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Legislações do ensino superior e a privatização da educação no Brasil

Higher education legislation and the privatization of education in Brazil

La legislación de enseñanza superior y la privatización de la educación en Brasil

Resumo

O objetivo deste trabalho foi analisar a trajetória das legislações relativas ao ensino superior no Brasil e suas contribuições para o processo de privatização do ensino, além de descrever os principais grupos empresariais no ramo da educação superior no país. Para isso, realizou-se um estudo exploratório de análise documental das legislações e documentos disponíveis on-line , publicados entre 1961 e 2023. Desde a década de 1960, editou-se um conjunto de 29 atos normativos (leis, projetos de leis, decretos, portarias e medidas provisórias) referentes à educação. Ao longo dos anos, todos os governos brasileiros implementaram atos que favoreceram o processo de privatização e o surgimento de grandes conglomerados econômicos de ensino. A intensa privatização do ensino superior se relaciona intimamente com a trajetória dos instrumentos normativos editados por diferentes governos. As legislações moldaram o sistema educacional do país e permitiram a flexibilização dos processos de criação e expansão de instituições, cursos e vagas. Por conseguinte, surgiram grandes grupos empresariais no ramo da educação, detentores de crescentes capitais financeiros que atuam em todas as áreas de formação e, em alguns casos, até se especializando na educação em saúde.

Palavras-chave:
legislação; privatização; instituições de ensino superior; setor privado

Abstract

The objective of this study was to analyze the trajectory of legislation related to higher education in Brazil and its contributions to the privatization of education, in addition to describing the leading business groups in the field of higher education in the country. For this, an exploratory study of documentary analysis of the legislation and online documents was carried out and published between 1961 and 2023. Since the 1960s, a set of 29 normative acts (laws, bills, decrees, ordinances and provisional measures) related to education have been issued. Over the years, all Brazilian governments have implemented acts that favored the privatization process and the emergence of large economic education conglomerates. The intense privatization of higher education is closely related to the trajectory of normative instruments issued by different governments. Legislation shaped the country’s educational system and allowed the flexibility of the processes of creation and expansion of institutions, courses and vacancies. Therefore, large business groups have emerged in the field of education, with growing financial capital working in all areas of training and, in some cases, even specializing in health education.

Keywords
legislation; privatization; higher education institutions, private sector

Resumen

El objetivo de este estudio fue analizar la historia de la legislación sobre educación superior en Brasil y sus contribuciones al proceso de privatización de la educación, así como describir los principales grupos empresariales en el ámbito de la educación superior en el país. Para ello, se realizó un estudio de carácter exploratorio con el análisis documental de la legislación y los documentos disponibles en línea, publicados entre 1961 y 2023. Desde la década de 1960, se han promulgado una serie de 29 actos normativos (leyes, proyectos de ley, decretos, ordenanzas y medidas provisorias) relativos a la educación. A lo largo de los años, los gobiernos brasileños han implementado medidas que han favorecido el proceso de privatización y el surgimiento de grandes conglomerados económicos de la educación. La intensa privatización de la enseñanza superior está estrechamente relacionada con los instrumentos normativos dictados por los diferentes gobiernos. La legislación ha moldeado el sistema educativo del país y ha permitido flexibilizar los procesos de creación y ampliación de instituciones, cursos y puestos. El resultado ha sido la aparición de grandes grupos empresariales en el campo de la educación, con un capital financiero creciente, que operan en todos los ámbitos de la formación y, en algunos casos, incluso se especializan en la educación sanitaria.

Palabras clave
legislación; privatización; instituciones de educación superior, sector privado

Introdução

Ao longo das últimas décadas, o ensino superior no Brasil vem se moldando por diferentes governos ao induzirem modificações na estrutura, composição e legislação desse setor social. Progressivamente, publicaram-se diversas legislações para delinear o panorama da educação superior no Brasil, com forte estímulo à atuação do setor privado (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Soares e Oliveira, 2022 SOARES, Fabiana A.; OLIVEIRA, Bruno L. C. A. Privatização e desigualdades geográficas na distribuição e expansão do ensino superior de enfermagem no Brasil. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 75, n. 4, e20210500, 2022. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0500 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/PZtZ8DYynTXmqjRMSBJkNyN/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
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). Esse cenário se desenvolve no contexto de reforma do Estado capitalista com a redefinição das suas funções para se adequar à política de ajuste fiscal e de cortes dos gastos sociais, sob forte influência de empresários e organismos internacionais (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
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).

O sistema de educação superior brasileiro é majoritariamente privado. Das 3.082 instituições de ensino superior (IES) que o compõem, 87,7% são privadas (n = 2.704), e apenas 12,3% são públicas (n = 378). Já em relação às vagas (n = 12.467.437), a graduação de bacharelado e licenciatura privada tem 84,6% (n = 3.512.473) das vagas no regime presencial e 96,7% (n = 8.314.748) das existentes no ensino à distância (EaD) (Brasil, 2024a BRASIL. Portal e-MEC: Sistema de Regulação do Ensino Superior. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2024a. Disponível em: https://emec.mec.gov.br/emec/nova . Acesso em: 2 maio 2024.
https://emec.mec.gov.br/emec/nova...
).

Há um vasto arcabouço legislativo que regulamenta o ensino superior no Brasil, e grandes grupos empresariais da educação têm sido beneficiados por múltiplos mecanismos: flexibilização e desregulação de normas legais sobre a educação; ampliação das modalidades de ensino presencial e à distância; oferta de financiamento estudantil público e privado; entrada de fundos de investimentos e abertura de capital das IES em bolsa de valores; e a celebração de parcerias público-privadas. Em conjunto, formaram-se grupos educacionais por fusões e aquisições institucionais, acumulando capital financeiro e gerando conglomerados empresariais com grande capacidade de captar recursos e de se autofinanciar com linhas próprias de crédito, além de exercerem influência substancial no ensino brasileiro (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200900...
; Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
; Basilio, 2019 BASILIO, Ana L. Fies: ruim para a educação pública, bom para a educação privada. Carta Capital, São Paulo, 27 jun. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/fies-ruim-para-a-educacao-publica-bom-para-a-educacao-privada/ . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
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).

Marcos legais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961, a Reforma Universitária de 1968 e a Constituição Federal de 1988, foram os principais atos no século XX que introduziram mudanças significativas. Mais recente, governos específicos, como os de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, induziram a construção do arcabouço normativo que moldou o ensino superior, com foco em inovações, EaD e programas para democratizar o acesso às graduações (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www4.planalto.gov.br/legislacao/...
).

