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László Tisza, 110 anos: Origens da Física Térmica Moderna

Laszlo Tisza, 110 years: Origins of the Modern Thermal Physics

Resumo

A axiomática de László Tisza da termodinâmica é revisitada, identificada a partir de cinco elementos constitutivos, e incluída em uma perspectiva histórica. Através de uma definição de medida, uma análise detalhada da associação do formalismo de Tisza com o experimento é conduzida. A ênfase da apresentação é para a relação da axiomatização de Tisza com os desenvolvimentos da física térmica no século XX, incluindo os trabalhos de Landau e colaboradores, e os desenvolvimentos que conduziram à teoria quântica de campos a temperatura finita.

Palavras-chave:
Termodinâmica; Física térmica; Temperatura; Axiomatização de Tisza

Abstract

The László Tisza axiomatization of thermodynamics is revisited, considered from five constitutive elements, and included in a historical perspective. Using a definition of measurement, a detailed analysis of the Tisza approach, in association with experiments, is carried out. The emphasis in the presentation is on the relation of Tisza formulation with developments of the thermal physics in the 20th Century, including results derived by Landau and coworkers and the developments that led to the quantum field theory at finite temperature.

Keywords:
Thermodynamics; Thermal physics; Temperature; Tisza's Axiomatization

1. Introdução

László Tisza nasceu em 7 de julho de 1907, em Budapeste, Hungria, e faleceu em 15 de abril de 2009, aos 101 anos, em Cambridge, EUA [1][1] J. Friedman, T.J. Greytak, e D. Kleppner, Laszlo Tisza, Physics Today 62, 7, 65 (2009).. Seu trabalho consagrado é o livro Generalized Thermodynamics, publicado em 1966 [2][2] L. Tisza, Generalized Thermodynamics (MIT Press, Cambridge, 1966)., no âmago das discussões sobre os efeitos térmicos no contexto atômico e subatômico; ou seja, sobre a ligação entre a fenomenologia térmica, a mecânica quântica e a física das partículas elementares.

Tisza axiomatizou a termodinâmica, primeiro, em uma série de trabalhos clássicos que se iniciaram em 1961 [3][3] L. Tisza, Ann. Phys. (N.Y.), 13, 1 (1961)., fazendo uso do teorema de Clausius e dos trabalhos prévios de Gibbs. A linguagem de máquinas, típica das primeiras formulações da termodinâmica, no século XIX, é então definitivamente abandonada. Na axiomática de Tisza, a termodinâmica é estruturada a partir de um princípio de extremo e, enquanto teoria, fica qualificada a descrever uma gama mais ampla de sistemas, desde sistemas biológicos e aqueles no interior de estruturas subatômicas, até sistemas nas escalas estelares e cosmológicas.

A despeito de sua abrangência e sucesso, a física térmica, como toda teoria física, pode sofrer aprimormentos para abranger domínios mais gerais e os resultados de Tisza já apontavam nesta direção quando ele destacava algumas de suas motivações [3][3] L. Tisza, Ann. Phys. (N.Y.), 13, 1 (1961).:

In the CKC [Clausius, Kelvin and Carathéodory] theory, systems are considered as undivided units coupled only with auxiliary macroscopic devices, in strong contrast to the constructive principle of statistical mechanics, in which systems are built from constituent invariant particles. We shall see that thermodynamics has a constructive principle of its own: systems are built up from disjoint volume elements that are described in terms of extensive variables specifying the amount of energy, mass, and chemical components within each volume element. In MTE [Macroscopic Thermodynamics of Equilibrium] these quantities are always assumed to have reached their equilibrium values. However, it is possible to take fluctuations into consideration, and let the extensive variables become random variables. Thus thermodynamics becomes an essentially statistical discipline and the phenomenological formulation appears only as a limiting case.

É essa perspectiva metodológica que irá ao encontro de outro desenvolvimento da termodinâmica no século XX: as teorias de transição de fase, de Landau e colaboradores, fazendo uso dos métodos das teorias quânticas de campos associados com a noção de parâmetro de ordem e de quebra espontânea de simetria [4[4] L.D. Landau, Phys. Z. Sowjet, 11, 545 (1937). [5] V.L. Ginzburg e L.D. Landau, Zh. Eksp. Teor. Fiz. 20, 1064 (1950). [6] L.D. Landau e E.M. Lifishtz, Statistical Physics (Pergmon Press, London, 1958).-7[7] R.A. Salmeron, III Escola de Física Roberto A. Salmeron: Transição de Fase e Quebra Espontânea de Simetria (LF Editorial, São Paulo, 2017), v. 1.]. Os trabalhos de Tisza viabilizariam assim, no sentido oposto, a conexão entre a física de partículas e a termodinâmica, dando origem, em um esforço por muitos e de décadas, à teoria quântica de campos a temperatura finita [8[8] L.P. Kadanoff e G. Baym, Quantum Statistical Mechanics (W.A. Benjamin, New York, 1962). [9] A.A. Abrikosov, L.P. Gorkov e I.E. Dzyaloshinskii, Methods of Quantum Field Theory in Statistical Physics (Dover, New York, 1963). [10] A.L. Fetter e J.D. Walecka, Quantum Theory of Many-Particles Systems (McGraw-Hill, New York, 1971). [11] J.I. Kapusta, Finite-Temperature Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1989). [12] H. Umezawa, Advanced Field Theory: Micro, Macro and Thermal Physics (AIP, New York, 1993). [13] M.L. Bellac, Thermal Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996). [14] A. Das, Finite Temperature Field Theory (World Scientific, Singapore, 1997).-15[15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009).].

Pedagogicamente, essa axiomática térmica foi propagada por Herbert Callen [16[16] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics (Wiley, New York, 1985). [17] D. Chandler, Introduction to Modern Statistical Mechanics (Oxford University Press, New York, 1987).-18[18] M.J. Oliveira, Termodinâmica (LF Editorial, São Paulo, 2005).], que foi aluno de Tisza no MIT, mas a devida referência histórica daquela contribuição original ficou embotada e está praticamente esquecida.

Aqui neste artigo, permeado de elementos pedagógicos, há dois propósitos. Primeiro, prestar uma homenagem a Lászó Tisza. Segundo, destacar o significado e a importância dos seus trabalhos para os desenvolvimentos da física térmica no século XX, em particular na relação com a teoria de Landau sobre quebra espontânea de simetria e na ligação com a física estatística e a teoria quântica de campos. Para isso, sistematizamos a axiomática de Tisza a partir de seis elementos constitutivos, dentre os quais as três leis da termodinâmica, que são apresentadas como relações causais. Em complemento, detalhamos, como caso particular de variável termodinâmica, a definição de temperatura no contexto fenomenológico da medida, sem referência à constituição microscópica do sistema físico em análise. Nesse contexto, abordamos as dificuldades que surgem em textos básicos, quando tratam de conceitos como temperatura e entropia.

A apresentação do trabalho está organizada da seguinte maneira. Na seção 2, a temperatura é definida fenomenologicamente, a partir de uma teoria da medida. Na seção 3, os elementos constitutivos da axiomática de Tisza são apresentados, com ênfase na definição de estado de um sistema termodinâmico e nas quatro formulações da termodinâmica. Na seção 4, enfatizando a formulação de Tisza, a noção de simetria é explorada na estruturação da mecânica estatística. O princípio variacional de Tisza é discutido na seção 5 em associação com a noção de ensemble de Gibbs-Einstein. Na seção 6, o desenvolvimento histórico da física térmica no século XX é narrado, com destaque à contribuição de Tisza. Na seção 7 tecemos nossas conclusões finais.

2. Grandezas Térmicas: A Definição Fenomenológica de Temperatura

Um aspecto interessante da axiomática de Tisza é o conteúdo fenomenológico da teoria, um elemento estruturante presente desde os primeiros estudos sobre os sistemas térmicos. Podemos deixar transparente o significado do procedimento experimental em termodinâmica, especialmente na axiomática de Tisza, utilizando uma definição apropriada de mensuração, aplicada aqui, a título de exemplo, à grandeza física temperatura[19][19] H. Chang, Inventing Temperature: Measurement and Scientific Progress (Oxford Uni. Press, Oxford, 2004).. As outras variáveis térmicas, quer sejam intensivas, ou extensivas, podem ser definidas de forma similar.

