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O fim do Grão-Pará e a institucionalização da região amazônica: o papel dos liberais paraenses na mudança do status regional no século XIX

The end of Grão-Pará and the institutionalization of the Amazonian region: the role of liberals from Pará in changing the regional status in the nineteenth century

Resumo

As regiões não estão dadas ou prontas para serem apenas descortinadas. São também resultado de processos sociais manifestados em práticas e discursos. No Brasil oitocentista, o vocabulário geográfico e político concedeu maior destaque à unidade administrativa chamada de província, deixando a ideia de região fora do debate político. Os movimentos de emergência das regiões brasileiras ocorreram, todavia, ainda na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, este artigo objetiva analisar a institucionalização da região amazônica através dos discursos dos representantes políticos liberais amazônicos no parlamento brasileiro e na imprensa paraense. Compreende-se que tais discursos desenvolveram um regionalismo político nessa área, de modo a contribuir para o citado processo de institucionalização, ou seja, na montagem institucional de formas de delimitar, nomear e significar a região. Os termos ‘Vale do Amazonas’ e ‘região amazônica’ cunharam nomenclaturas que representaram a reconfiguração regional da antiga província do Grão-Pará, pois, com a criação da província do Amazonas, em 1852, os representantes nortistas forjaram uma nova entidade regional, desta feita, chamada provisoriamente de Vale do Amazonas e consolidada com o nome de Amazônia.

Palavras-chave
Institucionalização; Amazônia; Região

Abstract

Regions are not given or ready to be just unveiled. Regions are also the result of social processes manifested in practices and discourses. In nineteenth-century Brazil, the geographical and political vocabulary gave significant prominence to the administrative unit called the province, leaving the idea of region out of the political debate. However, the Brazilian regions had their emergency movements in the second half of the 19th century. In this sense, this article aims to analyze the institutionalization of the Amazon region through the speeches of Amazonian political representatives in the Brazilian Parliament. It is understood that these discourses developed a political regionalism in this area, in the sense of contributing to the aforementioned institutionalization process, that is, in the institutional set-up of ways to delimit, name, and signify the region. Amazon Valley and the Amazon region were nomenclatures that represented the regional reconfiguration of the former province of Grão-Pará, as with the creation of the province of Amazonas, in 1852, northern representatives forged a new regional entity, this time provisionally called Vale do Amazonas and consolidated with the name of Amazon.

Keywords
Institutionalization; Amazon; Region

INTRODUÇÃO

No vocabulário político imperial, o termo ‘província’ assumiu lugar central, sendo predominante nas referências às unidades administrativas e políticas que passaram a compor o Império do Brasil em detrimento da ideia de região. Antes dessas unidades territoriais, existiam, como unidades intermediárias do território, as capitanias hereditárias, criadas no período colonial; em 1759, elas foram transformadas em capitanias régias, no governo do Marquês de Pombal, passando ao domínio direto do governo português. Ainda cabe mencionar que, em 1811, um alvará criava, com as capitanias régias, juntas para auxiliar na governança da Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, o que caracterizava certa descentralização. Foi só a partir do decreto de 1º de outubro de 1821 que as unidades provinciais foram criadas no Brasil para prover a administração política e militar.

Para essas novas unidades provinciais, Gouvêa (2008)Gouvêa, M. F. S. (2008). O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Civilização Brasileira. considera que foram inicialmente eleitas juntas de governo por meio do voto de eleitores de paróquias da província, além dos conselhos de procuradores-gerais das províncias do Brasil. Miriam Dolhnikoff explica que, em 1822, ocorreu a criação do escudo de armas do Brasil. A presença de 19 estrelas de prata no firmamento azul simbolizava o conjunto da nação, composta pelas suas províncias. Essa composição provincial brasileira não foi, no entanto, harmônica nem simétrica; pelo contrário: ao longo do tempo, foram se formando as chamadas ‘grandes províncias’, de modo que a adjetivação não necessariamente se referia ao tamanho geográfico do território, mas à força da representação política e econômica dele. É importante considerar, no debate sobre a formação provincial brasileira, uma questão colocada por Dolhnikoff (2005)Dolhnikoff, M. (2005). O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. Globo. que se tornou emblemática durante o Segundo Reinado, a saber: as grandes diferenças regionais, especialmente entre o Norte e o Sul do Brasil – agravadas pela ausência do Estado nacional em partes mais distantes da corte –, foram fundamentais para a movimentação política das elites regionais, colocando-as no jogo político do país.

Este cenário embasa o contexto histórico e político a partir de 1850 no Norte, visto que foi nesse momento que a questão da província do Grão-Pará começou a ser objeto de debate pelos seus representantes políticos no parlamento brasileiro não mais como uma província, mas como uma região, desta feita, denominada de região amazônica ou Vale do Amazonas. Essa mudança de nome e do tom político em relação ao espaço nortista decorreu, em parte, da histórica queixa de distanciamento e não atendimento dos interesses dessa parte do país por parte do Governo Central, ocasião em que o Norte agrário – sob a liderança de Pernambuco – e o Sul – sob a liderança do Rio de Janeiro – apareciam como espaços privilegiados frente à área amazônica. Foi nesse cenário político e regional que a região amazônica, como sinônimo de uma nova entidade política, foi sendo construída através do regionalismo político.

O objetivo deste texto é, diante do contexto apresentado, analisar a participação dos representantes políticos amazônicos ligados ao Partido Liberal na construção do regionalismo político nessa área durante o século XIX e a contribuição do movimento para o processo de institucionalização da região amazônica em detrimento da província do Grão-Pará. Deriva desse objetivo maior a pergunta central: como, através do regionalismo político, foi institucionalizada uma postura e um discurso regional em torno do Vale do Amazonas e/ou da região amazônica em detrimento da província do Grão-Pará?

É necessário, de início, compreender que a região amazônica, assim como as demais, é resultado de experiências humanas historicamente localizadas e realizadas, de modo que esse texto se afasta das concepções de regiões naturais; por outro lado, o artigo se aproxima e dialoga com a historiografia que adota a percepção de desnaturalização das regiões, de modo que passa a compreendê-las no campo das emergências, como construções e historicamente conceituadas1 1 Sobre este assunto, conferir Albuquerque Júnior (2011), Said (2007), O’Gorman (1992) e Chiaramonte (2017). . O pensamento de Albuquerque Júnior (2008, p. 58)Albuquerque Júnior, D. M. (2008). O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. Fronteiras, 10(17), 55-67. https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/article/view/62
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é esclarecedor do ponto de vista da noção de região que se adota neste trabalho:

As regiões, portanto, não pré-existem aos fatos que as fizeram emergir; as regiões são acontecimentos históricos, são acontecimentos políticos, estratégicos, acontecimentos militares, diplomáticos, são produto de afrontamentos, de disputas, de conflitos, de lutas, de guerras, de vitórias e de derrotas.

Ainda no que diz respeito à concepção teórica do artigo, trabalha-se na interseção da história e do pensamento geográfico, já que, inicialmente, adota-se o pensamento teórico do geógrafo político finlandês Anssi Paasi (2011)Paasi, A. (2011). The region, identity, and power. Procedia - Social and Behavioral Sciences, 14(10), 9-16. http://dx.doi.org/10.1016/j.sbspro.2011.03.011
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, que, desde os anos de 1980, vem trabalhando com a teoria da institucionalização das regiões, processo segundo o qual as regiões podem ser entendidas como estruturas institucionais coletivas e, sobretudo, como construções sociais que são criadas a partir de práticas e discursos políticos, econômicos, culturais e administrativos. Para o geógrafo, quatro estágios resumem o processo de institucionalização das regiões, a saber: a modelagem territorial (limites, mapas etc.); a modelagem simbólica (nomeação/outros símbolos); a modelagem institucional (instituições que produzem/reproduzem aspectos da região) e a modelagem identitária (a região como parte do sistema regional e da consciência social). Este artigo concederá maior destaque ao estágio institucional, analisando os discursos institucionais dos representantes políticos no parlamento brasileiro e na imprensa.

No campo conceitual, adota-se o conceito de regionalismo político, entendido aqui a partir de Arturo Taracena Arriola, que o classifica como “a identificação consciente, cultural, política e sentimental que uma sociedade desenvolve com o espaço regional” (Arriola, 2000Arriola, A. T. (2000). Region e historia. Cuadernos Digitales: Publicación Electrónica en Historia, Archivística y Estudios Sociales, (2), 1-14., p. 4). Iná Elias de Castro esclarece que “o regionalismo é um movimento de base territorial como uma reação ao Estado Nacional, que levanta bandeiras da identidade, da autonomia, do direito à diferença” (Castro, 2006Castro, I. E. (2006). Imaginário político e território: natureza, regionalismo e representação. In I. E. Castro, P. C. Costa & R. Lobato (Eds.), Explorações geográficas: percursos no fim do século (pp. 155-196). Bertrand Brasil., p. 186). Para a historiadora argentina Maria Silva Leoni, “o regionalismo representa um esforço por criar uma consciência e uma ideologia política dentro e em nome da região” (Leoni, 2015Leoni, M. S. (2015). Historia y región: la historia regional de cara al siglo XXI. Folia Historica del Nordeste, (24), 170-179. https://revistas.unne.edu.ar/index.php/fhn/article/view/307/272
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, p. 171). Nesses termos, o regionalismo é um movimento que visa criar as condições políticas de importância, diferenciação e reconhecimento do espaço regional perante a nação.

Este artigo contribui para a historiografia brasileira, pois trata da formação histórica e política da região amazônica, cuja trajetória interessa não só ao Brasil, mas também aos países fronteiriços. Mais especificamente, o artigo colabora para uma compreensão histórica da institucionalização da região amazônica a partir do regionalismo político, já que alguns poucos trabalhos têm apenas ladeado esta discussão, de modo que se pretende, justamente, preencher essa lacuna historiográfica, evidenciando os caminhos pelos quais a antiga área do estado do Grão-Pará, depois província do Pará ou Grão-Pará, foi sendo (re)inventada como a região amazônica, desfazendo uma interpretação equivocada de que essa parte da América sempre foi assim conceituada e institucionalizada.

A historiografia brasileira – mais especificamente a pertinente às produções de autores que se debruçam sobre a própria história da Amazônia – não aprofundou o estudo da emergência da região amazônica, pois os autores que se voltaram para o conceito de Amazônia, ao considerarem o entendimento de que não existe apenas uma Amazônia, mas sim várias, acabaram não delimitando um recorte dentro desse grande campo referente às ‘Amazônias’ para realizar exame, diminuindo, assim, o grau de precisão para pensar o processo histórico e as relações de força que culminaram com a institucionalização de um novo conceito e dimensão regional no Brasil. Essa última posição foi assumida por um dos mais destacados historiadores amazônicos ao longo do século XX, Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993), membro de várias instituições científicas e conhecido por ser um dos principais nomes a colaborarem com o estudo de temas da história da região, especialmente após o Plano de Valorização da Amazônia, criado em 1946. O referido historiador recuou aos tempos de colonização para tentar explicar a ideia de Amazônia. Todavia, com um recorte temporal elástico, Reis não aprofundou a discussão proposta no texto “Amazônia: conceito, sua evolução histórica” (Reis, 2001Reis, A. C. F. (2001). A Amazônia e a integridade do Brasil. Senado Federal.).

