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Neoliberalismo e gerencialismo: impactos no trabalho, formação e subjetividade de agentes comunitários de saúde

Neoliberalism and managerialism: impacts on the work, training and subjectivity of community health workers

Neoliberalismo y gerencialismo: impactos en el trabajo, la formación y la subjetividad de los agentes comunitarios de salud

Resumo

Este artigo analisa impactos da implementação de reformas neoliberais e dispositivos de gerencialismo com organizações sociais privadas atuando na gestão do setor público no processo de trabalho, formação profissional e subjetividade de agentes comunitários de saúde. O estudo problematiza os princípios de produtivismo, meritocracia e performatividade na ideologia do gerencialismo aplicados à saúde. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com abordagem da investigação-ação-participativa. Realizaram-se entrevistas individuais com dez agentes comunitários de saúde de uma unidade de saúde da família no município do Rio de Janeiro. Os dados foram interpretados com a técnica da análise de conteúdo, e organizou-se a discussão dos resultados em cinco categorias: Desafios no contexto neoliberal; A questão da formação profissional; Condições de trabalho; Subjetividade no contexto de trabalho; e Práticas políticas de acomodação e resistência. Os resultados mostraram as diversas formas de contestação às políticas neoliberais na organização do trabalho. Na tensão e contradição no cotidiano de trabalho, os sujeitos se fazem e se refazem, acomodam-se, adaptam-se ou resistem, sentem prazer e sofrem. Conclui-se que é preciso reforçar espaços de escuta, acolhimento e diálogo, promovendo uma formação crítica dos agentes comunitários de saúde e fortalecendo seu papel articulador, educador e mobilizador.

Palavras-chave
reformas neoliberais; agente comunitário de saúde; condições de trabalho; formação profissional; sistema único de saúde

Abstract

This article analyzes the impacts of the implementation of neoliberal reforms and managerialism devices with private social organizations acting in the management of the public sector on the work process, professional training and subjectivity of community health workers. The study problematizes the principles of productivism, meritocracy and performativity in the ideology of managerialism applied to health. This is a qualitative study with an action-research approach. Individual interviews were carried out with ten community health workers from a family health unit in the municipality of Rio de Janeiro, state of Rio de Janeiro, Brasil. The data was interpreted using the content analysis technique, and the discussion of the results was organized into five categories: Challenges in the neoliberal context; The issue of professional training; Working conditions; Subjectivity in the work context; and Political practices of accommodation and resistance. The results showed the various forms of contestation against neoliberal policies in the organization of work. In the tension and contradictions of everyday work, subjects make and remake themselves, accommodate, adapt or resist, feel pleasure and suffer. The conclusion is that there is a need to strengthen spaces for listening, welcoming and dialogue, promoting critical training for community health workers and strengthening their articulating, educating and mobilizing role.

Keywords
neoliberal reforms; community health worker; working conditions; professional training; unified health system

Resumen

Este artículo analiza el impacto de la implementación de las reformas neoliberales y de los dispositivos de gerencialismo con organizaciones sociales privadas que actúan en la gestión del sector público sobre el proceso de trabajo, la formación profesional y la subjetividad de los agentes comunitarios de salud. El estudio problematiza los principios de productivismo, meritocracia y performatividad en la ideología del gerencialismo aplicado a la salud. Se trata de un estudio cualitativo con un enfoque de investigación-acción-participativa. Se realizaron entrevistas individuales a diez agentes comunitarios de salud de una unidad de salud familiar del municipio de Río de Janeiro, estado de Río de Janeiro, Brasil. Los datos se interpretaron mediante la técnica de análisis de contenido, y la discusión de los resultados se organizó en cinco categorías: Desafíos en el contexto neoliberal; La cuestión de la formación profesional; Condiciones de trabajo; Subjetividad en el contexto laboral; y Prácticas políticas de acomodación y resistencia. Los resultados mostraron diversas formas de contestación a las políticas neoliberales en la organización del trabajo. En la tensión y las contradicciones del trabajo cotidiano, las personas se hacen y se rehacen, se acomodan, se adaptan o resisten, sienten placer y sufren. Se concluye la necesidad de fortalecer los espacios de escucha, acogida y diálogo, promoviendo la formación crítica de los agentes comunitarios de salud y fortaleciendo su papel articulador, educador y movilizador.

Palabras clave
reformas neoliberales; agente comunitario de salud; condiciones de trabajo; formación profesional; sistema único de salud

Introdução

O trabalho de agente comunitário de saúde (ACS) tem grande relevância na organização e qualidade da Atenção Primária em Saúde (APS) no Brasil. Desde o movimento da Reforma Sanitária durante a ditadura militar nos anos 1970-1980 até a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), as políticas públicas implementadas geraram demanda pela formação de novos profissionais, como foi o caso dos ACSs. Esse tipo de trabalho foi reconhecido como profissão em 2002 pela lei n. 10.507 e regulamentado em 2006 pela lei n. 11.350, e considerado uma profissão de saúde, junto com os agentes de combate às endemias, pela lei n. 14.536, em 2023 (Brasil, 2002 BRASIL. Lei n. 10.507, de 10 de julho de 2002. Cria a Profissão de Agente Comunitário de Saúde e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10507.htm . Acesso em: 10 jul. 2024.
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; 2006 BRASIL. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm . Acesso em: 10 jul. 2024.
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; 2023 BRASIL. Lei n. 14.536, de 20 de janeiro de 2023. Altera a lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006, a fim de considerar os Agentes Comunitários de Saúde e os Agentes de Combate às Endemias como profissionais de saúde, com profissões regulamentadas, para a finalidade que especifica. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2023-2026/2023/lei/L14536.htm . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

Esse profissional surge como um agente de transformação no processo de territorialização e descentralização das ações de saúde, estabelecendo um vínculo mais próximo à comunidade, atuando como uma liderança local com funções que vão desde a educação e promoção da saúde até a articulação do conhecimento científico com o popular. No entanto, suas atribuições, condições de trabalho e formação ainda são grandes desafios.

A formação dos ACSs estruturou-se com a expansão do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), na década de 1990, e com a consolidação do Programa de Saúde da Família (ESF), nos anos 2000, como estratégia de organização da APS. Com o passar dos anos, a política nacional de indução do Ministério da Saúde promoveu o aumento da cobertura da atenção primária na maioria dos municípios do país, e a formação profissional dos ACSs em 2004 passou a contar com um marco referencial curricular de abrangência nacional (Méllo, 2013MÉLLO, Lívia M. B. D. A trajetória da formação profissional dos agentes comunitários de saúde no município do Recife-PE. 2013. 203 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. ; Souza, Barcelos e Lanza, 2013 SOUZA, Marina C. M. R.; BARCELOS, Ana P. M.; LANZA, F. M. A política de formação técnica do agente comunitário de saúde: perspectivas e desafios. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 16, n. 4, p. 469-473, out./dez. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps/article/view/15113/7984 . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). Entretanto, as disputas em torno da formação desses profissionais continuaram por nem sempre atenderem às necessidades de APS nos territórios, pois é muitas vezes direcionada para o desenvolvimento de competências técnicas e administrativas em detrimento de uma formação para o trabalho com a educação popular em saúde (Souza, 2014SOUZA, Fernanda R. M. Agentes comunitários de saúde, formação e perfil profissional: o caso de Duque de Caxias, RJ. 2014. 152 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ).

Embora a lei n. 11.350 de 2006 (Brasil, 2006 BRASIL. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm . Acesso em: 10 jul. 2024.
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) estabeleça alguns requisitos para o exercício legal da profissão, não menciona a necessidade de uma formação profissional específica. Além da legalização da profissão e das necessidades de formação específica, outro importante desafio enfrentado pelos ACSs é a precarização do trabalho.