Na perspectiva dos procedimentos experimentais em física, a definição de mensuração pode ser aquela sistematizada por Berka [20][20] K. Berka, Measurement: Its Concepts, Theories and Problems (D. Reidel, Dordrecht, 1983).; ou seja, a medida é um homomorfismo entre uma estrutura relacional de sistemas físicos, , e os números reais. A estrutura contém um conjunto de sistemas a serem relacionados, A, e um conjunto de relações, R; e assim fica escrita =(A,R). Uma medida qualquer , realizada sobre um sistema físico, é definida como o conjunto

= ( , , n ) ,

no qual n é o homomorfismo entre e o conjunto dos números reais. É importante observar que a existência de sistemas físicos (eventos) e relações são conceitos primitivos. Ou seja, são elementos ontológicos que servem de base para a teoria de medida empregada na física. Desse modo, podemos considerar esta definição de medida para introduzir fenomenologicamente o conceito de temperatura. Um procedimento similar foi utilizado para uma definição de espaço e tempo no contexto das teorias mecânicas [21[21] L.A.C. Malbouisson e A. E. Santana, Ciência e Sociedade 2, 8 (2014). [22] A.E. Santana e S. Simon, J. Mod. Phys. 6, 58 (2015).-23[23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).].

Vamos considerar uma situação simples e conhecida, como exemplo para detalhar conceitualmente o procedimento experimental. Enquanto sistema físico, escolhemos então uma coluna de mercúrio, AM, em contato térmico com uma porção de água sendo aquecida em um recipiente, AP. Há uma relação entre a mudança na altura da coluna de mercúrio e o processo de aquecimento da água. Essa relação é dada, a priori, como um conceito ontológico, isto é, estamos adotando “relação” como um conceito primitivo, o que possibilita a vinculação dos sistemas através de um procedimento a ser especificado. Denominamos por P o conjunto de elementos que caracterizam as relações, P={P}, entre AM e AP. Assim, P é o conjunto dos valores da altura da coluna de mercúrio, na relação com o aquecimento da água. Esta comparação, em uma determinada situação, gera um valor numérico P, que é a medida da altura da coluna de mercúrio, e que será associada a um valor na reta real, , que caracteriza o quão quente (ou fria) a água está, com relação a alguma outra situação da água, tomada como referência. Este número gerado será considerado o valor de uma grandeza física que caracteriza o estado da água (quente ou fria). Esta grandeza assim definida é denominada de a “temperatura” da água, T. Desse modo, pode-se estabelecer uma aplicação, n:, entre cada elemento P e T. O valor numérico obtido para a grandeza T é especificado na reta real, ou seja, é uma coordenada. A aplicaçcão n é escolhida, por simplicidade, como sendo linear (embora outras possibilidades, a princípio, possam surgir), isto é

(1) n ( P ) = α T + β ,

onde α e β são constantes que podem, sem perda de generalidade, assumir os valores 1 e 0, respectivamente. É importante ressaltar que esta definição fenomenológica de temperatura encerra três características básicas para a conceitualização desta grandeza física. (i) T pode ser uma função do tempo t. De fato, durante o aquecimento, a mudança na altura da coluna de mercúrio ocorre de forma contínua no tempo, ou seja P = P(t), de modo que n(P(t))=T(t). Em uma situação ainda mais geral, a temperatura pode ser uma função também da posição, x, isto é, T=T(x,t). (ii) A noção primitiva de quente e frio fica completamente contemplada. A coluna de mercúrio é, então, considerada como um instrumento de medida adequado para estabelecer, através do procedimento de medida descrito acima, a própria definição de temperatura. Esse instrumento de medida é conhecido como “termômetro”. (iii) Devido à natureza de localidade do contato da coluna de mercúrio com a água, T é caracterizada como uma grandeza intensiva.

Por construção, uma vez que T está definida na reta real, se n(P)<n(P) e n(P)<n(P), então n(P)<n(P). Uma consequência desse resultado é que a “lei zero da termodinâmica”, presente com destaque nos livros didáticos, é um elemento embutido na própria definição de temperatura dada acima. Esta situação é similar à definição de espaço [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).. Além disso, um fator de consistência experimental nessa definição é que um sistema físico pode, então, em princípio, ser aquecido ou resfriado.

Outras características experimentais da temperatura são reveladas na relação com outros elementos ligados aos fenômenos térmicos. Um exemplo é aquele em que dois sistemas são colocados em contato térmico por paredes diatérmicas. Neste caso, o sistema de mais baixa temperatura sofrerá um aumento de temperatura e aquele que inicialmente estava em uma temperatura superior, esfria-se. Esse processo ocorre até que, após um certo tempo, ambos os sistemas atinjam a mesma temperatura, quando, então, dizemos que o equilíbrio térmico foi alcançado [16][16] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics (Wiley, New York, 1985).. Entretanto, a noção de temperatura pode ser introduzida em qualquer situação na qual seja possível a definição de um termômetro, o que pode ser bem complexo de se fazer em situações muito fora do equilíbrio [24][24] R. Balescu, Equilibrium and Nonequilibrium Statistical Mechanics (Wiley, New York, 1975), bem como em sistemas extremamente frios ou quentes [25][25] M.W. Zemansky e R.H. Dittman, Heat and thermodynamics, (McGraw-Hill, New York, 1997), 7ª ed., Cap. 1].

Em alguns livros pedagógicos, a temperatura é definida logo de início, utilizando o equilíbrio térmico [25][25] M.W. Zemansky e R.H. Dittman, Heat and thermodynamics, (McGraw-Hill, New York, 1997), 7ª ed.. Esse “equilíbrio térmico” refere-se a um “estado do sistema” em análise. Mas isso dificilmente fica definido satisfatoriamente como ponto de partida para se discutir os sistemas térmicos. A dificuldade reside na necessidade de especificação do conjunto das variáveis que serão utilizadas para se tratar dos sistemas térmicos. A temperatura é somente uma dessas variáveis. A partir de então é que o conceito de “estado térmico do sistema” pode ser introduzido de modo adequado. Vamos detalhar esse aspecto na seção seguinte, tratando mais especificamente dos elementos da axiomática de Tisza. É importante salientar que podemos considerar como uma “boa teoria física” aquela que possui uma estrutura axiomaticamente (na perspectiva da lógica-matemática) bem contruída, com uma boa conceitualização filosófica de seus elementos (ou seja a interpretação física), ampla nas suas aplicações e descrição do mundo e, acima de tudo, consistente experimentalmente. Sob esses aspectos, não é exagero considerar que a termodinâmica seja ainda nossa melhor teoria física, e que por isso continua a ser analisada em seus fundamentos [26[26] W.F. Wreszinski, Termodinâmica (Edusp, São Paulo, 2002). [27] M.J. Oliveira, Braz. J. Phys. 48, 299 (2018).-28[28] M.J. Oliveira, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180174 (2019).].

3. Elementos Constitutivos da Axiomática de Tisza

Nesta seção, descrevemos a termodinâmica, identificando seis elementos constitutivos da axiomática de Tiza, seguindo em paralelo às teorias do movimento [22[22] A.E. Santana e S. Simon, J. Mod. Phys. 6, 58 (2015)., 23[23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).].

No trabalho de Tisza, fica tácito o primeiro elemento constitutivo de uma axiomática física: a definição dos sistemas de referência, que fixam, em qualquer teoria física, não só o locus de observação, mas também a relação desse com outros. Nos sistemas de referências estão definidas grandezas físicas básicas como espaço e tempo [22[22] A.E. Santana e S. Simon, J. Mod. Phys. 6, 58 (2015)., 23[23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).]. Em termodinâmica usualmente a isso se reserva pouca ênfase, pois em muitos casos o sistema de referência fica fixo. Portanto, as transformações no espaço e tempo, como as transformações de Galilei ou de Lorentz, não desempenham um papel fundamental, numa primeira abordagem. Entretanto, quando as mudanças de um sistema de referência para outro passam a ser significativas, tanto no caso não-relativístico como no relativístico, uma análise cuidadosa é requerida; mas isso não será tratado aqui.

O segundo elemento constitutivo, como acontece com as das teorias do movimento [22[22] A.E. Santana e S. Simon, J. Mod. Phys. 6, 58 (2015)., 23[23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).], é a construção de um dicionário de conceitos para se referir ao sistema físico em questão: o conjunto das grandezas básicas a serem utilizadas na descrição dos processos termodinâmicos. Por essa razão, apresentamos na seção anterior o significado de temperatura. Mas outras grandezas, como calor, entropia, número de moles, entre outras, precisam ser definidas adequadamente e a priori.