As reflexões de Reis partiram, inicialmente, dos apontamentos de um geógrafo contemporâneo, Eidorfe Moreira (1912-1989), um paraibano radicado em Belém, sobretudo porque Eidorfe passou a compor a equipe de trabalho chefiada por Reis, em 1954, na Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA). No livro “Amazônia: o conceito e a paisagem”, Moreira (1960)Moreira, E. (1960). Amazônia: o conceito e a paisagem. SPVEA. discorreu sobre cinco conceitos de Amazônia: hidrográfico, fitogeográfico, zoogeográfico, político e econômico. Apesar de lançar alguns pressupostos para analisar essa parte do Brasil – inclusive, apontando que nem sempre essa região foi assim conceituada como Amazônia –, Moreira também não se dedicou a fazer uma abordagem que investigasse mais precisamente o momento de emergência do conceito de Amazônia no Brasil. Sua ênfase recaiu sobre o momento da delimitação do conceito geodésico da Amazônia, no início da década de 1950, no cenário do estabelecimento do Plano de Valorização da Amazônia.

Alguns trabalhos2 2 Conferir Gondim (1997) e Maués (1999). de áreas diferentes da história ensaiaram refletir sobre o processo de constituição da região amazônica, com destaque para o trabalho de Neide Gondim, como resultado de sua tese de doutorado no campo da Teoria Literária, publicada em formato de livro, com o título “A invenção da Amazônia” (Gondim, 1997Gondin, N. A. (1997). A invenção da Amazônia (2. ed.). EDUA.); seu objeto foi demonstrar de que maneira e por quais artifícios a Amazônia foi inventada pelos europeus. Apesar de possuir o mérito de romper com as teorias das descobertas e metodologicamente passar em revisão a uma série de obras de autores europeus para evidenciar visões acerca dessa parte da América e, assim, analisar a invenção do espaço todo, o trabalho de Gondim não se dedicou a pensar historicamente o processo de institucionalização da Amazônia a partir das relações de força das elites nativas com outras regionais e o Governo Central do Brasil no período imperial, momento decisivo para a emergência da região amazônica no Brasil. Portanto, é preciso refletir que a Amazônia foi institucionalizada também no campo político e que a sua institucionalização, na condição de recorte regional brasileiro, passou pela adoção da nomenclatura para denominar a região, ou seja, para analisar a configuração da região amazônica, é necessário pensar a construção da identidade política regional, processo acentuado a partir da segunda metade do século XIX.

É preciso notar que, diferentemente de uma concepção de Amazônia construída desde os tempos coloniais, essa formação regional a partir do próprio conceito de Amazônia possui um momento histórico de luta pela sua definição e de sua formatação no Brasil, sobretudo ao se considerar que, antes do século XIX, essa área era conhecida como Santa Maria do Mar Doce, Rio das Amazonas, Terra dos Caraíbas, Eldorado, Maranhão, Pays des Amazones, Regiões Equinociais da América e Grão-Pará, e não como Amazônia. Historiadores dedicados aos estudos coloniais dessa parte da América têm alertado recentemente que, apesar de trabalharem e de denominarem suas produções com o termo ‘Amazônia’, esse recorte regional não existia na temporalidade que estudam3 3 Conferir A. Cardoso (2017) e Chambouleyron e Souza Junior (2016). .

Este texto foi dividido em quatro partes, sendo a primeira destinada à introdução, contendo aspectos gerais sobre o trabalho, como temática, objetivo e contexto histórico, para uma melhor compreensão do objeto de estudo. A segunda parte apresenta e contextualiza a situação política do Grão-Pará diante da nação que se formava nos trópicos, bem como o início do discurso regionalista na área às margens do rio Amazonas. A terceira parte volta-se para apresentar o processo de construção do regionalismo amazônico e a transição das reivindicações provinciais para o âmbito regional e, em grande medida, a passagem do discurso político paraense para o discurso amazônico. Por fim, são apresentadas as considerações finais.

O GRÃO-PARÁ: DE ESTADO AUTÔNOMO A PROVÍNCIA BRASILEIRA

É importante, para a compreensão deste trabalho, estabelecermos o próprio conceito de Grão-Pará, haja vista que nem sempre a compreensão conceitual a partir desse termo está bem delimitada, em função das várias utilizações do termo, conforme cada regime de historicidade do espaço que denomina, daí as várias denominações, como capitania do Grão-Pará, estado do Maranhão e Grão-Pará, estado do Grão-Pará e Maranhão e depois a alternância entre província do Pará ou do Grão-Pará e Rio Negro, no momento após a independência do Brasil. Segue-se, então, a compreensão do geógrafo Eidorfe Moreira, para o qual, praticamente até a criação da província do Amazonas, em meados do século XIX, essa área do país foi nomeada de Grão-Pará, uma designação que exprimia uma unidade político-geográfica no passado antes do conceito de Amazônia (Moreira, 1960Moreira, E. (1960). Amazônia: o conceito e a paisagem. SPVEA.).

Do ponto de vista da demarcação do território e da administração política dele, Antônio Ladislau Monteiro Baena (1782-1850), português radicado no Pará, descreveu, ainda no século XIX, cronologicamente as fases da política administrativa do espaço após a criação do estado do Maranhão e Grão-Pará (1621), e o fez em sua obra “Compêndio das Eras da Província do Pará” (Baena, 1838Baena, A. L. M. (1838). Compêndio das eras da Província do Pará (Coleção amazônica, Série José Veríssimo). Universidade Federal do Pará.); além disso, informou ainda que, a partir de 1751, foi criado o estado do Grão-Pará e Maranhão, sediado em Belém e subordinado diretamente à Europa (Baena, 1838Baena, A. L. M. (1838). Compêndio das eras da Província do Pará (Coleção amazônica, Série José Veríssimo). Universidade Federal do Pará.). Logo, o décimo nono governador e capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, recebeu ordens, mediante um despacho de 30 de abril de 1753, para as conferências de demarcação dos limites da fronteira do Rio Negro. Nos termos, iniciava-se a divisão das capitanias do Grão-Pará, Maranhão e Rio Negro, seguindo-se o decreto de 11 de julho de 1757, que mandava criar a capitania do Alto Amazonas, cujo governador particular era subalterno do governador e capitão-general do Pará. O estado do Grão-Pará e Maranhão foi dividido em 1772, quando dele se desmembraram dois estados: o Grão-Pará e a capitania de São José do Rio Negro, e o outro estado formado pelo estado do Maranhão e do Piauí. O estado do Grão-Pará cedeu lugar à província do Pará ou Grão-Pará após os primeiros anos da independência do Brasil, visto que vários documentos ainda permaneceram intitulando a província de ‘Grão-Pará’.

As causas pelas quais se produziram sentimentos de distanciamento e até de separatismo em relação ao Brasil por parte da sociedade do Grão-Pará podem ser buscadas ainda nos tempos da América Portuguesa, quando essa área estava subordinada diretamente à Coroa portuguesa desde 1751 até as décadas iniciais do século XIX. Segundo Ciro Flamarion Cardoso, o espaço que veio a ser a Amazônia possuía um perfil periférico no mundo colonial português, pois teria sido ocupado por razões político-militares de primeira hora. Com problemas para o povoamento e sem grandes jazidas de minérios conhecidas, a área teria chegado atrasada à corrida por colonos, mercado e escravos no sistema colonial vigente à época, sobretudo em relação ao próprio Brasil. C. Cardoso (1984)Cardoso, C. F. (1984). Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-1817). Graal. considera que o Pará era uma colônia pobre, que teria sido vítima do fiscalismo e das arbitrariedades do pacto colonial.

Nesse debate sobre a posição desse espaço na economia americana, estudos atuais discordam da visão que entende o antigo estado do Grão-Pará como periférico. O historiador Rafael Chambouleyron defende seus argumentos nesses termos:

. . . o que me parece é que se partiu de um modelo explicativo no qual a região pouco se adequava, para daí entendê-la e, na verdade, não se refletiu sobre modos específicos por meio dos quais o estado do Maranhão e Pará se inseria no contexto atlântico das conquistas portuguesas

(Chambouleyron, 2011Chambouleyron, R. (2011). "Muita terra… sem comércio". O estado do Maranhão e as rotas atlânticas nos séculos XVII e XVIII. Outros Tempos, 8(12), 91-107. https://doi.org/10.18817/ot.v8i12.54
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, p. 93).

Para Chambouleyron (2011)Chambouleyron, R. (2011). "Muita terra… sem comércio". O estado do Maranhão e as rotas atlânticas nos séculos XVII e XVIII. Outros Tempos, 8(12), 91-107. https://doi.org/10.18817/ot.v8i12.54
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, em vez de se considerar uma análise das questões do Maranhão e Pará a partir do Atlântico Sul, torna-se viável considerar o Atlântico Norte ou o Atlântico Equatorial, uma rota que contempla a relação com arquipélagos atlânticos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, mas também seria “. . . uma via – através do Amazonas, em direção à Península Ibérica – para escoamento da prata do Peru, que, no século XVII, se acreditava muito próximo ao Maranhão” (Chambouleyron, 2006Chambouleyron, R. (2006). Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista Brasileira de história, 26(52), 79-114. https://doi.org/10.1590/S0102-01882006000200005
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, p. 95). Assim, a dinâmica e as relações comerciais no período colonial com esta parte da América portuguesa precisam ser pensadas para além do eixo-sul. De todo modo, essa parte da América foi sendo formada distante do Brasil, como apontou Chambouleyron (2011, p. 101)Chambouleyron, R. (2011). "Muita terra… sem comércio". O estado do Maranhão e as rotas atlânticas nos séculos XVII e XVIII. Outros Tempos, 8(12), 91-107. https://doi.org/10.18817/ot.v8i12.54
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: “Talvez mais do que a relação com o Estado do Brasil e o espaço atlântico que lhe dava sentido, essas outras rotas são fundamentais para compreender a construção da sociedade colonial amazônica . . .”.

Ainda sobre a distância dessa área em relação ao Brasil, considerando a contribuição de mais uma autora com estudos atuais sobre a história da Amazônia, a historiadora Magda Ricci (2003, pp. 166-167)Ricci, M. (2003). O fim do Grão-Pará e o nascimento do Brasil: movimentos sociais, levantes e deserções no alvorecer do novo Império. In F. S. G. Gomes (Org.), Os senhores dos rios (pp. 165-193). Editora Campus. esclarece que, por muito tempo, especialmente na primeira metade do século XIX, essa parte da Brasil “. . . não costumava lembrar em nada províncias como a do Rio de Janeiro, ou as de Pernambuco e Bahia, onde despontavam riquezas agroexportadoras de vulto, riquezas essas que intensificavam o comércio de gêneros e escravos”. Conforme Ricci (2003, p. 192)Ricci, M. (2003). O fim do Grão-Pará e o nascimento do Brasil: movimentos sociais, levantes e deserções no alvorecer do novo Império. In F. S. G. Gomes (Org.), Os senhores dos rios (pp. 165-193). Editora Campus., o Grão-Pará foi um dos primeiros espaços a manifestar a adesão às cortes de Lisboa, ao constitucionalismo português e ao império ultramarino; por outro lado, foi um dos últimos a se integrar ao Império do Brasil a partir do centro de gravidade do Rio de Janeiro e ao parlamento nacional.