Em pesquisa recente, Orrillo ( 2019ORRILLO, Yansy A. D. Política, trabalho e formação de agentes comunitárias/os em uma unidade de Saúde da Família no município do Rio de Janeiro. 209 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. ) destaca que a vulnerabilidade dos vínculos no emprego, a intensificação do processo de trabalho e a excessiva demanda administrativa têm dificultado o equilíbrio entre o trabalho assistencial e a missão social dos ACSs no território em que atuam. Em muitos casos, a forte regulação gerencialista pelas organizações sociais da saúde (OSSs) privadas contratadas pelos municípios deixa os agentes prisioneiros de funções burocráticas, preenchendo fichas, produzindo indicadores e funcionando como mensageiros entre os profissionais de saúde de nível superior e a população no território. Apesar de algumas dessas atividades serem parte das atribuições dos ACSs, o foco no processo de produtivismo baseado na performance quantitativa desconectada da realidade social e cultural acaba afastando-os do território e limitando as ações de promoção da saúde e educação popular.

A crise política decorrente do golpe de Estado de 2016 no Brasil interrompeu um ciclo progressista e favoreceu a acentuação de reformas neoliberais que causaram retrocessos importantes no SUS, situação que se agravaria no contexto da pandemia de covid-19 com uma crise do capitalismo flexível globalizado (Druck, 2021 DRUCK, Graça. A tragédia neoliberal, a pandemia e o lugar do trabalho. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XXIV, n. 49, p. 11-34, jan./abr. 2021. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/51098/51098.PDF . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). A desestruturação das políticas públicas, o ataque aos direitos sociais e a precarização das condições de trabalho retratam um momento político em que as conquistas da Constituição de 1988 estiveram sob forte ameaça. Em nível nacional, durante o governo de Michel Temer (MDB/2016-2018), esse retrocesso na saúde pública incluiu a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2017, o que, segundo Morosini e Fonseca ( 2017 MOROSINI, Márcia V.; FONSECA, Angélica F. Revisão da Política Nacional de Atenção Básica numa hora dessas?. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, 2017. https://doi.org/10.1590/0102-311X00206316 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017000100301&lng=en . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), permitiu a flexibilização na composição das equipes de saúde da família com a redução do número de profissionais e a possibilidade de que os municípios implementassem modelos de APS mesmo sem ações de educação em saúde e promoção da qualidade de vida.

Em nível local, o município do Rio de Janeiro vinha de um período de incorporação do modelo gerencialista na APS com a contratação de OSSs para a gestão do SUS e a ampliação da cobertura de serviços de saúde entre 2009 a 2017. Sob o governo de Marcelo Crivella (Republicanos/2016-2020), os recortes orçamentários na área da saúde levaram a profundas mudanças nas atribuições dos ACSs, com uma rápida deterioração das condições de trabalho, intensificação dos vínculos precarizados, fechamento de diversas unidades de saúde e recorrentes atrasos e congelamento dos salários (Melo, Mendonça e Teixeira, 2019 MELO, Eduardo A.; MENDONÇA, Maria H. M.; TEIXEIRA, Márcia. A crise econômica e a atenção primária à saúde no SUS da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, p. 4.593-4.598, dez. 2019. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25432019 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/DvfHFsvqYzXN4bPX9HbsBxj/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 202
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). Como movimento contra-hegemônico às iniciativas do governo municipal, em 2017 os profissionais de saúde da APS no Rio de Janeiro realizaram diversas mobilizações, greves e manifestações. Esses protestos envolveram principalmente os ACSs, que agiam tanto no enfrentamento às ameaças de nível nacional decorrentes da revisão da PNAB, como na luta contra o desmonte da estratégia de saúde da família em nível local.

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado desenvolvida nesse período social e político mais crítico (2016-2018). Tem como objetivo analisar como os ACSs reagiram às políticas neoliberais que desmontaram a rede de atenção em saúde da família no município do Rio de Janeiro naquele momento e discutir os impactos da implantação do modelo gerencialista das organizações sociais de direito privado (baseado nos princípios de produtividade, performance e meritocracia) nas suas condições de trabalho, em seus processos de formação profissional e na constituição de suas subjetividades.

Marco teórico-conceitual

As reformas neoliberais têm remodelado profundamente as políticas públicas em diversos setores. Autores como Ball ( 2001BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras (on-line), v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. ) analisam criticamente essas reformas, destacando a colonização das políticas sociais pelo discurso econômico. No contexto da saúde em âmbito internacional, Almeida ( 2012ALMEIDA, Célia. Reforma de sistemas de saúde: tendências internacionais, modelos e resultados. In: GIOVANELLA, Lígia et al. (org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 759-801. ) examina a implantação das reformas neoliberais no setor e identifica uma transformação paradigmática relevante de um modelo baseado no bem-estar social para um modelo baseado na lógica do mercado privado. De acordo com a autora, no final do século XIX as políticas públicas focavam em políticas sociais para compensar desigualdades e manter a classe trabalhadora produtiva ao longo do processo de urbanização promovido pela revolução industrial. Já em meados do século XX, o impacto da Segunda Guerra Mundial levou à necessidade de maior universalização no acesso aos sistemas de saúde. No entanto, com a ascensão do neoliberalismo nos anos 1980, acabou estabelecendo-se uma abordagem mais voltada para os lucros do que para os direitos sociais dos cidadãos (Almeida, 2012ALMEIDA, Célia. Reforma de sistemas de saúde: tendências internacionais, modelos e resultados. In: GIOVANELLA, Lígia et al. (org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 759-801. ).

O paradigma neoliberal passa a influenciar fortemente a gestão pública e, com o discurso de ineficiência, implementa o modelo de gerencialismo. Nele, a performatividade, o produtivismo e a meritocracia emergem como tecnologias políticas a serem aplicadas em todo o setor público, remodelando processos de trabalho, estruturas administrativas e culturas organizacionais (Ball, 2005 BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). A ideologia do gerencialismo difunde uma cultura empresarial, competitiva, que desinstitucionaliza processos e corrompe sistemas ético-profissionais. A performatividade se traduz em medidas de desempenho usadas para controlar o setor público, afetando práticas e subjetividades e transformando profundamente os processos de trabalho. Ambas as tecnologias atuam como pedagogias invisíveis que criam mais espaços de controle sobre o que é gerido (Ball, 2001BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras (on-line), v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. ).

Morosini ( 2018MOROSINI, Márcia V. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990-2016: a precarização para além dos vínculos. 2018. 357 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ) define o gerencialismo como tecnologia do poder. Assim, a gestão é considerada pela autora como uma ideologia que legitima a adoção de abordagens das relações sociais como caraterísticas privadas. O gerencialismo funcionaria como estratégia que atende às demandas das classes dominantes e ao modelo de produção hegemônica baseada no capital financeiro (Mendes e Carnut, 2018 MENDES, Aquilas; CARNUT, Leonardo. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1.105-1.119, out. 2018. https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180365 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/NWtCkYJVcjzM5frKfWskvBF/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). Esse modelo de gestão foi fortemente promovido por organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional, a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento e a Organização dos Estados Americanos. Na área da saúde, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana de Saúde foram as instituições responsáveis pela incorporação das tecnologias do gerencialismo nas políticas setoriais e nos processos administrativos da gestão pública. No Brasil, o livro Uma agenda para a Saúde , de Eugênio Vilaça Mendes, foi o principal instrumento de legitimação da visão neoliberal na gestão por resultados em detrimento da qualidade nos processos (Teixeira, 1997 TEIXEIRA, Carmen F. Uma agenda para a Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1-2, p. 173-177, 1997. https://doi.org/10.1590/1413-812319972102392014 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/kJhYhrbJkR6WyybQMMf8P8y/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

As mudanças decorrentes das reformas neoliberais não ocorrem de forma unidirecional e pacífica. Existem fortes movimentos de resistência a elas, que vão desde estratégias discursivas de adaptação parcial, sem aderir a elas, até a negação completa de sua implementação entre grupos e setores mais fortemente organizados e com acúmulo histórico de enfrentamentos políticos. É o que ocorre nos setores diretamente relacionados às lutas pelos direitos sociais à educação pública, à saúde coletiva e à assistência e previdência social. Dessas disputas que se espalham por toda a sociedade e dos decorrentes processos de recontextualização das normas, leis e regulamentos resultam políticas públicas híbridas e diversificadas, que nunca são totalmente implementadas como são originalmente concebidas, mas representam a força resultante dos conflitos (Ball, 2004 BALL, Stephen J. Performatividade, privatização e o pós-Estado do Bem-Estar. Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1.105-1.126, dez. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000400002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/3DXRWXsr9XZ4yGyLh4fcVqt/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

