RESUMO
no presente artigo, reportamos sobre uma pesquisa qualiquantitativa em 922 pronunciamentos — notas taquigráficas — do Deputado Federal Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados no período de 2000 a 2018. Como objetivos, pretendemos analisar (i) a presença de itens lexicais religiosos e militares na retórica do ódio bolsonarista ao longo desse recorte cronológico e (ii) a “virada moral” no discurso político do parlamentar, quando, a partir de 2011, passa a associar a homossexualidade à pedofilia. Para tanto, ancoramo-nos em uma metodologia de análise lexical, aproximando a Linguística de Corpus da Antropologia Linguística. Nesse intuito, distribuímos os dados em dois subcorpora, de 2000 a 2010 e de 2011 a 2018, tendo como parâmetro, em um primeiro momento, descrever o contraste diacrônico nas ocorrências de 20 palavras-chave, divididas em dez para o Discurso religioso e dez para o militar, e, em um segundo, explicar o funcionamento da entextualização do signo “pedofilia” na (re)organização da relação entre discurso de ódio, homofobia e pânico moral nas falas do político. Os pronunciamentos foram processados no programa AntConc e no Excel. A partir de 2011, o Discurso bolsonarista se associa ao moralismo religioso, equilibrando o uso de léxicos do Discurso ultraconservador militar e do Discurso fundamentalista cristão.
bolsonarismo; análise qualiquantitativa; extrema direita; discurso de ódio
ABSTRACT
In this article, we aim to carry out a qualitative-quantitative investigation of 922 shorthand notes of Federal Deputy Jair Bolsonaro´s speeches in the Chamber of Deputies from 2000 to 2018. As objectives, we analyze (i) the presence of religious and military lexical items in the hatred rhetoric of Bolsonaro throughout this chronological segmentation and (ii) the “moral turn” in his political discourse, when, from 2011 on, he starts to associate homosexuality with pedophilia. To do so, we anchored ourselves in a lexical analysis methodology, bringing Corpus Linguistics closer to Linguistic Anthropology. To that end, we distributed the data into two sub-corpora, from 2000 to 2010 and from 2011 to 2018, having as a parameter, firstly, to describe the diachronic contrast in the occurrences of 20 keywords, divided into 10 for the religious discourse and 10 for the military, and, secondly, to explain the reentextualization of the sign “pedophilia” in the (re)organization of the relationship between hate speech, homophobia and moral panic in the speeches of the politician. The pronouncements were processed in the AntConc program and in Excel. From 2011 on, the Bolsonarist discourse begins to balance the use of lexicons from the ultraconservative military discourse and the Christian fundamentalist discourse.
bolsonarism; quali-quantitative analysis; far right; hate speech
Considerações iniciais
De acordo com Moita Lopes e Pinto (2020)MOITA LOPES, L. P.; PINTO, J. P. Colocando em perspectiva as práticas discursivas de resistência em nossas democracias contemporâneas: uma introdução. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 59, n. 3, p. 1590-1612, 2020., em análise de algumas das principais ações antidemocráticas em democracias consolidadas no mundo, é possível perceber um movimento de extrema direita orquestrado globalmente, que, apesar das singularidades dos a(u)tores e contextos nacionais, demonstra sincronia e estratégias comuns.
Em nosso trabalho, tendo em vista tal fragilização da democracia, focaremos na questão dos discursos de ódio contra a homossexualidade e nos processos contínuos de recontextualização de tais discursos, tomando por base empírica os pronunciamentos do Deputado Federal Jair Bolsonaro no período de 2000 a 2018. Na investigação, temos por objetivo avançar no entendimento de três aspectos fundamentais para compreender o refluxo reacionário contemporâneo, a saber: a interface entre ultraconservadorismo militar e fundamentalismo cristão no discurso político da extrema direita brasileira; a relação entre linguagem e performatização da violência em discursos de ódio; e a intensificação dos temas morais na política brasileira contemporânea a partir da década de 2010.
O corpo conservador: entre a segurança nacional e a defesa da moral (1985 a 2018)
Segundo Alonso (2018)ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55., se em fins da década de 1980, quando se inicia a Nova República brasileira, havia demandas sociais por cidadania política, em 2018, as ruas estavam tomadas por cidadãos clamando por justiça divina, família patriarcal e nacionalismo bélico. Apesar das fragilidades da abertura democrática — lenta, gradual e restrita —, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) passava a garantir direitos e justiça social (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.).
“Esse horizonte normativo vem esboroando desde os protestos anticorrupção de 2011, quando as ruas deram pistas de que parte do país preferia outro rumo. A árvore ultraconservadora deu seu maior fruto agora, mas não é nova”, ressalta Alonso (2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55., p. 54), relembrando que já em 1989 o presidenciável Enéas Carneiro (PRONA) representava a extrema direita brasileira, tendo conseguido a 3ª colocação em 1994. Apesar de ter perdido espaço em 1998, seu legado foi determinante para que novos nomes viessem a ocupar esse lugar. Anthony Garotinho (PDT), com um discurso vinculado a Deus e Pátria, conseguiu 17% dos votos em 2002, novamente o 3º lugar. Em 2006, o fundador da Democracia Cristã (DC), Eymael, representou o campo, mas sem tanto sucesso. Em 2010, juntamente com Levy Fidelix (PRTB) e Pastor Everaldo (PSC), também presentes em 2014, Eymael almejou mais uma vez angariar o eleitorado conservador focando na moral e nos bons costumes. Esse trajeto eleitoral, apesar de irregular, demonstra-se consistente e fundamental para que, em 2018, nacionalismo beligerante, antielitismo e moralismo hierarquizador elegessem Bolsonaro (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.).
O primeiro desses aspectos emerge em 2011. Com o início dos protestos anticorrupção, houve o recrudescimento do uso de símbolos nacionais no espaço público, como o hino, a bandeira e suas cores. Essa simbologia plena de binarismos está presente na oposição entre nacionalistas e globalistas, que ressignifica a ameaça comunista da Guerra Fria no contexto multipolar contemporâneo; entre pátria e classes, em que a primeira pauta-se na estratificação e homogeneização nacional, prescindindo de quaisquer divisões internas que possam legitimar conflitos, além de reduzir as diferenças sociais a talento e esforço individuais; e entre pátria e partidos políticos, isto é, entre a verdade absoluta e os debates ideológicos (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.).
O bolsonarismo encarna também uma espécie de antielitismo ao opor a elite “esnobe” e “intelectualizada” ao “homem comum” de classe média. “Esse éthos do homem comum não se ancora no carisma de líder excepcional. Ao contrário, se enraíza na representatividade. Sua força emana do compartilhamento de hábitos com a média dos brasileiros” (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55., p. 51). Postando-se como homem à antiga, pai de família e líder do clã Bolsonaro, o deputado é reconhecido como “mito”, aquele que “é gente como a gente” (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55., p. 51).
As igrejas evangélicas têm importância central no moralismo hierarquizador. No espaço público, buscam dominar, principalmente, pautas vinculadas à educação, como o Escola Sem Partido1 1 Para Louzano e Moriconi (2018, p. 204): “[e]sse movimento [Escola Sem Partido], criado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004, teve o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) como primeiro parlamentar a apresentá-lo por meio de projeto de lei na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2014, chamando-o de Programa Escola Sem Partido. O segundo projeto com o mesmo teor foi apresentado pelo seu irmão, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), na cidade do Rio de Janeiro. A partir dessas iniciativas surgiram vários projetos similares pelo Brasil. Em 2015 o projeto é apresentado nacionalmente na Câmara Federal e, em 2016, no Senado. Como este último projeto de lei representa uma versão mais ‘atualizada’ das ideias propostas pelo movimento Escola Sem Partido, ele incorpora também a proibição da discussão de gênero nas escolas”. , opondo-se à “contaminação ideológica” da igualdade de gênero e combate à homofobia. No privado, centram-se no patriarcalismo, reforçando as hierarquias de gênero pela “superioridade inata masculina”, oriunda da sua virilidade congênita, típica das posições de mando. Às mulheres, caberiam as posições de subordinação: domésticas e maternais (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.). Ademais, defendem a heterossexualidade compulsória (Butler, 1990BUTLER, J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990.).
De acordo com Rocha (2021)ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021., a retórica do ódio bolsonarista remete à reação militar iniciada ainda em meados da década de 1980 no país, na esteira da abertura política encampada por Ernesto Geisel (1974 a 1979) e do processo de redemocratização com João Batista Figueiredo (1979 a 1985). Entre 1985 e 1988, os militares escreveram o Orvil (“Livro” escrito ao contrário), documento-chave que busca apresentar o ponto de vista de setores da instituição sobre a história brasileira do século XX e, com isso, reagir às denúncias do Projeto “Brasil: Nunca Mais” (BNM) em relação à prática sistemática da tortura e de outras graves violações aos direitos humanos durante o Regime Militar (1964 a 1985) (Rocha, 2021ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021., p. 248).
Baseado na Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e escrito em uma linguagem apocalíptica e plena de clichês, o Orvil relata a existência de uma suposta ameaça comunista permanente no Brasil, ancorando-se na Guerra Fria para legitimar o uso da força contra grupos considerados subversivos, os “inimigos internos”, incluindo a necessidade de tomada do poder político estatal. Tal documento contém o modelo narrativo militar ultraconservador do bolsonarismo e funciona como fonte dos seus principais argumentos (Rocha, 2021ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.).