O distanciamento em relação ao Pará foi reforçado, de certo modo, com a Cabanagem (1835-1840), uma revolta que, por seu perfil popular (índios, negros, mestiços), foi vista pelas autoridades do Sul do Brasil como um movimento de ‘gentalhas’ e ameaçadora à pátria. Os liberais do Rio de Janeiro, inclusive, chegaram a afirmar que o Pará pertencia à América hispânica, e não ao Brasil (Carvalho, 2012Carvalho, J. M. (2012). A vida política. In Autor, A Construção Nacional 1830-1889 (pp. 83-129). Objetiva.). A cabanagem acabou contribuindo para a mudança de rumos da província paraense, inclusive para gestar certo sentimento regional que se afastava do antigo espaço do Grão-Pará, notadamente em função do fato de que, após a Cabanagem, a concepção de região para os paraenses, especialmente para suas elites, era de (re)construção de uma ‘nova’ região, um espaço com uma nova imagem associada à nação para fortalecer a região, não mais confundida com a violência, com a economia das chamadas ‘drogas do sertão’ e com o espírito separatista.

Os representantes paraenses no parlamento nacional, depois da Cabanagem, buscaram evidenciar, em seus discursos, a ideia de um espaço que carecia de uma maior atenção do Governo Central, desde a alegação de sua importância para a nação, oportunidade em que a província era vista e tida como rica, mas impedida de prosperar pela falta de apoio governamental, a exemplo dos discursos do deputado paraense Bernardo de Sousa Franco. Atuando como um dos principais representantes paraenses da vida política provincial no oitocentos, Sousa Franco tornou-se uma das primeiras vozes do regionalismo político amazônico, haja vista que, diante dos demais deputados-gerais no parlamento brasileiro, ele se destacou pelos discursos em defesa da terra natal. Em 27 de maio de 1840, na condição de deputado paraense na Câmara Geral do Brasil, ele realizou um discurso após a sua primeira passagem pela presidência da província do Pará, retornando ao tema do abandono da província do ponto de vista militar, reivindicando que essas forças só fossem dispensadas em momento vindouro: “Eu olho para o futuro em que o Pará pode ser governado de outra maneira, isto é, quando principiar a colonização, quando se estabelecer por vapor do Amazonas, quando a população toda se fôr entregando ao trabalho” (ACD, 27 maio 1840Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1840, maio 27). Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20184&pesq=%22Eu%20olho%20para%20o%20futuro%22&pagfis=13626
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, pp. 500-502).

Sousa Franco, no início da década de 1840, pertencia ao Partido Conservador e discutia, na Câmara dos Deputados, temas provinciais, postura mais ligada aos liberais, de modo que, na sessão de 4 de junho de 1840, pronunciou-se acerca de um projeto referente às eleições e à questão da representação política das províncias no parlamento brasileiro. Na oportunidade, tratava da sua província natal, argumentando sobre a necessidade de se debater e modificar a referida representação política provincial. Segundo ele, o Pará era prejudicado nessa questão, uma vez que, diante da sua população e de sua economia, a baixa representação que possuía era algo desproporcional. A questão do quantitativo de representantes do Pará no parlamento foi pretexto de uma longa queixa da classe política dessa parte do Brasil (ACD, 4 jun. 1840Anais da Câmara dos Deputados (ACD) (1840, jun. 4). Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20184&pesq=%22devia%20elle%20dar%20sete%20deputados%22&pagfis=13730
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, p. 606).

Após ter pertencido ao Partido Conservador, o deputado Sousa Franco, em 1850, passou a pertencer aos quadros do Partido Liberal e se pronunciou na câmara em 5 de fevereiro desse mesmo ano. Ele protestava contra o recrutamento militar no Pará por conta da redução do número de homens nessa parte do país, o que já permite perceber a preocupação com a mão de obra, entre outras questões, reivindicando o reconhecimento para essa parte do Império:

. . . é no território do Pará que corre as águas desse majestoso rio que há de algum tempo ser o veículo da maior parte do Império. É nas terras do Pará por onde corre as águas desse majestoso rio, por onde hão de descer ao oceano a maior parte dos produtos da maior parte das províncias

(Franco, 1850Franco, B. S. (1850). Discursos pronunciados na Câmara dos Deputados. Sessões de 1850, 9ª legislatura. Typografia do Correio Mercantil., p. 39).

Naquele período, o Pará ainda sentia os primeiros ventos do crescimento econômico da borracha e tentava se reabilitar dos tempos da Cabanagem.

Cabe uma breve explicação sobre esse momento acerca dos princípios do Partido Conservador e do Partido Liberal, com vistas a melhor situar o leitor quanto à postura do deputado Souza Franco, bem como dos demais representantes políticos paraenses liberais, citados ao longo do texto. De início, resume-se o Partido Conservador a partir dos apontamentos de José Murilo de Carvalho; segundo esse autor, os conservadores defendiam um “Estado central forte e um governo baseado no que [se] chamava classes conservadoras . . .” (Carvalho, 2012Carvalho, J. M. (2012). A vida política. In Autor, A Construção Nacional 1830-1889 (pp. 83-129). Objetiva., p. 95), formado por proprietários de terra e escravos, ligados à agricultura de exportação e, geograficamente, em maior proporção, localizados nas províncias do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Torres (2017)Torres, J. C. O. (2017). A democracia coroada: teoria política do Império do Brasil. Câmara dos Deputados. buscou sintetizar o Partido Conservador a partir da luta pela unidade nacional, com forte apego pela Constituição de 25 de março de 1824, marcada por ser um instrumento baseado em um conjunto de instituições. Os conservadores julgavam que o sistema político do Brasil, à época, era legítimo por caminhar rumo à unidade nacional a partir da figura de um rei (imperador), pois as liberdades deveriam ser reguladas por um tipo de autoridade suprema.

Em relação ao partido Liberal, é importante compreender que possuía quatro grandes causas, a saber: a descentralização; a reforma do sistema eleitoral; a independência do judiciário e a abolição do poder pessoal (moderador) do imperador. Torres, ao esboçar a vida política do Partido Liberal, destaca o Programa Liberal de 1869 como um dos pontos altos do programa ideológico do partido e como uma dissertação clara das ideias liberais no Brasil imperial. O programa citado foi escrito pela cúpula do partido, que contava com nomes conhecidos, como o do senador Joaquim Nabuco, além de Teófilo Otoni, João Paranaguá, Dias de Carvalho, o paraense Bernardo de Souza Franco, dentre outros. Em resumo, os principais pontos do programa eram: responsabilidade dos ministros pelos atos do poder moderador; defesa da máxima ‘o rei reina, mas não governa’; descentralização em sentido amplo; uma maior liberdade em matéria de comércio e indústria, com o fim dos monopólios; liberdade de consciência/liberdade de ensino; independência do judiciário; o Conselho de Estado como órgão administrativo, e não político; fim da vitaliciedade dos senadores; redução das forças armadas em períodos de paz (Torres, 2017Torres, J. C. O. (2017). A democracia coroada: teoria política do Império do Brasil. Câmara dos Deputados.).

DO FIM DO GRÃO-PARÁ À EMERGÊNCIA DO VALE DO AMAZONAS/REGIÃO AMAZÔNICA

Inicialmente, cabe lembrar uma importante questão colocada pela historiadora brasileira Miriam Dolhnikoff (2003)Dolhnikoff, M. (2003). O lugar das elites regionais. Revista USP, (58), 116-133. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i58p116-133
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
, a saber: o lugar das elites regionais no Império brasileiro, haja vista o adensamento do problema da autonomia das províncias frente ao grau de centralização em torno do governo do Rio de Janeiro. Além de ressaltar a tese de certa autonomia provincial diante do poder que emanava do Rio de Janeiro, evidencia-se, segundo a autora, a existência de elites regionais, especialmente no Segundo Império. A existência dessas elites apontou para a compreensão de que o momento vivido seria marcado por uma formação mais acentuada da diferenciação regional brasileira, considerando que as elites de cada região buscavam, cada vez mais, um espaço econômico e político, obrigadas a defenderem suas regiões diante das demais.

A desigualdade entre as províncias do Brasil era reconhecida até mesmo pelo Governo Central, de modo que as irregulares distribuições de recursos eram atribuídas às divisões administrativas e geográficas, deixando de lado a competência do Estado em gerir e organizar o atendimento igual dos entes da nação. No relatório do Ministério do Império, de 1872, podemos ver tal argumentação:

Releva, entretanto, ponderar que a irregularidade da nossa divisão de províncias, estabelecendo considerável desigualdade entre ellas, já quanto á extensão de seu território, já quanto á sua população e riqueza, traz sérios embaraços á applicação de qualquer systema geral de organização administrativa provincial

(Brasil, 1872Brasil. (1872). Ministério do Império (RJ). Ministro (João Alfredo Corrêa de Oliveira). Relatório do ano de 1872 apresentado à Assembleia Geral (Na 1ª sessão da 15ª legislatura] em aditamento em 8 de maio de 1872. Sistema de Entrega Digital CRL., p. 4).

A desigualdade entre as províncias, especialmente a falta de atendimento por parte do Governo Central, tornou-se o principal mote das elites políticas do Grão-Pará no que concerne ao âmbito nacional. Uma das reclamações dos paraenses era a baixa representação política no parlamento brasileiro, pois, no que se refere à câmara dos deputados do Império, observamos que, nesse período, o Grão-Pará, por mais que tivesse figurado na pauta de exportações nacionais e tivesse ganhado certa representação fora do Brasil, teve, em números, a décima primeira bancada de deputados do Império, ficando atrás de províncias como Alagoas, Paraíba e Maranhão, além das chamadas grandes bancadas provinciais de Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sobre esse assunto e, por ocasião da discussão sobre uma reforma eleitoral, o deputado liberal paraense Tito Franco de Almeida se pronunciava na câmara dos deputados em 28 de junho de 1860. Naquela oportunidade, Franco de Almeida criticava a divisão das províncias brasileiras e, por extensão, a representação parlamentar provincial, dizendo:

Não é só a má divisão das nossas províncias, é também a má distribuição da deputação. Se atualmente a deputação não distribuída, segundo o número de habitantes das diferentes províncias, é claro que, enquanto não se fizer uma boa distribuição, qualquer sistema eleitoral, seja qual for, há de produzir um resultado desigual, imperfeito

(ACD, 28 jun. 1860Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1860, jun. 28) Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20186&pesq=%22distribui%C3%A7%C3%A3o%20da%20deputa%C3%A7%C3%A3o%22&pagfis=41649
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, p. 360).

Além disso, acrescenta-se que, durante boa parte desse período, especialmente no Primeiro Reinado e no período regencial, os representantes paraenses na Assembleia Geral do Império nem sempre eram naturais do Pará, pois, de acordo com Carvalho (2017)Carvalho, J. M. (2017). A construção da ordem: a elite política. Civilização Brasileira., acontecia no Brasil Império uma circulação geográfica por cargos, já que a elite circulava pelo país, ocupando espaços no judiciário, no legislativo e no executivo. Os grandes políticos do Império que chegavam ao topo da carreira, a exemplo de senadores, eram submetidos a uma intensa circulação geográfica que visava à formação administrativa e política, além de representar o Império nos mais variados recônditos (Carvalho, 2017Carvalho, J. M. (2017). A construção da ordem: a elite política. Civilização Brasileira.).

