://www.youtube.com/watch?v=Jdcd1lSxc0w.2 2 O vídeo foi produzido por um dos autores (M.F.B.F.) como parte de sua monografia de final de curso de Licenciatura em Física do IF-UFRJ [Francisquini2013]. O vídeo ilustra duas demonstrações realizadas com o aparato, ambas exibidas primeiramente em tempo real e depois em câmera lenta. A Fig. 2 apresenta a superposição de quadros correspondentes a cinco momentos distintos do vídeo em duas configurações diferentes. Na primeira configuração, o ângulo entre a corda é a horizontal vale 40º , e na segunda, o ângulo entre a corda e a horizontal vale 67º .
2 A descrição do aparato
Os materiais utilizados para a construção do aparato utilizado na produção do vídeo (e que também pode ser facilmente levado para a sala de aula para uma demonstração ao vivo) são:
(a) um aro de bicicleta de 50 cm de diâmetro (novo ou usado);
(b) um cabo de freio de bicicleta (mas outros tipos de fio podem ser utilizados);
(c) duas contas de madeira (ou mais se o professor assim o desejar).
Como o aro de bicicleta já vem com vários furos originalmente destinados aos raios da roda, a montagem do aparato consiste essencialmente em passar o cabo de aço através desses furos e manter a tensão mecânica do cabo. O custo é baxíssimo, da ordem de 30 reais ou menos caso um aro de bicicleta usado seja aproveitado.
3 A solução do paradoxo
A resolução teórica do paradoxo começa com uma mirada atenta ao esquema mostrado na Fig. 3. Ela nos mostra um círculo vertical de diâmetro H e duas cordas, BE e EA, de comprimentos L e ℓ, respectivamente. De acordo com o teorema de Tales sobre um triângulo inscrito em um semicírculo, s, veja o Apêndice, Fig. 5, o triângulo ABE inscrito no círculo vertical é reto. Portanto, podemos escrever
onde θ é o ângulo entre a corda EA e a horizontal. A projeção da aceleração da gravidade g ao longo da corda EA é
Considere agora dois corpos que partem do repouso simultaneamente, um do topo do círculo vertical, ponto B, e o outro da extermidade E da corda EA. As equações horárias se escrevem
onde e são os tempos de queda-livre ao longo do diâmetro e de deslizamento ao longo da corda respectivamente. Se agora substituirmos as Eqs. (1) e (2) na Eq. (4) obteremos
logo, !
O mesmo procedimento pode ser utilizado para mostrar que se os dois corpos forem abandonados simultaneamente no topo do círculo vertical e um deles cair livremente ao longo do diâmetro e o outro deslizar ao longo da corda BE, os mesmos atingirão a circunferência do círculo vertical ao mesmo tempo. Generalizar o procedimento abrangendo a descrição original de Galileu é imediato.
4 Uma abordagem alternativa
Há um outro modo de visualizar o paradoxo que consiste em aproveitar a superposição dos quadros obtidos a partir do vídeo e comparar visualmente a queda ao longo do diâmetro e o deslizamento ao longo de uma corda, veja a Fig. 4. Na Fig. 4, à esquerda, subdividimos o diâmetro BA em 16 partes iguais, embora tenhamos representado somente cinco, e construímos segmentos de reta paralelos à corda BE. Isto permite dividir a corda EA também em 16 partes proporcionais. Portanto, se o movimento vertical ao longo do diâmetro BA for uniformemente acelerado, o movimento ao longo da corda BE também o será: os segmentos paralelos à corda BE unem os dois corpos no mesmo instante de tempo. O mesmo raciocínio pode ser feito para o segmento BE e, em consequência, o intervalo de tempo para percorrer BE é igual ao intervalo de tempo para percorrer BA.
5 Comentários finais
O paradoxo cinemático aparente que discutimos aqui foi resolvido por Galileu na carta a Guidobaldo del Monte e em Duas Novas Ciências. A solução que apresentamos é simples e imediata. A solução de Galileu é mais complexa e isto tem uma explicação simples: Galileu não tinha ao seu dispor as linguagens e notações modernas da álgebra comum e da álgebra vetorial. As demonstrações matemáticas que acompanham os raciocínios físicos fazem uso de razões e proporções, médias geométricas e da regra de Merton.
A experiência dos presentes autores mostra que a discussão deste paradoxo cinemático em sala de aula seja por meio da utilização do aparato descrito ou pela exibição do vídeo atrai imediatamente a atenção dos estudantes. As discussões que se seguem enriquecem os alunos e seus professores. Há vários modos de apresentar este material. Por exemplo, o vídeo pode ser exibido em primeiro lugar e a partir dele toda uma discussão sobre a queda-livre pode ser desenvolvida pelo professor. Finalmente, ressaltamos que duas variantes mais complexas que ilustram o paradoxo cinemático de Galileu são descritas na Ref. [5].