Tal retórica tem sido eficiente para garantir a Jair Bolsonaro vitórias em todos os pleitos eleitorais que disputou, expressando no Rio de Janeiro a trajetória errática, mas consistente dos representantes políticos nacionais da extrema direita desde fins da década de 1980. Em 1990, elegeu-se Deputado Federal pelo PDC, tendo obtido 67.041 votos. Em 1994, filiado ao PPR, aumentou o seu número de eleitores, chegando a 111.927 votos, sendo o 3º mais bem votado. Em 1998, filiado ao PPB, foi o 10º mais votado, com 102.893 votos. Com o mesmo partido, em 2002, caiu para 88.945 votos, obtendo o 21º lugar. A partir de 2006, sempre pelo PP, cresceu ininterruptamente, conseguindo ser o 14º mais bem votado neste ano, com 99.770 votos. Em 2010, com 120.646 votos, elegeu-se em 11º e, em 2014, foi escolhido por expressivos 464.572 eleitores, sendo alçado ao 1º lugar em votos da Câmara dos Deputados (Brasil, 2022BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições anteriores. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
“Iniciadas em março de 2015, e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano, as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, revelando ao país uma organização sólida de grupos conservadores”, assevera Rocha (2021ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021., p. 34). Para entender esse processo, devemos considerar (a) o crescimento ideológico da direita nos anos 1990, com a produção e difusão de obras com o objetivo de polemizar e desconstruir estrategicamente os ícones de esquerda, tendo dentre os seus principais autores Olavo de Carvalho; (b) a ocorrência imprevista de uma “fissura geracional” que alinha parte dos jovens crescidos durante os quase quatro governos do Partido dos Trabalhadores/PT (2002 a 2016) aos princípios ideológicos da Direita, gerando uma associação inédita no país entre establishment, sistema político e Esquerda; (c) o aprofundamento desse conflito geracional em decorrência da difusão das tecnologias digitais, as quais potencializaram a criatividade, a irreverência e a conexão entre os membros dessa juventude de Direita; (d) a disputa pela ocupação das ruas por grupos conservadores e reacionários em 2013, mais visível a partir de 2015 (Rocha, 2021ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.).
Consoante Lowenkron (2013)LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, no campo da Antropologia, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que tratou da pedofilia, a CPI da Pedofilia, realizada em 2008, impulsionou a tendência de crescimento do debate moral na política brasileira em fins dos anos 2000. Com o objetivo de “investigar e apurar a utilização da internet para a prática de crimes de pedofilia” (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 305), a investigação legislativa posicionou-se, por vezes, como o “delegado do país” na defesa dos valores morais nacionais.
O senador Magno Malta (PL), líder da Comissão, convocou constantemente a imprensa para divulgar os trabalhos realizados pela CPI da “sociedade”, das “crianças” e da “família”, voltada para “um bem coletivo e unânime” (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 310). “A pedofilia é 5% doença e 95% safadeza” (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 315), afirma. Em suas falas, os parlamentares utilizaram-se de termos como “crime”, “tara”, “vício” e “chaga” para descrever o pedófilo. A transmissão de vídeos de pornografia infantil em rede televisiva nacional chocava e angustiava a população, ao mesmo tempo em que a associação entre CPI e mídia contribuía para a teatralização da luta do bem contra o mal (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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), aspecto central para a constituição do ideário conservador da direita.
Durante os trabalhos da Comissão, houve a constante tentativa de mobilizar a arena pública das emoções em prol da “caçada ao pedófilo”, do “inimigo da família”, potencializando a sua persuasão pela comoção e promovendo o seu engajamento pela indignação coletiva. Fomentava-se uma “cruzada antipedofilia” como movimento de preservação da “sacralidade” da infância. A antropóloga percebeu, ainda, as estratégias dos grupos conservadores para estabelecer o pedófilo como o “monstro contemporâneo”, “como limite mais extremo de toda anomalia, combinando o proibido e o ininteligível, transgredindo os limites não só da lei, mas da classificação” (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 305). No dizer de Preciado (2020PRECIADO, P. B. Eu sou o monstro que vos fala. Tradução: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior. Sara Wagner York, jul. 2020. Disponível em: https://sarawagneryork.medium.com/eu-sou-o-monstro-que-vos-fala-94dd10a366ef. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 2), o monstro é “aquele que vive em transição. Aquele cuja face, corpo e práticas ainda não podem ser considerados verdadeiros em um regime de conhecimento e poder determinados”.
Além dos atores políticos, as disputas classificatórias mobilizaram especialistas, operadores do direito, órgãos de mídia e grupos religiosos em discussões sobre violência e exploração sexuais, pornografia infantil e pedofilia. Essa integração entre diferentes campos do saber potencializou a circulação e impacto dos sentidos sobre a pedofilia na sociedade como um todo, oscilando entre o “caso político” e o “caso de polícia” (Lowenkron, 2013LOWENKRON, L. O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como "causa política" e "caso de polícia". Cadernos Pagu, Campinas, n. 41, p. 303-337, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/yjbgwTqmXvvX7hxfcmHGvzM/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
O ponto que queremos destacar é que, a partir de 2011, essa memória coletiva da “caçada ao pedófilo” passa a ser entextualizada estrategicamente em outro contexto parlamentar e relacionada a outra temática social, como será visto na análise dos pronunciamentos de Jair Bolsonaro na última seção. A partir de então, seus pronunciamentos passaram a associar recorrentemente a homossexualidade à pedofilia no intuito de enquadrar discursivamente o recém-proposto Kit Escola Sem Homofobia como política educacional pública de estímulo à sexualização das crianças, em vez de medidas de combate à homofobia nas escolas.
Dessa maneira, o político desloca e transfere os sentidos das investigações sobre crimes sexuais contra crianças e adolescentes e, com isso, o choque emocional da sociedade em 2008 — o medo, a angústia e a indignação — para os debates sobre as medidas de combate à homofobia nas escolas em 2011, ressignificando tanto a memória de 2008, como se se tratasse de um debate sobre as questões de gênero, quanto as discussões parlamentares de 2011, como se estivessem relacionadas à pedofilia. É também em 2011 que se instaura a Comissão da Verdade, responsável por esclarecer tanto os fatos quanto as circunstâncias relacionadas às graves violações dos Direitos Humanos no país de 1946 a 1988. Em vista disso, tal comissão tornou-se o cerne dos ataques do ultraconservadorismo militar ao Governo Federal (Alonso, 2018ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.).
É, portanto, através do discurso político de Bolsonaro que distintas correntes históricas de autoritarismo e reacionarismo passaram a se juntar, fazendo emergir os sentidos constitutivos da extrema direita brasileira contemporânea, reiterados e calcificados até os dias atuais. Esse atravessamento político é até mesmo anterior à “onda conservadora” de 2013 a 2016, a qual foi responsável por consolidar e expandir a circulação desse discurso na cena pública.
Pode-se considerar, então, 2011 como o ano em que ocorre o que chamaremos de “virada moral” do discurso político da extrema direita, quando Bolsonaro começa a se colocar, a um só tempo, como defensor do ultraconservadorismo militar e como representante de uma “cruzada moral” nacional, produzindo uma inflexão entre o discurso pró-Ditadura Militar e o discurso fundamentalista cristão. Essa interdiscursividade, seguindo as contribuições de Fabrício e Moita Lopes (2020)FABRÍCIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. Historicity, interdiscursivity and intertextuality. In: DEFINA, A.; GEORGAKOPOLOU, A. (org.). The Cambridge handbook of discourse studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 70-90., passa inclusive a se expressar na mudança paulatina do nome político de Jair Bolsonaro para Jair Messias Bolsonaro, modo pelo qual busca condensar a imagem de capitão reformado do Exército Brasileiro com aquela de “ungido” em 2016 nas águas do Rio Jordão (Alves, 2016ALVES, B. Jair Bolsonaro é batizado no rio Jordão em Israel durante votação do impeachment. Notícias Gospel Mais, 12 maio 2016. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/bolsonaro-batizado-israel-durante-votacao-impeachment-82706.html. Acesso em: 16 jul. 2023.
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) como porta-voz do conservadorismo religioso na política.
Durante a década de 2010, o deputado alinha-se explicitamente à concepção de “Guerra Cultural”, isto é, ao “entendimento fundamentalista do mundo, cujo corolário é a eliminação pura e simples de tudo que seja diverso” (Rocha, 2021ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021., p. 115). Por conseguinte, cria imaginariamente o lado oposto da “trincheira”, fundindo as lógicas binárias da guerra militar e da cruzada religiosa via associação do “inimigo vermelho” com o “monstro homossexual”. A própria figura política de Dilma Rousseff (PT), primeira Presidenta eleita no país, em 2010, condensava os sentidos do perigo para o grupo, uma vez que se tratava de uma mulher e de uma ex-guerrilheira política. Não à toa, o seu mandato foi “recheado” de insultos relacionados à sua tortura, à sua condição feminina e à sua própria sexualidade.
Na sociedade civil, passou-se a fomentar o combate tanto à imagem do comunista, contrário à ordem social, quanto a dos grupos feministas e LGBTI+, transgressores da ordem patriarcal, simplificando retoricamente o corpo simbólico do subversivo. Em especial, a figura do(a) professor(a) — escolar e universitário(a) — emergiu como ponto de convergência potencial para esses sentidos, tornando a Educação o principal campo de batalha para esses grupos. Em 2016, essa interdiscursividade se consolida como espetáculo e estética nos votos de Jair Bolsonaro e do seu campo político pelo impeachment, quando Bolsonaro “unge-se pública e politicamente” como a principal voz da reação conservadora para as Eleições Presidenciais de 2018 ao encarnar o lema “por Deus, pela pátria e pela família” (Sanque, 2020SANQUE, D. R. K. "Pela Família": múltiplas indexicalidades do signo "família" na comunicação do impeachment de Dilma Rousseff. 2020. Tese (Doutorado em Interdisciplinar Lingüística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.).