Nesse raciocínio, apenas para exemplificar o ponto de reclamação das elites políticas amazônicas, apresenta-se, a seguir, a questão da representação paraense no senado do Império. Portanto, no tocante ao senado, até 1886, o Pará só possuía um representante na câmara vitalícia, passando a contar com três senadores após essa data e, durante todo esse tempo, apenas dois senadores eram naturais do Pará (Bernardo de Souza Franco e Manuel José de Siqueira Mendes), uma vez que os demais eram de fora da província e sempre foram colocados na representação senatorial via desígnios do Império (José Joaquim Nabuco de Araújo, José Clemente Pereira, Fausto Augusto de Aguiar e Antônio Joaquim Gomes do Amaral). No que diz respeito ao Amazonas, menciona-se que, durante o Império, a província nunca elegeu um filho seu senador do Império, situação idêntica à condição do Mato Grosso e do Espírito Santo, visto que os dois senadores que representaram a província foram Herculano Ferreira Pena, natural de Minas Gerais, e Ambrósio Leitão da Cunha, natural do Pará.

Cabe, nesse ponto, aventar uma das situações pelas quais o regionalismo político foi sendo desenvolvido na região amazônica e com maior intensidade a partir do Pará, visto que, além de ter sido o centro da região por muito tempo e de ter concentrado a maioria do movimento comercial e da circulação de produtos e pessoas, o Pará, embora tenha sido representado por políticos advindos de outras províncias, teve, no Segundo Reinado, uma predominância de deputados nativos. Além disso, apesar de terem passado pela presidência muitos estrangeiros à província, em algumas ocasiões, o governo da província foi assumido por políticos paraenses. Com relação ao Amazonas, tomando por base os apontamentos de Pereira (2008)Pereira, N. C. G. (2008). Relações Homem-Natureza: O Discurso político Sobre Agricultura e Extrativismo na Província do Amazonas (1852-1889) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Amazonas]., tanto na câmara dos deputados quanto no senado, os representantes políticos eram estranhos à província. No que diz respeito aos presidentes de província, a situação foi a mesma durante todo o Segundo Reinado, pois, conforme a autora menciona, todos os administradores nomeados para a província eram estranhos ao Amazonas. Assim, o movimento regionalista, de âmbito político, proveio em maior intensidade do Pará.

O regionalismo político colaborou para a transição da postura e dos discursos das elites da província para o âmbito regional, o que revelou a estratégia de conceder maior peso sobre a questão posta acima, ou seja, durante o Segundo Reinado, os políticos paraenses, como será visto adiante, passaram a enfatizar a região (o Vale do Amazonas e a região amazônica), embora também fizessem referência à província do Pará. Tal situação vai de encontro à concepção teórica da construção social da região elaborada por Miguel Espinosa (citado em Caicedo, 1999Caicedo, C. (1999). Reseña de “Región: de la teoría a la construcción social” de Miguel Antonio Espinosa Rico. Revista Territorios, (1), 187-190.). Para o autor, a região é derivada de um processo em que uma sociedade que compartilha uma comunidade cultural e territorial passa a encampar um processo cultural e político que lhe permite ingressar em um movimento maior relacionado à construção do Estado Nacional (Miguel Espinosa citado em Caicedo, 1999Caicedo, C. (1999). Reseña de “Región: de la teoría a la construcción social” de Miguel Antonio Espinosa Rico. Revista Territorios, (1), 187-190.). Ademais, o cenário das elites do Grão-Pará converge justamente para o que Castro (1986, p. 39)Castro, I. E. (1986). Estado e região: considerações sobre o regionalismo. Anuário do Instituto de Geociências, 10, 27-47. https://doi.org/10.11137/1986_0_27-47
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conceitua como regionalismo político, ou seja, “. . . a mobilização política de grupos numa região, em defesa de interesses específicos, frente a outras regiões ou ao próprio Estado”. Para a autora, regionalismo é um conceito político vinculado à identidade territorial.

A demanda política dos representantes paraenses passou a ganhar notoriedade após 1850, sobretudo como decorrência da projeção que o Norte amazônico apresentava no campo econômico. Weinstein (1993, p. 56)Weinstein, B. (1993). A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. Hucitec/Edusp., refletindo sobre a economia da borracha, trouxe uma importante reflexão ao afirmar que, a partir da década de 1850, “a Amazônia emergia, afinal, do status de região economicamente atrasada que tinha desde 1823, quando declara sua independência de Portugal”. Apesar de recair em certa naturalização da noção de Amazônia, recuando o entendimento sobre esse recorte mediante a nomenclatura até 1823, a autora expressou algo significativo, pois, de fato, a partir dessa década, essa área do país passou por mudanças, especialmente comerciais, de modo que suas elites políticas – a exemplo dos representantes citados neste texto – passaram, em seus discursos, a conceder ênfase ao aspecto regional, e não somente aos provinciais. Assim, os primeiros indícios da construção da identidade política amazônica datam desse momento, sobretudo por ter sido pronunciada no parlamento brasileiro, bem como em função do surgimento da ideia de criação de uma unidade administrativa e política – a Província Centro-Amazônica –, proposta na obra “Memorial orgânico”, escrita por Francisco Adolfo de Varnhagen, em 18504 4 Antes de 1850, poucas e espaçadas referências eram feitas a essa parte do país a partir das nomenclaturas ‘região amazônica’ e ‘Amazônia’. (Varnhagen, 2016Varnhagen, F. A. (2016 [1850]). Memorial orgânico que a consideração das Assembleias geral e provinciais do Império, apresenta um brasileiro. FUNAG. [1850]).

A construção de um movimento de cunho regionalista e político nessa parte do Brasil ocorreu com os discursos dos representantes no parlamento brasileiro ainda entre as décadas de 1840 e 1850. Todavia, o segundo momento mais efervescente de construção de discursos do regionalismo político aconteceu entre as décadas de 1860 e 1880, marcadamente no discurso político das elites amazônicas, pelo debate acerca da abertura do rio Amazonas à navegação internacional e pela necessidade de a região ser mais bem atendida pelo Governo Central. Nessa época, os temas relacionados à navegação e ao povoamento dessa parte do Brasil foram os principais a serem proferidos pelas suas elites políticas e serviram para iniciar a definição de certo recorte regional mediante uma abordagem conectada à região amazônica.

Entre 1848 e 1875, vivia-se a era do capital com ênfase no liberalismo econômico, que conjugou forças com as indústrias capitalistas a ponto de criar a sensação de claro triunfo do capitalismo, daí a expressão ‘a era do capital’. A liberdade de comércio ganhava, naquele momento, forte impulso, sobretudo em função no abandono das políticas protecionistas na ampliação das vias navegáveis internacionais – vide os casos dos rios Danúbio (1857) e o Sound, entre a Dinamarca e a Suécia –, bem como certa simplificação do panorama monetário, com a criação de zonas monetárias, além dos tratados de livre-comércio que foram assinados à época (Hobsbawm, 2014Hobsbawm, E. J. (2014 [1977]). A era do capital – 1848-1875 (22. ed.). Paz e Terra. [1977]). A liberdade de comércio impulsionou a iniciativa privada e, no âmbito estatal, a nação inglesa teve resultados surpreendentes. O livre-comércio pautou as ações de potências mundiais, como a Inglaterra, e empolgou países em vias de industrialização. Assim, ocorreram ganhos nas duas pontas, ou seja, tanto os países ricos alcançaram maiores lucros com as exportações, quanto os países a caminho do desenvolvimento também acabaram vendo vantagem nas importações de tecnologias e equipamentos.

Foi nesse cenário que a navegação a vapor ganhou expressão, haja vista que permitia o deslocamento de pessoas e mercadorias de maneira muito mais rápida. Segundo Hobsbawm (2014 [1977])Hobsbawm, E. J. (2014 [1977]). A era do capital – 1848-1875 (22. ed.). Paz e Terra., a expansão do barco a vapor foi considerável e, do ponto de vista global, a navegação internacional era a principal maneira de deslocamento entre as décadas de 1840 e 1870. A ideia de liberdade atrelada à abertura do grande rio Amazonas, no discurso dos membros do Partido Liberal do Pará e do Amazonas, remonta aos princípios básicos do liberalismo, em alta ainda na segunda metade do século XIX.

Os liberais do Pará (Bernardo de Sousa Franco, Tito Franco de Almeida e Domingos Antônio Raiol, entre outros) foram responsáveis, em parte, pela construção discursiva do regionalismo político amazônico, especialmente entre as décadas de 1860 e 1880. Tal fato não foi o único em termos de Brasil, pois, no Rio Grande do Sul, província que também havia passado por uma história de um levante (Revolução Farroupilha), os liberais também lideraram a construção do regionalismo político gaúcho, como aponta Newton Carneiro:

O discurso dos liberais rio-grandenses expõe questões que tratam da “descentralização do poder político, sobre o fortalecimento do federalismo e sobre o papel do regionalismo como uma possível terceira força na articulação do poder local versus o poder central”. Nessa perspectiva, o regionalismo não é uma questão abstrata, mas um estado das relações políticas dentro do Estado-Nação

(Carneiro, 2000Carneiro, N. L. G. (2000). A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Edipucrs., p. 18).

Os ideais liberais citados contemplam vários princípios defendidos pelos liberais do Pará, como a descentralização administrativa do Brasil. O trabalho de Newton Carneiro (2000)Carneiro, N. L. G. (2000). A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Edipucrs., intitulado “A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul”, buscou compreender os mecanismos sociopolíticos que conduziram o Partido Liberal, naquela província, a se apresentar através de um discurso e de uma prática política regionalista, procurando averiguar se esse comportamento regionalista influenciou o ganho de poder do partido na província. O estudioso apresenta o argumento de que o discurso regionalista das elites gaúchas emergiu também a partir do próprio processo de formação da nação brasileira. Para Carneiro (2000, p. 33)Carneiro, N. L. G. (2000). A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Edipucrs., “a imposição do Rio de Janeiro como metrópole nacional, associando poder político ao poder econômico da oligarquia fluminense, limitou o desenvolvimento das demais regiões, periferizando-as”. O autor completa o raciocínio elencando que a consolidação do poder político do Rio de Janeiro foi acompanhada pelo rearranjo das elites pernambucanas e baianas que continuavam a compor os quadros do poder nacional, no entanto, sob a direção dos barões do Vale do Paraíba – cuja elite conservadora mantinha sua força política nessas três províncias –, as quais se identificavam com o centralismo político do Império.

Um dos liberais paraenses – que era representante do regionalismo político – foi o deputado Domingos Antônio Raiol, um intelectual com formação jurídica e atuação política no Norte brasileiro no século XIX, especialmente no período do Segundo Reinado. Natural de Vigia, no Grão-Pará (1830-1912), estudou Direito em Olinda, Pernambuco. Desde a década de 1860, marcou sua atuação na política nacional, sendo eleito o segundo deputado mais votado para a câmara dos deputados do Império na legislatura de 1864 a 1866. Além disso, por meio de indicação imperial, foi presidente das províncias de Alagoas (1882), Ceará (1882) e São Paulo (1883). Em 1883, recebeu o título de Barão de Guajará. Também considerado um intelectual, Raiol escreveu várias obras, sendo a mais expressiva “Motins políticos ou história dos principais acontecimentos políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835”, publicada na década de 1880, devotada aos acontecimentos históricos e políticos que estiveram ligados à Cabanagem (Raiol, 1970Raiol, D. A. (1970). Motins políticos ou história dos principais acontecimentos políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835 (Coleção amazônica, Série José Veríssimo, Vol. 2). Universidade Federal do Pará.)5 5 A historiadora Magda Ricci define a Cabanagem como um movimento que eclodiu em 7 de janeiro de 1835 na cidade de Belém, quando “um grande número de homens – que se autoproclamavam ‘patriotas’ e que vinham de várias partes da Amazônia – invadiram as ruas da cidade de Belém, assassinando autoridades, senhores de escravos e quem mais os impedisse de viver o que entendiam ser sua liberdade” (Ricci, 2003, p. 180). .