Durante a administração do presidente FHC, promulgou-se a nova LDB, de 1996, e criou-se o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), em 2001. O Governo Lula, por sua vez, implementou o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www4.planalto.gov.br/legislacao/...
). Mais recentemente, o Governo Bolsonaro instituiu a Lei de Liberdade Econômica, de 2019, que estabeleceu um marco na criação de novos cursos e instituições privadas, sob o argumento de desburocratizar o setor e incentivar a abertura de cursos à distância (Saldaña, 2020 SALDAÑA, Paulo. Lei da Liberdade Econômica cria brecha para aprovar curso superior sem análise do MEC. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/12/lei-da-liberdade-economica-cria-brecha-para-aprovar-curso-superior-sem-analise-do-mec.shtml . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

A expansão e flexibilização legislativa associadas a mecanismos de empréstimos financeiros, isenção de impostos, programas de financiamento estudantil e a entrada de capital especulativo acionário reforçaram uma atuação das empresas do nicho da educação com lógica do mercado. Suas relações mercadológicas estruturadas por operações de compra e venda definiram a educação superior como uma área lucrativa (Bittencourt, 2015 BITTENCOURT, Renato N. A mercantilização educacional e a ideologia do ensino espetacular. Revista Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 43, p. 249-264, 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/article/view/50157/27364 . Acesso em: 17 jan. 2024.
https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/ar...
; Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
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). Esse processo induziu o surgimento de concentrados grupos empresariais da educação superior privada no Brasil, tais como a Cogna Educação, Ânima Holdings, Ser Educacional, YDUQS e Afya Participações . Essas empresas têm desempenhado significativo aumento de matrículas e receitas líquidas anuais desse setor e também a proliferação de linhas privadas de crédito para a educação (Basilio, 2019 BASILIO, Ana L. Fies: ruim para a educação pública, bom para a educação privada. Carta Capital, São Paulo, 27 jun. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/fies-ruim-para-a-educacao-publica-bom-para-a-educacao-privada/ . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Tricontinental, 2020 TRICONTINENTAL. A educação brasileira na Bolsa de Valores: As oito empresas privadas de capital aberto que atuam no setor educacional. [S. l.]: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2020. Disponível em: https://www.thetricontinental.org/wp-content/uploads/2020/10/20201015_Financeirizac%CC%A7a%CC%83o-da-Educac%CC%A7a%CC%83o_Web.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

Porém, associado a esse processo de privatização, cresce o debate sobre seus efeitos na qualidade dos profissionais graduados (Bittencourt, 2015 BITTENCOURT, Renato N. A mercantilização educacional e a ideologia do ensino espetacular. Revista Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 43, p. 249-264, 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/article/view/50157/27364 . Acesso em: 17 jan. 2024.
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; Oliveira et al., 2022 OLIVEIRA, Bruno. L. C. A. et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e a qualidade do ensino superior em saúde brasileiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 30, e3534, 14 jun. 2022. https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3585 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/Wfk6LvXkMTx5PSvBkp7YtBP/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
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). A característica dos processos seletivos, o perfil socioeconômico e a trajetória de escolarização dos alunos das IES privadas, combinados aos objetivos mercadológicos, infraestrutura e corpo docente dessas instituições, podem estabelecer métodos menos rigorosos de avaliação e menor qualidade educacional e capacidade das IES privadas em manter adequados padrões educacionais (Almeida-Filho, 2011 ALMEIDA-FILHO, Naomar. Higher education and health care in Brazil. The Lancet, [s. l.], v. 377, n. 9781, p. 1898-1900, jun. 2011. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)60326-7 . Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(11)60326-7/abstract . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Soares e Oliveira, 2022 SOARES, Fabiana A.; OLIVEIRA, Bruno L. C. A. Privatização e desigualdades geográficas na distribuição e expansão do ensino superior de enfermagem no Brasil. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 75, n. 4, e20210500, 2022. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0500 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/PZtZ8DYynTXmqjRMSBJkNyN/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
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). Cursos mais complexos em organização e funcionamento, como os da área da saúde, exemplificam melhor essa associação. Neles, o desempenho dos alunos de IES privadas no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) é significativamente menor do que os das públicas (Oliveira et al., 2022 OLIVEIRA, Bruno. L. C. A. et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e a qualidade do ensino superior em saúde brasileiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 30, e3534, 14 jun. 2022. https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3585 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/Wfk6LvXkMTx5PSvBkp7YtBP/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

Apesar da importância do tema, ainda são poucos os estudos que debatem o conjunto de atos normativos relacionados à educação superior no Brasil e que estabelecem seus possíveis impactos na expansão do setor privado sobre ela.

Dessa forma, este estudo buscou analisar a trajetória das legislações relativas ao ensino superior no Brasil e suas contribuições para o processo de privatização do ensino, além de descrever os principais grupos empresariais no ramo da educação superior no país. Para tanto, após a introdução e detalhamento metodológico, os achados foram estruturados em três partes: a primeira, uma listagem dos instrumentos normativos encontrados relacionados a educação superior no Brasil entre 1961 e 2023; a segunda, a descrição do que trata cada um deles; e a última, a exposição dos dados financeiros das principais empresas financiadoras do ensino superior privado no Brasil entre 2022 e 2023. Após esses resultados, seguiu-se à seção de discussão.

Métodos

Trata-se de estudo baseado em análise documental orientada em uma perspectiva crítica das legislações da educação superior do Brasil, disponíveis on-line no Portal da Legislação, no site do Planalto (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
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). Também se analisaram dados de relatórios públicos de balanços financeiros das empresas de educação disponíveis em sites . Selecionaram-se para este estudo as empresas descritas na cartilha A educação brasileira na Bolsa de Valores , elaborada pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (Tricontinental, 2020 TRICONTINENTAL. A educação brasileira na Bolsa de Valores: As oito empresas privadas de capital aberto que atuam no setor educacional. [S. l.]: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2020. Disponível em: https://www.thetricontinental.org/wp-content/uploads/2020/10/20201015_Financeirizac%CC%A7a%CC%83o-da-Educac%CC%A7a%CC%83o_Web.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
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). Todos os dados foram acessados e coletados entre agosto de 2023 e março de 2024.