Da mesma forma que todas as variáveis térmicas extensivas são definidas no contexto experimental a partir da especificação de paredes e de padrões, como régua, dinamômetros, etc., as variáveis intensivas são definidas também a partir de paredes e padrões, como os termômetros e barômetros, e são introduzidas no processo axiomático através das primeiras derivadas, como veremos mais adiante nesta seção para o caso da temperatura (neste caso, a definição de intensividade só possui validade para funções analíticas; o que pode não ocorrer nas transições de fase). Esse procedimento estabelece a forma de mensuração da teoria, que se constitui no terceiro elemento constitutivo.

Após a definição experimental desse dicionário, outros conceitos são então construídos. Um deles, o quarto elemento constitutivo, é a noção de “estado do sistema”, a estabelecer, na perspectiva dos processos termodinâmicos, a significação do sistema térmico.

Na axiomática de Tisza, as variáveis termodinâmicas intensivas, como temperatura, pressão e densidades, entre outras, cumprem um papel similar às variáveis extensivas, como energia interna, volume e número de moles. Num sistema simples (às vezes chamado hidrodinâmico) [16][16] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics (Wiley, New York, 1985)., o estado é definido, inicialmente, como um conjunto de variáveis extensivas, ou seja, a energia interna, o volume e o número de moles. O conceito “estado do sistema” é então introduzido para descrever a condição física do um sistema termodinâmico, contendo suas características mecânicas (como o volume e o número de moles), assim como a possibilidade de variações sob todo o tipo de intervenção em um sistema com conteúdo térmico. A variável extensiva que cumpre esse papel é a energia interna.

A partir da definição do conceito de estado térmico, considerações específicas são desenvolvidas, como processos quase-estáticos e a noção de estado de equilíbrio e não-equilíbrio térmico. É importante salientar, mais uma vez, que a noção de temperatura prescinde da noção de estado de equilíbrio térmico, pois é um conceito que tanto teoricamente quanto experimentalmente vai além desse tipo de estado da matéria, como vimos na seção anterior.

O estado térmico, que será denominado aqui por T, evolui para uma outra situação, 'T, através de regras causais, de tal modo que repetida as condições iniciais o sistema evoluirá percorrendo o mesmo caminho das variáveis de estado. A causalidade, o quinto elemento constitutivo da teoria, é determinada pelas leis da termodinâmica, sob as quais o sistemas evoluirá de T'T. Assim, as três leis da termodinâmica correspondem aos aspectos dinâmicos da axiomática de Tisza.

A primeira lei estabelece a conservação da energia. Nas teorias mecânicas, a conservação é assegurada através do teorema de Noether, que define de modo preciso e mensurável a noção de energia. Em termodinâmica, devido ao conceito de calor, a conservação é introduzida como uma lei, garantida pelos experimentos do tipo Joule. A segunda lei introduz a noção de entropia, S, que é uma função do estado do sistema, homogênea de primeira ordem, convexa, na dependência com as variáveis de estado, atinge um extremo quando o sistema atinge o equilíbrio e é inversível com relação a variável energia. Essas características definem a entropia. Como consequência de suas características, a entropia irá assegurar orientações aos fluxos de energia entre sistemas através de calor e trabalho. Por exemplo, o calor é o fluxo de energia que sempre se estabelece a partir de um sistema quente para o sistema frio, quando são colocados em contato térmico. O mesmo vale quando os sistemas estão a diferentes pressões e são colocados em contados através de paredes que possam se movimentar; neste caso haverá transfência de energia pela realização de trabalho. A entropia, com suas características, é quem vai condicionar, nos dois casos, como acontecerá a transferência de energia (voltaremos a este ponto na próxima seção). Além disso, a entropia especifica o sistema térmico em estudo, e cumpre um papel semelhante ao da ação, e Lagrangiana, nas teorias mecânicas [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019).. Por este aspecto, a entropia precisa ser um escalar com relação às simetrias do espaço-tempo. A terceira lei assegura que todos os sistemas físicos são sistemas térmicos; e é utilizada para fixar um valor para a entropia na temperatura de zero Kelvin [26][26] W.F. Wreszinski, Termodinâmica (Edusp, São Paulo, 2002).. A partir de então, outros conceitos são introduzidos, como a noção de processos reversíveis e irreversíveis.

No formalismo de Tisza, embora não tão explicitamente detalhado, a associação com experimento ocorre na especificação dos procedimentos de mensuração, a estabelecer o terceiro elemento constitutivo da teoria. Desse modo, dado um conjunto de variáveis extensivas descrevendo o estado do sistema, x0,x1,x2,...,xN, que necessariamente inclui a energia interna do sistema) x0=U, a equação fundamental, considerando a representação da entropia, S, é escrita como S=S(U,x1,x2,...,xN) [16][16] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics (Wiley, New York, 1985).. Nesta situação a temperatura é identificada como a seguinte primeira derivada

(2) T = ( S U ) -1 .

Essa definição se completa na ligação com a definição experimental. Note que S não pode ser dada explicitamente a priori, pois é uma função que deve ser especificada para cada tipo de sistema. Assim, a definição dada na Eq. (2) fica plena a partir da definição de temperatura definida pelo processo fenomenológico de mensuração. A grandeza T satisfaz, de fato, todas as características da temperatura como definida experimentalmente e que expressa uma medida de quão quente ou frio um sistema está com relação a outros. Vejamos com algum detalhe como isso ocorre [15[15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009)., 29[29] F.M.S. Lima, Eur. J. Phys. 35, 055017 (2014)., 30[30] F.M.S. Lima, Eur. J. Phys. 36, 068001 (2015).].

A primeira observação é que T, dada na Eq. (2), é uma grandeza intensiva, como experimentalmente observado [31][31] R.A. Alberty, Pure Appl. Chem. 73, 1349 (2001).. Isso provém da definição, uma vez que U e S são extensivas, isto é, funções de estado homogêneas de primeira ordem.

Agora considere um sistema simples isolado, composto de dois subsistemas a e b, de tal modo que o volume e número de moles de cada subsistema sejam mantidos fixos. Vamos admitir que um fluxo de energia se estabeleça entre a e b, de forma que Ua e Ub, as energias dos subsistemas a e b, respectivamente, sofram uma variação, mas com a energia total,

(3) U = U a + U b ,

sendo mantida fixa, uma vez que o sistema está isolado. De acordo com a segunda lei, a entropia S = S(U) é crescente e atinge um máximo no equilíbrio térmico. Além disso, a entropia, como é uma função homogênea de primeira ordem, por definição, pode ser escrita como

S = S a ( U a ) + S b ( U b ) .

Se o sistema atinge o equilíbrio, então

S U a = S a U a + S b U b U b U a = 0.

Usando a Eq. (3), resulta em δUa=-δUb, o que leva a

(4) S a U a = S b U b .

No processo de atingir o equilíbrio térmico, a entropia total do sistema aumenta [16][16] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics (Wiley, New York, 1985)., ou seja δS > 0. Isto conduz a

δ S = δ S a + δ S b = ( S a U a - S b U b ) δ U a > 0.

Se, inicialmente

S a U a > S b U b ,

então δUa>0, logo haverá um fluxo de energia (calor) do sistema b para o sistema a. No caso contrário, se, inicialmente,

S a U a < S b U b ,

então δUa<0, logo haverá um fluxo de energia (calor) do sistema a para o sistema b. Esse processo continua até o equilíbrio. Então, o fluxo de energia (térmica) é regulado pelas quantidades intensivas (funções homogêneas de ordem zero)

T a = ( S a U a ) -1 , T b = ( S b U b ) -1 ,

que são assim interpretadas como as temperaturas dos sistemas a e b, respectivamente, de acordo com os resultados e definições experimentais discutidos na seção anterior.

É importante ressaltar que a condição de equilíbrio, na qual a temperatura se iguala, é característica outra da grandeza introduzida experimentalmente como temperatura; característica que surge na relação de um sistema com outro. Ou seja, esta característica não define o que é temperatura. Procedimento similar pode ser utilizado, para se identificar no formalismo o conceito de pressão, como uma derivada primeira. Através da segunda lei, se estabelece que há um fluxo de energia de um sistema para outro através da realização de trabalho. Esse fluxo ocorre na direção do sistema de mais alta pressão para aquele de mais baixa pressão, até o equilíbrio. Observe que isso teoricamente provém da forma convexa da entropia. Assim como ocorre com a temperatura, a condição de igualdade dos valores das pressões no equilíbrio não é suficiente para definir a grandeza física pressão. O potencial químico é introduzido seguindo o procedimento similar. Essa caracterização física das variáveis intensivas leva à introdução da formulação da termodinâmica em termos dos potenciais termodinâmicos.