Discursos de ódio, controle da sexualidade e pânico moral no Brasil (1975 a 2019)
Em 11 de novembro de 2018, Antônia Urrejola, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), manifestou preocupação com o aumento dos discursos de ódio no país contra a população LGBTI+, os defensores dos direitos humanos, os imigrantes e solicitantes de refúgio, a liberdade de expressão e as universidades. Para a relatora, “[h]ouve avanços, mas encontramos um país que não conseguiu abordar e resolver as principais dívidas históricas com a cidadania, o problema estrutural de desigualdade e a discriminação profunda” (Comissão [...], 2018, p. 1). Em seguida, complementa, “[q]uem utiliza discurso de ódio está contra o ser humano. O discurso de ódio encoraja e incita, com consequências muito sérias” (Comissão [...], 2018, p. 1).
Para António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, o ódio “compromete a coesão social, desgasta valores compartilhados e pode criar a base para a violência, retardando a causa da paz, da estabilidade, do desenvolvimento sustentável e da dignidade humana” (Guterres, 2019). A Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), por sua vez, define crimes de ódio como “violência e ofensas motivadas por racismo, xenofobia, intolerância religiosa ou preconceito contra a deficiência de uma pessoa, orientação sexual ou identidade de gênero” (FRA, 2022). Para a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI): “[o discurso de ódio] representa graves perigos para a coesão de uma sociedade democrática, a proteção dos direitos humanos e o Estado de Direito. Se não for resolvido, pode levar a atos de violência e conflito em uma escala mais ampla” (ECRI, 2022).
O sistema jurídico brasileiro está alinhado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tendo o Governo ratificado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos — o Pacto de São José da Costa Rica — em 1992, e aceitado a sua competência em 1998 (Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015). O documento ressalta que “[a] lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência” (OEA, 1970 apud Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015, p. 144). Em 2014, o país assinou a Convenção Interamericana contra Todas Formas de Discriminação e Intolerância, a qual responsabiliza os Estados-Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) a trabalharem em prol da “erradicação total e incondicional de toda a forma de discriminação e intolerância” (OEA, 2013 apud Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015, p. 147-148).
Consoante Schäfer et al. (2015), o discurso de ódio se caracteriza por incentivar o “repúdio ao diferente”. Ao induzir a violência — física e simbólica — contra grupos excluídos e torná-los inimigos públicos, configura-se também como fato criminoso, afetando a dignidade daqueles a quem se direciona. Tem como foco acionar o pânico moral e despertar o medo coletivo contra uma transformação social em processo que possa prejudicar o status quo do grupo dominante, responsável por essas ações violentas e criminosas (Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015).
Não obstante, o sistema jurídico brasileiro ainda carece de uma tipificação legal dos crimes de ódio, o que significa a ausência de uma caracterização mais específica dos limites e punições relacionados à veiculação de ideologias racistas, sexistas, antissemitas ou homofóbicas pelos próprios agentes de Estado no exercício das suas funções democráticas, ocasionando uma reação em cadeia na sociedade. O instrumento jurídico no qual podem-se arvorar denúncias a esse respeito seria o Artigo 3º, Inciso IV, da CF/88, que “estabelece a promoção do ‘bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’” (Brasil, 1988 apud Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015, p. 150).
A despeito disso, políticos conservadores têm se aproveitado da prerrogativa constitucional de defesa da liberdade de expressão para continuarem a incitar preconceitos e violências contra tais grupos. Ancorados nessa brecha legal, pode-se notar o aumento desse tipo de discurso em falas parlamentares desde o projeto de decreto legislativo conhecido por “Cura Gay”, de 1999, que buscava associar a orientação de gênero às doenças mentais, incentivando a “cura de homossexuais” por tratamentos de cunho psicológico (Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015).
Em 2014, por exemplo, o Deputado Federal Marco Feliciano (PSC) publicou no Twitter: “[a] podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, a (sic) rejeição” (Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015, p. 150). Como podemos notar, há uma inversão argumentativa da culpa, típica dos discursos intolerantes, em que a subversão da norma seria supostamente gerada por quem sofre as ações violentas, e não por aqueles que a cometem, sendo as vítimas categorizadas como “abjetas” ou “repulsivas”. Isso legitimaria a transformação do agressor em agredido, do culpado em vítima e da opressão em correção (Morais, 2019MORAIS, A. R. A. de. O discurso político da extrema-direita brasileira na atualidade. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 20, n. 1, p. 152-172, 2019. DOI: 10.26512/les.v20i1.12129. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/12129. Acesso em: 16 jul. 2023.
https://periodicos.unb.br/index.php/les/...
).
Ao analisar a denúncia realizada pelo Ministério Público Federal (MPF), o Ministro Luís Roberto Barroso, relator do Inquérito 3.590 no Supremo Tribunal Federal (STF), concluiu que “essa lei [sobre crimes de ódio] não existe. Existe até um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional. De modo que, por mais reprovável que se considere essa manifestação no plano moral, eu penso que não é possível tipificá-la penalmente” (Schäfer; Leivas; Dos Santos, 2015, p. 150). Em vista disso, a acusação não pôde ser aceita pelo STF e o processo foi arquivado.
Quinalha (2018)QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221. destaca que, embora nunca tenha sido aprovada nenhuma lei específica sobre os direitos LGBTI+ no Congresso Nacional, o poder judiciário parece ter tomado para si a responsabilidade institucional em relação ao avanço dos direitos sexuais no país. Na década de 1990, houve o reconhecimento jurídico de direitos previdenciários e fiscais para casais homossexuais. Em 2011, por decisão unânime, o STF reconheceu a união estável homoafetiva. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerou dever dos tabeliães realizarem uniões estáveis e casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo. Em 2018, o STF julgou procedente o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans. Todavia, consoante o estudioso, a exclusividade jurídica para o reconhecimento desses direitos — também chamado de cidadania sexual — expressa a fragilidade dessas normas, uma vez que são mais fáceis de serem alteradas do que as leis, as quais pressupõem maioria parlamentar e controle jurídico.
“Os sentidos atribuídos aos corpos, os papéis sociais de gênero, os desejos afetivo-sexuais, as estruturas familiares e as relações de parentesco foram disputados e ressignificados com a progressiva politização do privado operada pela contestação cultural e dos costumes”, assevera Quinalha (2018QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221., p. 221). A organização dos movimentos feministas e LGBT em 1975 e 1978, respectivamente, trouxe inúmeras conquistas relacionadas à cidadania sexual no Brasil. Minou-se, com isso, os padrões de família, a gramática moral, os ideais de virilidade e de masculinidade no país, desconstruindo a determinação do corpo pelo seu destino biológico, centrado na anatomia humana e na sua função reprodutiva. Em paralelo, iniciaram-se as reações conservadoras, sendo a ofensiva atual a maturação desse backlash (Quinalha, 2018QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221.).
Na esfera parlamentar, o pânico moral tem se manifestado pela proposição de projetos relacionados ao combate à “ideologia de gênero” — “expressão pejorativa que procura designar um conjunto de ideias que naturalizariam comportamentos e identidades supostamente desviantes, mesmo nas crianças” (Quinalha, 2018QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221., p. 213, grifo nosso) — e ao suposto domínio ideológico da Esquerda nas escolas (ver Schultz, 2020SCHULTZ, V. B. "Aqui o menino usa saia mesmo?": fricções escalares em trajetórias textuais de um documento escolar. 2020. Tese (Doutorado em Interdisciplinar Lingüística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020., sobre essa questão no Colégio Pedro II). Essas iniciativas, como o Escola sem Partido, fomentam um estado de guerra imaginário entre os cidadãos de bem, defensores dos valores da família heterossexual e religiosa, e os inimigos, contrários às normas e instituições tradicionais.
Ainda segundo Quinalha (2018)QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221., com o lançamento do programa Brasil Sem Homofobia, em 2004, cujo objetivo era criar meios oficiais para o combate à violência e ao preconceito contra a população LGBTI+ nas escolas, o Governo Federal passou a atuar na formação de educadores em relação às temáticas de gênero e sexualidade. O Kit Escola Sem Homofobia, material educativo com fins de conscientização da diversidade sexual, é fruto dessa política pública. Logo em seguida ao seu anúncio, passou a ser chamado pejorativamente de “Kit Gay” pela Bancada Evangélica, para a qual haveria uma tentativa de se fazer propaganda e apologia da homossexualidade no espaço escolar. O recuo do Governo Federal acabou por aumentar o poder de pressão do fundamentalismo religioso na política, inaugurando, com isso, o principal “espantalho moral” das Eleições de 2018 (Quinalha, 2018QUINALHA, R. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no governo Bolsonaro. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 208-221.).
O Programa Brasil Sem Homofobia e a criação do Conselho Nacional LGBT, em 2010, fomentaram propostas análogas nas esferas municipal e estadual no país, gestando uma rede nacional incipiente de políticas públicas para os grupos LGBT (Aragusuku, 2020ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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). Com a “expansão dos coletivos e movimentos LGBT, eclosão das Paradas do Orgulho, novas identidades e sociabilidades, difusão midiática e acadêmica” (Aragusuku, 2020ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 110), havia um cenário favorável à conscientização dos direitos sexuais na sociedade. No sentido inverso, “este novo cenário gerou um processo de reorganização de grupos conservadores na arena legislativa, que passaram a exercer uma forte ofensiva política contra a ‘degradação’ da moral, dos valores tradicionais e dos costumes sexuais” (Aragusuku, 2020ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, p. 111).