Entretanto, é preciso registrar que a ideologia do gerencialismo promove rupturas importantes na lógica pública da gestão em saúde e tem implicações diretas no processo de trabalho dos profissionais. De acordo com Morosini ( 2018MOROSINI, Márcia V. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990-2016: a precarização para além dos vínculos. 2018. 357 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ), as mudanças no processo de gestão e organização dos serviços de saúde têm impactado o trabalho dos ACSs, aumentando a carga de atividades administrativas e direcionando sua atuação para a abordagem centrada em doenças. Além disso, a precarização do trabalho, entendido pela autora como um processo histórico e fenômeno social, vai além das relações salariais. Está se tornando cada vez mais problemática, pois afeta não apenas os contratos e condições de trabalho, mas também a subjetividade dos trabalhadores, capturando afetos e transformando valores e modos de viver (Morosini, 2018MOROSINI, Márcia V. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990-2016: a precarização para além dos vínculos. 2018. 357 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ). Para Druck ( 2011 DRUCK, Graça. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios?. Caderno CRH, Salvador, v. 24, p. 37-57, 2011. Número especial 1. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400004 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/qvTGPNcmnSfHYJjH4RXLN3r/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), a precarização social do trabalho ocupa centralidade no capitalismo flexível e se torna uma estratégia de dominação, ao mesmo tempo que cria novas formas de vulnerabilidade social. A precarização do trabalho produz e reproduz a precariedade, entendida como

condição intrínseca ao modo de produção e reprodução capitalista, associada à constituição da força de trabalho como mercadoria [e] atinge ‘aqueles que são despossuídos do controle dos meios de produção das condições objetivas e subjetivas da vida social’.

(Morosini, 2018MOROSINI, Márcia V. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990-2016: a precarização para além dos vínculos. 2018. 357 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. , p. 141).

Sobre subjetividade no contexto das relações de trabalho, as contribuições teóricas da psicodinâmica do trabalho auxiliam na compreensão dos processos intersubjetivos que influenciam a forma como os indivíduos interpretam e gerenciam seu trabalho (Dejours, 2012DEJOURS, Christophe. Trabalho e emancipação. Tradução de Franck Soudant. Brasília: Paralelo 15, 2012. ; Lancman e Sznelwar, 2011LANCMAN, Selma; SZNELWAR, Laerte I. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Tradução de Franck Soudant. 3. ed. rev. ampl. Brasília: Editora Fiocruz; Paralelo 15, 2011. ). Como afirmam Azevedo e Sá ( 2013AZEVEDO, Creuza S.; SÁ, Marilene C. (org.). Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. ), os serviços de saúde não são apenas espaços materiais e normativos, mas também espaços intersubjetivos, onde a organização simbólica compartilhada pelos trabalhadores afeta sua capacidade de responder às demandas da população com influência nos processos de gestão e nas práticas de cuidado e atenção à saúde. O sofrimento no trabalho leva os trabalhadores a desenvolver estratégias de enfrentamento, que podem ser individuais ou coletivas.

Por fim, com a necessidade de refletir sobre esses processos de enfrentamento aos mecanismos de opressão, destacamos os aportes de Giroux ( 1985GIROUX, Henry A. Teorías de la reproducción y la resistencia en la nueva sociología de la educación: un análisis crítico. Cidade do México: Editorial Era, 1985. , 2023GIROUX, Henry A. Educação, cultura e lutas pela democracia: escritos contemporâneos sobre o maquinário neoliberal. Tradução de Gustavo de Oliveira Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2023. ). O autor afirma que, diante de mecanismos autoritários, os sujeitos não somente se adaptam, mas passam a agir conforme se espera. Sempre existem também dispositivos de resistência como uma resposta às práticas opressoras. Desse modo, destaca-se a importância de entender os processos pelos quais os sujeitos resistem ou se acomodam frente à pressão social e política dominante.

Essas práticas políticas de resistência têm um potencial emancipatório e buscam desafiar as diversas formas de dominação na sociedade, desempenhando um papel crucial na transformação das estruturas de poder e nas lutas contra a injustiça social. Deve-se sempre considerar na análise dos processos tanto a intenção dos sujeitos como o contexto histórico, social e cultural em que ocorrem (Giroux, 2004GIROUX, Henry A. Teoría y resistencia en educación: una pedagogía para la oposición. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 2004. ).

Método

Este é um estudo de natureza qualitativa, fundamentado na abordagem de que o objeto de pesquisa seja estudado desde uma perspectiva ampliada, buscando compreender a realidade social, histórica e cultural em que se desenvolve (Minayo, 2009MINAYO, Maria C. S. (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 28. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. ). Adotamos a perspectiva epistemológica da investigação-ação-participativa (Fals-Borda, 2015FALS-BORDA, Orlando. Una sociología sentipensante para América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2015. ; Figueiredo, 2015 FIGUEIREDO, Gustavo O. Investigación acción participativa: una alternativa para la epistemología social en Latinoamérica. Revista de Investigación, Caracas, v. 39, n. 86, p. 271-290, set./dez. 2015. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=376144131014 . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

Esse fundamento epistemológico que sustenta o pensamento decolonial na América Latina foi um processo coletivo que se beneficiou do trabalho criativo e do debate entre pessoas do continente interessadas em investigar temas característicos de suas próprias realidades sociais, principalmente problemas relacionados à educação, cultura e produção de conhecimento popular, transgredindo as fronteiras impostas pelos colonizadores e desafiando as relações de poder. Desde o início dos anos 1970, o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda e o educador brasileiro Paulo Freire já haviam proposto o uso da investigação-ação-participativa como abordagem epistemológica alternativa ao modelo sociológico universalista de origem europeia (Giroux e Figueiredo, 2021 GIROUX, Henry A.; FIGUEIREDO, Gustavo O. Paulo Freire e a revolução política do pensamento decolonial. Ensino, Saúde e Ambiente, Niterói, v. 14, p. 1-21, 2021. Número especial. https://doi.org/10.22409/resa2021.v14iesp..a52513 . Disponível em: https://periodicos.uff.br/ensinosaudeambiente/article/view/52513/30585 . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.22409/resa2021.v14ies...
).

Os sujeitos participantes do estudo foram dez ACSs (n=10) de uma unidade de saúde da família localizada no bairro da Ilha do Governador, no município do Rio de Janeiro. Incluíram-se profissionais que demonstraram interesse em colaborar com a pesquisa e com o nosso convívio no cotidiano da unidade de saúde e que assinaram voluntariamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Excluíram-se da amostra os sujeitos que não demonstraram interesse, aqueles que estavam afastados, em licença, com desvio de função ou não estavam desenvolvendo suas atividades como ACS. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro por meio do parecer n. 2.581.913.

Na coleta de dados, além da imersão dos pesquisadores no cotidiano da unidade de saúde com uma perspectiva de observação participante, realizaram-se entrevistas individuais semidiretivas com base em roteiros semiestruturados (Thompson, 1992THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992. ). As entrevistas foram previamente agendadas, realizadas dentro da unidade de saúde e tiveram duração média de 50 minutos. Todas as sessões foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra em forma de texto. Para a interpretação dos dados provenientes das entrevistas, adotamos a técnica de análise de conteúdo de Bardin ( 2009BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. ), com a categorização temática e a análise dos resultados. Desse modo, seguimos os três passos propostos pela autora: a pré-análise, na qual se realiza uma breve leitura do material a ser analisado; a exploração do material, em que se estabelecem categorias com base na saturação de respostas; e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação, nos quais os resultados brutos sofrem um tratamento para se tornarem significativos.