Tisza articula de modo preciso, tanto conceitualmente quanto matematicamente, quatro formulações da termodinâmica: a primeira é baseada na chamada equação fundamental, que pode ser escrita tanto na representação da entropia, como na representação da energia. A seguinte, trata da formulação em termos de equações de estado, que estabelece fundamentalmente relações entre as variáveis intensivas. O número preciso dessas equações é deduzido a partir da escolha das variáveis que irão definir o estado do sistema termodinâmico. A terceira formulação é introduzida com os chamados potenciais termodinâmicos, que nada mais são do que a equação fundamental reescrita em termos de um estado do sistema em estudo construído por um conjunto de variáveis mistas. Por exemplo, o potencial chamado energia livre de Helmholtz é uma equação fundamental, na qual o estado é dado pela temperatura, que é intensiva, no lugar da energia, que é extensiva. Para um sistema simples, o estado na formulação de Helmholtz é dado por =(T,V,N); enquanto que em termos da equação fundamental na representação da entropia o estado é dado por =(U,V,N). A consistência entre os diversos potenciais e a equação fundamental se dá através da transformada de Legendre. A quarta formulação surge a partir das chamadas segundas derivadas, com a introdução de quantidades de forte apelo experimental, como calor específico e compressibilidade.

A importância dos procedimentos axiomáticos de Tisza, conforme apresentados aqui através dos cinco elementos constitutivos, deixa transparente o significado da fenomenologia enquanto ontologia da termodinâmica, que é assim formulada sem referência à estrutura (composição) dos sistemas. É essa perspectiva que torna possível aplicar a termodinâmica a uma vastidão de sistemas, cobrindo desde escalas atômicas e subatômicas, em dimensões da ordem de 10−15m como a do próton, em um plasma de quarks e gluons confinados, à escala do universo, da ordem de 1030m. Isso, entretanto, nem de longe torna a termodinâmica um corpo teórico pronto e acabado.

Na época, Tisza desenvolveu sua axiomática a partir de problemas levantados inicialmente por Gibbs; e na solução, seguiu um caminho que foi ao encontro daquele percorrido por Landau e seu grupo, em que toma, como pressuposto para analisar a matéria, aspectos de simetria. Esses e outros avanços que ocorreram com a física térmica no Século XX compõem uma mostra da importância e da dinâmica teórica da termodinâmica, enquanto uma ciência em contrução. Mostra-se, então, importante desenhar historicamente esses avanços para se entender onde se encaixam os trabalhos de Tisza, ao tempo em que se atribui a devida importância àqueles resultados.

Um aspecto central da formulação de Tisza é estabelecer a termodinâmica através de um princípio de extremo, similar ao princípio de ação da mecânica. Isto permitiu a termalização das teorias que foram então sendo contruídas no decorrer do século XX; e mais especificamente a teoria quântica de campos.

Na sequência, evidenciamos a importância do princípio variacional de Tisza na construção da mecãnica estatística. A ênfase será, escapando dos procedimentos mais conhecidos, nos elementos de simetria. Depois traçamos, mesmo que sem detalhes e repetindo alguns passos conhecidos da literatura, parte desses avanços numa perspectiva histórica.

4. A Física Estatística e a Axiomática de Tisza

Nesta seção abordamos de modo breve a associação da axiomátic de Tisza com a estrutura mecânica de um sistema térmico.

De incío, vale esclarecer uma questão sobre nomenclatura. Rigorosamente, temos apenas: a termodinâmica, a teoria dos processos térmicos tratada fenomenologicamente, isto é, sem referência a estrutura do sistema; e a mecânica estatística, a teoria dos fenômenos térmicos, que considera de saída a estrutura dos sistemas em estudo na ligação com as leis da temodinâmica. Entretanto, no caso relativístico das partículas elementares isto foi denominado de "teoria de campos a temperatura finita" e no caso não relativístico, o nome dado, muitas vezes, é teoria de muitos corpos. A base sempre é a consistência da estrutura mecânica na modelagem dos sistemas com as leis da termodinâmica. Por vezes, usamos assim um nome genérico, “física térmica”, uma vez que estamos considerando todas essas teorias e a profusão de nomes.

Uma questão central da termodinâmica é encontrar a equação fundamental ou as equações de estado para um dado sistema térmico. A inspiração para solução provém das teorias mecânicas; ou seja, é possivel encontrar princípios gerais que guiem a modelagem termodinâmica da matéria. Um desses caminhos é explorar o conceito de simetria. Isto pode ser implementado se uma “estrutura” para o sistema em consideração for proposta. Há uma nomenclatura para isto ao referir-se ao sistema termodinâmico como “macroscópico” e a estrutura como “microscópica”. Essa nomenclatura, embora consagrada na literatura, deve ser utilizada com cuidado, pois em algumas situações, o termo “macroscópico” pode significar sistema térmico na escala subatômica. Há, ainda a observar, pelo menos duas formas de se tratar com a estrutura de um sistema termodinâmico: através do conceito de ponto material ou através de um campo. Ambas podem caracterizar a estrutura de um sistema composto por partículas.

Ponto material é um sistema físico (um sistema em movimento) definido como um ponto geométrico, um conceito primitivo, com atributos mecânicos, como inércia (massa), carga elétrica, spin, etc. Na outra direção, um sistema em movimento pode ser descrito por campos. Um campo é um sistema mecânico definido como um atributo físico a pontos do espaço e tempo, com características mecânicas, como inércia, energia, momento, carga, etc. A não localidade e a não redução a pontos materiais são as principais características de um campo, que pode ser clássico, quântico, relativísitco ou não relativístico. Matematicamente um campo é dado por uma uma função de pontos do espaço e tempo, que pode ser escrita como f=f(x,t), onde f expressa a quantidade física, complexa ou real. A quantidade x descreve um ponto no espaço e t é o tempo. O apecto fundamental é que f esteja bem definida conceitualmente e possua, assim, acesso experimental. Isto significa que a natureza matemática de f é dada experimentalmente [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019)..

Um sistema de muitas partículas, descrito como um conjunto de pontos materiais ou por campos, apresenta características próprias da coletividade. Nesta perspectiva é que se introduz conceitos como densidades e graus de liberdade coletivos, estes conduzindo à noção de fônons. Outras características associadas às coletividade incluem as propriedades térmicas, como a temperatura e a entropia.

Considerando um fluído como sistema, sabemos que sua caracterização pode se dar, na visão de Euler, pela especificação do campo de velocidades V(x,t), da equação da continuidade da massa, que expressa a lei de conservação da massa, e duas funções térmicas, que juntas com a equação de estado determinam a terceira função térmica para um fluido simples monocomponente. Entãa}o, a caracterizaçãao teórica de um fluido depende de duas grandezas térmicas (por exemplo, densidade, ρ, e pressão, p) e de três componentes do campo de velocidades; ou seja, no total cinco variáveis.

Na tentativa de incluir na descrição fenomenológica a estrutura do sistema, torna-se necessário proceder com a redução do imenso número de parâmetros microscópicos, para os poucos parâmetros macroscópicos. A descrição do sistema deve então trazer, inicialmente, informações tanto da natureza microscópica quanto macroscópica. Na sequência vamos considerar um sistema de partículas quânticas não relativísticas; entretanto, o argumento se generaliza para qualquer outra teoria do movimento.

O sistema mecânico será especificado, ou descrito, por ρ(t), um operador definido como atuando no espaço de Hilbert com a interpretação de densidade de probabilidade. Desse modo, Trρ = 1, onde o traço, Tr, fica definido através do espaço de definição de ρ, que é chamada de matriz de densidade. A quantidade ρ estabelece o que é o sistema em consideração e, em princípio, especifica seu significado, definido pela noção de probabilidade de pontos do espaço e do tempo. Neste sentido, ρ é um campo. Uma quantidade macroscópica, denotada por A, pode ser dada a partir da correspondente quantidade microscópia, que será nominada A, da seguinte maneira:

(5) A = A = T r ρ ( t ) A .

Um exemplo é a energia interna, U, escrita em termos do Hamiltoniano, ou seja,

(6) U = H = T r ρ ( t ) H .

Dois problemas se colocam nesta estratégia. O primeiro é descobrir a equação de evolução para ρ(t). Neste caso, descortina-se a possíbilidade de se formular a estrutura de sistemas térmicos a partir de simetrias. O segundo problema é encontrar a quantidade A que corresponda a entropia. Vamos iniciar pela equação de movimento [15][15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009)..