A década de 2010 marca o abandono de uma posição conservadora predominantemente defensiva em prol de uma ofensiva política e legislativa no que diz respeito ao debate sobre gênero e identidade sexual. De acordo com Aragusuku (2020)ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, o impulsionamento dessa agenda moral no país está atrelado à reação (1) ao aprofundamento das mudanças socioculturais e à consequente desestabilização jurídica, política e artística dos padrões de sexualidade e gênero; (2) à organização de movimentos coletivos na sociedade civil, os quais pressionavam pela incorporação das suas demandas por partidos políticos, fundações e associações de natureza profissional, sindical e acadêmica; (3) à tentativa de elaboração de leis e à implementação de políticas públicas especializadas nas esferas municipal, estadual e federal.
Em 2003, continua Aragusuku (2020)ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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, inicia-se o uso do termo “ideologia de gênero” na Câmara. Até 2014, todavia, há uma baixa frequência na sua ocorrência, pois ainda restrita a grupos conservadores católicos. No período, não se propôs nenhum projeto legislativo remetendo à temática, embora tenha havido 15 pronunciamentos com a expressão, crescendo de um por ano em 2003, 2004, 2007 e 2010 para três em 2013 e oito em 2014. De 2015 a 2018, massificou-se o seu uso, quando a Bancada Evangélica passou a dominar as ações a esse respeito, com 160 pronunciamentos — 30 em 2015, 48 em 2016, 50 em 2017 e 23 em 2018 — e 16 projetos legislativos. Em paralelo, ocorreu a pulverização de siglas partidárias que passaram a se utilizar da expressão, chegando a 16. Por fim, em 2019, a “ideologia de gênero” adquiriu status de política pública no Governo de Bolsonaro (Aragusuku, 2020ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
Em síntese, em 2015, o termo “ideologia de gênero” passou a unificar os diversos antagonismos relacionados aos costumes sexuais, produzindo um discurso único que condensa temáticas como aborto, homossexualidade, família etc. (Aragusuku, 2020ARAGUSUKU, H. A. O percurso histórico da "ideologia de gênero" na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Agenda Política. Agenda Política, São Carlos, v. 8, n. 1, p. 106-130, 2020. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/310. Acesso em: 16 jul. 2023.
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). Tornou-se, assim, um forte instrumento semiótico em relação ao público conservador brasileiro, pois organizou e passou a indexar a agenda político-discursiva desse grupo parlamentar desde então, do qual fazia parte o atual Chefe do Executivo brasileiro. Não à toa, a Medida Provisória 870 foi a primeira a ser assinada pelo Presidente, em 2 de janeiro de 2019, retirando da política de Direitos Humanos as ações destinadas às garantias dos direitos LGBTI+ (Schuquel, 2019SCHUQUEL, T. Primeira MP de Bolsonaro exclui LGBTs de políticas de Direitos Humanos. Metrópoles, Brasília, 02 jan. 2019. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/primeira-mp-de-bolsonaro-exclui-lgbts-de-politicas-de-direitos-humanos. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
Discurso de ódio, performatividade e análise lexical
Para Butler (1997)BUTLER, J. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997., a linguagem é ação, dada a sua natureza performativa. Pela repetição e calcificação de significados, produz efeitos sobre os interlocutores, orientando seus pensamentos e ações no mundo. Se nos possibilita falar, confiar e colaborar, torna possível também silenciar, agredir, menosprezar e humilhar o outro. “Quem enuncia o discurso de ódio é responsável pela maneira como ele é repetido, por reforçar esse tipo de discurso, por restabelecer contextos de ódio e de injúria”, afirma Butler (1997BUTLER, J. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997., p. 54). Nossa pesquisa utiliza instrumentos qualiquantitativos que nos ajudam a entender a relação entre léxico e injúria no discurso da extrema direita brasileira atual.
Para Berber Sardinha (2004BERBER SARDINHA, T. Linguística de corpus. Barueri, SP: Manole, 2004., p. 85), as investigações da linguagem só têm a ganhar com o uso de computadores, uma vez que, “[e]m primeiro lugar, são consistentes. Os computadores não se cansam, e assim podem fazer tarefas tediosas [...] de modo eficiente e confiável. Em segundo lugar, permitem maior abrangência na quantidade de dados que se pode lidar” (Berber Sardinha, 2004BERBER SARDINHA, T. Linguística de corpus. Barueri, SP: Manole, 2004., p. 85). A nosso ver, a relação entre métodos qualitativos e quantitativos pode aproximar a potência descritiva do tratamento de textos em larga escala (Gitari et al., 2015GITARI, N. D.; ZUPING, Z.; HANYURWIMFURA, D.; LONG, J. A Lexicon-based Approach for Hate Speech Detection. International Journal of Multimedia and Ubiquitous Engineering, Sandy Bay, v.10, n.4, p. 215-30, 2015. Disponível em: https://gvpress.com/journals/IJMUE/vol10_no4/21.pdf. Acesso em: 16 jul. 2023.
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; Davidson et al., 2017DAVIDSON, T.; WARMSLEY, D.; MACY, M.; WEBER, I. Automated Hate Speech Detection and the Problem of Offensive Language. Proceedings of the International AAAI Conference on Web and Social Media, Palo Alto, CA, v. 11, n. 1, p. 512-515, 2017. DOI: 10.1609/icwsm.v11i1.14955. Disponível em: https://ojs.aaai.org/index.php/ICWSM/article/view/14955. Acesso em: 11 mar. 2024.
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; Bassignana et al., 2018BASSIGNANA, E.; BASILE, V.; PATTI, V. Hurlex: A Multilingual Lexicon of Words to Hurt. In: ITALIAN CONFERENCE ON COMPUTATIONAL LINGUISTICS, CLIC-IT, 5., 2018, Turin. Proceedings […], Turin, 2018. p. 1-6. Disponível em: http://ceur-ws.org/Vol-2253/paper49.pdf. Acesso em: 16 jul. 2023.
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; Augenstein et al., 2019AUGENSTEIN, I.; WOLF-SONKIN, L.; COTTERELL, R.; HOYLE, A.; WALLACH, H. Unsupervised discovery of gendered language through latent-variable modeling. In: ANNUAL MEETING OF THE ASSOCIATION FOR COMPUTATIONAL LINGUISTICS, 57. , 2019. Florence, Italy. Proceedings […], Florence: Association for Computational Linguistics, jul./ago. 2019. p. 1706-1716. DOI: 10.18653/v1/P19-1167.
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) da profundidade explicativa do método interpretativista (Moita Lopes, 1994MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em lingüística aplicada: a linguagem como condição e solução. DELTA, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 329-383, 1994.), em que os pressupostos qualitativos de pesquisa possibilitam analisar a entextualização dos itens lexicais localmente em uso nos enunciados.
Como corpus, coletamos 922 pronunciamentos do Deputado Jair Bolsonaro no período de 2000 a 2018 (Brasil, 2023). Para tanto, “foram utilizadas bibliotecas da linguagem python, como por exemplo a requests, responsável por realizar as requisições ao site da Câmara dos Deputados para o download das notas taquigráficas” (Nascimento et al., 2022NASCIMENTO, E. N.; OLIVEIRA, E. A.; MORAIS, A. R. A.; MORAIS, P. A. Coleta de dados dos discursos políticos utilizando a linguagem Python. In: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 28., Fortaleza. Anais [...], Fortaleza: Editora Unifor, 2022. v.1., p. 2). Esse procedimento nos permitiu baixar todos os arquivos relacionados ao Deputado Jair Bolsonaro na linguagem PDF. Contudo, ainda estamos refinando o método de coleta para que o programa possa dar conta de transcrever para texto aqueles anteriores a 2000, disponíveis somente em arquivos de imagem. Em vista disso, o nosso recorte cronológico contempla esses dezoito anos.
Interessava-nos avaliar como itens lexicais relacionados aos Discursos2 2 Para nós, discurso remete tanto a um saber socialmente construído — o Discurso com letra maiúscula — como à articulação enunciativa desse saber pelos sujeitos em condições situadas no intuito de produzir sentidos entre interlocutores — o discurso com letra minúscula — (Fabrício; Moita Lopes, 2019, 2020). Ademais, à medida que os sujeitos vão performando suas interações, eles vão dando pistas ou sinais via léxico das relações entre o contexto micro, local, e o contexto macro, social, conectando, consciente e/ou inconscientemente, o discurso (com “d” minúsculo) com o Discurso (com “D” maiúsculo), criando ordens de indexicalidade (Moita Lopes; Fabrício, 2018; Sanque, 2020). militar e religioso oscilam nas falas do parlamentar ao longo desse período, além de compreender quais Discursos são indexados para fundamentar sua ofensiva contra o público LGBTI+. Com esse propósito, dividimos os pronunciamentos coletados em uma base de dados com 499 falas realizadas de 2000 a 2010 — contendo 283.012 palavras — e outra com 423 realizadas de 2011 a 2018 — contendo 151.355 palavras —, considerando 2011 como o ano da “virada moral”. Como vimos, em 2011, ocorreram alguns “gatilhos conservadores”: Dilma Rousseff tornou-se Presidenta, o STF reconheceu a união estável homoafetiva, instaurou-se a Comissão da Verdade e, por fim, o MEC propôs o Kit Escola sem Homofobia como política de educação pública.