Resultados e discussão

Com base na análise de conteúdo, foi possível identificar cinco categorias analíticas por meio das quais organizamos a discussão dos resultados provenientes dos dados empíricos, a saber: Desafios no contexto neoliberal; A questão da formação profissional; Condições de trabalho; Subjetividade no contexto de trabalho; Práticas políticas de acomodação e resistência. O Quadro 1 apresenta uma síntese dessas categorias, os descritores que funcionaram como marcadores das diferentes questões identificadas durante o processo de análise das entrevistas e um breve resumo do conteúdo discutido em cada uma das categorias.

Quadro 1
- Categorias empíricas de análise, seus descritores e resumo de conteúdos abordados, 2018

Desafios no contexto neoliberal: críticas às reformas neoliberais, ao desmonte do SUS e à falência do modelo gerencial por organizações sociais de direito privado

Os resultados apontam que o modelo gerencialista adentrou na APS por meio das OSSs e transformou o contexto de trabalho na ESF, deixando pouco espaço para a reflexão crítica desse paradigma no município do Rio de Janeiro. Porém, o cenário de crise que se desencadeou após o golpe de Estado em 2016 evidenciou que os ACSs do nosso estudo começaram a questionar mais o modelo de gestão e a falta de investimento público por parte das esferas de governo. O processo de desestruturação dos serviços municipais de saúde nesse período é percebido como uma realidade pelos ACSs, que se viram muito vulnerabilizados pelas condições de trabalho às quais estavam submetidos:

Eu acho que do mesmo jeito que a gente teve progressos, esses processos estão sendo anulados agora, e a gente vivendo um retrocesso, que não [é]só politicamente, ? As pessoas também parecem que tão , não sei, voltando ao tempo da caverna, sabe? [...] a gente aqui pra fazer nosso trabalho, e a gente não consegue fazer porque a gente não tem recursos pra isso, a gente não tem meios pra isso. E quem não disponibiliza esses meios pra isso é questão política, então a gente extremamente vulnerável.

(ACS-5)

Nesse contexto, diversas iniciativas legislativas como a PNAB 2017 e outras sobre as reformas políticas desse momento – como a lei n. 13.467 de 2017, que aprova a reforma trabalhista, e a emenda constitucional n. 95, que determina congelamento dos investimentos públicos por vinte anos – constituem desafios importantes para a ‘recontextualização da política’ (Ball apud Mainardes, 2006 MAINARDES, Jefferson. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, abr. 2006. https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000100003 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/NGFTXWNtTvxYtCQHCJFyhsJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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) na prática dos trabalhadores. Além disso, enfatizam que o modelo de saúde da família também se mostra amplamente ameaçado. A revisão da PNAB em 2017, com as iniciativas locais de redução de custos em saúde, atingiu diretamente a continuidade da ESF e a vida dos ACSs.

Assim como concluem Ramos e Seta ( 2019 RAMOS, André L. P.; SETA, Marismary H. Atenção Primária à Saúde e organizações sociais nas capitais da região Sudeste do Brasil: 2009 e 2014. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, e00089118, 2019. https://doi.org/10.1590/0102-311X00089118 . Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csp/2019.v35n4/e00089118/pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), o modelo de gestão privada por meio de OSSs, adotado em São Paulo e no Rio de Janeiro, não obteve, no conjunto dos indicadores analisados, um desempenho melhor perante outros municípios que mantiveram a gestão da atenção primária pela administração pública direta. Em alguns casos, o desempenho do modelo privado de gestão foi inclusive considerado muito pior que do modelo público. Essa privatização na gestão dos serviços de saúde também é descrita como uma questão preocupante por sujeitos de nosso estudo, que denunciam um enfoque da gestão das OSSs com mais interesse na produtividade do que na melhoria da saúde da população em geral. Os agentes relataram a necessidade inclusive de falsificar indicadores epidemiológicos para que as unidades de saúde não perdessem investimentos e as equipes pudessem seguir ganhando um bônus salarial devido à grande produtividade informada, mesmo que por vezes forjada.

[...] eu vejo muito descaso na política em relação à saúde, não só saúde, educação... Segurança... Eu acho que... Não é correto, eles deveriam ver mais na população, [...] eu acho que educação, saúde e segurança são três coisas que não tem como ser econômico... É uma coisa em que tem que ser investida. Alguns meses a gente tem que inventar produção que não fez e falsificar os números nos sistemas da prefeitura se quiser continuar ganhando nosso salário completo.

(ACS-9)

De acordo com Morosini e Fonseca ( 2018MOROSINI, Márcia V.; FONSECA, Angélica F. Configurações do trabalho dos agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: MENDONÇA, Maria H. M. et al. (org.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 369-406. ), esse “novo modelo gerencialista de gestão pública” difunde a ideologia de que a terceirização da gestão mediante contratos com OSSs privadas seria mais eficiente que a própria gestão pública. Porém, ele não realiza a necessária crítica de que o incentivo ao trabalho performático, em que prevalecem resultados quantitativos, metas e indicadores, causa uma gravíssima queda na qualidade dos serviços prestados à população e, portanto, legitima a valorização de dados mensuráveis em detrimento de cuidados integrais de saúde da população. Com isso, tem ocorrido uma verdadeira colonização dos serviços públicos por modelos empresariais de administração exclusivamente focados na dimensão econômica (Ball, 2004 BALL, Stephen J. Performatividade, privatização e o pós-Estado do Bem-Estar. Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1.105-1.126, dez. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000400002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/3DXRWXsr9XZ4yGyLh4fcVqt/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200400...
).

Os ACSs identificam a problemática, mas em determinados momentos não se percebem como partícipes do problema. O que está em suas possibilidades é fazer o melhor do seu trabalho para atender à população, essa é a sua principal preocupação. Esse microespaço individual dos trabalhadores, que oferecem o melhor de si em oposição às condições de trabalho que o sistema privado de gestão lhes fornece, poderia ser considerado um aspecto inerente à resistência contra o desmonte do SUS. Entretanto, com impactos cada vez mais severos à saúde dos trabalhadores. O modelo gerencialista utiliza tecnologias políticas como a ideologia da performatividade e da meritocracia (Ball, 2005 BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574200500...
; [s.d.] BALL, Stephen J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. Currículo sem Fronteiras (on-line), v. 6, n. 2, p. 10-32, jul./dez. 2006. Disponível em: https://biblat.unam.mx/hevila/CurriculosemFronteiras/2006/vol6/no2/2.pdf . Acesso em: 10 jul. 2024.
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) para impregnar a subjetividade dos ACSs e, assim, poder aumentar os indicadores de produção sem que eles muitas vezes possam perceber todo o jogo político de manipulação.

É bem difícil, acho que a população não é bem assistida, não é, realmente não é. Poderia se fazer mais pela população, só que não faz [referindo-se à gestão desse período], então eu tenho que fazer o meu, porque o meu eu consigo oferecer melhor pra eles que são os meus usuários.

(ACS-3)

Nesse jogo político, os ACSs também são atores que, durante o período analisado, se mostraram articulados e mobilizados apesar das dificuldades. Nesse contexto, os coletivos de organização sindical dos ACSs atuam no contexto de influência e de produção do texto das políticas (Mainardes, 2006 MAINARDES, Jefferson. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, abr. 2006. https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000100003 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/NGFTXWNtTvxYtCQHCJFyhsJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), assim como os ACSs têm a possibilidade de reinterpretar as políticas hegemônicas na sua práxis. No Rio de Janeiro, o Sindicato de Agentes Comunitários de Saúde do Rio de Janeiro (SINDACS-RJ) e o movimento de Nenhum Serviço de Saúde a Menos (NSSM) tiveram um importante papel na organização, negociação e mobilização dos ACSs. No caso do movimento NSSM, ele surge como

instrumento de organização e mobilização em resposta a uma série de ataques ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro, em um contexto nacional de crise econômica e política, corte de gastos sociais e ascensão da extrema-direita.