Agradecimentos
Os autores agradecem os comentários e sugestões dos professores C.E. Aguiar e F.L. da Silveira, e em particular a este último pela sugestão do título deste trabalho, uma vez que a frase Paradoxo de Galileu como sugerido na Ref. [Greenslade2008] pode levar a uma confusão com um paradoxo matemático homônimo, ou mesmo com o paradoxo hidrostático de Galileu [Lang2009].
Referências
[1] G. del Monte. Epistolarium of Guidobaldo Del Monte (1545-1607). Centro Internazionale di Studi Urbino e la Prospettiva, 2006, p. 40. Acessível em http://urbinoelaprospettiva.uniurb.it/biblioteca_eng.asp. Acesso em 9/4/2013. O trecho original relevante se lê :
Sia del cerchio BDA il diametro BA eretto all'orizonte, e dal punto A sino alla circonferenza tirale linee utcumque AF. AE, AD, AC; dimostro mobili uguali cadere in tempi uguali, e per la perpendicolare BA, e per piani inclinati secondo le linee CA, DA, EA, FA. Sicché partendosi nell'istesso momento dalli punti B, C, D, E, F, arriveranno in uno stesso momento al termine A, e sia la linea FA piccola quant'esser si voglia.
[2] G. Galilei, Dialogues Concerning Two New Sciences, translated by Henry Crew and Alfonso de Salvio (Dover, New York, 1954). Ver também: G. Galilei Two New Sciences, 2nd edition, translated by S. Drake (Wall & Emerson, Toronto, 1989); G. Galilei Duas Novas Ciências, traduzido por Letizio e Pablo Mariconda (Nova Stela, São Paulo, 1986); S. Hawking Os Gênios da Ciência: Sobre os Ombros de Gigantes: As Mais Importantes Idéias e Descobertas da Fí sica e da Astronomia (Elsevier, Rio de Janeiro,2005).
[3] T.B. Greenslade Jr., Phys. Teach. 46, 294 (2008).
[4] M.F.B. Francisquini, O Paradoxo de Galileu no Ensino Médio, monografia de final de curso de Licenciatura em Física IF-UFRJ. UFRJ, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em formato PDF. O leitor interessado pode solicitar uma cópia à autora.
[5] R.M. Sutton, Demonstrations Experiments in Physics (McGraw-Hill, London, 1938), p. 42-43.
[6] F.L. Silveira e A. Medeiros, Cad. Bras. Ens. Fís. 26, 273 (2009).
Recebido em 16/4/2013
Aceito em 27/5/2013
Publicado em 6/2/2014
Apêndice: o teorema de Tales sobre um triângulo inscrito em um semicírculo
Se um triângulo inscrito em um semicírculo tem um lado que coincide com o diâmetro deste, então o triângulo é reto. Este resultado é conhecido como teorema de Tales.
A demonstracão e simples. Os triângulos BEM e AEM são isosceles. Neste caso, para o triângulo BEM, as medidas dos ângulos EBM e BEM são iguais. Denotaremos esta medida por α. O mesmo raciocnio vale para o triângulo MAE. Denotaremos esta medida por β. Como a soma dos ângulos internos do triângulo BAE deve ser igual a π radianos,
logo,
isto e, o triângulo BAE e reto. Este é o teorema de Tales que, reza a lenda, sacricou um boi aos deuses em agradecimento por sua descoberta.
- [1] G. del Monte. Epistolarium of Guidobaldo Del Monte (1545-1607). Centro Internazionale di Studi Urbino e la Prospettiva, 2006, p. 40. Acessível em http://urbinoelaprospettiva.uniurb.it/biblioteca_eng.asp Acesso em 9/4/2013. O trecho original relevante se lê
- [2] G. Galilei, Dialogues Concerning Two New Sciences, translated by Henry Crew and Alfonso de Salvio (Dover, New York, 1954).
- Ver também: G. Galilei Two New Sciences, 2nd edition, translated by S. Drake (Wall & Emerson, Toronto, 1989);
- G. Galilei Duas Novas Ciências, traduzido por Letizio e Pablo Mariconda (Nova Stela, São Paulo, 1986);
- S. Hawking Os Gênios da Ciência: Sobre os Ombros de Gigantes: As Mais Importantes Idéias e Descobertas da Fí sica e da Astronomia (Elsevier, Rio de Janeiro,2005).
- [3] T.B. Greenslade Jr., Phys. Teach. 46, 294 (2008).
- [4] M.F.B. Francisquini, O Paradoxo de Galileu no Ensino Médio, monografia de final de curso de Licenciatura em Física IF-UFRJ. UFRJ, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em formato PDF. O leitor interessado pode solicitar uma cópia à autora.
- [5] R.M. Sutton, Demonstrations Experiments in Physics (McGraw-Hill, London, 1938), p. 42-43.
- [6] F.L. Silveira e A. Medeiros, Cad. Bras. Ens. Fís. 26, 273 (2009).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Abr 2014 -
Data do Fascículo
Mar 2014
Histórico
-
Aceito
27 Maio 2013 -
Recebido
16 Abr 2013