Para a contagem de palavras, utilizamos o programa AntConc (Anthony, 2022ANTHONY, L. AntConc (Versão 4.1.1). [Software de Computador]. Tóquio, Japão: Universidade de Waseda, 2022. Disponível em: https://www.laurenceanthony.net/software/antconc/. Acesso em: 16 jul. 2023.
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). Em específico, a ferramenta concordance, a qual permitiu procurar palavras-chave considerando tanto o contexto à esquerda quanto à direita delas. No que se refere à recorrência dos termos ao longo de 2000 a 2010 e de 2011 a 2018, colocamos as palavras na ferramenta “localizar tudo” do Excel, modo pelo qual o programa identificou o número de células em que o item buscado ocorria. Cada célula delimita um pronunciamento.
Inicialmente, elaboramos uma lista com 40 palavras relevantes para o debate sobre o Bolsonarismo, dividindo-as em quatro Discursos, a saber: para o Discurso religioso, Família, Deus, *Moral*, Evang*, Católic*, Relig*, Pastor, Bíbli*, Padre, Jesus; para o Discurso homofóbico, *Sex*, Homof*, Gay, Kit Gay, LGBT, Lésbic*, Travesti, Pedofilia, Ideologia de Gênero, Pornografia; para o Discurso político, Democr*, Ditad*, Esquerd*, *Educ*, *Pobre*, Liberd*, Ideol*, *Fome, Emprego, Direita; para o Discurso policial e militar, Milit*, Forç* Armad*, Exército, Crim*, Polic*, Sequest*, Margin*, Assalt*, Segurança, Viol*3 3 Os asteriscos remetem à busca por palavras afins. Por exemplo, ao dar o comando de busca para *SEX*, o programa considerou bissexual(is), homossexual(is), transexual(is), etc. No caso de milit*, com o asterisco somente à direita, o AntConc incluiu palavras como militar(es), militarismo e militarização, por exemplo. .
Todavia, a tabela acabou ficando muito extensa, inoperacional para o espaço de um artigo acadêmico. Realizamos, então, um corte, selecionando, dentre as 40 palavras-chave iniciais, as 20 que se demonstraram estatisticamente mais relevantes para a descrição da representatividade militar e religiosa nesse Discurso e o subdividimos em dois Discursos, o ultraconservador militar e o fundamentalista cristão, como já mencionado. Feito isso, iniciamos a análise comparativa nos dois subcorpora, contemplando as preferências lexicais do deputado mostradas pelo AntConc e a distribuição dessas palavras em seus pronunciamentos no Excel.
Após a análise quantitativa, passamos à qualitativa, para a qual selecionamos a palavra-chave “pedofilia”, dado o seu viés de pânico moral no discurso de ódio veiculado por Bolsonaro a partir de 2011 em relação às discussões de gênero. Os ganhos trazidos por um segundo movimento analítico no mesmo texto — o do quantitativo para o qualitativo — decorre do fato de que números e tabelas não falam por si. Continua necessário o trabalho interpretativo sobre o que se mostra mais relevante para a construção dos sentidos nas práticas enunciativas, em que, em nosso trabalho, “pedofilia” indexa tanto o Discurso ultraconservador militar como o fundamentalista cristão, interdiscursividade fundante do Discurso da extrema direita brasileira.
A palavra pedofilia, a nosso ver, condensa de forma privilegiada a intenção de aumentar a insegurança social via violência urbana, controle sexual e “invasão” dos corpos. Ademais, curiosamente, ela não é encontrada nas elaborações teóricas em Sedgwick (2019)SEDGWICK, M. (ed.). Key thinkers of the radical right: behind the new threat to liberal democracy. Oxford: Oxford University Press, 2019. sobre os conceitos-chaves da direita clássica à extrema direita contemporânea, salvo em uma nota de rodapé na página 100 do livro remetendo a uma obra sobre uma análise histórica do problema. Isso pode indicar a importância de se considerar o Brasil como um dos epicentros da criação do Discurso sobre pânico moral que o item pedofilia evoca na extrema direita internacional.
Na análise qualitativa, consideramos o contexto esquerdo com 25 palavras, sendo “pedofilia” sempre a 25ª. Para compreender a ressignificação desse item lexical em novos (con)textos entre 2011 e 2016, período das ocorrências, ancoramo-nos nos antropólogos da linguagem Bauman e Briggs (1990)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. Poetics and performances as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, Bloomington, v. 19, p. 59-88, 1990., para quem a linguagem funciona como um sistema simbólico integrado ao espaço-tempo no qual emerge, como prática contínua de desentextualização, entextualização e recontextualização entre interlocutores (Moita Lopes; Fabrício, 2018MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. 'Does the picture below show a heterosexual couple or not?': reflexivity, entextualization, scales and intersectionalities in a gay man's blog. Gender and Language, Sheffield, v.12, n. 4, p. 459-478, 2018.). Entextualizar é “[...] o processo de tornar um discurso extraível [descontextualizável], de fazer de um trecho de produção linguística uma unidade — um texto — que pode ser levada para fora de seu cenário interacional” (Bauman; Briggs, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. Poetics and performances as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, Bloomington, v. 19, p. 59-88, 1990., p. 73). Descontextualizar faz com que esses “projéteis textuais” viajem por novos espaços simbólicos, envolvendo múltiplos processos e pessoas, assim como múltiplos significados. Reentextualizar, por fim, refere-se ao encaixe desses índices semióticos – textos como amálgamas de signos de várias naturezas – em novos discursos, envolvendo novos valores e funcionamentos nos eventos nos quais emergem (Bauman; Briggs, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. Poetics and performances as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, Bloomington, v. 19, p. 59-88, 1990.).
O homossexual como “monstro pedófilo” (2011 a 2018)
Nos anos 1990, as posições militaristas de Bolsonaro raramente ecoavam em ampla aceitação, dentro e fora da Câmara. Em 2011, o “Kit Gay” acabou por funcionar como um “gatilho” para a expansão do seu eleitorado. Na tabela abaixo, o leitor encontrará a variação no número de ocorrências das palavras-chave pesquisadas e o peso proporcional delas em cada subcorpora. Em “pronunciamentos”, destacamos em quantos pronunciamentos elas ocorrem.
Podemos notar a forte presença do Discurso ultraconservador militar no Discurso político de Jair Bolsonaro, como demonstram as duas primeiras colunas das palavras-chave e dos pronunciamentos. Comparemos, por exemplo, os itens *sex* e milit*, com o maior número de ocorrências para cada discurso avaliado. No caso de *sex*, temos 53 (0,001%) ocorrências lexicais de 2000 a 2010 e 285 (0,01%) de 2011 a 2018, aumentando a representatividade em 10 vezes, como pode-se notar pela diminuição de uma casa decimal. No quesito pronunciamentos, cresce de 17 (3,4%) para 67 (15,8%), respectivamente. Quando passamos a milit*, temos 2265 (0,08%) ocorrências lexicais para o primeiro período e 531 (0,3%) para o segundo, diminuindo, ainda, de 372 (74,5%) pronunciamentos para 174 (41,1%). Embora as pautas militares, incluindo as de segurança pública, se mantenham fortes ao longo dos 18 anos, há um equilíbrio crescente a partir de 2011 com o Discurso religioso. Esse padrão se reproduz ao longo da tabela.
A palavra “família”4 4 Ver também Sanque (2020), cuja pesquisa de Linguística de Corpus indica uma grande percentagem do uso do item “família” durante a votação do impeachment de Dilma, indexicando o Discurso moralista conservador. passa de 120 (0,004%) ocorrências no primeiro período para 197 (0,01%) no segundo, aumentando também a sua presença no número de pronunciamentos, com o crescimento de 36 (7,2%) para 88 (20,8%). A palavra Deus, utilizada 88 (0,003%) vezes no período de 2000 a 2010, foi utilizada 197 (0,007%) vezes de 2011 a 2018. No que se refere às performatividades identitárias de gênero, todos os termos demonstram crescimento. Por exemplo, Gay — excluindo os usos de Kit Gay — passa de 24 (0,0008%) para 173 (0,01%) usos e de 8 (1,6%) para 54 (12,7%) pronunciamentos, semelhante a LGBT, Lésbica(s) e Travesti.
Ao diminuir proporcionalmente a remissão ao Discurso ultraconservador militar, equilibrando com o religioso, Bolsonaro expande a circulação, o impacto e a representatividade das suas declarações políticas na esfera pública brasileira. A palavra-chave Força(s) Armada(s) cai de 799 (0,02%) para 216 (0,01%) usos e os pronunciamentos de 267 (53,5%) para 118 (27,8%). A palavra Exército diminui de 643 (0,02%) para 143 (0,009%) ocorrências.