(Saffer, Mattos e Rego, 2020 SAFFER, Denis A.; MATTOS, Leonardo V.; REGO, Sábata R. M. Nenhum Serviço de Saúde a Menos: movimentos sociais, novos sujeitos políticos e direito à saúde em tempos de crise no Rio de Janeiro, Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, p. 147-159, 2020. Número especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042020S113 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/SyXTcydf5SY95thHLG7tJjv/abstract/?lang=pt# . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.1590/0103-11042020S11...
, p. 148).

Com base nos achados deste artigo, podemos considerar que a falência do modelo gerencial por OSSs estaria acentuada pela crise que o país atravessava no momento analisado e que as políticas neoliberais não estariam dando conta dos problemas suscitados. O modelo neoliberal prega eficiência, autonomia e flexibilidade; porém, os custos sociais são altos e, como afirma Druck ( 2021 DRUCK, Graça. A tragédia neoliberal, a pandemia e o lugar do trabalho. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XXIV, n. 49, p. 11-34, jan./abr. 2021. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/51098/51098.PDF . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/5109...
), essa racionalidade hegemônica neoliberal encontra-se em crise. Nesse contexto, é importante não só o posicionamento, mas também a participação da população nas lutas dos trabalhadores de saúde que resistem ao modelo hegemônico. Uma ACS alerta:

Eu acho que falta muita consciência, ? Muita consciência. [...] Mas a educação é muito maltratada, justamente com essa intenção, da [ sic ] maioria da população não ser consciente mesmo. Não enxergar o que acontecendo. As pessoas estão mais preocupadas com o Big Brother .

(ACS-1)

A lógica do gerencialismo está pautada em outros valores. Seus principais interesses são cumprir metas, melhorar desempenhos, ser eficientes etc. Assim, no cotidiano do trabalho dos ACSs, há pouco espaço para refletir ou questionar esse paradigma do setor privado, sendo o modelo gerencial implantado o que influencia nos ‘limitados momentos’ de resistência às políticas neoliberais dos profissionais e da população.

A questão da formação profissional: curso introdutório, aprendizado na prática e as potencialidades e necessidades de formação

Os ACSs realizaram um curso introdutório oferecido pela própria unidade de saúde para iniciar o trabalho. Entretanto, similar aos achados de Meira ( 2008MEIRA, Regina M. M. B. P. O agente comunitário de saúde: convergências e divergências, na percepção dos próprios agentes, dos médicos, enfermeiros e usuários do serviço. 2008. 161 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina de Botucatu, Botucatu, 2008. ), que mostraram a pouca relevância do curso no processo de formação dos ACSs, o curso introdutório não dá conta das necessidades de formação.

[...] a gente ficou uma semana sentada no auditório só ouvindo, acho que foi cansativo por isso [...], mas foi extremamente didático, mas poderia ser um pouco mais prático. (ACS-5)

Não foi bem um curso, foi um treinamento, ? Acho que foi uns dois ou três dias de curso teórico só.

(ACS-3)

Com resultados semelhantes aos de Souza ( 2014SOUZA, Fernanda R. M. Agentes comunitários de saúde, formação e perfil profissional: o caso de Duque de Caxias, RJ. 2014. 152 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ), encontramos neste estudo a ausência de preparo dos ACSs antes de serem contratados para essa função. O curso introdutório poderia ser uma oportunidade de aproximação a esses novos trabalhadores, mas é colocado como uma ação formal para cumprir as normas da PNAB e qualificar os profissionais. Assim, o curso acaba se transformando em mais uma ferramenta de controle do modelo gerencialista, pouco interessado nas reais demandas dos ACSs e multiplicando pedagogias invisíveis e normativas de gestão que criam espaços para controle sobre aquilo que é gerido (Ball, 2001BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras (on-line), v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. ).

Outro aspecto importante é a falta de relação estabelecida entre a formação oferecida e o cotidiano real de trabalho, mesmo que os ACSs valorizem muito mais os processos de ensino-aprendizagem que acontecem na sua prática concreta e a reflexão sobre o estudo de casos reais:

Eu fui me inteirando melhor na prática, ? Sabendo mais do que se trata na prática mesmo, no dia a dia, e cada dia eu descubro algo novo. É todo um processo importante mesmo.

(ACS-1)

Portanto, ao planejar ações de formação com os ACSs, é essencial fortalecer uma aprendizagem que emerge do cotidiano do trabalho, para além dos conteúdos teóricos. As diversas experiências encontradas na literatura demonstram a importância de abordagens problematizadoras e que valorizem as experiências dos ACSs nas políticas e programas de formação para essa categoria (Duarte, Silva e Cardoso, 2007 DUARTE, Lúcia R.; SILVA, Débora S. J. R.; CARDOSO, Sandra H. Construindo um programa de educação com agentes comunitários de saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 23, p. 439-447, dez. 2007. https://doi.org/10.1590/S1414-32832007000300004 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/JYzd76cRLRcnKKTfNCq3ZPx/?lang=pt# . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200700...
; Brigagão e Gonçalves, 2009 BRIGAGÃO, Jacqueline I. M.; GONÇALVES, Roselane. Oficinas de promoção de saúde: discutindo os dilemas do cotidiano de um grupo de agentes comunitárias de saúde. Paideia, Ribeirão Preto, v. 19, n. 44, p. 387-393, dez. 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2009000300013 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/paideia/a/7MXCd7YcL5Z5ZnWnqpj7MmR/?lang=pt# . Acesso em: 10 jun. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0103-863X200900...
; Queiroz, Silva e Oliveira, 2014 QUEIROZ, Danielly M.; SILVA, Maria R. F.; OLIVEIRA, Lúcia C. Educação Permanente com agentes comunitários de saúde: potencialidades de uma formação norteada pelo referencial da Educação Popular e Saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, p. 1199-1210, jan. 2014. Suplemento 2. https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0303 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/KdgWJjtXxPqx7j85J8NgMYR/?lang=pt# . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

As necessidades de formação dos ACSs englobam múltiplos significados: o aprimoramento como uma forma de migrar para profissões mais valorizadas; a formação como uma forma de adquirir conhecimento para lidar com as complexidades do trabalho; a qualificação relacionada à melhoria de sua situação financeira; e, em outros casos, a organização do trabalho, sob a influência da lógica neoliberal, exige dos trabalhadores maior aperfeiçoamento para melhorar a sua produtividade. Ferreira ( 2016FERREIRA, Karine M. Qualidade de vida dos agentes comunitários de saúde. 2016. 87 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016. ) e Méllo ( 2013MÉLLO, Lívia M. B. D. A trajetória da formação profissional dos agentes comunitários de saúde no município do Recife-PE. 2013. 203 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. ) destacam a frequente busca individual por qualificação profissional, não apenas para lidar com a complexidade das atividades, mas também para atender às expectativas da gestão e aprimorar o desempenho, conforme ressaltado por Ball ( 2005 BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), imersos numa ideologia meritocrática. Por outro lado, a busca por uma formação profissional crítica implicaria também um ato de resistência, no sentido defendido por Giroux ( 1985GIROUX, Henry A. Teorías de la reproducción y la resistencia en la nueva sociología de la educación: un análisis crítico. Cidade do México: Editorial Era, 1985. , 2004GIROUX, Henry A. Teoría y resistencia en educación: una pedagogía para la oposición. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 2004. , 2016 GIROUX, Henry A. Escuela y teorías de la resistencia por Henry Giroux. OVE: Otras Voces em Educación (on-line), 5 set. 2016. Disponível em: http://otrasvoceseneducacion.org/archivos/158633 . Acesso em: 10 jul. 2024.
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), ou seja, como comportamento de oposição que se produz no contexto de discursos e valores contraditórios.

Desse modo, é importante apostar em uma formação profissional crítica que fortaleça as potencialidades identificadas pelos ACSs do nosso estudo: visão ampliada de saúde, habilidades sociais, reflexão política, fortalecimento de valores humanos e contexto histórico.