Raiol colaborou no que diz respeito à construção de certa consciência política regional em relação à área amazônica. O pronunciamento que ele fez à câmara dos deputados do Brasil, em 21 de março de 1864, argumentava, perante as autoridades imperiais presentes naquela oportunidade, sobre a necessidade de abertura da navegação internacional do rio Amazonas para o desenvolvimento da região amazônica, visto que tal realização representaria o progresso da região, especialmente por permitir o desenvolvimento do comércio e a chegada de imigrantes estrangeiros, o que promoveria a importação de capitais, trabalho, braços e indústrias:

A questão do Amazonas não é local, não é questão chamada de província, é uma questão nacional que interessa a todo Império. . . . É uma das nossas primeiras necessidades concorrer para o desenvolvimento das regiões amazônicas povoando às margens do grande rio

(Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 11).

Raiol, no âmbito das discussões sobre a abertura do rio Amazonas à navegação internacional, demonstrava a tese da terra à espera do progresso, oportunidade em que dizia que “a emigração é que poderá despertar essas riquíssimas matas tão bem-fadadas pela providência” (Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 4). A principal tese do deputado e de outros políticos paraenses era a de que as correntes emigratórias só viriam após a realização da abertura internacional do rio, haja vista que, até 1866, o referido rio esteve fechado às nações estrangeiras por ordem do Império do Brasil. Raiol passou a utilizar, em seus discursos, os termos ‘Vale do Amazonas’ e ‘região amazônica’, denominações recentes para a área que compreendia as províncias do Amazonas e Pará. A elite política do Norte amazônico trabalhava, após o fim dos conflitos da Cabanagem, na perspectiva de soerguer a região, sobretudo através da busca do progresso, que possuía dois pilares – a civilização e o trabalho –, balizas que seriam alcançadas por meio do fluxo comercial internacional e pela vinda de mão de obra estrangeira. Nesse sentido, Raiol se pronunciava, defendendo a abertura do rio Amazonas como sinônimo de: “. . . luz brilhante do progresso transportada àquelas regiões adormecidas na escuridão dos bosques, era fim fazer retumbar n’aquelles valles a voz animadora da civilização acordando tudo ao movimento e ao influxo do trabalho” (Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 3).

Raiol seguia um traço discursivo ainda dos tempos iniciais do discurso regionalista paraense, a saber: a construção do Pará e região como terra da promissão. Em 21 de março de 1864, o deputado paraense discursava na câmara, oportunidade em que dizia: “O Amazonas, permita-me a comparação, é um gigante, mas um gigante que até hoje tem sido sustentado com migalhas só próprias para sustentar pigmeus. . .” (Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 11), ou seja, queixava-se em relação ao pouco atendimento que essa parte do país recebia do Governo Central. Logo em seguida, o deputado expressava a grandeza da região: “o Amazonas há de ser um dia o orgulho do Império” (Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 11). A fala de Raiol seguia ao encontro da noção regional com a emancipação da província do Amazonas desde 1852 e o fim do Grão-Pará, pois, segundo ele, “é preciso que não pêe [sic] a prosperidade de duas províncias, prosperidade que tem sua principal raiz na abertura e no commercio do Amazonas” (Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 11).

A noção de região era partilhada por outros políticos liberais paraenses, como Tito Franco de Almeida, bem como por liberais do Amazonas, a exemplo do deputado Antônio José Moreira, que teve discurso reproduzido por Raiol em uma coletânea de textos acerca da abertura do Amazonas. Moreira alinhava o projeto de abertura do rio ao comércio internacional com a necessidade de atendimento e consideração com a província que representava, notadamente, o Amazonas, dizendo que os signatários do projeto concordavam com o fato de que:

. . . o Valle do Amazonas precisa da liberdade de navegação, foi a inteira convicção, em que estão, de que uma província do Império, o Amazonas tem direito à justiça de entrar na comunhão de suas irmãs, possuindo um porto livre, como tem as mais províncias do litoral

(A. J. Moreira citado em Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 43).

Desse modo, os liberais do Amazonas se expressavam em relação à região, demonstrando indícios da formação de certa bancada liberal do Vale do Amazonas, pois, mesmo com diferenças internas no que tange ao discurso da livre navegação, especialmente a queixa dos amazonenses em relação à dependência do porto de Belém do Pará, aparecia certa sintonia. O deputado José Moreira, ainda no mesmo discurso de 11 de junho de 1864, expressava os ideais liberais associados à discussão do Amazonas, dizendo “vamos fazer uma doação! Quando, se a doação há nisto, ella é feita pelos capitais e pelo trabalho estranho ao Brasil, ao Valle do Amazonas; pois é o que querem dizer emigração livre, navegação livre e commercio livre” (A. J. Moreira citado em Raiol, 1867Raiol, D. A. (1867). Abertura do Amazonas: extratos dos debates no parlamento brasileiro acerca do projeto de lei sobre a abertura do rio Amazonas à navegação e ao comércio do mundo. Typografia do Jornal do Amazonas., p. 47).

Um dos representantes políticos paraenses que mais contribuíram para o regionalismo político amazônico foi o deputado paraense Tito Franco de Almeida, natural de Moju, no Pará. Ele se bacharelou em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda, em 1850, formação que lhe rendeu a atuação como advogado em Belém. Em seguida, tornou-se professor de Filosofia no Liceu Paraense. Além disso, desempenhou a atividade de jornalista no Amazonas através de atuação nos seguintes jornais: Gram-Pará, Diário do Gram-Pará, Jornal do Amazonas, Diário do Comércio e Liberal do Pará. Foi eleito deputado provincial em 1852, com novos mandatos nos anos seguintes. Com a ida do então deputado-geral Bernardo de Souza Franco para o senado, Franco de Almeida ascendeu no campo liberal paraense, eleito deputado-geral pelo distrito da capital para as legislaturas iniciadas em 1856, 1864 e 1878. Ademais, escreveu vários trabalhos sobre temas econômicos e políticos.

A atuação parlamentar de Tito Franco de Almeida teve duas grandes características, sendo a primeira a salvaguarda dos princípios liberais e a segunda a defesa dos interesses da região sob a liderança do Pará. Para ele, o comando da grande região começaria a partir de Belém. Em discurso proferido na data de 28 de julho de 1860, o deputado paraense, no âmbito das discussões na Câmara dos Deputados sobre o orçamento da Marinha, argumentava sobre a necessidade de transferência da estação naval do Maranhão para o Pará, pois previa que a abertura internacional do rio Amazonas traria intenso movimento dos países vizinhos para o referido e, como o “Pará era a chave do Amazonas”, deveria possuir a citada estação, e não o Maranhão (ACD, 28 jul. 1860Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1860, jul. 28) Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20186&pesq=%22chave%20do%20Amazonas%22&pagfis=41975
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, p. 309). Há de se notar que Franco de Almeida pautou, por mais de uma vez, questões que pertenciam ao Maranhão e, no entendimento do deputado, deveriam pertencer ao Pará.

A pauta de entrada de Franco de Almeida, no que diz respeito ao Pará, foi a ampliação da representação política dessa área do Brasil, sendo ele, portanto, um dos autores do artigo incorporado ao projeto de reforma eleitoral de 1860, que previa o aumento do número de deputados paraenses no parlamento brasileiro de três para cinco deputados. Outra pauta alavancada por Franco de Almeida, como já citado, foi a navegação e a abertura do rio Amazonas ao comércio internacional. Em 20 de agosto de 1860, ele defendia, na câmara dos deputados, um projeto que previa a possibilidade de instalação de uma companhia de navegação americana que ligaria os Estados Unidos ao Pará. Na ocasião, o deputado reapresentava o tema do abandono da região, dizendo que, no Brasil, pouco se falava da área às margens do Amazonas, o que dificultava a produção de informações sobre esse espaço:

É assim que na Europa ou na América do Norte não se pode fallar no grande Valle do Amazonas, pelas ideias que tem dele todo o mundo, ainda pouco ilustrado, que não se declarem extasiados perante uma tal maravilha; entre nós porém falla-se no Grande Valle do Amazonas, e infelizmente raros são aquelles que comprehendem o que isso quer dizer

(ACD, 20 ago. 1860Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1860, ago. 20) Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20186&pesq=%22Grande%20Valle%20do%20Amazonas%22&pagfis=42222
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 214).

A denominação ‘Valle do Amazonas’, na década de 1860, passou a fazer parte do vocabulário dos representantes políticos dessa área, como já foi aludido em outro ponto do texto, de modo que Franco de Almeida foi um dos principais responsáveis por alavancar um discurso político em nome da grande área banhada pelo rio Amazonas, dispensando falar apenas pela sua província. Para o deputado, pouco se conhecia sobre o novo nome dessa área, o que revela ser esse o momento de transição de nomenclaturas acerca da região. Tal postura importa para a discussão em tela, pois, nesse ponto, localiza-se uma das nascentes do discurso regional amazônico, já que, com o fim da grande província do Pará ou do Grão-Pará, que englobava o Pará e a comarca do Rio do Rio Negro, os representantes paraenses reinventam um cenário regional a partir do Vale do Amazonas e da região amazônica, sobretudo a partir da criação da província do Amazonas, em 1852. Com o tom de crítica à corte no Rio de Janeiro, Franco de Almeida, quando discorria na câmara dos deputados sobre o projeto de criação de um novo ministério na estrutura do Governo Central, ressaltava a postura liberal em defesa das províncias e regiões, dizendo que:

S. Ex. entende que nós, deputados das províncias, e principalmente das províncias mais longínquas, como a do Pará e do Amazonas, devemos ficar fascinados pelo brilho da Côrte, centro donde há de partir a pobreza e a miséria, consequências inevitáveis desse luxo que não tem base, e que ameaça todas as fortunas e famílias

(ACD, 28 maio 1859, p. 113).

O deputado paraense reforçava a crítica, que perdurou por todo o Segundo Reinado no Norte do Brasil, acerca da ideia de que a Corte concentrava e usurpava toda a riqueza das províncias e regiões distantes. Interessa também perceber que ele falava em nome do Pará e do Amazonas, denotando a postura regional em seu discurso, o que se converte no processo de institucionalização da região amazônica por meio dos discursos políticos. Em pronunciamento na câmara dos deputados, na data de 5 de julho de 1859, Franco de Almeida reverberou o que se aventou até aqui: o deputado paraense exprimia o interesse em tratar de uma área mais ampla do que apenas a província paraense, transparecendo que os representantes paraenses queriam manter a centralidade paraense na região. Segue a fala do deputado:

É verdade que só tenho fallado no Pará; mas quando o faço entenda-se que me e refiro ao Pará e Amazonas; como formando um todo; pois, peço licença ao nobre deputado pelo Amazonas para dizê-lo, ainda não me acostumei a considerar a província do Amazonas separada do Pará, porque seus interesses nos estão tão ligados, suas necessidades são as mesmas, de sorte que o Pará e o Amazonas constituem em quasi todos os pontos uma só província

(ACD, 28 maio 1859, p. 113).