A evolução temporal de ρ(t) pode ser encontrada a partir da noção de um grupo unitário a um parâmeto, e por consequência conectado a identidade. Neste caso, vamos denominar o gerador de evolução temporal por L, e escrever o elemento do grupo, na notação usual, como

U ( t , t 0 ) = e - i ( t - t 0 ) L ,

de modo que

ρ ( t ) = e - i ( t - t 0 ) L ρ ( t 0 )

(estamos considerando =1). Isto leva a seguinte equação de evolução

(7) i t ρ ( t ) = L ρ ( t ) .

Para encontrar uma representação explícita para L, alguns elementos dessa construção devem ser observadas.

Note, primeiro, que, como a evolução temporal do sistema é controlada por um grupo de simetria unitário, o gerador L deve ser auto-adjunto. Cabe observar que este resultado não é válido na generalidade, como no caso de processos irreversíveis [32[32] P.T. Muzy, S.R. Salinas, A.E. Santana e T. Tomé, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 447 (2005)., 33[33] T. Tomé e M.J. Oliveira, Stochastic Dynamics and Irreversibility (Springer-Verlag, Berlin, 2015).]. Além disso, esse gerador é um mapeamento linear, ou seja, L:UU, tal que ρU, com U sendo o espaço vetorial definido pelos operadores do tipo ρ, que atuam em um espaço de Hilbert. Neste caso, podemos considerar que L, denominado de um superoperador, satisfaz a regra de Leibniz quando atuando em um produto de operadores, devido a forma diferencial da Eq. (7). Ou seja, dado ρ=ρaρbU, temos Lρ=(Lρa)ρb+ρaLρb. Isto é equivalente a tomar como representação para L aquela induzida pela representação adjunta de uma simetria do espaço-tempo. Neste caso temos várias possibilidades para L[15][15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009)., mas vamos considerar aqui a mais simples, e que no entanto será suficiente para tratar vários sistemas. Definiremos L a partir do Hamiltoniano do sistema, H, por L = [H,.], tal que Lρ=[H,ρ]=Hρ-ρH, que é autoadjunto e que conduz, a partir da Eq. (7), a

(8) i t ρ ( t ) = [ H , ρ ] ;

conhecida como a equação de Liouville-von Neumann. Este caso de representação é interessante pois de imediato podemos pensar na situação estacionária, na qual o equilíbrio térmico é um caso particular, como tρ(t)=0; o que leva a [H,ρ]=0, que tem como solução ρ=ρ(H). A forma explícita de ρ pode ser encontrada pela abordagem do problema de se encontrar a entropia S escrita como um funcional de ρ.

Antes de seguir adiante, vale mencionar neste ponto que ρ pode descrever um sistema térmico em que sua estrutura é regida pela mecânica clássica. Neste caso, o traço deve ser substituído por uma integral no espaço de fase 2N-dimensional, Γ. Por sua vez, ρ, assim como os observáveis, é também uma função em Γ, de tal modo que a média fica dada por

(9) A = A = ρ A d τ N ,

onde A é um observável escrito em termos de N vetores posição, q=(q1,....,qN) e N vetores momentos, p=(p1,....,pN), aqui designados por τN=(q,p). Desse modo, ρ(t)=ρ(τN)=fN(q,p;t) é a densidade de probabilidade clássica. A representação adjunta classicamente equivalente leva a L ser escrito na forma

(10) L = i { H , . } = i H q p - i H p q ,

em que {.,.} é o parênteses de Poisson.

Em resumo, a grandeza ρ é a densidade de probabilidade clássica ou quântica e L o Liouvilliano clássico ou quântico, respectivamente.

Para descrever a termodinâmica, um postulado para definir a entropia em termos de quantidades microscópicas deve ser introduzido.Podemos considerar, por consistência, que a entropia seja dada por

(11) S = T r ρ S ,

com

(12) S = - k B ln c ρ ,

onde a constante c fixa a unidade (no caso quântico c=1) e kB é a constante de Boltzmann. Este postulado adequa-se consistentemente com a entropia, definida fisicamente pela termodînâmica através da segunda lei. Ou seja, S na Eq. (12) já possui significado físico. A consistência da definição dada na Eq. (12) pode ser avaliada através da extensividade entropia, da seguinte maneira. Dado dois sistemas independentes, rotulados por “a” e “b”, tal que ρ=ρaρb, então, usando a Eq. (12) na Eq. (11), segue que S=Sa+Sb.

No caso do equilíbrio, a entropia S deve ser um máximo, ou seja, δS = 0, com

(13) S = - k B T r ρ ln ρ .

Assim, há um problema variacional, que conduz a uma equação de condição para ρ. A solução dessa equação de condição conduz a uma expressão geradora para ρ descrevendo estados de equilíbrio térmico.

A situação é semelhante à dedução das equações de Euler-Lagrange das mecânicas, onde a condição de extremo para a ação conduz a uma equação de condição para a Lagrangiana. Há aqui um problema variacional com vínculos, que descrevem condições gerais sobre o sistema, como a normalização de ρ. As consequências disso são exploradas a seguir.

5. O Princípio de Extremo de Tisza e os Ensembles de Gibbs-Einstein

Consideremos um sistema que possa trocar energia com o meio exterior. Inicialmente vamos abordar o caso clássico. O problema, então, se traduz em encontrar o extremo de S, δS = 0, com

(14) S = - k B f N ln c ρ d τ N ,

tendo que satisfazer os vínculos

(15) ϕ 1 = f N d τ N - 1 = 0

e

(16) ϕ 2 = H N f N d τ N - U = 0 ,

sendo HN o hamiltoniano do sistema de N partículas. O sistema interage fracamente com o meio exterior, o termostato, de maneira que em HN o termo de interação das partículas do sistema com o termostato possa ser desprezado. A condição de vínculo ϕ1, Eq. (15), expressa a normalização. O vínculo dado pela Eq. (16) fixa o valor de equilíbrio térmico da energia interna. Observe que isto é uma imposição física, pois ocorre macroscopicamente no equilíbrio.

Utilizando o método dos multiplicadores de Lagrange, temos

δ { d Γ N ( α 0 f N + α U H N f N - k B f N ln c f N ) } = 0 ,

onde α0 e αU são os multiplicadores de Lagrange associados aos vínculos dados na Eq. (15) e Eq. (16), respectivamente. Segue, então, que

(17) α 0 + α U H N - k B - k B ln c f N = 0 ;

o que conduz a

(18) f N = 1 c exp [ α 0 k B - 1 + α U k B H N ] .

Os dois multiplicadores de Lagrange α0 e αU são determinados pelos vínculos, Eq. (15) e Eq. (16), o que leva a

(19) 1 c exp ( α 0 k B - 1 ) d Γ N exp ( α U k B H N ) = 1 .

Vamos definir

(20) Z = exp ( α 0 k B - 1 ) -1 = 1 c d Γ N exp ( α U k B H N ) ,

denominada função de partição. Esta Eq. (20) explicita a dependência de α0, ou Z, em termos de αU. Agora, vamos multiplicar a Eq. (20) por fN e integrar, utilizando a segunda equação de vínculo. Isso conduz a

k B d Γ N f N ln c f N = ( α 0 - k B ) d Γ N f N + α U d Γ N H N f N ;

que é reescrita como

(21) - k B ln Z + α U U + S = 0 ,

para a qual foram usadas as Eqs. (14), (15) e (16). Considerando que a energia livre de Helmholtz, F, é dada por

(22) F = U T S , ou 1 T F 1 T U + S = 0 ,

o significado físico dos multiplicadores de Lagrange fica estabelecido; ou seja,

(23) F = k B T ln Z , ou Z = e β F ; β = 1 k B T

e

(24) α U = - 1 T .

Assim em resumo segue

(25) Z = 1 c d Γ N e - β H N

e

(26) f N ( τ N ) = 1 c Z e - β H N .

Esta expressão é denominada de Ensemble Canônico. Os dois elementos básicos nesta dedução foram o uso de simetrias do espaço-tempo (aqui apenas parcialmente exploradas) e do princípio variacional de Tisza. Devido a esta generalidade é que esses procedimentos podem ser utilizados em contextos diversos.

Para a mecânica quântica, fN é trocada pela matriz de densidade e a integral no espaço de fase é substituída pelo traço no espaço de Hilbert. O Hamiltoniano clássico passa a ser um operador. Esse procedimento será também válido para qualquer teoria de campos com um Hamiltoniano bem definido. Disso é que resulta a noção de um campo térmico.