Eu acho que eu aprendi a ter muita paciência, eu acho que a gente aprendeu a olhar as pessoas, a vida de forma diferente. Eu acho que o respeito, eu acho que a gente tem uma visão diferenciada da família, porque a gente vê muitos casos.

(ACS-7)

Essa formação crítica teria como base a formação na práxis, ou seja, as diversas estratégias de formação profissional como a técnica, a educação permanente em saúde, a educação popular em saúde etc., que considerem a práxis como essa unidade dialética entre teoria e prática (Fals-Borda, 2015FALS-BORDA, Orlando. Una sociología sentipensante para América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2015. ) ou a dinâmica ação-reflexão (Freire, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 3. ) nos processos formativos dos ACSs, porque é na práxis que a consciência se transforma.

Condições de trabalho: intensificação, precarização e outras dificuldades

A crescente carga de atividades a serem desempenhadas pelos ACSs evidencia uma intensificação do trabalho, respaldada por disposições normativas, como a PNAB de 2017 e a lei n. 13.595 de 2018 (Brasil, 2018 BRASIL. Lei n. 13.595, de 5 de janeiro de 2018. Altera a lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e as condições de trabalho, o grau de formação profissional, os cursos de formação técnica e continuada e a indenização de transporte dos profissionais Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2015-2018/2018/lei/l13595.htm . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). Nota-se que esses profissionais demonstram uma preferência por atividades de campo no território em detrimento das tarefas administrativas realizadas nas unidades de saúde. No entanto, conforme documentado pela Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (CONACS) em 2015, observa-se uma redução do tempo dedicado às visitas domiciliares e às atividades educativas no território, com a priorização de ações de gestão realizadas no interior das unidades de saúde (Morosini e Fonseca, 2018MOROSINI, Márcia V.; FONSECA, Angélica F. Configurações do trabalho dos agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: MENDONÇA, Maria H. M. et al. (org.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 369-406. ).

Na organização do trabalho individual e coletivo, existe o discurso de que os ACSs têm liberdade para decidir sobre o planejamento de suas atividades, mas na prática são utilizadas diversas ferramentas de controle gerencial para os submeter às atividades burocráticas. Contudo, a autonomia também pode representar uma forma de resistência, no uso da ‘liberdade’ para questionar a própria forma de organização do trabalho. Desse modo, a noção de autonomia relativa denota momentos não reprodutores dentro de estruturas hegemônicas (Giroux, 2004GIROUX, Henry A. Teoría y resistencia en educación: una pedagogía para la oposición. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 2004. ).

Os ACSs, por fazerem parte dos territórios onde atuam, assumem significativa responsabilidade e compromisso em buscar soluções para os problemas de saúde locais. No entanto, suas ações são limitadas por diversas restrições provenientes das condições e processos de trabalho nas unidades de saúde (Galavote, 2010GALAVOTE, Heletícia S. Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos. 2010. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. ). Embora o compromisso com a saúde da população os leve a se adaptar às condições de trabalho em alguns momentos, essa adaptação implica cumprir performances mensais exigidas pela gestão, que usa critérios de produtividade na alocação de recursos. As demandas burocráticas são consideradas desafios mais prementes do que as dificuldades encontradas no território.

A precarização do trabalho se manifesta em diversas situações. Na dimensão da precarização salarial, as entrevistas mostram a vulneração dos direitos trabalhistas (atrasos de salários, redução de benefícios salariais). Já a dimensão de recursos e infraestrutura (humana e material) está relacionada ao incremento da escassez nas unidades de saúde (materiais básicos de escritório, medicamentos e muitas vezes até eletricidade e água) (Morosini, 2018MOROSINI, Márcia V. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990-2016: a precarização para além dos vínculos. 2018. 357 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ).

Em relação às condições de trabalho, gostaria que pelo menos o pouco que recebo pelas atividades que eu executo pra prefeitura que [ sic ] fosse pago em dia, é o mínimo de respeito, sei que recebo pouco, porém, continuo exercendo a atividade, pague em dia [...] é muito difícil manter as contas que tem em casa.

(ACS-4)

A gente não tem recursos para fazer o nosso trabalho porque não é só o nosso salário que atrasado, é medicamento que falta nas farmácias, sabe? São insumos que faltam pra fazer o curativo, pra fazer qualquer coisa, material de trabalho mesmo.

(ACS-5)

Os ACSs fazem referência ao período de 2017 e 2018, quando o contexto desembocou na intensificação da precarização do trabalho, marcada por diversas tensões na resposta dos agentes. Se antes o salário já era baixo, os frequentes atrasos tornaram a situação de trabalho e de vida extremamente vulnerável.

Com os seus aportes sobre a noção de resistência, Giroux ( 2004GIROUX, Henry A. Teoría y resistencia en educación: una pedagogía para la oposición. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 2004. , p. 144, tradução nossa) aponta para a “necessidade de entender com maior profundidade as formas complexas nas quais as pessoas comuns respondem à interação entre suas experiências vividas e as estruturas de dominação e opressão”. 1 1 No original: “[…] necesidad de comprender más a fondo las formas complejas bajo las cuales la gente media responde a la interacción entre sus propias experiencias vividas y las estructuras de dominación y opresión.” Para o autor, é complexo identificar ações de resistência, e quase sempre são os comportamentos de acomodação que aparecem de forma mais evidente. A interpretação das condições históricas e sociais são fundamentais para entender a reação dos ACSs nessa complexa conjuntura. A acomodação não é simplesmente uma escolha, mas sim a influência de diversos fatores (econômicos, sociais, psicológicos etc.) que conduzem os ACSs a uma situação de submissão para sobreviver.

Subjetividade no contexto de trabalho: insatisfação, sobrecarga e sofrimento, com destaque para os momentos coletivos de suporte emocional

A força do vínculo estabelecido com a população adquire um significado crucial no reconhecimento do trabalho dos ACSs. Outros estudos como Meira ( 2008MEIRA, Regina M. M. B. P. O agente comunitário de saúde: convergências e divergências, na percepção dos próprios agentes, dos médicos, enfermeiros e usuários do serviço. 2008. 161 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina de Botucatu, Botucatu, 2008. ), Schubert e Silva ( 2011 SCHUBERT, Janete; SILVA, Rosane N. Los modos de trabajo de los agentes comunitarios de salud: entre el discurso institucional y el cotidiano de la vulnerabilidad. MEDPAL: Interdisciplina y Domicilio, La Plata, ano 3, n. 4, p. 45-53, 2011. Disponível em: https://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/8506 . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/...
), Andrade ( 2013ANDRADE, Viviane M. P. O trabalho do agente comunitário de saúde: concepções de profissionais e usuários. 2013. 177 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2013. ) e Ferreira ( 2016FERREIRA, Karine M. Qualidade de vida dos agentes comunitários de saúde. 2016. 87 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016. ) destacam a importância desse vínculo como fundamental na construção da identidade profissional dos ACSs e revelam a importância de alguns elementos subjetivos (afetos, valores, sentimentos). A alegria de ter um retorno positivo dos usuários e um reconhecimento no território é uma vitória para os ACSs e compensa muitos conflitos e derrotas vindas de outras lutas que acabam sendo necessárias no trabalho. É por meio do reconhecimento que o ACS consegue atenuar o sofrimento vindo de outras dimensões do trabalho (Lancman e Sznelwar, 2011LANCMAN, Selma; SZNELWAR, Laerte I. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Tradução de Franck Soudant. 3. ed. rev. ampl. Brasília: Editora Fiocruz; Paralelo 15, 2011. ). Como indica Fonseca ( 2013FONSECA, Maria L. G. O profissional da saúde como sujeito, sofrimento no trabalho e gestão. In: AZEVEDO, Creuza S.; SÁ, Marilene C. (org.). Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 117-128. ), a busca pelo reconhecimento do trabalho implica estratégias de defesa subjetiva, seja individual, seja coletiva, no exercício do trabalho.