O site do Planalto (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
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), do Governo Federal, foi a principal fonte para coleta dos dados referentes à legislação. Incluíram-se nessa análise atos normativos de 1961 até dezembro de 2023, tais como leis, decretos, portarias e medidas provisórias. Excluíram-se documentos que se restringiam à área de ensino não superior (ensino básico ou médio), uma vez que o foco da pesquisa foram as IES. Identificaram-se 27 atos normativos, além da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e de um programa de governo implementado em 1997.

Já dos dados correspondentes às principais empresas investidoras do ramo da educação no Brasil, analisaram-se balanços financeiros trimestrais dos anos de 2022 e 2023, obtidos nos sites das respectivas empresas.

Com base no banco de dados legislativo produzido, realizou-se uma triagem em busca dos principais pontos trazidos por cada ato normativo que se relacionava com o processo de expansão de aberturas de vagas e cursos em IES, a fim de compreender como eles ajudaram no processo de privatização do ensino no país.

Na sequência, esses dados foram analisados com base nos resultados dos balanços financeiros das cinco principais empresas investidoras da área de educação superior do Brasil, considerando suas variáveis de crescimento, descritas em relatórios trimestrais por cada uma dessas instituições. Obtiveram-se esses dados nos endereços eletrônicos das respectivas empresas e se mostraram importantes para analisar os motivos econômicos que norteiam o aumento dos investimentos em graduações na área da saúde, em especial os cursos de Medicina.

Resultados

O Quadro 1 descreve os documentos analisados. Eles foram classificados de acordo com o instrumento normativo: leis, projetos de leis, decretos, portarias e medidas provisórias. Adicionou-se também a definição do que representa esses instrumentos normativos e o nome do chefe do executivo do país na época.

Quadro 1
- Instrumentos normativos sobre a educação superior no Brasil entre 1961 e 2023

Foram analisadas 16 leis. A primeira delas foi de 1961 e a última de 2020. A maioria foi publicada neste século (n = 11; 68,7%), ante duas no período da ditadura e quatro na década de 1990, sendo uma delas a Lei Orgânica da Saúde de 1990. Houve também um projeto de lei de 2004, apensado ao projeto de lei n. 73/1999 (Brasil, 1999a BRASIL. Projeto de lei n. 73, de 1999. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1999a. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-73-1999 . Acesso em: 2 maio 2024.
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), que logo se transformou na Lei de Cotas (lei n. 12.711/2012) (Brasil, 2012 BRASIL. Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
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). Já entre os decretos, dois foram sancionados ainda no século XX e um no ano de 2017. Portaria foi o instrumento mais recentemente publicado, pois entre as quatro existentes, duas delas são de 2023. Em 1968, publicou-se também um ato institucional (que remete ao período da ditadura militar). Vinte anos depois, em 1988, promulgou-se a Constituição Federal (Brasil, 1988 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
). Esta aborda temas relativos à educação na Seção I, do Título VIII, a partir do artigo 205. Ademais, a Seção II, “Da Saúde”, estabelece princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Um programa de governo foi publicado em 1997, que estabeleceu parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para recuperar e ampliar as estruturas físicas das IES públicas e privadas; e duas medidas provisórias: 1999 (transformada na lei n. 10.260, de 12 de junho de 2001) (Brasil, 2001b BRASIL. Lei n. 10.260, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2001b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10260.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
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) e 2020 (convertida na lei n. 14.040, de 18 de agosto de 2020) (Brasil, 2020a BRASIL. Medida provisória n. 934, de 1º de abril de 2020. Estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2020a. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-934-de-1-de-abril-de-2020-250710591 . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

O Quadro 2 detalha as principais legislações criadas no Brasil no período entre 1961 e 1999, com suas respectivas informações.

Quadro 2
- Histórico da legislação sobre educação superior no Brasil entre 1961 e 1999

Entre os instrumentos normativos, destaca-se a LDB de 1961, que estabeleceu os fundamentos da estrutura do sistema educacional no Brasil. Em 1968, a Reforma Universitária promoveu mudanças também nos currículos e na gestão acadêmica, reorganizando as universidades brasileiras, tais como a criação dos Institutos Superiores de Educação, a obrigatoriedade do exame vestibular e a autonomia universitária.

O ato institucional n. 5 (AI-5) reprimiu movimentos sociais organizados, promoveu a cassação de intelectuais e desmobilizou organizações estudantis. Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve a autorização da participação da iniciativa privada no ensino, com a avaliação do poder público, de acordo com o artigo 209, Seção I, Título VIII da Carta Magna (Brasil, 1988 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
). A Lei do SUS, em 1990, definiu como competência do SUS a formação de recursos humanos na área da saúde. Por fim, em 1999, houve a criação do Fies, que direcionou verbas públicas para instituições privadas e permitiu a ampliação do acesso às IES.

O Quadro 3 descreve o histórico de legislações a partir do ano 2000. Nos primeiros anos do século XXI, 2000 e 2005, percebe-se a sucessiva edição de legislações, principalmente no que se refere às inovações tecnológicas e ao ensino à distância. O último instrumento normativo estudado foi publicado em setembro de 2023.

Quadro 3
- Histórico da legislação sobre educação superior no Brasil entre 2000 e 2023

Destaca-se a lei n. 10.172/2001 (Brasil, 2001a BRASIL. Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2001a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
), que incluiu metas para a Educação Superior, com ênfase no ensino à distância. Houve também a criação do Prouni, por meio da lei n. 11.096/2005 (Brasil, 2005a BRASIL. Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2005a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11096.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
), que implementou incentivos fiscais para IES privadas que oferecem bolsas de estudo para estudantes de baixa renda, por meio principalmente da nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A Lei do Programa Mais Médicos (lei n. 12.871/2013) (Brasil, 2013 BRASIL. Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
) expandiu os cursos de graduação em Medicina e reordenou as vagas de residências médicas, com influência também sobre a oferta de outros cursos de graduação da saúde. A Lei de Liberdade Econômica, de n. 13.874/2019 (Brasil, 2019 BRASIL. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), buscou desburocratizar e flexibilizar diversos setores da economia, incluindo a educação superior, facilitando a abertura de novos cursos. Com o estímulo à inovação e a facilidade da oferta de cursos à distância, garantiu aprovações tácitas para autorizações de funcionamento de alguns cursos em instituições privadas.