Outros dois movimentos parecem ser interessantes: o aumento das palavras-chave vinculadas ao debate sobre a Democracia/Ditadura Militar e a diminuição daquelas vinculadas à segurança pública. No primeiro caso, a palavra democracia cresce de 182 (0,006%) para 209 (0,01%) usos e mantém 105 pronunciamentos para cada período, com a diferença de que aumenta sua importância proporcional no recorte de 2011 a 2018, saindo de 21% para 24,8% de representatividade. Em paralelo, a palavra Ditadura aumenta de 140 (0,004%) para 157 (0,01%) usos e de 69 (13,8%) para 82 (19,3%) pronunciamentos. O crescimento das ocorrências do item lexical Democracia não significa necessariamente apoio a este regime político. Ao contrário, para Bolsonaro, há uma inversão semântica que considera a Ditadura Militar como um regime democrático e a democracia brasileira como uma Ditadura (Nobre, 2020NOBRE, M. "Se não houver acordo entre as forças do campo democrático, Bolsonaro está reeleito', afirma Marcos Nobre". Entrevista concedida a Anna Beatriz Anjos. Instituto Humanitas Unisinos, mar. 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/596807-se-nao-houver-acordo-entre-as-forcas-do-campo-democratico-bolsonaro-esta-reeleito-afirma-marcos-nobre. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
O segundo aspecto relevante é a diminuição das ocorrências lexicais da segurança pública nos discursos do deputado. Embora haja o crescimento proporcional das palavras crim* (crime, criminoso, criminalidade etc.), de 0,005% para 0,01%, e dos pronunciamentos com ela, de 87 (17,4%) para 104 (24,5%), os demais itens lexicais avaliados parecem perder força. Polic* (polícia/s, policial/ais) mantém praticamente o mesmo peso proporcional em relação aos usos lexicais, em 0,005% (169 ocorrências) e 0,006% (93 ocorrências), respectivamente, mas cai de 72 (17,4%) para 32 (7,5%) pronunciamentos. Segurança também demonstra um leve aumento proporcional — de 0,004% para 0,005% — em relação às palavras-chave e um decréscimo de 79 (15,8%) para 42 (9,9%) em relação aos pronunciamentos. E viol* (violência, violento/a etc.) mantém o mesmo impacto proporcional, mas cai de 42 (8,4%) para 29 (6,8%) pronunciamentos. Equilibra-se, assim, o incitamento à insegurança pública com o crescimento das pautas morais. Além do equilíbrio, a “virada moral” de Bolsonaro parece buscar ressignificar sua retórica do ódio pela condensação de pautas do ultraconservadorismo militar na segurança pública com o fundamentalismo cristão em temas morais, passando a priorizar em suas falas crimes sexuais.
Se do ponto de vista quantitativo a frequência de “pedofilia” diz pouco, em um viés qualitativo, ela é bastante potente. Primeiro, assim como “ideologia de gênero”, ela não ocorre de 2000 a 2010, mas aparece antes de “ideologia de gênero” de 2011 a 2018. Segundo, apesar de “ideologia de gênero” funcionar como termo “guarda-chuva” para todos os índices da cruzada moral contra a discussão de gênero, a palavra “pedofilia” ocorre quase quatro vezes mais, com 31 (0,002%) ocorrências lexicais contra 8 (0,0005%), e 12 (2,8%) pronunciamentos contra 8 (1,8%). Terceiro, pelo seu alto impacto em gerar pânico, comoção e engajamento de natureza conservadora na sociedade. Abaixo, a tabela com suas ocorrências contextualizadas.
Como podemos notar, são 31 usos de pedofilia em 11 pronunciamentos, distribuídos do seguinte modo: salvo 2014, presente em apenas 1, o item lexical ocorre em 2 pronunciamentos em 2011, 2012, 2013, 2015 e 2016. Ancorando-nos em Bauman e Briggs (1990)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. Poetics and performances as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, Bloomington, v. 19, p. 59-88, 1990., entendemos que os processos contínuos de descontextualização, entextualização e reentextualização ressignificam negativamente o Kit Escola Sem Homofobia a cada reentextualização, fazendo com que os propósitos pedagógicos de sua elaboração sejam maculados.
Em 17.03.2011, Bolsonaro agrega ao seu ultraconservadorismo militar aspectos vinculados ao fundamentalismo religioso. Para tanto, i) descontextualiza o item lexical “pedofilia” das investigações da CPI de 2008 para entextualizá-lo no debate parlamentar sobre o combate à homofobia nas escolas; ii) descontextualiza os “Direitos Humanos” para entextualizá-los como “Direitos LGBT”, desqualificando os seus sentidos, uma vez que a população LGBTI+ é tida nesse discurso como moralmente inferior e, portanto, sem direito a ter direitos; iii) descontextualiza o “Estatuto da Família” para entextualizá-lo como “Estatuto da Lésbica, do Gay, do Bissexual e do Travesti”, colocando novamente os direitos LGBT como contrários aos valores morais da sociedade brasileira; iv) entextualiza “pedofilia” como “Direitos Humanos/LGBT” e “Estatuto da Lésbica, do Gay, do Bissexual e do Travesti”, em que o combate à homofobia passa a ser tido como promoção da homossexualidade.
Destarte, para o deputado, em vez de “Estatuto da Família”, estaria em discussão o “Estatuto da Lésbica do Gay do Bissexual do Travesti”; em vez dos “Direitos Hétero”, os “Direitos LGBT”; em vez de “Educação”, a “Pedofilia”. Bolsonaro tem, portanto, como objetivo criar a percepção de uma inversão moral na sociedade, representada pela Câmara dos Deputados, de maneira que a “Casa do Povo” estaria se transformando na “Casa LGBT”, dado que cada vez mais dominada pelos inimigos da família, indexando assim o fundamentalismo religioso. Cria-se, então, a seguinte cadeia semântica (Morais, 2019MORAIS, A. R. A. de. O discurso político da extrema-direita brasileira na atualidade. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 20, n. 1, p. 152-172, 2019. DOI: 10.26512/les.v20i1.12129. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/12129. Acesso em: 16 jul. 2023.
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): Kit Gay → Direitos LGBT → Estatuto da Lésbica, do Gay, do Bissexual e do Travesti → Pedofilia. A “pedofilia” funciona, então, como uma “arma semiótica” do grupo em seus debates na Casa sobre o Kit
Esse movimento simbólico funda-se na memória coletiva construída pela CPI da Pedofilia, que funciona como o espaço-tempo imaginário de onde o símbolo “pedofilia” é extraído para iniciar sua contínua recontextualização até 2016. Busca-se, assim, transferir o medo e a angústia da população em 2008 para teatralizar novamente uma luta política do bem contra o mal e construir o homossexual como o novo monstro a ser caçado, o novo “inimigo público”. Retomar o contexto das investigações parlamentares sobre a prática de pedofilia em 2008 no ano de 2011, portanto, permite ao parlamentar redefinir a “cruzada moral” com foco em um novo “corpo desviante”, também associado ao “crime”, à “tara”, ao “vício” e à “chaga”. Enunciativamente, o contexto de 2008 passa a estar vinculado à sexualização precoce de crianças nas escolas e o contexto de 2011, ao debate sobre a pedofilia.
A nosso ver, esse é o principal motivo pelo qual o parlamentar prefere falar em “pedofilia” do que em “ideologia de gênero”, expressão que circulava desde 2003 no parlamento brasileiro. A “pedofilia” traz consigo a memória dos crimes sexuais contra crianças revelados pela CPI, ampliando o poder de circulação do Discurso moralizante pelo pânico que indexa, além de potencializar a transposição dos debates de gênero para o Discurso religioso. Um outro fator é que não se pode ressignificar positivamente o termo pedófilo como se pode fazer com o termo Queer, por exemplo (Butler, 1997BUTLER, J. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997., p. 32). Quem poderia ser a favor do pedófilo? A “denúncia” de pedofilia se alinha à acusação de “podridão dos sentimentos homossexuais” na mensagem do deputado Feliciano em 2014, tendo por objetivo legitimar a inversão da culpa, transformando direitos sexuais em sexualização de menores.
Em 05.05.11, Bolsonaro descontextualiza os vídeos educativos do Kit, “material dito didático”, para recontextualizá-los como “filmetes pornográficos”, indexando novamente o Discurso fundamentalista cristão. Reforça, assim, os sentidos do Kit Escola sem Homofobia como Kit Pedofilia. A suposta tentativa de “combater a homofobia” seria, na verdade, uma tentativa de ensinar “ideologia de gênero” nas escolas. Se somarmos a este pronunciamento os processos de indexação promovidos pelo deputado na sua fala anterior, pode-se estabelecer a seguinte relação semântica: Kit Escola Sem Homofobia → Direitos LGBT → Estatuto da Lésbica, do Gay, do Bissexual e do Travesti → Kit Gay → filmetes pornográficos → material dito didático → estímulo ao “homossexualismo” → escancara as portas para a pedofilia. De modo que, em última instância, combate à homofobia implica pedofilia.
Em 16.07.2012, afirma que “[o material escolar que ensina o] […] garoto desde cedo a ser homossexual”. A sexualidade, segundo Bolsonaro, seria uma questão de educação, pode-se ensinar tanto a ser hétero como a ser homossexual. Sem o trabalho do controle do corpo, da culpa cristã e da abjeção em relação à homoafetividade, estariam abertas as portas para o aumento desses corpos desviantes na sociedade. A contínua associação entre combate à homofobia e pedofilia busca calcificar esses sentidos, fortalecendo o seu apelo frente ao público conservador brasileiro. Buscando não ser implicado juridicamente pelas suas afirmações, transfere o ônus da prova para os acusados: “duvido de que me provem o contrário”. Caberia ao Governo Federal e à Comissão de Direitos Humanos e Minorias provarem que ele está mentindo, e não ele mesmo provar que sua afirmação é verdadeira.
Em 17.10.12, volta a entextualizar o Kit como uma “política de estímulo à pedofilia”, reiterando a sua postura de denunciante moral na Câmara para obter benefícios políticos. Para Bolsonaro, o projeto do ministro Haddad politizaria o sexo, algo tido como natural para o Discurso fundamentalista cristão. Logo, não debatível. Por esses meios, faz com que as discussões sobre a educação sexual migrem do Discurso político para o Discurso religioso, e da esfera “pública” para a “privada”. Ademais, ao deslocar as discussões sobre identidade de gênero para o espaço híbrido entre pecado e criminalidade, Bolsonaro desloca a cidadania sexual do “caso político” para o “caso de polícia”, indexando também o Discurso ultraconservador militar. Tanto pelo viés fundamentalista quanto pelo militarista, Bolsonaro promove a abjeção, a repulsa, o medo e o ódio contra o público LGBTI+, em específico, e os Direitos Humanos e a Esquerda, em geral. O Governo Federal de então seria o principal responsável por tentar transformar a pedofilia em política pública de educação.