Disso tudo resulta importante, e necessário, uma formação dos ACSs com a finalidade de despertar maior consciência sobre a relevância do seu trabalho e lutar pelo seu reconhecimento. Em consonância com Freire ( 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 3. ), esse é um processo permanente para a consciência crítica que se constitui como um trabalho na práxis (na ação e reflexão). Por outro lado, o potencial como agente articulador, mobilizador, alude à emergência de um profissional interdisciplinar, mas com condições de trabalho que pouco contribuem com esse fim. De agente transformador passou a ser agente burocrático (Morosini e Fonseca, 2018MOROSINI, Márcia V.; FONSECA, Angélica F. Configurações do trabalho dos agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: MENDONÇA, Maria H. M. et al. (org.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 369-406. ).

Sobre o sofrimento no trabalho, este agravou-se muito durante o período de greve, o qual resultou em frustrações pelas perdas das lutas que vivenciaram.

A gente venceu uma... Essa luta, essa da resistência a gente venceu. A gente perdeu muita coisa, alguns companheiros no caminho, mas isso nos tornou fortes de certa forma. E só espero agora as melhorias porque… todo mundo sofreu muito. A gente precisa essas [ sic ] melhorias para poder cuidar do que sobrou. É tão ruim falar assim dessa forma, mas é preciso.

(ACS-9)

Para enfrentar o sofrimento, os ACSs buscam estratégias de defesa, como participação em grupos de saúde e reuniões de equipe, considerados como coletivos de suporte emocional:

Eu acho isso legal, é uma coisa que assim... É... Agora que a gente voltou da greve, vê retornar os grupos que também é importante, isso é legal porque aproxima mais a gente. Aqui tem o espaço para falar, para desabafar, para trocar experiências, além das reuniões das equipes. É legal isso.

(ACS-9)

De acordo com Fonseca ( 2013FONSECA, Maria L. G. O profissional da saúde como sujeito, sofrimento no trabalho e gestão. In: AZEVEDO, Creuza S.; SÁ, Marilene C. (org.). Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 117-128. ), o sofrimento social é vivenciado pelos ACSs de forma dupla, tanto como trabalhadores de saúde, como usuários do SUS, que também apresentam dores. Os grupos de saúde são espaços institucionais de suporte emocional, que mobilizam a subjetividade dos trabalhadores e promovem engajamento em ações de cooperação, discussões e construção de opiniões (Lancman e Sznelwar, 2011LANCMAN, Selma; SZNELWAR, Laerte I. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Tradução de Franck Soudant. 3. ed. rev. ampl. Brasília: Editora Fiocruz; Paralelo 15, 2011. ; Rego et al., 2019 REGO, Lorraine S. et al. As atividades de grupo na perspectiva dos sujeitos em uma Clínica da Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 29, n. 3, 2019. https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290316 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/PkYjd6DPhCTdb7zZQBjCzcL/?lang=pt# . Acesso em: 10 jul. 2024.
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).

Portanto, a dimensão subjetiva do trabalho cobra relevância no intuito de compreender as relações complexas do cotidiano dos ACSs e de pensar em formas de melhorar as condições de trabalho e saúde dos profissionais e da população. Nesse plano subjetivo, consideramos como possíveis ações de resistência as estratégias de defesa individual ou coletiva frente ao sofrimento (Giroux, 1985GIROUX, Henry A. Teorías de la reproducción y la resistencia en la nueva sociología de la educación: un análisis crítico. Cidade do México: Editorial Era, 1985. ). Da mesma forma, a normalidade no sofrimento (Dejours, 2012DEJOURS, Christophe. Trabalho e emancipação. Tradução de Franck Soudant. Brasília: Paralelo 15, 2012. ) é uma forma de sobrevivência e, por ajudar na saúde mental dos agentes, pode ser uma forma de enfrentar o contexto inóspito que vivenciam.

Práticas políticas de acomodação e resistência: dificuldades na organização política, lutas e reivindicações dos ACSs, suas estratégias de enfrentamento e o risco das armadilhas

Os processos de acomodação e resistência (Giroux, 1985GIROUX, Henry A. Teorías de la reproducción y la resistencia en la nueva sociología de la educación: un análisis crítico. Cidade do México: Editorial Era, 1985. ) aparecem nesta categoria num contexto de luta e tensões. Durante o período de 2017 e 2018, iniciam-se diversas mobilizações no município do Rio de Janeiro para defender a saúde pública e questionar os mecanismos de sucateamento que os profissionais desse campo estavam vivenciando, inclusive com ameaças de demissão, cortes de salários, cortes de orçamentos etc. (Melo, Mendonça e Teixeira, 2019 MELO, Eduardo A.; MENDONÇA, Maria H. M.; TEIXEIRA, Márcia. A crise econômica e a atenção primária à saúde no SUS da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, p. 4.593-4.598, dez. 2019. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25432019 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/DvfHFsvqYzXN4bPX9HbsBxj/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 202
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).

O período de greve iniciado em meados de 2017 significou para os agentes afrontar diversas dificuldades além das vivenciadas cotidianamente no trabalho, como a fragilização da relação com a população, a incipiente organização como coletivo ou categoria profissional, as tensões nas relações interprofissionais vinculadas a relações de poder e o confinamento na unidade de saúde devido à ‘greve presencial’ (modelo possível diante dos vínculos precários, em que um grupo dos ACSs se mobiliza na rua, enquanto outro grupo fica na unidade trabalhando):

Desse período de greve e tudo mais, acho que é o período que a gente está realmente mais estressado, porque você fica aqui o dia inteiro sem ser produtivo, é extremamente estressante, desgastante.

(ACS-5)

A organização da categoria profissional com o apoio do sindicato municipal, as discussões nas assembleias internas e outras reuniões intercategorias foram essenciais para a conscientização dos profissionais sobre a conjuntura e o fortalecimento das estratégias de luta. Em diálogo com Giroux ( 2023GIROUX, Henry A. Educação, cultura e lutas pela democracia: escritos contemporâneos sobre o maquinário neoliberal. Tradução de Gustavo de Oliveira Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2023. ), essa ação social politizada seria um caminho para a emancipação dos ACSs mediada por um processo de conscientização. Por outro lado, as principais repercussões das dificuldades vivenciadas refletem mudanças na organização do trabalho (intensificação do trabalho) e na subjetividade dos trabalhadores (sofrimento no trabalho e estratégias para diminuí-lo).

Nesse marco, identificamos diversos contrapontos. Apesar das condições precárias provenientes das cobranças e incremento de demandas no serviço, o reconhecimento do trabalho pela população (como gratidão) atenua o sofrimento e, em alguns momentos, se transforma em prazer. Não obstante, durante as manifestações e no período da greve, com a perda do vínculo com a população, a falta de reconhecimento pelo trabalho aumentou, provocando angústia, desmotivação e, principalmente, sofrimento. Uma entrevistada relata:

Então, esses vínculos que a gente trabalhou tanto pra conquistar, que não acontecem instantaneamente, mas que é uma coisa construída na maior parte das vezes, se quebrou, sabe? .

(ACS-5)

Por isso, é relevante o fortalecimento do vínculo dos agentes com a população como elemento fundamental para o reconhecimento do trabalho e para repensar as estratégias de mobilização coletivas na comunidade, já que foi evidente o pouco apoio da população no cenário de luta.

O movimento de greve presencial subtraiu do ACS a sua principal função de visita domiciliar, porém, eles consideraram a greve como uma ação importante para a reivindicação dos seus direitos. Observa-se a pouca autonomia dos ACSs para direcionar suas lutas num conceito de greve de caráter institucional que limita e reprime, apesar de ser um direito. No entanto, houve ações de resistência individual e coletiva que precisam ser valorizadas (passeatas no bairro de atuação e em outros bairros, procura de ajuda do sindicato e afiliação, não alimentação dos sistemas informatizados como medida de protesto durante a greve, negociação e diálogo com a prefeitura, solidariedade na luta da categoria, sensibilização da população na unidade de saúde e no território etc.).