Durante a pandemia de Covid-19, a medida provisória n. 934/2020 (Brasil, 2020a BRASIL. Medida provisória n. 934, de 1º de abril de 2020. Estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2020a. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-934-de-1-de-abril-de-2020-250710591 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medid...
), convertida na lei n. 14.040 do mesmo ano (Brasil, 2020b BRASIL. Lei n. 14.040, de 18 de agosto de 2020. Estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020 [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2020b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14040.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
), modificou a LDB, permitindo a antecipação da formatura em determinados cursos da área da saúde e assegurando a possibilidade de realização de atividades pedagógicas não presenciais. Já em 2023, a portaria n. 1.771, de 1º de setembro (Brasil, 2023a BRASIL. Portaria n. MEC 1.771, de 1º de setembro de 2023. Dispõe sobre os fluxos, procedimentos e padrão decisório para o processamento de pedidos de aumento de vagas dos cursos de Medicina de instituições vinculadas ao sistema federal de educação superior. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2023a. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.771-de-1-de-setembro-de-2023-507376212 . Acesso em: 2 maio 2024
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
) estabeleceu regras para a ampliação de vagas em cursos de Medicina em instituições particulares.

O Quadro 4 traz o resultado das análises dos balanços financeiros das cinco principais empresas financiadoras da educação superior privada no Brasil. Analisaram-se dados da Cogna Educação, YDUQS Participações, Ser Educacional, Ânima Holding e Afya Participações . Descreveram-se as informações sobre seus proprietários, principais empresas subsidiárias, o número de matriculados no ano de 2022 e a receita líquida nos anos de 2022 e 2023.

Quadro 4
- Dados financeiros das principais empresas financiadoras do ensino superior privado no Brasil entre 2022 e 2023

A Cogna Educação (anteriormente denominada Kroton) é controlada pela Alasca Investimentos Ltda. e BlackRock Inc. Suas principais subsidiárias incluem Anhanguera, Pitágoras e Unopar. Em 2022, a base de alunos de graduação atingiu 896,5 mil, com um crescimento de 11,5%. A receita líquida anual em 2022 foi de R$ 5.092,2 milhões, o que representou o crescimento de 6,6% em comparação ao ano de 2021. Até o final do quarto trimestre de 2023, a empresa apresentou uma receita líquida anual de R$ 5.895,5 milhões.

A YDUQS Participações é controlada por Rose Fundo de Investimento e Estácio de Sá Ltda. Sua principal subsidiária é a Estácio de Sá. Em 2022, registrou 1.194,9 mil alunos, com uma ligeira redução de 3,9% em comparação ao exercício anterior. A receita líquida anual foi de R$ 4.564,9 milhões em 2022, apontando crescimento de 4%, e a empresa alcançou R$ 5.147.562 até o quarto trimestre de 2023.

A Ser Educacional tem como proprietários a Oceana Investimentos Acvm Ltda e José J. B. Diniz. Sua principal subsidiária é a Uninassau. Seus alunos totalizaram 295,2 mil em 2022, demonstrando um crescimento de 32,0% em comparação a 2021. A receita líquida anual atingiu R$ 3.428,9 milhões em 2022, com R$ 1.824,7 milhões até o quarto trimestre de 2023.

Já a Ânima Holding é uma empresa controlada por pessoas físicas e fundos de investimentos. Suas principais subsidiárias incluem a Una, Unisul e São Judas. Atingiu 394,7 mil alunos em 2022, com um crescimento de 0,8% em relação ao número de alunos do ano anterior. A receita líquida consolidada em 2022 foi de R$ 3.563.231, e possuía R$ 3.732.940 até o terceiro trimestre de 2023.

Por fim, a Afya Participações é a única das empresas avaliadas que é voltada apenas ao ensino de ciências médicas. Tem como proprietários pessoas físicas (em específico a família Esteves) e fundos de investimentos. Suas principais subsidiárias são a Itapac e Medcel. Em 2022, registrou 22.774 estudantes, com uma receita líquida ajustada de R$ 2.319,10 milhões. A receita líquida anual até o terceiro trimestre de 2023 alcançou R$ 2.144.600.

Discussão

Verificou-se uma diversidade de atos legislativos, que sucessivamente modificaram a estrutura educacional superior do Brasil. O conjunto legislativo atuou para a progressiva flexibilização e desregulação do setor, abertura de capital acionário, financiamentos e empréstimos públicos e incentivos às parcerias entre universidades e empresas, que expandiram o número de IES, cursos, vagas e modalidades de ensino (presencial e EaD) na iniciativa privada (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www4.planalto.gov.br/legislacao/...
). A oferta de financiamentos públicos (Fies e Prouni) facilitou o acúmulo de capital financeiro por grandes grupos empresariais que controlam um número relevante de IES no ensino privado.

A concorrência e competição entre essas IES as induziram a assumirem estratégias de mercado para atrair e fidelizar seus clientes: tickets de desconto, parcerias público-privadas, linhas de crédito próprias e flexibilização dos mecanismos de acesso ao ensino, das modalidades de ensino e de cumprimento da carga horária (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/ES.241276...
; Mattei e Bidarra, 2022MATTEI, Tatiane S.; BIDARRA, Zelimar S. O papel do FIES e do PROUNI na privatização, mercantilização e financeirização da educação superior brasileira. Barbarói, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 61, p. 53-84, maio 2022. ). Esses grupos também apresentam capacidade econômico-financeira de absorver IES menores, de se autofinanciarem e expandirem seus modelos de negócio, permitindo, assim, alcançar aumento constante de matrículas e receitas líquidas anuais (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200900...
; Morais, 2023 MORAIS, Heloisa M. M. et al. Expansão e privatização dos cursos de medicina e a integração ensino-serviço: o caso do estado de Pernambuco. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 47, n. 137, p. 182-195, abr./jun. 2023. https://doi.org/10.1590/0103-1104202313713 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Cz5btL8Tqz33ptFHS3kHXqD/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/0103-11042023137...
).

Em sua maioria, os mecanismos político-legislativos usados pelo Estado brasileiro para configurar o ensino superior no país foram os decretos e as portarias. Esses meios se mostraram mais flexíveis, com menor tempo de tramitação e embate. Embora todos os atos estejam sujeitos a controle, as leis e os projetos de lei, por seguirem um rito de aprovação mais longo e rigoroso, não foram as alternativas mais viáveis à concessão de benefícios a grupos específicos da sociedade e do mercado dado às urgências deles.