No ano seguinte, em 14.03.2013, o deputado vincula a pedofilia à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (CDHM) e ao Kit, descontextualizando os seminários promovidos pela CDHM como “seminários de lésbicas gays bissexuais travestis transexuais”. Ao renomear os “Seminários LGBT” desse modo, de forma análoga aos “Direitos LGBT”, reduz os seus debates à defesa dos valores desses grupos, à “causa homossexual”, e não à defesa dos valores democráticos e da cidadania, em conformidade com os preceitos constitucionais da CF/88. A oposição semântica se dá entre a “família”, símbolo dos valores universais, e os “inimigos da família”, símbolos dos valores das minorias. Ao “grupalizar” essas atividades parlamentares, portanto, almeja impedir qualquer empatia e apoio do público mais amplo às suas atividades políticas, reduzidas aos interesses exclusivos — e imorais — de um grupo.
Em 27.03.13, Bolsonaro indexa o Discurso fundamentalista cristão ao mais uma vez associar a CDHM à pedofilia, afirmando que “representava o estímulo ao homossexualismo e à pedofilia”, além de novamente acusar “lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais” de praticarem a pedofilia. Uma vez mais, o combate à homofobia e a educação sexual implicam a promoção da pedofilia e o Kit, o Governo Federal e o Ministério da Educação estariam defendendo a sexualização de crianças nas escolas como um direito humano. Mantém, com isso, sua estratégia de produzir pânicos morais e inimigos públicos, típica dos discursos de ódio, chamando o “povo brasileiro evangélico católico espírita etc. ateus” a repudiar o Kit.
A partir de 2014, os pronunciamentos de Bolsonaro tornam-se cada vez mais agressivos, acompanhando o agravamento da crise do governo de Dilma Rousseff (PT). Em outubro de 2014, o deputado soma às acusações de pedofilia, que tem na CPI da Pedofilia seu contexto semântico em voga então, o tema do “estupro”, ancorando-se no choque social trazido pelo Caso Champinha6 6 Champinha é o adolescente envolvido no estupro coletivo e assassinato de uma jovem de 16 anos em São Paulo. Dentre os envolvidos, apenas Champinha não foi para a cadeia, mas para uma Unidade Experimental de Saúde, por possuir “transtorno de personalidade antissocial e leve retardo mental” (Baranyi, 2017, p. 1). , em 2003. Como vimos, nos anos 1990, Bolsonaro associava-se mais diretamente ao ultraconservadorismo militar, bastante presente durante o período democrático nas pautas relacionadas ao punitivismo na segurança pública. A partir de 2011, por seu turno, identifica-se uma virada moral em seu discurso, incorporando a perspectiva fundamentalista cristã sobre a (homos)sexualidade. De 2014 em diante, pode-se notar uma inflexão entre esses dois Discursos a partir do crescente foco do deputado em crimes sexuais, interseccionando no nível lexical o tema da “segurança pública” com o da “ideologia de gênero” pelo crime de estupro.
Em 12.10.14, ao retomar o Caso Champinha, de 2003, o político aprofunda seu ataque aos defensores dos Direitos Humanos, inimigos desde o período da Ditadura Militar, e passa a acusá-los de defenderem o estupro e os estupradores. Em vez de Fernando Haddad, Ministro da Educação de 2005 a 2012 e Prefeito de São Paulo de 2013 a 2016, inimigo político em 2011, Bolsonaro passa a direcionar seus ataques à Deputada Federal Maria do Rosário (PT/RS), acusando-a de defender Champinha. Indexa, desse modo, o Discurso ultraconservador militar, agregando propostas políticas como maioridade penal, castração química para estupradores e pena de morte à sua fala. Champinha representaria as falhas do sistema penal brasileiro: menor de idade na época do assassinato, comete crime hediondo ao estuprar e matar e é considerado inimputável por ser afligido por transtorno de personalidade antissocial (Baranyi, 2017BARANYI, L. O matador adolescente Champinha e o crime que chocou o Brasil. Super Interessante, São Paulo, 30 ago. 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-matador-adolescente-champinha-e-o-crime-que-chocou-o-brasil/. Acesso em: 16 jul. 2023.
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).
Nesse pronunciamento, Bolsonaro funde diferentes discussões parlamentares em uma só narrativa reacionária, condensando o “Caso Champinha”, de 2003, a “CPI da Pedofilia”, de 2008, e o “Kit Escola Sem Homofobia”, de 2011. Indexa, portanto, o Discurso ultraconservador sobre a maioridade penal, a castração química e a pena de morte (Caso Champinha em 2003) e o Discurso fundamentalista cristão sobre a sexualidade (CPI da Pedofilia em 2008), tendo na Esqueda política, nos Direitos Humanos e na população LGBTI+ seus principais inimigos. Com o pânico moral, pretende tanto promover o engajamento pelo endurecimento das leis penais quanto na luta contra a cidadania sexual. Em comum, a lógica da guerra, militar e religiosa.
Em 23.06.2015, Bolsonaro afirma que a “[…] proposta do PT às escolas do Ensino Fundamental o PT quer transformar criancinhas de 5 6 7 anos de idade em homossexuais e escancarar as portas para a Pedofilia”. Nesse ano, como vimos, a Bancada Evangélica passava a dominar os temas morais e as pautas educacionais na Câmara, fazendo com que a “ideologia de gênero” se tornasse um intrumento semiótico aglutinador das distintas causas políticas da extrema direita brasileira, tais como família, aborto e políticas de gênero. A entextualização da pedofilia associada ao Kit Escola Sem Homofobia — “proposta do PT” — ancora os sentidos de “Kit Gay”, calcificando no imaginário conservador de que o combate à homofobia significa o “estímulo ao homossexualismo infantil”, indexando o Discurso fundamentalista cristão,
Quase um mês depois, em 14.07.15, estava em debate a discussão da terminologia sobre o abuso de menores, se esse deveria ser tratado como “pedofilia” ou como “exploração sexual”. Para Bolsonaro, o uso desta última expressão visaria impedir a punição a pedófilos ao buscar definir esse crime pelo Discurso psiquiátrico. Em determinado momento da sua fala, ausente da tabela acima, o deputado afirma: “[para] este documento da Secretaria de Direitos Humanos [cartilha educativa da Campanha de Prevenção à Violência Sexual contra crianças e adolescentes] a pedofilia é um transtorno de personalidade caracterizado pelo desejo sexual por crianças abaixo de 13 anos”. Logo, no seu dizer, “para que uma pessoa seja considerada pedófila é preciso que exista um diagnóstico de um psiquiatra”.
Em harmonia com os seus posicionamentos em relação ao Caso Champinha, Bolsonaro volta a indexar o Discurso psiquiátrico como suposta estratégia do Governo e dos defensores dos Direitos Humanos para protegerem criminosos sexuais, como fica claro na seguinte passagem: “[para o Governo de Dilma,] crime não é a pedofilia mas o ato de explorar sexualmente uma criança ou seja se uma criança estiver num bordel sendo explorada isso é Pedofilia”. E acrescenta, se “então houver crianças de 3 anos 4 anos 10 anos de idade sendo abusadas sexualmente é pedofilia mas se apenas um marginal estiver abusando delas isso não é Pedofilia”. O deputado procura manter o termo “pedofilia” e a sua carga moral, em contraste com a “exploração sexual” e o seu foco na exploração da vítima como mercadoria (Brasil, 2021BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Caracterização do crime de exploração sexual de menor não exige a figura do intermediario. Brasília, 30 mar. 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/30032021-Caracterizacao-do-crime-de-exploracao-sexual-de-menor-nao-exige-a-figura-do-intermediario.aspx. Acesso em: 16 jul. 2023.
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), para tratar de crimes sexuais, associando-os à Esquerda e aos grupos LGBTI+.
Bolsonaro indexa a relação interdiscusiva entre crime e sexualidade, entre punitivismo e cruzada moral, para acusar o “Governo do PT” de querer “legalizar” a pedofilia, o que significaria, em outras palavras, tentar tornar essa prática sexual lei e, portanto, obrigar as famílias a exporem seus filhos ao sexo precoce nas escolas. Os ataques à Presidenta Dilma Rousseff passam a ser mais diretos, acusando-a de irresponsabilidade, juntamente com a Secretaria dos Direitos Humanos, ao supostamente relativizar o abuso sexual de menores e proteger pessoalmente esses criminosos. O lema “família está acima de tudo”, a indignação em relação à “vergonha” e a remissão pessoal ao “Pastor Silas Malafaia” sedimentam o fundamentalismo religioso do seu Discurso político. Em última instância, as pautas sexuais funcionam como uma estratégia política de ataque ao Governo Federal e seus partidários, acusando-os ora de permissivos, ora de criminosos.
A associação entre “Kit”, “ideologia de gênero” e “pedofilia” retorna em 14.09.16, quando Bolsonaro busca se defender das acusações de opositores políticos de ter feito “apologia do estupro” no caso do estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro. Para tanto, inverte a acusação ao reiterar que o material educativo politizaria a sexualidade humana, algo que seria natural, como sustenta o Discurso conservador cristão. A tentativa de desconstrução de gênero por parte de defensores dos Direitos Humanos, ao afirmarem que “menina não nasceu menina”, no seu dizer, seria, no fim das contas, uma tentativa de “estimular o sexo homo ou hetero precocemente”. Além disso, tais grupos tentariam relativizar a violência sexual, uma vez que a “Sra. Deborah Duprat” (Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão), a “Comissão Geral” da Câmara e a “Secretaria da Criança do DF” teriam afirmado que “estupro é cultura”, assim como seria, por inferência, a pedofilia.