Podemos incluir outros vínculos, no cálculo do procedimento variacional introduzido pela segunda lei. Por exemplo, podemos considerar também, além daqueles dados pelas Eqs. (15) e (16), a média constante do número de partículas. Isso leva ao ensemble grande-canônico. Considerando, por vez, somente o vínculo dado pela Eq. (15), encontra-se o ensemble micro-canônico[34][34] S.R.A. Salinas, Introduction to Statistical Physics (Springer-Verlag, Berlin, 2001)..

Para encerrar esta seção, é importante salientar que a mecânica estatística fica então introduzida por características gerais de simetria, em associação com o princípio variacional de Tisza e com a descrição do sistema térmico dada por uma probabilidade. Isso generaliza o procedimento, historicamente importante, de se introduzir os Ensembles a partir de supostos estados microscópicos compatíveis com a fenomenologia da termodinâmica. Este procedimento, que aparece em diversos textos didáticos, fica limitado pela impossibilidade de generalização para sistemas descritos por campos quânticos ou ainda em situações fora do equilíbrio. O procedimento variacional de Tisza é que foi utilizado nas teorias de campos, assim como foi, por exemplo, empregado por Zubarev para descrever processos fora do equilíbrio [35[35] D.N. Zubarev e M.V. Tokarshuk, Theor. Math. Phys. 88, 876 (1991). [36] L.M. Silva, A.E. Santana e J.D.M. Vianna, Braz. J. Phys. 27, 619 (1997).-37[37] R. Luzzi, A.R. Vasconcelos e J.G. Ramos, Predictive Statistical Mechanics: A nonequilibrium Ensemble Formalism (Kluwer, Dordrecht, 2002).].

6. Desenvolvimentos da Física Térmica no Século XX

No Século XX, uma primeira generalização da termodinâmica ocorre logo na primeira década, com a publicação da teoria da relatividade restrita. Einstein e, em seguida, Planck conduzen a construção da termodinâmica para situações relativísticas [38[38] A. Einstein, Jahrb. Radioakt. Elektron. 4, 411 (1907). [39] M. Planck, Ann. Phys.(Leipzig) 26, 1 (1908). [40] R.C. Tolman, Relativity, Thermodynamics and Cosmology (Claredon Press, Oxford, 1934).-41[41] M. Khaleghy e F.Qassemi, Arxiv: physics/0506214v2 (2006).]. Cerca de duas décadas depois, Landau empreendia outro avanço notável à termodinâmica, com efetivo impacto em toda a física subsequente.

Partindo de argumentos gerais de simetria, Landau, e depois junto com seus colegas de trabalho, como Lifshitz, Ginzburg e Pitaeviskii, desenvolveu um estudo geral sobre transições de fase e introduziu a noção de parâmetro de ordem e quebra espontânea de simetria, para analisar os fenômenos críticos da matéria [4[4] L.D. Landau, Phys. Z. Sowjet, 11, 545 (1937). [5] V.L. Ginzburg e L.D. Landau, Zh. Eksp. Teor. Fiz. 20, 1064 (1950).-6[6] L.D. Landau e E.M. Lifishtz, Statistical Physics (Pergmon Press, London, 1958).]. Isso os conduziu, naturalmente, a utilizar os métodos da teoria quântica de campos, teoria típica da física de partículas elementares relativísticas, ligados à termodinâmica. Enquanto a teoria de Landau inicialmente é uma teoria de campos médio, sua generalização para o tratar supercondutores levou a uma teoria fenomenolígica geral na região crítica [10][10] A.L. Fetter e J.D. Walecka, Quantum Theory of Many-Particles Systems (McGraw-Hill, New York, 1971).. A noção de flutuação das variáveis termodinâmicas é aqui fundamental, e é este um dos pontos centrais na axiomática de Tisza (ver o trecho da argumentação de Tisza citado na Introdução deste trabalho).

Os interesses básicos do grupo soviético naquele período eram particularmente sistemas magnéticos, supercondutividade e superfluidez. No caso da supercondutividade, o parâmetro de ordem, estabelecendo a fase supercondutora, é dado por um campo complexo, ϕ(x). Do mesmo modo que a magnetização, para um sistema não-homogêneo, é descrita como um campo vetorial real, M(x). As flutuações desempenham uma papel fundamental para as funções de correlações desses campos. Um modo de levar em conta essas flutuações é utilizar uma função geratriz, que corresponde, precisamente, ao método de quantização de um campo quântico [42[42] S. Doniach e E.H. Sondheimer, Green's functions for solid state physicists (W. A. Benjamin, London, 1974)., 43[43] D.J. Amit, Field Theory, the Renormalization Group, and Critical Phenomena (World Scientific, Singapura, 1984).]. O reverso, do ponto de vista conceitual, estava dado: as noções de quebra espontânea de simetria e restauração de simetria foram utilizadas em física de partículas elementares, para se abordar, por exemplo, a natureza das transições quirais e o mecanismo de geração de massa de uma partícula; isto levou ao bóson de Higgs, que somente recentemente fora observado [7][7] R.A. Salmeron, III Escola de Física Roberto A. Salmeron: Transição de Fase e Quebra Espontânea de Simetria (LF Editorial, São Paulo, 2017), v. 1.. Devido à importância, a descrição da estrutura dos sistemas físicos termodinâmicos é desenvolvida a cada avanço e se ajusta às descrições fenomenológicas, no equilíbrio ou fora do equilíbrio termodinâmico.

Como temos visto, a termodinâmica trata dos sistemas físicos sem referência às suas estruturas; isto é, prescinde da noção de composição do sistema em estudo. Assim, o conjunto das variáveis térmicas, como temperatura e entropia, e as leis da termodinâmica, são definidos per se. Quando é possivel associar a estrutura dos sistemas aos conceitos térmicos, avanços formidáveis ocorrem. Mas isso nem sempre é possível de imediato, pelo menos. Por exemplo, as definições termodinâmicas precisam estar bem formuladas, do ponto de vista fenomenológico, para que se possa encontrar sentido na análise do efeito de temperatura em um plasma de quarks e gluons, que se manifesta em regiões da ordem do diâmetro de um próton, com a estrutura sendo descrita por uma mecânica de campos quânticos relativísticos [44[44] T. Muta, Foundations of Chromodynamics (W. Scientific, Singapore, 1987). [45] D. Bailin e A. Love, Introduction to Gauge Field Theory (IoP and Univ. of Sussex Press, Bristol, 1993). [46] A. Smilga, Lectures on QCD (World Scientific, Singapore, 2001).-47[47] H. Fritzsch e M. Gell-mann, 50 Years of Quarks (World Scientific, Singapore, 2015).]. Quando há esse ajuste, do aspecto fenomenológico do sistema físico com a descrição mecânica da estrutura, encontra-se a plenitude da descrição dos sistemas térmicos, e novas definições conceituais são introduzidas, como a de um campo quântico térmico [11[11] J.I. Kapusta, Finite-Temperature Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1989). [12] H. Umezawa, Advanced Field Theory: Micro, Macro and Thermal Physics (AIP, New York, 1993).-13[13] M.L. Bellac, Thermal Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996).].

A consagração da teoria quântica de campos a temperatura finita acontece através de um percurso histórico intricado, que se inicia com as primeiras teorias quânticas, e que tem nas suas origens os trabalhos da axiomatização da termodinâmica por Lásló Tisza, encontrando a consagração através do amadurecimento do seu significado algébrico e o estabelecimento de teorias de representações. Mesmo que de modo simplificado, vale o dígito desenhar aqui a sequência histórica dos pontos básicos desse desenvolvimento.

Os trabalhos pioneiros nessa direção remontam a Maxwell e Boltzmann, na passagem do século XIX para o século XX. Esses trabalhos explicitam a importância do conceito de partícula (estrutura) em associação com os processos térmicos, em uma disputa não trivial contra a visão dos chamados energeticistas, liderados por Ernst Mach e Wilhelm Ostwald [48][48] S.B. Volchan e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ens. Fis. 23, 19 (2001).. A primeira síntese teórica surge com os trabalhos de Gibbs, que sistematiza o que passou a ser denominado de mecânica estatística clássica, tendo como conceito básico a noção de ensemble de Einstein e Gibbs. É nesse contexto que a axiomática de Tisza cumpre um papel fundamental, e que viabiliza todo o desenvolvimento subsequente da física térmica.