O empresariado da educação superior se articula por meio de suas associações para atuar incisivamente no processo de debate, criação e reformulação das políticas educacionais no Congresso brasileiro. Eles têm articulação em todos os partidos políticos e no encaminhamento de suas demandas, reivindicando e forjando ao seu setor benefícios e vantagens por meio de propostas dentro de arcabouços jurídico-legais (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/ES.241276...
). Uma das suas estratégias é atuar com a Frente Parlamentar de Apoio ao Ensino Superior, por meio da qual esse empresariado reivindica e encaminha suas demandas. Formam alianças e redes de cooperação que expandem a interlocução e influências com diversos outros atores políticos e governanças, que passam a atender às necessidades do setor privado de educação (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/ES.241276...
; Mattei e Bidarra, 2022MATTEI, Tatiane S.; BIDARRA, Zelimar S. O papel do FIES e do PROUNI na privatização, mercantilização e financeirização da educação superior brasileira. Barbarói, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 61, p. 53-84, maio 2022. ). Essa simbiose tem tornado o Estado um agente essencial e estratégico da privatização da educação superior (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
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).

O século XX no Brasil foi marcado por inúmeras transformações, principalmente nos âmbitos da educação superior e da saúde. Elas se relacionam diretamente à edição de um vasto número de instrumentos normativos, que: definiram as bases do sistema educacional; garantiram autonomia às universidades; determinaram o dever do Estado de assegurar o acesso à saúde; e ampliaram a oportunidade de ingresso no ensino superior público, por meio da política de cotas, e no ensino superior privado, por meio da oferta de bolsas por cada instituição (baseadas, em muitos casos, na nota do Enem) e de parcerias público-privadas, que resultaram no financiamento estudantil, a exemplo do Fies (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
).

O processo de privatização do ensino no Brasil foi influenciado por uma série de legislações ao longo das décadas, envolvendo todos os governos. Não se pode atribuir exclusivamente a um único governo ou partido político, pois é resultado da combinação e acúmulo de ações ao longo de diferentes gestões. Dentre elas, destacam-se: o Governo de Fernando Henrique Cardoso (dois mandatos: 1995 a 1999 e 1999 a 2002); o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (três mandatos: 2003 a 2007, 2007 a 2010 e o mais novo iniciado em 2023); o Governo Michel Temer (2016 a 2018); e o Governo Jair Messias Bolsonaro (2019 a 2022) (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
).

O Governo FHC promulgou a nova LDB, em 1996, e o Fies, em 2001. Por sua vez, o Governo Lula implementou o Sinaes e o Prouni. O curto mandato do presidente Temer instituiu o decreto n. 9.057, que alterou significativamente a regulamentação e normatização do EaD, favorecendo fortemente a expansão acelerada da educação superior à distância. Já o Governo Bolsonaro instituiu a Lei de Liberdade Econômica, que flexibilizou a criação de novos cursos e abertura de IES privadas (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
; Brasil, 1996b BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, 2001b BRASIL. Lei n. 10.260, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2001b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10260.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
, 2004a BRASIL. Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2004a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.861.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
, 2005a BRASIL. Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2005a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11096.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
, 2017a BRASIL. Decreto n. 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 2017a. Disponível em: https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Decreto-9057-2017-05-25.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
https://abmes.org.br/arquivos/legislacoe...
, 2019 BRASIL. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

O percurso normativo que permeia a privatização do ensino superior no Brasil teve início em 20 de dezembro de 1961, com a lei n. 4.02, que tratou da LDB. Ela estabeleceu as bases para a organização do sistema educacional brasileiro (Brasil, 1961 BRASIL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1961. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4024.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
). Nessa mesma década, a lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968, deu origem à Reforma Universitária e promoveu mudanças significativas no ensino superior brasileiro (Brasil, 1968a BRASIL. Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1968a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5540.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
).

A Reforma Universitária pode ter contribuído com a privatização do ensino superior ao garantir maior autonomia universitária e flexibilidade curricular (permitindo se adequar às necessidades do mercado) e promover uma demanda crescente por vagas, o que teria feito surgir a necessidade de expandir a oferta no ensino superior, criando as IES privadas como alternativa para aqueles que não conseguiram ingressar no sistema público (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200900...
). A criação das IES, além de atender à crescente demanda por vagas, também permitiu diversificar o cenário educacional, como resposta à sua autonomia (geralmente maior que a das instituições públicas) (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

A autonomia administrativa das IES privadas permitiu que os cursos se adequassem às necessidades do mercado (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
), mostrando-se investimentos cada vez mais lucrativos para as grandes empresas de educação. Todos esses fatores podem ter sido capazes de influenciar o processo inicial de privatização do ensino superior.

Todavia, o advento do ato institucional n. 5 em 1968 (Brasil, 1968b BRASIL. Ato institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 1968b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait...
) gerou retrocessos no setor da educação, principalmente no público. Foi um período marcado por intensa repressão a movimentos sociais, desmobilização de organizações estudantis e cassação e exílio de professores e intelectuais contrários ao regime político-militar (Brasil, 1968a BRASIL. Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1968a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5540.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
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, 1968b BRASIL. Ato institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 1968b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait...
). Apenas em 1988 o cenário se alterou com a publicação da nova Constituição da República Federativa do Brasil (Constituição Cidadã), que garantiu maior autonomia às instituições de ensino (Brasil, 1988 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

No que se refere à área da saúde, a lei n. 8.080 de 1990 (Lei do SUS) promoveu transformações expressivas ao concretizar o dever constitucional do Estado em garantir o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. Em seu artigo 6º, a referida lei determina ser da competência do SUS a formação de recursos humanos para a saúde (Brasil, 1990 BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
). Nesse sentido, a alta demanda por profissionais de saúde qualificados pode ter sido um dos fatores que influenciou o crescimento do número de IES privadas, uma vez que a expectativa de retorno financeiro pode ter se mostrado um atrativo aos grandes empresários.

O princípio da integralidade e atuação em equipes multiprofissionais no SUS promoveu a expansão dos serviços de saúde em níveis de complexidade crescente. Contudo, requereu também investimentos na formação de profissionais de diferentes graduações. Com isso, as IES enxergaram oportunidade de expansão na área da saúde, e grupos empresariais passaram a investir em virtude da previsão de lucro pelo grande aumento da demanda por profissionais qualificados. Esse setor da educação privada se mostrou uma das áreas mais lucrativas, em especial os cursos de Medicina (Pereira, 2011 PEREIRA, Renata C. A. O trabalho multiprofissional na Estratégia Saúde da Família: estudo sobre modalidades de equipes. 2011. 135 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/23245/933.pdf;jsessionid=33B9E7FECEA1E0DA741C8C7E0138F214?sequence=1 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ha...
; Dal Poz, Maia e Costa-Couto, 2022 DAL POZ, Mario R.; MAIA, Leila S.; COSTA-COUTO, Maria H. Financeirização e oligopolização das instituições privadas de ensino no Brasil: o caso das escolas médicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 38, Supl. 2, 2022. https://doi.org/10.1590/0102-311X00078720 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/rHtjvZbhmfLqGQMYrHQM79c/?lang=pt# . Acesso em: 2 maio 2024
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007872...
).