Franco de Almeida, nesse mesmo discurso com o tema do recrutamento de homens para as Forças Armadas no Pará, continuava a reclamar sobre o abandono que esse espaço sofria por parte do Governo Central, evidenciando ser uma província que não necessitava mendigar favores, e sim ser atendida à altura de sua riqueza e de sua contribuição com o Império brasileiro, ressaltando que o Governo Central tratava o Pará com a mesma distância geográfica que existia entre a província e a corte. Ao término do discurso, o deputado voltava a pedir licença a um deputado do Amazonas para dizer que falava em nome do Pará e do Amazonas, pois “. . . para mim está averiguado que a província do Pará e a província do Amazonas têm os mesmos interesses, as mesmas necessidades e, portanto, os mesmos direitos” (ACD, 28 maio 1859Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1859, maio 28). Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20185&pesq=%22fascinados%20pelo%20brilho%20da%20C%C3%B4rte%22&pagfis=40417
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 44).

Esse interesse de integração nem sempre foi o pensamento dos representantes do Amazonas, uma vez que, com a emancipação à condição de província, os amazonenses também queriam se livrar do aspecto colonial mantido com o Pará, especialmente pela histórica dependência que tiveram em relação à importação e à exportação de gêneros primários, como foi exposto em um protesto elaborado pelo deputado provincial amazonense Joaquim Rocha dos Santos, em nome da classe comercial do Amazonas, endereçado ao Governo Central, no ano de 1882, ocasião em que era solicitada uma linha de transporte fluvial direto entre Manaus e o Rio de Janeiro, para encerrar o entreposto feito no Pará (Santos, 1882Santos, J. R. (1882). Navegação direta entre a Corte e o Amazonas. Typografia Molarinho.).

A vontade de manutenção do aspecto regional, por parte de Tito Franco, também fornece indícios do processo inicial da institucionalização da região amazônica, que teve a nomenclatura ‘Vale do Amazonas’ como transitória, um estágio antes da consolidação do nome Amazônia, algo de extrema importância para o processo de constituição de uma nova dimensão regional nessa área do país, em substituição ao Grão-Pará. Essa perspectiva do nome, para Anssi Paasi, se traduz no estágio da institucionalização concernente à simbologia, visto que:

Enfatizei anteriormente o significado de nomear como o processo que possibilita o uso de regiões em discursos políticos, acadêmicos ou cotidianos (1996).

As elites políticas em todos os lugares colocaram rótulos em ‘paisagens’ concretas e simbólicas para dividir e controlar o espaço e as pessoas. Rótulos espaciais também são cruciais para significar territorialidade

(Paasi, 2001Paasi, A. (2001). Europe as a social process and discourse: considerations of place, boundaries and identity. European Urban and Regional Studies, 8(1), 7-28. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/096977640100800102
https://doi.org/10.1177/0969776401008001...
, p. 17).

Os deputados paraenses no parlamento brasileiro, a partir da década de 1860, inspiraram-se pelo debate da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, que herdava outro debate sobre os interesses americanos nesse assunto, motivo pelo qual a nomenclatura Vale do Amazonas passou a circular, sendo recepcionada pelas elites políticas6 6 Em meados do século XIX, com o contexto de expansionismo americano direcionado para a América Central e o Caribe, o tenente da armada estadunidense, Matthew Maury, desencadeou uma campanha em prol da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, um projeto oficialmente relacionado à comunicação e ao comércio, mas que possuía outros objetivos, como a colonização agrícola das margens do Amazonas com o plantio de algodão e borracha. Tendo em vista a discussão aberta por Maury acerca da possível integração comercial dos vales dos rios Amazonas e Mississipi, nos Estados Unidos, aventa-se que o uso do termo ‘vale’ para o Amazonas tenha derivado da percepção de vale para os americanos. À época, as elites brasileiras se debruçaram sobre os escritos de Maury para apoiar ou para criticar. , que passaram a chamar essa parte do Brasil não mais de Grão-Pará, mas sim de Vale do Amazonas ou de região amazônica. O deputado paraense Antonio Francisco Pinheiro, em 1867, um ano após a abertura do rio Amazonas à navegação internacional, desconfiava das intenções do governo com a região e dizia que “o primeiro dever do Governo, se o governo está realmente desejoso de fazer prosperar o Valle do Amazonas, é fazer antes de tudo, primeiro que tudo, convergir para ali a emigração” (ACD, 28 ago. 1867Anais da Câmara dos Deputados (ACD). (1867, ago. 28). Câmara dos Deputados. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=132489&pasta=ano%20186&pesq=%22immenso%20Valle%20cuja%22&pagfis=48833
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, p. 325). Um ano antes, em 1866, o deputado liberal alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos publicava sua obra mais completa sobre essa parte do Brasil com o título de “O Vale do Amazonas” (Tavares Bastos, 1975Tavares Bastos, A. C. (1975). O Vale do Amazonas: a Livre navegação do Amazonas, estatística, produção, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas (3. ed.). Ed. Nacional/INL.), um texto com muitas informações e dados acerca do Pará e do Amazonas, tendo como cenário a discussão sobre a abertura do rio Amazonas à navegação internacional.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA A PARTIR DA IMPRENSA LIBERAL PARAENSE

É possível aferir inicialmente a participação dos liberais do Pará no processo de constituição da região amazônica por meio do regionalismo político, a partir dos jornais O Liberal do Pará (1869-1889) e A Província do Pará (1886-2002), ambos órgãos do Partido Liberal do Pará. Antes, é importante considerar o papel dos jornais no século XIX como produtores de linguagens políticas e de opiniões públicas. Logo, seguindo o raciocínio de Elias Palti (2020)Palti, E. J. (2020). O tempo da política: o século XIX reconsiderado (1. ed.). Autêntica., que tomou por base o século XIX latino-americano, a ação jornalística passou a se configurar como uma prática de intervenção, pois, concomitantemente, se constituía como um modo de discutir e fazer política. Portanto, aventa-se que os jornais de cunho político não buscavam representar a opinião pública, mas constituí-la.

Além disso, alguns jornais paraenses, a exemplo de O Liberal do Pará, A Província do Pará e Diário do Gram-Pará (historicamente ligado ao Partido Conservador), se comportavam com posturas intervencionistas, haja vista produzirem e publicarem textos que visavam construir certa opinião pública nessa parte do Brasil, em especial as ideias de que o Pará não era tratado à altura da sua grandeza, em função da centralização imperial, e que seria preciso construir uma nova imagem, uma nova interpretação dessa parte do Brasil, visando elevá-la à condição de importância para a superação de certo atraso. Esse contexto aponta para outra questão importante a ser considerada no âmbito da institucionalização das regiões, pois, de acordo com Paasi (2017, p. 10)Paasi, A. (2017). Alueiden ja paikkojen historia ja identiteetti. In Vanhatalo Riitta et al. (Eds.), Kotiseutu 2017 - Suomen Kotiseutuliiton julkaisuja A:37 (pp. 9-23). Suomen Kotiseutuliitto. https://www.researchgate.net/publication/318572605_Alueiden_ja_paikkojen_historia_ja_identiteetti
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, “a imprensa regional divulga informações e cria uma imagem da região e da comunidade de seus habitantes”. Ou seja, a imprensa contribuiu com o terceiro estágio do processo de institucionalização das regiões, marcado pela criação e atuação de instituições, objetivando a descrição das características e as delimitações entre a região pretendida e as demais.

O Liberal do Pará surgiu em 10 de janeiro de 1869 para substituir o jornal denominado Jornal do Amazonas, também de cunho liberal, à época sob a direção de Tito Franco de Almeida. O Liberal do Pará teve como primeiros proprietários Manoel Antonio Monteiro e José Antônio Ernesto Paraguassu. Do ponto de vista da política nacional, o jornal demonstrou certa oposição à centralização do Império brasileiro, logo, evidentemente sua luta política recaía contra o Partido Conservador, mas a pauta da descentralização e dos preceitos liberais fazia parte da redação do jornal.

Este periódico contribuiu para o regionalismo político amazônico, enquanto alguns textos publicados pela sua redação apresentavam debates acerca das necessidades do Pará e da região e o não atendimento por parte do Império. Em 21 de janeiro de 1869, o “Relatório da Praça do Comércio do Pará” era publicado nas páginas de O Liberal do Pará (““Ponte d’alfandega”, 1869Ponte d’alfandega. (1869, fev. 21). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22Ponte%20d%E2%80%99alfandega%22&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=37
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, p. 1). No citado documento, aparecia a queixa contra o Império e a centralização, pois era reivindicada a construção de uma ponte para a alfândega de Belém do Pará. As elites comerciais e políticas, há certo tempo, discutiam e solicitavam a referida obra, uma das mais importantes do ponto vista provincial e regional naquele momento, já que acreditavam que

. . . depois das alfândegas da corte, da Bahia e de Pernambuco, é a do Pará a que mais rende, tendo sido 3,185:301$961 a sua renda no anno civil, que acaba de findar, e no, entretanto, se lhe nega uma ponte para o seo serviço

(“Ponte d’alfandega”, 1869Ponte d’alfandega. (1869, fev. 21). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22Ponte%20d%E2%80%99alfandega%22&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=37
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, p. 1).

Os paraenses se colocavam como a quarta maior alfândega do Brasil, porém consideravam que

. . . essa injustiça do Governo Central tem autorisado o dito que por ahi corre, e vem a ser, que melhor teria sido que a província empregasse na construção d’essa ponte os 100:000$000 que offereceo para as despesas da guerra contra o Paraguay

(“Ponte d’alfandega”Ponte d’alfandega. (1869, fev. 21). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22Ponte%20d%E2%80%99alfandega%22&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=37
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, 1869, p. 1).

A comissão que elaborou o relatório repetiu a estratégia do discurso político de projetar o problema provincial na condição de um problema nacional, ao recomendar que “em uma palavra, não é causando-se prejuisos ao commercio com a economia de algumas centenas de contos de réis, que se há de melhorar as finanças do Brasil” (“Ponte d’alfandega”, 1869Ponte d’alfandega. (1869, fev. 21). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22Ponte%20d%E2%80%99alfandega%22&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=37
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, p. 1).

Acerca do problema para os paraenses quanto à imposição de governantes alheios à província, em 18 de outubro de 1870, fora publicado um texto de capa com críticas à administração do presidente do Pará, Abel Graça, pertencente ao Partido Conservador. Um trecho do citado texto atingia o próprio Imperador, sobretudo em função de ter sido, por ordem dele, a indicação política para o cargo de presidente de província, ocasião em que era dito que “o paternal governo do Sr. D. Pedro II deseja aniquilar as províncias do Norte e especialmente o Pará, [ideia que] está na consciência de todos . . .” (““O Liberal do Pará”, 1870O Liberal do Pará. (1870, out. 18). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22o%20paternal%20governo%22&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=1067
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 1). Ainda nesta mesma matéria, se fazia um apelo à Assembleia Legislativa do Pará, constituída na sua maioria por paraenses, para barrar os ditos ‘erros cometidos’ pelo Sr. Abel na presidência da província. Nesse escrito, assim como em outros, a ideia de um Pará rico e próspero era contrastado com a falta de administração de tamanha riqueza, uma crítica à imposição de presidentes de províncias estranhos à região amazônica.