Historicamente, a segunda lei da termodinâmica se funda nos enunciados de Kelvin-Planck e Clausius. Este introduz a função de estado que denominou “entropia” (do grego, entropêe: mudança, processos), como resultado do conhecido teorema de Clausius. Como vimos, na axiomatixação de Tisza, a entropia é introduzida através de um princípio de extremo. Com os métodos dos ensembles de Gibbs-Einstein e do princípio de extremo de Tiza, é possível introduzir a noção de um campo quântico térmico, um processo que se inicia com Planck e a radiação de corpo negro. Planck promove, de fato, uma quantização primitiva do campo eletromagnético, a temperatura finita, um processo que leva à mecânica quântica, estabelecida em 1925 [21][21] L.A.C. Malbouisson e A. E. Santana, Ciência e Sociedade 2, 8 (2014)..

Com o advento da mecânica quântica, surgia a necessidade de se contruir a mecânica estatística quântica, para analisar os efeitos térmicos nas escalas atômicas. Os primeiros e decisivos avanços foram dados por von Neumann e Landau que introduziram a noção de matriz de densidade, associada aos processos de equilíbrio termodinâmico quântico. Esses resultados foram desde então utilizados nos estudos de uma variedade inédita de sistemas como a supercondutividade e superfluidez, utilizando conceitos novos – tanto de importância prática, como teórica –, como condensados de Bose-Einstein, e estados não-clássicos da radiação termalizados, entre outros [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019)..

Simultaneamente, após o trabalho pioneiro de Dirac sobre a eletrodinâmica quântica [49][49] P.A.M. Dirac, Proc. Royal Soc. A114, 243 (1927)., abriu-se o caminho para unificação da mecânica quântica com os postulados da relatividade restrita. Esta teoria passou a ser chamada de teoria quântica de campos. (Talvez tivesse sido mais interessante se a física tivesse adotado o nome do clássico livro de Bjorken e Drell: “mecânica quântica relativística” [50][50] J.D. Bjorken, e S.D. Drell, Relativistic Quantum Mechanics (McGraw-Hill, New York, 1965)..) Mais de duas décadas depois dos resultados de Dirac, a teoria é firmemente estabelecida com os trabalhos de Feynman, Tomonaga and Schwinger entre outros, e alcança a plenitude conceitual na década de 1950 com Yang e Mills, sistematizando, com o apelo de simetrias, a emergência das interações elementares, através dos campos de calibre (gauge) abeliano e não abeliano. Paralelamente, uma primeira classificação de partículas elementares é empreendida pos Wigner, com o seu trabalho sobre representações do grupo de Lorentz de 1939 [51][51] E.P. Wigner, Ann. Math. 40, 149 (1939).. Quase duas décadas depois, surgiam os conceitos de quark e gluon [47][47] H. Fritzsch e M. Gell-mann, 50 Years of Quarks (World Scientific, Singapore, 2015).. Com os trabalhos de Yang-Mills, estava definido o caminho do modelo padrão da física de partículas elementares. Este foi o trilho da formulação geral da teoria quântica, relativística ou não relativística [52][52] S. Weinberg, The Quantum Theory of Fields (Cambridge University Press, Cambridge, 1995), v. I..

O substrato ontológico dessa construção é a mensuração e o uso de simetrias do espaço-tempo e de calibre. O espaço de representação para a construção da teoria consistente e geral é o espaço de Fock (que é uma generalização do espaço de Hilbert). Este espaço incorpora aspectos de simetrias, que levam à classificação geral das partículas em bósons e férmions, e dá origem a uma série de conceitos novos como o de quasi-partículas, fônons e condensados. As formulações iniciais da teoria quântica, baseadas no espaço de Hilbert usual, como as equações de Schrödinger para bósons de spin zero ou a equação relativítica de Dirac, descrevendo partículas de spin 1/2, são apenas aproximações das teorias formuladas no espaço de Fock. Qualquer que seja o caso da simetria espaço-temporal ou do tipo de representação, um aspecto geral é que a teoria quântica é uma teoria de campos. Isso não é evidente nas situações mais simples, estudadas nos textos básicos, pois a linguagem utilizada é impregnada do conceito de ponto material. Isso cria dificuldades conceituais em inúmeros casos, como por exemplo a descrição conceitual do elétron num orbital molecular [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019)..

A teoria quântica de campos vai além de alguns conceitos que a própria mecânica quântica não relativística implementou e discutiu por longo tempo. Por exemplo, a discussão sobre a natureza corpuscular (de ponto material, Newtoniano) ou ondulatória das partículas elementares fora suplantada por se assumir a descrição ondulatória (de um campo), capaz de compatibilizar-se com a descrição corpuscular. Embora, parte significativa dessa discussão tenha sido conduzida na perspectiva filosófica de se estabelecer ontologicamente o conceito de campo ou de ponto material, na perpectiva da praxis da física, a ontologia está no procedimento de medida. Este aspecto é pouco explorado entre os físicos (e também entre filósofos) pois a mensuração na física é dada paradigmaticamente [23][23] A.E. Santana, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20180145 (2019)..

A construção da teoria quântica de campos levou também à questão da conexão com a termodinâmica, relativística e não relativística, no equilíbrio e não equilíbrio. Na perspectiva do não equilíbrio termodinâmico, os avanços se deram na direção da teoria cinética quântica. Neste caso, um imenso esforço foi conduzido, com a mira em problemas práticos da geo-politica do pós-guerra, como a física de plasma e o controle do núcleo. Físicos soviéticos ganharam notoriedade, e dentre os quais vale citar os trabalhos de Bogoliubov, Zubarev, Fradikin, Hugenholtz, entre outros [15][15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009).. Na Europa atlântica, um dos principais grupos foi organizado por Prigogine, na Bélgica, do qual emergiu linhas de pesquisa como os chamados sistemas complexos e a formulação da teoria cinética em termos de diagramas de Feyman, a conhecida dinâmica de correlações; esta teoria é por certo o mais efetivo método de dedução de equações cinéticas clássicas e quânticas não relativísticas [24][24] R. Balescu, Equilibrium and Nonequilibrium Statistical Mechanics (Wiley, New York, 1975).

Sobre este aspecto, é importante destacar que, trabalhando no grupo de Bruxelas, nos primeiros anos da década de 1950, Schönberg generalizou o conceito de espaço de Fock [53[53] M. Schönberg, N. Cimento 9, 1139 (1952). [54] M. Schönberg, N. Cimento 10, 419 (1953).-55[55] M. Schönberg, N. Cimento 10, 697 (1953).], para descrever, por exemplo, os processos de reação química mesmo num processo puramente clássico. Naqueles trabalhos, estudou a representação do grupo de Galilei, neste espaço de Fock definido sobre o espaço de fase – espaço de Fock-Schönberg [15[15] F.C. Khanna, A.P.C Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Thermal Quantum Field Theory: Algebraic Aspects and Applications (World Scientific, Singapore, 2009)., 32[32] P.T. Muzy, S.R. Salinas, A.E. Santana e T. Tomé, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 447 (2005).]. Este tipo de representação foi posteriormente associada como a contrapartida clássica da estrutura algébrica das teorias de campos a temperatura finita, as c*-algebras e os grupos-térmicos de Lie, encontrados inicialmente para o equilíbrio térmico [56[56] O. Bratteli e D.W. Robinson, Operator Algebras and Quantum Statistical Mechanics (Springer-Verlag, Berlin, 1987), v. I, v. II., 57[57] F.C. Khanna, A.P.C. Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Phys. Rep. 539, 135 (2014).].