Em 1996, a nova versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ampliou o acesso ao ensino e regulamentou a modalidade EaD (Brasil, 1996b BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Em 1998, ela recebeu regulamentações específicas pelo decreto n. 2.494 e pela portaria n. 301, com medidas que buscaram dar clareza e validade nacional aos diplomas obtidos por meio dessa modalidade de ensino (Brasil, 1998a BRASIL. Decreto n. 2.494, de 10 de fevereiro de 1998. Regulamenta o Art. 80 da LDB (Lei n. 9.394/96). Brasília, DF: Presidência da República, 1998a. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/D2494.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/p...
, 1998b BRASIL. Portaria n. 301, de 7 de abril de 1998. Normatizar os procedimentos de credenciamento de instituições para a oferta de cursos de graduação e educação profissional tecnológica a distância. Brasília, DF: Ministério da Educação, 1998b. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/port301.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/p...
). Nesse cenário, as IES privadas viram oportunidade para a redução de custos e passaram a investir cada vez mais em tecnologia e educação, com expansão da quantidade de cursos EaD e da carga horária permitida à distância.

A criação do Fies, por meio da medida provisória n. 1.827-1, de 1999 (Brasil, 1999b BRASIL. Medida provisória n. 1.827-1, de 24 de junho de 1999. Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1999b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas/1827-1.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv...
), transformada na lei n. 10.260, em 2001 (Brasil, 2001b BRASIL. Lei n. 10.260, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2001b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10260.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
), foi um grande marco para o acesso ao ensino superior e também estimulou a destinação indireta de verbas públicas para IES privadas (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
; Morais, 2023 MORAIS, Heloisa M. M. et al. Expansão e privatização dos cursos de medicina e a integração ensino-serviço: o caso do estado de Pernambuco. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 47, n. 137, p. 182-195, abr./jun. 2023. https://doi.org/10.1590/0103-1104202313713 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Cz5btL8Tqz33ptFHS3kHXqD/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/0103-11042023137...
). Entre os anos de 2012 e 2022, o Brasil destinou mais de R$ 130 bilhões para custear o Fies. Esse orçamento foi crescente até 2017, quando atingiu 19,92 bilhões. Daí em diante, houve redução para 5,53 em 2022 (Brasil, 2017b BRASIL. Relatório do Tribunal de Contas da União analisa gastos do governo. Brasília, DF: Tribunal de Contas da União, Secom, 28 set. 2017b. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/relatorio-do-tribunal-de-contas-da-uniao-analisa-gastos-do-governo.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
https://portal.tcu.gov.br/imprensa/notic...
; Calgaro, 2022 CALGARO, Fernanda. Diante de vagas ociosas, Fies terá Orçamento 35% menor para 2022. G1, Rio de Janeiro, 3 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/02/03/diante-de-vagas-ociosas-fies-tera-orcamento-35percent-menor-para-2022.ghtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://g1.globo.com/educacao/noticia/20...
). Percentuais acima de 80% de ocupação das vagas ocorreram entre 2017 e 2019, mas, em seguida, grande parte das vagas de financiamento ofertadas permaneceram ociosas. Nesse mesmo período, a evasão atingiu maiores médias no presencial (30,0%) e no EaD (35,0%) (Instituto Semesp, 2021 INSTITUTO SEMESP. Mapa do Ensino Superior no Brasil. 11. ed. São Paulo: Instituto Semesp, 2021. ). Parte desse descompasso entre grande orçamento público e baixa procura e alta evasão se deve à naturalização da ideia de que o estudante precisa ser financiado para estudar no ensino superior, da falta de políticas públicas de manutenção dos estudantes na graduação e da dificuldade de inserção no mercado de trabalho para garantir o pagamento do financiamento adquirido para a graduação (Basilio, 2019 BASILIO, Ana L. Fies: ruim para a educação pública, bom para a educação privada. Carta Capital, São Paulo, 27 jun. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/fies-ruim-para-a-educacao-publica-bom-para-a-educacao-privada/ . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www.cartacapital.com.br/educacao...
; Calgaro, 2022 CALGARO, Fernanda. Diante de vagas ociosas, Fies terá Orçamento 35% menor para 2022. G1, Rio de Janeiro, 3 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/02/03/diante-de-vagas-ociosas-fies-tera-orcamento-35percent-menor-para-2022.ghtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://g1.globo.com/educacao/noticia/20...
).

Organismos internacionais também participaram desse grande investimento privado na educação superior do Brasil. O Banco Mundial atuou por meio de empréstimos ou compra de ações de várias IES (Ideal Invest, Estácio Participações S. A., Ânima Educação, Ser Educacional, Anhanguera Educacional Participações S. A. e Fundo de Educação para o Brasil). Desde 2009, o Banco Mundial aplicou mais de 2 bilhões de reais em projetos de educação no país (Santos e Chaves, 2020 SANTOS, Aline V.; CHAVES, Vera L. J. Influência de atores privados no fortalecimento da privatização da educação superior brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241276, 2020. https://doi.org/10.1590/ES.241276 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FmDGCdsfhcTSTcj7KdTSRgh/?lang=pt . Acesso em: 9 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/ES.241276...
).

A Lei de Liberdade Econômica (lei n. 13.874/2019) também atuou indiretamente na desburocratização do ensino superior. A lei surgiu como alternativa para reduzir a burocracia nas atividades econômicas e estimular o desenvolvimento e o empreendedorismo, diminuindo a intervenção do Estado e dando mais poder aos particulares para realizarem negócios entre si (Brasil, 2019 BRASIL. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...] e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm . Acesso em: 2 maio 2024.
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; Saldaña, 2020 SALDAÑA, Paulo. Lei da Liberdade Econômica cria brecha para aprovar curso superior sem análise do MEC. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/12/lei-da-liberdade-economica-cria-brecha-para-aprovar-curso-superior-sem-analise-do-mec.shtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2...
). Contudo, sua aplicação também se expandiu para o setor da educação superior, que foi compreendido como mais um ramo da atividade econômica, estimulando a abertura de novos cursos, inclusive na modalidade EaD.