Em vários momentos, os agentes passaram a acreditar no valor do desempenho e da produtividade como condição para melhorar a qualidade do seu trabalho. Isso não foi exceção no período de acentuação da crise, iniciando um conflito ético com o seu trabalho.

Eu não rendendo , eu não consigo render porque eu não consigo alimentar o sistema, eu não rendo como pessoa, eu não rendo como agente comunitário.

(ACS-2)

Como apontamos no marco teórico, o gerencialismo “busca incutir performatividade na alma dos trabalhadores” (Ball, 2005 BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
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, p. 545). Na transformação de valores, o profissional cria um sentimento de culpa quando não está atingindo as metas mensais exigidas pelas OSSs.

No processo de mobilização, surgem aprendizados e reflexões sobre o trabalho e questionamentos ao modelo hegemônico de gestão em saúde vigente. O período acompanhado foi visto como um momento para reaprender as dificuldades, reconhecer as fragilidades e potencializar as fortalezas. Nesse sentido, destacamos os principais aspectos positivos das lutas: capacidade e força de mobilização dos ACSs, organização como coletivo, solidariedade na luta da categoria profissional e sensibilização da população. No intuito de fortalecer esses processos de reivindicações, ressalta-se a necessidade de apoio das outras categorias profissionais e da maior participação da população. Mais união e solidariedade é uma demanda palpável nos relatos.

É preciso questionar se o fato de os ACSs lutarem pela sobrevivência frente a tanta crise constitui ações de acomodação ou resistência. Ainda na teoria de Giroux ( 2016 GIROUX, Henry A. Escuela y teorías de la resistencia por Henry Giroux. OVE: Otras Voces em Educación (on-line), 5 set. 2016. Disponível em: http://otrasvoceseneducacion.org/archivos/158633 . Acesso em: 10 jul. 2024.
http://otrasvoceseneducacion.org/archivo...
), práticas menos visíveis podem ter maior potencial de transformação do que ações espetaculares. Existiram ações criativas durante o período da greve que poderiam ser consideradas formas de resistência, como as estratégias de luta e a organização coletiva como resistência mais politicamente informada (Silva, 2003SILVA, Tomaz T. O currículo como política cultural: Henry Giroux. In: SILVA, Tomaz T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 51-56. ), com procura por espaços coletivos de escuta e diálogo.

Considerações finais

Seguindo os princípios da investigação-ação-participativa, estabelecemos um compromisso social com a realidade pesquisada e conduzimos uma análise abrangente do contexto caracterizado por lutas, resistências, opressões e crise, estabelecendo uma forte conexão com o território e os sujeitos da pesquisa, os ACSs. Os resultados revelam uma série de desafios enfrentados no contexto de implantação das reformas neoliberais na área da saúde com base em mecanismos do gerencialismo adotados como dispositivos de administração e planejamento pelas OSSs privadas durante o primeiro governo do prefeito Eduardo Paes (PMDB/2009-2017), no Rio de Janeiro, e que se agudizaram entre 2016 e 2019, período caracterizado por uma grande destruição do SUS.

A respeito dos processos de acomodação e resistência, distinguimos alguns matizes e concluímos que, entre os polos extremos, existem muitos ‘tons de cinza’ no processo de reação e mobilização frente às políticas neoliberais para além da acomodação e resistência. O desenvolvimento do trabalho dos profissionais nesse período esteve marcado por múltiplas tensões, questionamentos e contradições, com fortes evidências do impacto negativo do modelo gerencialista privado na subjetividade dos ACSs. Assim, ressaltamos as diferentes formas de agir, resistir e acomodar frente ao sofrimento causado pela intensificação e precarização. Embora as políticas e reformas neoliberais sejam implantadas verticalmente, elas sempre podem ser reinterpretadas e recontextualizadas na realidade em que se expressam (Mainardes, 2006 MAINARDES, Jefferson. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, abr. 2006. https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000100003 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/NGFTXWNtTvxYtCQHCJFyhsJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 10 jul. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200600...
).

Nesse processo de recontextualização, as potencialidades do papel de educador, articulador e mobilizador do território são aspectos destacados, e essas características foram reforçadas nos momentos de organização coletiva e nas estratégias de luta, principalmente durante o período de greve. Acreditamos que muitas das iniciativas constituem ações criativas num processo amplo de resistência à lógica neoliberal, sendo preciso reforçá-las. Nosso estudo comprova a importância de uma formação de maior qualidade para esses profissionais, baseada em abordagens críticas que contribuam para uma práxis verdadeiramente emancipatória.

Enfatizamos, ainda, a necessidade de estabelecer espaços coletivos de escuta, de diálogo e de acolhimento dos ACSs, não só no momento de crise da democracia e de ataque ao setor público, mas com o intuito de reconhecer e incentivar seu papel mobilizador e transformador do trabalho. Além de estratégias de formação profissional, os ACSs precisam de um ambiente seguro no trabalho para poderem expressar suas emoções e falar das suas dores.

Com este trabalho, buscamos dar visibilidade às lutas dos ACSs contra o modelo privado de gestão, mostrar os conflitos que vivenciam e contribuir para a construção de conhecimento crítico que seja capaz de renovar um espírito de otimismo e, sobretudo, de esperança, mesmo em meio ao caos provocado pelo modelo gerencialista das OSSs privadas.

Identificamos alguns comportamentos conscientes de oposição não com o intuito de uma luta contra-hegemônica contra os opressores, mas para cuidar da própria saúde mental dos ACSs, mecanismos de proteção desenvolvidos pelos sujeitos para aguentar, ou suportar, esse processo de precarização. E é preciso considerar que isso também não é um comportamento simples, pois está relacionado com diversas condições sociais, culturais e históricas que influenciam o modo de agir das pessoas. Nesse sentido, este estudo mostra a necessidade de pensar além da dicotomia entre acomodação e resistência. Consideramos que entre esses dois conceitos existe, na práxis dos ACSs, um espectro amplo e mais complexo de outras possibilidades.

Por fim, será necessário aprofundar também em outros aspectos – culturais, sociais, políticos, subjetivos, históricos – que nos permitam construir possibilidades de mudança. Embora tenhamos enfocado especificamente o caso dos ACSs, é relevante registrar que a grande maioria dos trabalhadores do SUS tem vivenciado esse forte processo de precarização das condições de trabalho. É urgente o fortalecimento de políticas públicas de gestão do trabalho e da educação capazes de recuperar a gestão pública na administração dos serviços de saúde e de propor alternativas criativas à disseminação irresponsável das OSSs privadas na gestão dos serviços públicos de saúde. O discurso de que tais organizações são mais eficientes do que a gestão pública não passa de ideologia que se difunde no senso comum, pois todas as evidências científicas têm reiteradamente comprovado o fracasso desse modelo privado de gestão no SUS.

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  • 1
    No original: “[…] necesidad de comprender más a fondo las formas complejas bajo las cuales la gente media responde a la interacción entre sus propias experiencias vividas y las estructuras de dominación y opresión.”
  • Financiamento

    Financiamento: A primeira autora se beneficiou com uma bolsa de estudos para a realização do mestrado acadêmico em Educação em Ciências e Saúde, concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo período de 2017 a 2019.
  • Como citar:

    ORRILLO, Yansy A. D.; FIGUEIREDO, Gustavo O. Neoliberalismo e gerencialismo: impactos no trabalho, formação e subjetividade de agentes comunitários de saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 22, 2024, e02802257. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs2802
  • Aspectos éticos

    Este artigo é parte do projeto de pesquisa de mestrado que foi aprovado pelos Comitês de Ética do Instituto de Estudos e Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC-UFRJ), com o parecer n. 2.581.913, e da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Município do Rio de Janeiro, sob parecer n. 2.691.752.
  • Apresentação prévia

    O artigo é resultado da dissertação de mestrado intitulada Política, trabalho e formação de agentes comunitárias/os em uma unidade de Saúde da Família no município do Rio de Janeiro , de autoria de Yansy Aurora Delgado Orrillo, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2024
  • Aceito
    06 Jun 2024
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