A inflexão discursiva entre o ultraconservadorismo militar, a partir do qual defende punições mais duras para criminosos, e o fundamentalismo religioso produz sentidos vinculando o contexto parlamentar de 2016 àqueles de 2003 e de 2008, associando o “estupro” e a “pedofilia” à “ideologia de gênero”. Ao voltar ao Caso Champinha, de 2003, reafirma sua oposição aos usos dos Direitos Humanos e do Discurso psiquiátrico para promover a impunidade no Brasil: “ele [criminoso] sofre de transtorno ele não será punido mas sim tratado são as pessoas que defendem essas ideias que vêm aqui falar contra a pedofilia”.
Para além da Esquerda, a própria Constituição Federal de 1988 é considerada inimiga da sociedade, na medida em que seria a fonte principal da insegurança jurídica e da permissividade moral no país. Bolsonaro desentextualiza e entextualiza continuamente os Discursos sobre direitos civis e sexuais, evocando o policialesco, de conotação militarista. O conceito de crime em sua fala possui uma plasticidade estratégica ao relacionar as políticas de gênero não somente à pedofilia, mas também ao estupro, à maioridade penal e à pena de morte.
No último pronunciamento, de 03.10.16, Bolsonaro afirma que “[o PT e o Governo] vão acabar impondo isto [estímulo ao sexo precoce]”, que “o PT [...] quer relativizar a Pedofilia através da corrupção”, que “a pedofilia [...] está bem claro no site Humaniza Redes hospedado na Secretaria de Direitos Humanos de Dilma Rousseff” e que interessa diretamente ao Partido e ao Governo “a omissão [...] no caso da Pedofilia”. Mantendo o padrão, o “Kit Gay” é reentextualizado como parte de uma política de sexualização e de abuso sexual das crianças nas escolas. Remete, ainda, aos casos de corrupção associados ao Governo Federal como forma de associar a corrupção política à corrupção moral do Kit. Em última instância, o Governo estaria comprando votos para promover a pedofilia nas escolas e a destruição da família brasileira.
A mobilização estratégica da pedofilia por Bolsonaro visa dificultar qualquer reentextualização positiva das performatividades identitárias LGBTI+ e do Discurso político ao qual estas se associam, promovendo a insegurança moral para transitar da política para a moral e da moral para o policialesco. Resgata nesse processo a memória do “monstro estuprador” de 2003 e do “monstro pedófilo” de 2008 para associá-los ao Kit, a partir de 2011, criando o “monstro homossexual”. A elaboração performativa do pânico cria inimigos imaginários, de modo que a lógica da guerra traga benefícios políticos para Bolsonaro, transformando-o paulatinamente na principal voz militarista e fundamentalista da extrema direita brasileira.
Considerações finais
No presente texto, tivemos por objetivo avançar no entendimento dos movimentos discursivos que permitiram a Jair Bolsonaro chegar à Presidência do Brasil em 2018. Tendo isso em mente, na primeira seção, avaliamos como o seu Discurso político, de teor tradicionalmente militarista, sofreu uma “virada moral” em 2011, aproximando-se das pautas da Bancada Evangélica. Em seguida, na segunda, discutimos o conceito de discurso de ódio, ancorando-nos, para tanto, no debate jurídico sobre o tema para compreender o funcionamento do pânico moral em relação à sexualidade. Na terceira, aproximamos a abordagem quantitativa de Berber Sardinha (2004)BERBER SARDINHA, T. Linguística de corpus. Barueri, SP: Manole, 2004. da proposta interpretativista de Moita Lopes (1994)MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em lingüística aplicada: a linguagem como condição e solução. DELTA, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 329-383, 1994. para sugerir uma metodologia qualiquantitativa de investigação dos discursos de ódio via análise lexical. Por fim, na quarta e última, analisamos quantitativamente a interdiscursividade do Discurso político da extrema direita brasileira por meio de 20 palavras-chave, divididas em dez palavras para o Discurso fundamentalista cristão e dez para o Discurso ultraconservador militar. Dentre elas, escolhemos a palavra “pedofilia” para avançar qualitativamente nos processos de entextualização, desentextualização e recontextualização da Retórica do Ódio bolsonarista. Pôde-se perceber que Bolsonaro passa a indexar o Discurso fundamentalista cristão nas discussões sobre o Kit Escola Sem Homofobia a partir de 2011, promovendo uma virada moral. Desloca, para tanto, os debates e o choque coletivo oriundos da CPI da Pedofilia em 2008 para renomeá-lo de “Kit Gay” e acusar seus defensores de buscarem promover a pedofilia.
Agradecimentos
Agradecemos à Faperj pelo financiamento da pesquisa através de bolsa de Pós-Doutorado Sênior (Nº do Processo E-26/202.343/2021). Agradecemos também ao prof. dr. Erneson Oliveira, à sua orientanda Emanuelle Nascimento e ao Laboratório de Ciência de Dados e Inteligência Artificial (LCDIA) da Unifor pela colaboração na coleta dos dados.
REFERÊNCIAS
- ALONSO, Â. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. et al. (org.). Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.41-55.
- ALVES, B. Jair Bolsonaro é batizado no rio Jordão em Israel durante votação do impeachment. Notícias Gospel Mais, 12 maio 2016. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/bolsonaro-batizado-israel-durante-votacao-impeachment-82706.html Acesso em: 16 jul. 2023.
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1
Para Louzano e Moriconi (2018, p. 204): “[e]sse movimento [Escola Sem Partido], criado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004, teve o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) como primeiro parlamentar a apresentá-lo por meio de projeto de lei na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2014, chamando-o de Programa Escola Sem Partido. O segundo projeto com o mesmo teor foi apresentado pelo seu irmão, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), na cidade do Rio de Janeiro. A partir dessas iniciativas surgiram vários projetos similares pelo Brasil. Em 2015 o projeto é apresentado nacionalmente na Câmara Federal e, em 2016, no Senado. Como este último projeto de lei representa uma versão mais ‘atualizada’ das ideias propostas pelo movimento Escola Sem Partido, ele incorpora também a proibição da discussão de gênero nas escolas”.
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2
Para nós, discurso remete tanto a um saber socialmente construído — o Discurso com letra maiúscula — como à articulação enunciativa desse saber pelos sujeitos em condições situadas no intuito de produzir sentidos entre interlocutores — o discurso com letra minúscula — (Fabrício; Moita Lopes, 2019FABRÍCIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: toward an abject aesthetics. Gragoatá, Niterói, v. 24, n. 48, p. 136-159, jan./abr. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/download/33623/19610/111878. Acesso em: 16 jul. 2023.
https://periodicos.uff.br/gragoata/artic... , 2020FABRÍCIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. Historicity, interdiscursivity and intertextuality. In: DEFINA, A.; GEORGAKOPOLOU, A. (org.). The Cambridge handbook of discourse studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 70-90.). Ademais, à medida que os sujeitos vão performando suas interações, eles vão dando pistas ou sinais via léxico das relações entre o contexto micro, local, e o contexto macro, social, conectando, consciente e/ou inconscientemente, o discurso (com “d” minúsculo) com o Discurso (com “D” maiúsculo), criando ordens de indexicalidade (Moita Lopes; Fabrício, 2018MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. 'Does the picture below show a heterosexual couple or not?': reflexivity, entextualization, scales and intersectionalities in a gay man's blog. Gender and Language, Sheffield, v.12, n. 4, p. 459-478, 2018.; Sanque, 2020SANQUE, D. R. K. "Pela Família": múltiplas indexicalidades do signo "família" na comunicação do impeachment de Dilma Rousseff. 2020. Tese (Doutorado em Interdisciplinar Lingüística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). -
3
Os asteriscos remetem à busca por palavras afins. Por exemplo, ao dar o comando de busca para *SEX*, o programa considerou bissexual(is), homossexual(is), transexual(is), etc. No caso de milit*, com o asterisco somente à direita, o AntConc incluiu palavras como militar(es), militarismo e militarização, por exemplo.
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4
Ver também Sanque (2020)SANQUE, D. R. K. "Pela Família": múltiplas indexicalidades do signo "família" na comunicação do impeachment de Dilma Rousseff. 2020. Tese (Doutorado em Interdisciplinar Lingüística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020., cuja pesquisa de Linguística de Corpus indica uma grande percentagem do uso do item “família” durante a votação do impeachment de Dilma, indexicando o Discurso moralista conservador.
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5
Cada [...] marca o início de um contexto esquerdo de 25 palavras.
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6
Champinha é o adolescente envolvido no estupro coletivo e assassinato de uma jovem de 16 anos em São Paulo. Dentre os envolvidos, apenas Champinha não foi para a cadeia, mas para uma Unidade Experimental de Saúde, por possuir “transtorno de personalidade antissocial e leve retardo mental” (Baranyi, 2017BARANYI, L. O matador adolescente Champinha e o crime que chocou o Brasil. Super Interessante, São Paulo, 30 ago. 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-matador-adolescente-champinha-e-o-crime-que-chocou-o-brasil/. Acesso em: 16 jul. 2023.
https://super.abril.com.br/mundo-estranh... , p. 1).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
07 Dez 2022 -
Aceito
05 Jun 2023