Nesse viés, após a publicação da lei n. 13.874/2019, o Ministério da Educação (MEC) publicou a portaria n. 279, de 29 de setembro de 2020, criando novos prazos para a aprovação de cursos e permissão de abertura de IES, que deve ocorrer de forma tácita nos casos em que o órgão ou a entidade não se manifesta conclusivamente nos prazos determinados no referido instrumento normativo (Brasil, 2020c BRASIL. Portaria n. 279, de 29 de setembro de 2020. Dispõe sobre os prazos para fins de aprovação tácita dos atos públicos de liberação, de responsabilidade da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior - Seres [...]. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2020c. Disponível em: https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Portaria-seres-279-2020-09-29.pdf . Acesso em: 2 maio 2024.
https://abmes.org.br/arquivos/legislacoe...
; Saldaña, 2020 SALDAÑA, Paulo. Lei da Liberdade Econômica cria brecha para aprovar curso superior sem análise do MEC. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/12/lei-da-liberdade-economica-cria-brecha-para-aprovar-curso-superior-sem-analise-do-mec.shtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2...
). Em face da suposta morosidade do MEC alegada pelos grupos empresariais, os cursos passaram a ser aprovados por via judicial. Um número considerável de IES funcionam por meio de liminar judicial. A expansão de cursos por esse meio ocorreu principalmente na graduação em Medicina (Saldaña, 2020 SALDAÑA, Paulo. Lei da Liberdade Econômica cria brecha para aprovar curso superior sem análise do MEC. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/12/lei-da-liberdade-economica-cria-brecha-para-aprovar-curso-superior-sem-analise-do-mec.shtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2...
) e está associada à Lei do Programa Mais Médicos de 2013. Essa lei estimulou a abertura de cursos e vagas e acarretou crescimento contínuo das receitas das grandes empresas da educação médica (Telles, 2020 TELLES, Alexandre O. A expansão de escolas médicas e o Programa Mais Médicos. 2020. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/46284/ve_Alexandre_Telles_ENSP_2020.pdf?sequence=4&isAllowed=y . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

Diante disso, em junho de 2022, a Associação Nacional das Universidade Particulares (Anup) ajuizou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) buscando impedir a abertura de novos cursos via liminar judicial e estabelecer a necessidade de reexame das autorizações já concedidas, bem como o fechamento dos cursos que não respeitaram os critérios estabelecidos para a abertura. Ela alegava que as faculdades recorriam às liminares ao não cumprirem os requisitos do programa Mais Médicos. Em alguns casos, as IES nem mesmo se submetiam a essa seleção, procurando diretamente a via judicial (Associação Médica Brasileira, 2002 ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. MEC veta curso de Medicina via liminar. AMB, São Paulo, 2022. Disponível em: https://amb.org.br/brasilia-urgente/mec-veta-curso-de-medicina-via-liminar/ . Acesso em: 2 maio 2024.
https://amb.org.br/brasilia-urgente/mec-...
).

Entre as preocupações associadas ao processo de privatização do ensino estão a qualidade da formação dos profissionais e a adequada quantidade de docentes das IES. Algumas IES convivem com a alta demanda de alunos para um baixo número de professores, principalmente em cursos EaD, o que gera riscos à qualidade do ensino. Segundo dados do MEC, IES possuem uma média de 500 alunos por docente, e cerca de 65% de todas as matrículas em cursos superiores no país estão no EaD (Palhares, 2024 PALHARES, Isabela. MEC vai apurar alta proporção de alunos por professor em 11 faculdades particulares. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/01/mec-vai-apurar-alta-proporcao-de-alunos-por-professor-em-11-faculdades-particulares.shtml . Acesso em: 2 maio 2024.
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).

No cenário atual, caiu o padrão de excelência nos processos de ensino e avaliação nas IES, principalmente no campo da saúde, que já se reflete diretamente no desempenho dos graduandos e futuros profissionais que atuam no mercado de trabalho (Oliveira et al., 2022 OLIVEIRA, Bruno. L. C. A. et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e a qualidade do ensino superior em saúde brasileiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 30, e3534, 14 jun. 2022. https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3585 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/Wfk6LvXkMTx5PSvBkp7YtBP/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3...
). Dados do Enade evidenciam diferenças no desempenho dos alunos segundo a natureza administrativa das IES. Os estudantes das IES privadas apresentam menor desempenho, e este é ainda pior a depender da localização geográfica, modalidade de ensino, regiões do país e localidades fora das áreas metropolitanas (Oliveira et al., 2022 OLIVEIRA, Bruno. L. C. A. et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e a qualidade do ensino superior em saúde brasileiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 30, e3534, 14 jun. 2022. https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3585 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/Wfk6LvXkMTx5PSvBkp7YtBP/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3...
).

As inovações prometidas pelo processo de privatização não se refletem na democratização do acesso ao ensino superior de qualidade, mas em benefício crescente das políticas de mercado. Há necessidade de maior regulação estatal e social do ensino superior a fim de se assegurar maior qualidade à educação (Martins, 2009 MARTINS, Carlos. B. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 106, p. 15-35, abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RKsKcwfYc6QVFBHy4nvJzHt/# . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200900...
). Grandes grupos nacionais privados podem tender a priorizar lucros em detrimento da qualidade da formação e da aderência dela às realidades locorregionais (Oliveira et al., 2022 OLIVEIRA, Bruno. L. C. A. et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e a qualidade do ensino superior em saúde brasileiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 30, e3534, 14 jun. 2022. https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3585 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/Wfk6LvXkMTx5PSvBkp7YtBP/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/1518-8345.5714.3...
; Soares e Oliveira, 2022 SOARES, Fabiana A.; OLIVEIRA, Bruno L. C. A. Privatização e desigualdades geográficas na distribuição e expansão do ensino superior de enfermagem no Brasil. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 75, n. 4, e20210500, 2022. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0500 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/PZtZ8DYynTXmqjRMSBJkNyN/?lang=pt . Acesso em: 2 maio 2024.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
).