O regionalismo político amazônico foi formado a partir da plataforma de críticas à centralização do Império, visto que as grandes pautas das elites da região eram, na verdade, pautas do debate provincial, ou seja, demandas pertinentes à autonomia das províncias, a exemplo do problema da indicação de presidentes de província alheios ao lugar, da autonomia para as assembleias provinciais, menos impostos e mais investimentos públicos, além de uma maior participação na estrutura do Estado nacional. Em 12 de março de 1875, O Liberal do Pará publicava uma matéria com o título “A viagem imperial”, texto destinado a problematizar a possibilidade de ausência do imperador e as consequências políticas, oportunidade em que era criticada a “ferrenha centralização, que poz nas mãos do imperador todos os fios do sistema de governo, a ausência do chefe do Estado traria males incalculáveis . . .” (“A viagem imperial”, 1875A viagem imperial. (1875, mar. 12). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20187&pesq=%22Viagem%20imperial%22&pagfis=5842
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, p. 1). As insatisfações ao nível provincial, especialmente no Pará, conduziram as elites políticas dessa parte do Brasil ao discurso regional amazônico, visto que, guardadas as diferenças entre o Pará e o Amazonas, o uso político da dimensão regional foi uma forma encontrada para conceder maior peso às demandas da área amazônica.

O Liberal do Pará passou a usar a nomenclatura ‘amazônica’ para se referir ao espaço regional, inclusive, no período entre 1870 e 1879, foi o jornal que mais registrou a citada nomenclatura em detrimento dos demais jornais paraenses, conforme se pode observar junto aos jornais disponíveis na Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional (Brasil). A nomenclatura ‘amazônica’ apareceu pela primeira vez em 3 de outubro de 1872, em uma pequena nota sobre um incêndio no povoado de Iquitos, na região do rio Amazonas, em área peruana, quando era informado que tal sinistro poderia comprometer o comércio da região amazônica (“Horrível incêndio”, 1872Horrível incêndio. (1872, out. 03). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20187&pesq=%22amazonica%22&pagfis=3221
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). A matriz pela qual se percebe o uso da nomenclatura no jornal é justamente a do regionalismo político da década de 1860, desenvolvida pelos políticos liberais paraenses, ou seja, o Vale do Amazonas, ou região amazônica, ligava-se, naquele momento, às ideias de progresso comercial e era sinônimo de espaço fértil, abundante e pronto para ser explorado pelas forças do capital.

Além disso, em 1873, em matéria sobre a exportação do Pará, os redatores de O Liberal do Pará voltaram a citar a nomenclatura ‘amazônica’, desta feita, ela apareceu quando lamentavam o estado da agricultura na província, pois percebiam as exportações ligadas à borracha e à pouca presença dos gêneros agrícolas. Para tanto, diziam que “. . . a região amazonica, umas das mais uberinas do globo, possue elementos para abastecer o mundo com os produtos da sua cultura” (“A nossa exportação em 1872”, 1873A nossa exportação em 1872. (1873, jan. 16). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20187&pesq=%22amaz%C3%B4nica%22&pagfis=3541
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, s/p).

Ainda em fevereiro de 1873, a nomenclatura ‘amazônica’ aparecia nas folhas do jornal a partir da matéria com o título “Um bispo incendiário”, espaço onde os redatores criticavam o bispo do Pará, Dom Macedo Costa, e o acusavam de ter espalhado um folhetim que difamava portugueses e maçons, considerando os últimos como protetores de criminosos. Nessa oportunidade, os redatores diziam que “o pastor da vasta diocese amazônica” teria se transformado em um tipo lobo, ou seja, uma crítica ao que consideravam o Bispo um incendiário (“Um bispo incendiário”, 1873Um bispo incendiário. (1873, fev. 4). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22amaz%C3%B4nica%22&pasta=ano%20187&hf=memoria.bn.br&pagfis=3597
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, p. 1). É importante considerar que geograficamente, a delimitação da Diocese do Grão-Pará à época, guardava semelhantes contornos com a delimitação da própria região amazônica a partir das províncias do Pará e do Amazonas.

A perspectiva da livre navegação e do comércio internacional no curso do rio Amazonas continuou na pauta de O Liberal do Pará na década de 1870, de modo que, em 1º de junho de 1875, eram publicados dois textos na folha de capa do jornal com o título “A região amazônica e as repúblicas ribeirinhas”A região amazônica e as repúblicas ribeirinhas. (1875, jun. 1). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20187&pesq=%22quebrando%20as%20barreiras%20%22&pagfis=6066
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, um de autoria dos articulistas do jornal e outro de autoria do viajante, político, militar, escritor, cartógrafo e empresário colombiano representante da casa comercial Elias Reyes & Irmãos, Rafael Reyes (1850-1921), que, em 1874, partiu, por vias fluviais das montanhas colombianas a partir da cidade de Pasto rumo às águas do Atlântico Norte, com fins de verificar a possibilidade de instalação de uma via de comunicação comercial que contemplasse os rios Putumayo e Amazonas para a Europa. O texto introdutório dos articulistas do jornal expõe o interesse pela pauta da livre navegação e revela os interesses liberais daquele momento, com destaque para o pensamento em relação à América, pois, pregando a aproximação com as chamadas ‘repúblicas ribeirinhas’, diziam:

É assim, quebrando as barreiras que até hoje nos tem separado delles, que iremos convencendo-os de que, obreiros do progresso, todos nos americanos devemos n’mesma família trabalhar por desenvolver os elementos prodigiosos com Deos fundou o novo mundo, nossa patria comum

(“A região amazônica...”, 1875, p. 1).

O texto de Rafael Reyes possui duas temáticas principais, sendo a primeira relacionada à geografia da região da América do Sul e a segunda ligada ao comércio desse mesmo espaço. Reys acabou por se envolver nas discussões sobre limites e sobre o comércio de seu país em relação aos outros países da América do Sul. Para tanto, manteve relações políticas diversas, inclusive no Brasil, onde esteve na corte com D. Pedro II, visando conseguir autorização para o comércio e a navegação no Amazonas.

Os escritos do empresário colombiano publicados no jornal paraense davam conta do discurso sobre a imensa riqueza da região e das potencialidades comerciais, especialmente com a criação de uma rota comercial para o Atlântico Norte, o que, de todo modo, iria ao encontro da tese dos liberais do Pará defendida no parlamento no momento em que se discutia acerca da abertura do rio Amazonas às nações estrangeiras, principalmente a ideia de tornar o rio uma via comercial de escoamento de produtos e de permitir o trânsito de pessoas, especialmente imigrantes. A única diferença é que, para os parlamentares, o ponto final dessa via comercial seria o Pacífico, e não o Atlântico Norte. Não foi trivial que Reyes tenha chegado a citar que contava no Pará com o apoio do homem público e representante político liberal Domingos Antonio Raiol. Reyes deixava transparecer a recepção do uso da nomenclatura ‘região amazônica’, enunciada por Raiol no parlamento brasileiro uma década antes.

Além disso, Reys apresentou, em seu texto, outra ideia presente nos discursos políticos dos liberais paraenses: a perspectiva de que a região entre Belém e Manaus era um espaço à espera do progresso, pois enfatizou que “a empresa é um grande passo dado nos augustos e elevados destinos que estão reservados [às] regiões amazônicas: seus resultados serão transcendente” (“A região amazônica...”, 1875, p. 1). A ideia de uma região inscrita na história do progresso como detentora de riquezas, faltando apenas a sua realização, foi uma chave retórica que atualizou as antigas percepções sobre essa mesma região no passado, como Eldorado, País das Canelas, dentre outras dimensões espaciais.

Na década de 1880, o jornal Diário do Gram-Pará (historicamente ligado ao Partido Conservador na Província) encabeçava, a partir de Belém, uma campanha política de fortalecimento regional em nome da Amazônia. Simultaneamente, o jornal O Liberal do Pará abria divergência com o seu oponente em relação ao tema do separatismo, ventilado no Pará, e a apresentava como uma possível saída para a região frente ao abandono pelo Governo Central.

Neste contexto, discutia-se sobre a possibilidade de separação da Amazônia do restante do Império. O Liberal do Pará respondia, em 19 de janeiro de 1883, uma provocação do jornal Diário do Gram-Pará sobre a conivência dos liberais com o descaso do Governo Central com a Amazônia. Na resposta, O Liberal do Pará se dizia contrário ao separatismo e que era melhor estar unido ao ‘gigante da América do Sul’ do que à ‘fraca e pequena Amazônia’ (“Resposta”, 1883Resposta. (1883, jan. 19). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20188&pesq=%22%20gigante%20da%20Am%C3%A9rica%20do%20Sul%22&pagfis=14086
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). Apesar de discordarem da tese separatista, os liberais do Pará foram igualmente responsáveis pela construção regional em torno da Amazônia, tida como expressão de uma nova fase da região, diferenciada em relação aos momentos passados do Grão-Pará, sendo sinônimo de progresso, avanço e maior representatividade. Também se deve considerar que o acirramento entre os jornais que representavam posicionamentos políticos divergentes na década de 1880 decorria do fato de os conservadores do Pará terem assumido boa parte dos cargos de representação política no parlamento nacional em detrimento dos liberais.

O outro jornal ligado aos liberais do Pará foi A Província do Pará, criado em 1876 por Joaquim José de Assis, Francisco de Souza Cerqueira e Antônio José de Lemos, apresentando-se como ‘publicação diária’. A Província do Pará, em 31 em julho de 1876, já criticava a distribuição injusta dos recursos entre as províncias e a capital do Império, citando as inúmeras obras do tesouro nacional no Rio de Janeiro e as obras inconclusas e não iniciadas nas províncias. O jornal dizia que “apenas queremos notar que enquanto no Rio de Janeiro o Tesouro esváe-se em obras que podem ser consideradas de mero luxo, as províncias gemem ao peso das suas mais urgentes necessidades . . .” (A Província do Pará, 1876A Província do Pará. (1876, jul. 31). A Província do Pará. Arquivo do Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves/Sede Fundação Cultural do Pará, Belém., s/p). A defesa de certo grau de descentralização do Império continuou sendo realizada pelo jornal em abril de 1880, quando era publicado um editorial sobre o Partido Liberal. O texto ressaltava que os integrantes do jornal não queriam o fim do poder central, mas advogavam a necessidade de esse mesmo poder não aniquilar a vida das províncias, sobretudo quando estava sob o comando dos conservadores (““O que é...”, 1880O que é, o que deve ser o Partido Liberal. (1880, abr. 15). A Província Pará. Arquivo do Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves/Sede Fundação Cultural do Pará, Belém.).

O mencionado editorial de A Província do Pará acabou sendo, de certo modo, um dos mais fortes contra a centralização, pois enumerava praticamente todas as demandas das províncias, que eram, até então, tidas como sufocadas pelo Império: eleições para cargos públicos, a exemplo dos presidentes de província; a necessidade do fim dos mandatos vitalícios para o senado; que as províncias pudessem receber recursos conforme a proporção de sua população e rendas; que as assembleias provinciais fossem compostas por eleitos nos municípios e, por fim, “cumpre desaparecer a desigualdade procedente das representações das grandes e pequenas províncias, a saber: umas não devem valer nem mais nem menos que as outras” (““O que é...”, 1880O que é, o que deve ser o Partido Liberal. (1880, abr. 15). A Província Pará. Arquivo do Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves/Sede Fundação Cultural do Pará, Belém., s/p). O texto apareceu também como uma crítica a alguns liberais que, na visão dos redatores do jornal, não combatiam devidamente a centralização imperial.