No contexto térmico-quântico do equilíbrio, Matsubara em 1955 [58][58] T. Matsubara, Prog. Theor. Phys. 14, 351 (1955). conecta a função de Green da teoria quântica com a função de partição, da mecânica estatística. Utilizou para isso o conceito de rotação de Wick no eixo temporal, que passa ser complexo. Por esse motivo o método ficou conhecido como formalismo do tempo imaginário. Este expediente permitiu a generalização dos diversos métodos, como técnicas perturbativas, diagramáticas e renormalização, previamente desenvolvidos a temperatura nula, para o caso de temperatura finita. Estas idéias apontavam a direção de se termalizar as teorias de campos para se estudar os efeitos térmicos no âmbito das partículas elementares; esta generalização foi conduzida em um trabalho por Ezawa, Tomozawa and Umezawa, em 1957, trabalho que é por vezes denominado de o artigo dos três Zawas , dada sua importância e originalidade [59][59] H. Ezawa, Y. Tomozawa e H. Umezawa, N. Cimento 5, 810 (1957).. Cabe destaque a alguns aspectos desse trabalho e algumas de suas consequências para a física de partículas elementares. Na perspectiva do desenvolvimento dos conceitos e idéias da física, a teoria da resposta linear fora pela primeira vez apresentadas neste artigo dos Zawas, e na sequência redescoberta e explorada por Kubo [60][60] R. Kubo, J. Phys. Soc. Jpn. 12, 570 (1957).. Um outro resultado conceitualmente importante é o que passou a ser denominado de condições KMS (Kubo-Martin-Schwinger) [61[61] P. C. Martin e J. Schwinger, Phys. Rev. 115, 1342 (1959)., 62[62] R. Haag, N.M. Hugenholtz e M. Winnink, Comm. Math. Phys. 5, 215 (1967).], com profundas implicações algébricas e topológicas [57[57] F.C. Khanna, A.P.C. Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Phys. Rep. 539, 135 (2014)., 63[63] L.H. Ford e T. Yoshimura, Phys. Lett. A 70, 89 (1979).]. Firmava-se assim a teoria quântica de campos a temperatura finita.

Um rápido desenvolvimento se seguiu; e outro resultado notável foi deduzido por Dolan e Jackiw [64][64] L. Dolan e R. Jackiw, Phys. Rev. D 9, 3320 (1974)., que demonstraram os procedimentos de quebra espontânea e restauração de simetria à temperatura finita. Outros tantos estudos, particularmente em cromodinâmica na rede, mas também resultados analíticos com teorias efetivas, levaram a um entendimentos satisfatório para a descrição de um plasma de quarks e gluons a temperatura finita, com fortes evidencias experimentais [11[11] J.I. Kapusta, Finite-Temperature Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1989)., 13[13] M.L. Bellac, Thermal Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996).]. Por exemplo, a constante de acoplamento para os mésons π , σ , w e ρ vai a zero para uma certa temperatura crítica, respectivamente dadas por: Tcπ=360 MeV, Tcσ=95 MeV, Tcw=175 MeV e Tcρ=200 MeV. Resultados que estimulam em particular o desenvolvimentos de modelos simplificados, descrevendo setores específicos do modelo padrão [11[11] J.I. Kapusta, Finite-Temperature Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1989)., 13[13] M.L. Bellac, Thermal Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996).].

Os métodos perturbativos associados com a teoria quântica de campos e física de partículas para processos do não-equilíbrio foram desenvolvidos em diferentes contextos, e um marco foram os trabalhos de Schwinger, Mahantapa e Keldysh [61[61] P. C. Martin e J. Schwinger, Phys. Rev. 115, 1342 (1959)., 65[65] K.T. Mahanthappa, Phys. Rev. 126, 329 (1962). [66] P.M. Bakshi e K.T. Mahanthappa, J. Math. Phys. 4, 1 (1963). [67] P.M. Bakshi e K.T. Mahanthappa, J. Math. Phys. 4, 12 (1963).-68[68] L.V. Keldysh, Sov. Phys. JETP 20, 1018 (1965), Zh. Éksp. Teor. Fiz, 47, 1515 (1964).]. A despeito da forte contribuição de Mahantapa, o formalismo ficou conhecido na literatura como método de Keldysh-Schwinger. Nesta teoria, uma duplicação nos graus de liberdade ocorre naturalmente, de tal modo que as funções de Green termalizadas são representadas por matrizes 2 × 2 [13[13] M.L. Bellac, Thermal Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996)., 69[69] P. Millington, Thermal Quantum Field Theory and Perturbative Non-Equilibrium Dynamics. Tese de Doutorado, University of Manchester, Manchester, 2012).]. Esta duplicação, considerada uma fato natural entre as teorias térmicas, fora reencontrada por Takahashi e Umezawa [12[12] H. Umezawa, Advanced Field Theory: Micro, Macro and Thermal Physics (AIP, New York, 1993)., 70[70] Y. Takahashi e H. Umezawa, Coll. Phenomena 2, 55 (1975).] em uma reformulação do método de tempo-imaginário baseada em termos de operadores lineares e uma duplicação do espaço de Hilbert original. A formulação de Takahashi and Umezawa é conhecida como Dinâmica dos Campos Térmicos (do inglês: Thermofield Dynamics). Esse método deu origem aos estudos de representações de grupos de simetria no contexto da física térmica [71][71] A.E. Santana e F.C. Khanna, Phys. Lett. A. 203, 68 (1995)., com as noções de grupo-térmico ligada às c*-álgebras e às teorias toroidais [57][57] F.C. Khanna, A.P.C. Malbouisson, J.M.C. Malbouisson e A.E. Santana, Phys. Rep. 539, 135 (2014)..

A despeito desses desenvolvimentos, uma teoria geral sobre os processos de não-equilíbrio resiste a uma abordagem unificada. Os avanços ocorrem a partir do desenvolvimento da fenomenologia dos processos estocásticos, que se revelam promissores em várias direções [33][33] T. Tomé e M.J. Oliveira, Stochastic Dynamics and Irreversibility (Springer-Verlag, Berlin, 2015)..

7. Conclusões

Neste trabalho revisitamos as contribuições de Tisza sobre axiomatização da termodinâmica e sua subsequente conexão com os desenvolvimentos da física térmica no século XX. Para este propósito reconstituímos a axiomática de Tisza a partir de cinco elementos constitutivos. A teoria de Tisza está em conexão estreita com os métodos de Gibbs e da teoria de transição de fase de Landau e seu grupo, na qual conceitos como parâmetro de ordem e quebra espontânea de simetria foram introduzidos. Os trabalhos de Tisza cumprem um papel significativo para a física térmica, principalmente para o desenvolvimento das teorias quânticas de campos a temperatura finita. Esses desenvolvimentos evidenciam o processo evolutivo (não estático) das teorias térmicas, como toda teoria física, em particular quando se considera as situações do não-equilíbrio.

A despeito da apresentação pedagógica de Callen da axiomática de Tisza sobre a física térmica do equilíbrio, muitos textos didáticos insistem em apresentações baseadas em elementos históricos da termodinâmica e da física estatística; mas isso conduz, em várias situações, à confusão conceitual. De fato, é comum em textos básicos definir a temperatura como “grau de agitação de moléculas” e entropia como o grau de aleatoriedade das moléculas. No caso da temperatura, essa suposta definição, por não ser uma definição, chega a ser às vezes inútil. Vejamos um exemplo. Não se conhece a estrutura dos chamados buracos negros; entretanto, graças a axiomática de Tisza, é possível se introduzir noções como temperatura e entropia de buracos negros, pelo menos teoricamente. Nesse caso, temos de utilizar a definição de temperatura e entropia a partir da estrutura axiomática da termodinâmica, na qual as quantidades físicas estão definitas no contexto da fenomenologia, sem referência a estrutura dos sistemas físicos. Em outra direção, é usual a textos básicos definir temperatura a partir do conceito de equilíbrio térmico. Mas neste caso, os autores não definem o que é o estado termodinâmico de um sistema, e a confusão conceitual persiste. Num caso ou noutro dessas definições, a conceitualização básica sobre o significado de temperatura, como uma medida de quente e frio, tomados como conceitos primitivos, não se manifesta.

A importância de se compreender a construção das leis da fenomenologia, com definições precisas das variáveis e dos procedimentos de medida, fica evidente com os problemas em aberto, tanto no equilíbrio, como no não-equilíbrio. Nesta situação, o entendimento da formulação de Tisza, em particular com seu princípio de extremo e a noção de flutuação, considerando os cinco elementos constitutivos aqui elaborados, é um procedimento estratégico. Dentre os elementos constitutivos identificados, as relações causais entre os estados térmicos conduzem às três lei da termodinâmica. Contudo, a natureza explícita dessa causalidade não foi abordada em detalhe. Isto será será considerado em outro trabalho.

Agradecimentos

Os autores agradecem: ao Prof. Fábio M. S. Lima pelas discussões e leitura crítica deste trabalho, seguida de diversas sugestões; e a arbitragem, pela cuidadosa leitura, sugestões e referências sugeridas. Este trabalho recebeu apoio finaceiro parcial do CNPq através de bolsa de Produtividade em Pesquisa dos autores.

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Disponibilidade de dados

Citações de dados

M. Khaleghy e F.Qassemi, Arxiv: physics/0506214v2 (2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2017
  • Revisado
    26 Nov 2018
  • Aceito
    28 Nov 2018
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