Nos últimos anos, grandes empresas do ramo da educação aumentaram investimentos na abertura e manutenção de cursos na área da saúde e priorizaram os de Medicina. Esse mercado mostra-se cada vez mais atrativo devido ao grande número de ingressantes, altos valores das mensalidades e baixíssimas taxas de evasão (Dal Poz, Maia e Costa-Couto, 2022 DAL POZ, Mario R.; MAIA, Leila S.; COSTA-COUTO, Maria H. Financeirização e oligopolização das instituições privadas de ensino no Brasil: o caso das escolas médicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 38, Supl. 2, 2022. https://doi.org/10.1590/0102-311X00078720 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/rHtjvZbhmfLqGQMYrHQM79c/?lang=pt# . Acesso em: 2 maio 2024
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007872...
). Considerando a inflação, o custo médio de um aluno de Medicina até o final do curso pode chegar a cerca de 1,4 milhão de reais (Falcão, 2020 FALCÃO, Marina. Empresas pagam 1,4 mi por aluno de medicina. Valor Econômico, São Paulo, 4 set. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2020/09/04/empresas-pagam-r-14-mi-por-aluno-de-medicina.ghtml . Acesso em: 2 maio 2024.
https://valor.globo.com/impresso/noticia...
).

A implementação de programas voltados ao acesso à educação e à democratização do ensino, particularmente de Medicina, resultou em significativo aumento no número de vagas disponíveis. Porém, essa expansão não é bem recebida por parte da categoria médica, que expressa resistência e descontentamento com a qualidade da formação profissional e maior concorrência no mercado de trabalho (Coutinho Júnior, 2013 COUTINHO JÚNIOR, José. “Pobre estudar medicina é afronta para a elite”, diz médico formado em Cuba. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, [s. l.], 31 jul. 2013. Disponível em: https://mst.org.br/2013/07/31/pobre-estudar-medicina-e-afronta-para-a-elite-diz-medico-formado-em-cuba/ . Acesso em: 2 maio 2024.
https://mst.org.br/2013/07/31/pobre-estu...
).

Apesar desses achados, eles não estão livres de limitações, pois foram acessados apenas dados públicos. Especialmente os dados econômicos dos grupos educacionais foram analisados nos balanços financeiros divulgados por elas, não se tendo completa noção dos lucros alcançados. Porém, por serem empresas de capital aberto, elas têm obrigações contábeis em garantir a lisura desses dados. O estudo só considerou as legislações existentes sobre o tema e suas atualizações no intervalo estudado, com isso, não levou em conta o contexto socioeconômico e cultural das variadas regiões do país. Contudo, esses dados revelaram a diversidade e a extensão de atos normativos que regulamentaram ao longo de décadas o cenário da educação superior no Brasil. Destaca-se a expansão do ensino privado e a formação de grandes conglomerados econômicos que se especializaram e se diferenciam dentro desse mercado lucrativo e especulativo que se tornou a educação superior, já que compõem empresas de capital aberto e com cotação em bolsa de valores. Logo, o real impacto do processo de privatização e seus riscos diretos na qualidade do ensino, que passam pelos atos normativos aqui descritos, devem ser preocupação de toda a sociedade, pois têm implicações sobre a qualidade do ensino e de todo o sistema de saúde do Brasil.

Conclusões

Este estudo ofereceu relevante análise das legislações que regem o ensino superior no Brasil, destacando sua influência na expansão, privatização, financeirização e mercantilização desse setor. Além disso, apontou os aspectos financeiros e de faturamento relacionados às principais empresas do setor de educação superior do país.

No período estudado, a conjuntura da política econômica implantada no Brasil defendeu um Estado neoliberal que se caracteriza por reduzida intervenção estatal e maior regulação do mercado sobre as políticas sociais implantadas ou implementadas, ampliando o espaço para o financiamento e a acumulação de capital privado.

Governos e partidos brasileiros se alternaram no poder, mas todos sucessivamente atuaram para atender à pressão de empresários do setor da educação e agiram em cooperação com ele. Atores públicos, privados e organismos multilaterais, em especial o Banco Mundial, atuaram estrategicamente na construção ideológica e prática da privatização da educação brasileira.

Ao longo dos anos, observou-se aumento na velocidade de publicação de legislações sobre educação superior (Brasil, 2024b BRASIL. Portal da Legislação. Portal do Governo Brasileiro, 2024b. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://www4.planalto.gov.br/legislacao/...
). Todos os governos, desde o início do período da ditadura até os mais recentes, foram marcados por uma proliferação significativa de instrumentos normativos relevantes, contribuindo de maneira substancial para o processo de privatização da educação (Moraes, 2015 MORAES, Guilherme. C. Mercantilização das instituições de ensino superior públicas e privadas no Brasil. Revista Três Pontos, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3340 . Acesso em: 2 maio 2024.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
).

As legislações identificadas e descritas neste estudo moldaram a estrutura do sistema educacional vigente no país e definiram critérios para a criação e a expansão de IES, cursos e vagas, bem como as exigências para seu funcionamento e permanência. Percebe-se que a evolução dos instrumentos normativos garantiu progressiva flexibilidade dessas normas, favorecendo a participação cada vez maior de empresas privadas, que se organizaram em grandes grupos econômicos atuantes em todas as áreas da formação, mas, em alguns casos, até se especializando na educação da área da saúde. Assim, pode-se relacionar o avanço das legislações como um dos determinantes da atuação de grandes grupos empresariais no setor educacional, desempenhando papel relevante na mercantilização do ensino superior do Brasil.

Agradecimento

À Universidade Federal do Maranhão (UFMA), pela bolsa de iniciação científica (Pibic) de Juliana N. M. Rego, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (Capes).

Referências

  • Como citar:

    REGO, Juliana N. M.; OLIVEIRA, Bruno L. C. A. Legislações do ensino superior e a privatização da educação no Brasil. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 22, 2024, e02779251. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs2779
  • Financiamento

    O presente estudo foi realizado no âmbito do Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes), Código de Financiamento 001, da Universidade Federal do Maranhão e da Fundação de Pesquisa do Estado do Maranhão (Fapema), Brasil.
  • Aspectos éticos

    A apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos foi dispensada, pois este estudo foi elaborado somente com documentos públicos e disponíveis on-line . Contudo, a pesquisa respeitou as questões éticas conforme as diretrizes descritas na resolução n. 510/2016, assim como as demais normas que regulamentam a pesquisa no Brasil.
  • Apresentação prévia

    Este artigo é resultado do projeto de iniciação científica desenvolvido pela bolsista Juliana N. M. Rego, sob orientação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O estudo foi realizado com base em pesquisas conduzidas durante o período de agosto de 2023 e março de 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    16 Abr 2024
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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