A Província do Pará passou a tratar o extremo Norte do Brasil pelos nomes de Vale do Amazonas e região amazônica a partir de 1879, oportunidade em que, divulgando as impressões de um ‘amigo do jornal’ acerca de uma viagem de conotações comerciais realizada entre o Pará e o Peru, o texto possuía como título “Do Pará a Iquitos – produção, commercio e futuro do Valle amazônico”, e recomendara tratar sobre as imensas riquezas do Vale, sobre a necessidade de desenvolvimento e sobre a vontade política para a transformação da região em um empório. Ele recomendava, ainda, a resolução dos males que travavam o progresso dessa parte do Brasil, aconselhando a união de forças políticas e o papel que a imprensa deveria ter para construir uma opinião pública sobre os negócios regionais (“Do Pará a Iquitos”, 1879Do Pará a Iquitos. (1879, maio, 11). A Província do Pará. Arquivo do Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves/Sede Fundação Cultural do Pará, Belém.).

Além disso, enfatizava o momento econômico que viviam o Pará e o Amazonas, haja vista que ambas as províncias eram vistas em dificuldade, ‘prostradas’, embora fossem consideradas ricas em recursos naturais. Tal conjuntura possui substancial importância para a compreensão do movimento das elites paraenses na formulação de um discurso regional, pois foi em momentos de crise que os regionalismos mais afloraram. Somados ao descontentamento com a citada injustiça do Governo Central, aos impostos sobre os negociantes e ao considerado atraso da lavoura e da indústria extrativa, nota-se que essas questões ambientaram o clima para uma nova fase do discurso regional, pois, se uma primeira fase foi vivida entre as décadas de 1840 e 1850 e a segunda fase a partir da década de 1860 – tendo como mote a navegação a vapor e a abertura do rio Amazonas à navegação internacional, respectivamente, e os nomes Vale do Amazonas e região amazônica passaram a ser utilizados para denominar a região –, agora as dificuldades da década de 1870 prenunciavam uma terceira fase do discurso regional, às vésperas da década de 1880. Portanto, a nomenclatura que veio a ser utilizada foi Amazônia.

Há de se notar, nesse ponto, a importância dos nomes atribuídos aos territórios e regiões, visto que cumprem um papel simbólico no processo de institucionalização da região, contribuindo para a invenção de identidades regionais, como já apontado neste texto a partir do pensamento de Paasi. Ainda conforme o estudioso supracitado, em alguns casos: “O nome da região – que muitas vezes resulta de lutas políticas ou culturais e vários outros símbolos (brasão, canções, certas características culturais e naturais, mitos) – pode ser crucial e seus significados podem variar também em diferentes escalas espaciais” (Paasi, 2011Paasi, A. (2011). The region, identity, and power. Procedia - Social and Behavioral Sciences, 14(10), 9-16. http://dx.doi.org/10.1016/j.sbspro.2011.03.011
https://doi.org/10.1016/j.sbspro.2011.03...
, p. 13).

À medida que avançava a década de 1880, é notória a acentuação em torno do regionalismo político voltado para a descentralização administrativa. Destaca-se, nessa época, a contribuição de um dos chefes do Partido Liberal no Pará, José Coelho da Gama e Abreu, o Barão de Marajó. Gama e Abreu, político, tido como historiador e representante do Brasil na Europa, publicou vários livros, dentre eles, os mais conhecidos: “A Amazônia: as províncias do Pará e Amazonas e o Governo Central do Brazil” (Gama e Abreu, 1883aGama e Abreu, J. C. (1883a). A Amazônia: as Províncias do Pará e Amazonas e o governo central do Brazil. Typographia Minerva.) e “As regiões amazônicas: estudos chorographicos” (Gama e Abreu, 1883bGama e Abreu, J. C. (1883b). As regiões amazonicas: estudos chorographicos. Imprensa de Libânio da Silva.). O político e autor, a partir de sua obra de 1883, chamaria atenção da nação para a região, demonstrando ser a Amazônia um espaço promissor, rumo à civilidade. Através da obra, o Barão de Marajó advogou ferrenhamente a favor das províncias do Pará e do Amazonas em detrimento da centralização do Governo Imperial às províncias do Sul do país. Na obra “A Amazônia”, o Barão de Marajó, logo no primeiro capítulo da obra em tela, intitulado “A Amazônia – sua importância”, o intelectual afirma: “A região amazonica ou Amazonia, como modernamente lhe têm chamado alguns, referindo-se aos territórios reunidos em ambas províncias . . .” (Gama e Abreu, 1883bGama e Abreu, J. C. (1883b). As regiões amazonicas: estudos chorographicos. Imprensa de Libânio da Silva., s/p) do Pará e do Amazonas como centros de gravidade da vida social, cultural, política e econômica dessa parte do território brasileiro, demonstrando, assim, quão recente era a nomeação da Amazônia ou região amazônica.

O Barão de Marajó, em “As regiões amazônicas: estudos chorographicos” (Gama e Abreu, 1883bGama e Abreu, J. C. (1883b). As regiões amazonicas: estudos chorographicos. Imprensa de Libânio da Silva.), reforçava a informação acima e ainda consubstanciava a ideia de formação recente de um campo de conhecimento sobre a região amazônica, quando elencava que “o verdadeiro conhecimento, a revellação do que é a Amazonia com excepção dos estudos das commissões geográphicas portuguezas é muito moderna, a sua riqueza o seu brilhante futuro, só ha poucos annos tem sido descortinado ao resto do mundo . . .” (Gama e Abreu, 1883bGama e Abreu, J. C. (1883b). As regiões amazonicas: estudos chorographicos. Imprensa de Libânio da Silva., p. 6). Gama e Abreu foi um dos principais representantes do regionalismo político amazônico na década de 1880; suas obras visavam questionar a concentração do Governo Central e como esse processo prejudicava as províncias do Pará e do Amazonas, ambas vistas como uma única região: a Amazônia. Nesse ponto, encontrava-se, à época, o pensamento de políticos liberais e conservadores, em especial a necessidade de maior autonomia e atendimento em melhorias para a região. Foi nessa década, num contexto em que havia maior presença de políticos conservadores à frente dos cargos de representação, que a participação dos conservadores foi ampliada nos debates em torno do regionalismo político.

Outro estágio de institucionalização das regiões baseia-se na delimitação de suas fronteiras, ou seja, a existência da região passa pela definição de seu território. Nesse sentido, destaca-se a preocupação dos liberais do Pará com a fronteira norte da Amazônia, isto é, o território-limite com a Guiana Francesa. O jornal O Liberal do Pará publicou uma série de textos sobre a chamada ‘questão do Amapá’. A recém-denominada Amazônia e a pretensão de uma nova região fizeram com que as elites políticas se preocupassem com o território que, até então, pertencia ao Pará, oportunidade em que ganhou espaço um texto escrito por José da Gama e Abreu, o Barão de Marajó, intitulado “Um Protesto”, publicado em partes em várias edições de O Liberal do Pará com o seguinte título: “Pretensões da França a uma parte do Amazonas” (1883)Pretensões da França a uma parte do Amazonas. (1883, ago. 31). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704555&pasta=ano%20188&pesq=%22parte%20do%20Amazonas%22&pagfis=14756
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. Nas discussões elencadas pelo Barão do Marajó, estavam explícitas as preocupações com os limites do território da região, sobretudo tratada a partir da junção dos territórios do Pará e do Amazonas, constituintes da Amazônia.

Embora, por boa parte da década de 1880, os conservadores tenham dominado os principais postos no parlamento nacional, possuindo uma forte representação política, os liberais estiveram envolvidos na política regional e contribuíram para a institucionalização da região amazônica. É preciso registrar que, sob a liderança de Tito Franco, os liberais do Pará participaram do movimento abolicionista paraense através da criação de uma instituição: o Club Amazônia, fundado em 24 de abril de 1884, que também registrava membros ligados ao Partido Conservador. Esse Club, formado por políticos e membros das elites do Pará, visava, segundo Bezerra Neto (2009)Bezerra Neto, J. M. (2009). Por todos os meios legítimos e legais: as lutas contra a escravidão e os limites da abolição (Brasil, Grão-Pará: 1850-1888) [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]., realizar a abolição por uma via garantidora da legislação sobre o tema, tentando afastar possíveis levantes revolucionários que desorganizassem a ordem e a autoridade pública. O Club, que trouxe no nome a nova nomenclatura do espaço regional, representou mais uma instituição no processo de institucionalização da região amazônica, uma vez que as regiões são formadas também a partir da criação de instituições que a fizessem funcionar e acompanhar os acontecimentos históricos de cada momento.

É importante também considerar o movimento discursivo dos liberais do Pará na promoção da relação entre a pauta abolicionista e a imagem da região, como assim o fez o jornal O Liberal do Pará, ao divulgar os resultados prévios das eleições de 1884 para o parlamento nacional, pois evidenciava que a maioria de votos destinados aos candidatos liberais significava que “a grande capital da amasonia acaba de assignalar a victoria dos princípios de progresso e civilização” (“O dia de hontem”, 1884O dia de hontem. (1884, nov. 27). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22O%20dia%20de%20ontem%22&pasta=ano%20187&hf=memoria.bn.br&pagfis=16240
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, p. 2). Assinalava ainda que “. . . a cidade mais rica, mais populosa, mais ilustrada – e por isso a mais independente da Amasonia – aceita a decretação de uma reforma . . .”, notadamente, o fim da escravidão (““O dia de hontem”, 1884O dia de hontem. (1884, nov. 27). O Liberal do Pará. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=704555&pesq=%22O%20dia%20de%20ontem%22&pasta=ano%20187&hf=memoria.bn.br&pagfis=16240
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, p. 2). Além da intenção de reforçar a capitalidade de Belém, também é possível observar a grafia do nome Amazônia com a letra “s”, de modo que essas duas situações demonstram o momento de institucionalização da Amazônia como um recorte regional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De estado separado do Brasil à província, o Grão-Pará possui histórica distância do centro da corte no Rio de Janeiro, de modo que sua história foi marcada por uma intensa circulação de estrangeiros, e sua formação, por diversidade étnica. Politicamente, a região viveu à margem do Brasil até, pelo menos, o início do Segundo Reinado, momento em que os representantes políticos nortistas encararam a missão de mudar a imagem colonial que era imputada à região. Foi a partir desse momento que o discurso para a formação de certa consciência política e da identidade regional amazônica começou a ser forjado. Iniciava-se, portanto, o regionalismo político amazônico, responsável, em parte, pela mudança do status político e regional desse território.

Além disso, foi a partir dos argumentos do abandono e da distância do centro do Império brasileiro que o regionalismo político foi fortalecido, ou seja, os discursos de base territorial visavam manifestar um esforço para criar uma consciência e uma perspectiva política em nome da região. O Vale do Amazonas e a região amazônica, como conceito político, ganhavam espaço no discurso das elites políticas. Tal movimento colaborou decisivamente para a consolidação do recorte regional no cenário brasileiro. Logo, com o fim do Grão-Pará, foi possível aventar a emergência da região amazônica, esta última representando os limites territoriais das províncias do Pará e do Amazonas, bem como os interesses políticos especialmente das elites políticas paraenses que estavam interessadas na manutenção da histórica centralidade da capital Belém perante a região.

Ademais, observou-se um interesse paraense na construção de um novo status regional na área às margens do rio Amazonas, porque, com a criação da província do Amazonas, em 1852, a grande formação regional do Grão-Pará desaparecia. Representantes paraenses se ressentiam de tal situação a ponto de continuarem a representar as duas províncias. Diante dessa situação, o regionalismo político paraense – ligado ao Partido Liberal –, além de ter servido para alavancar os discursos regionais diante da nação, também contribuiu para a institucionalização de um novo recorte regional nessa parte do Brasil, que guardava, em seu conceito, aspectos da histórica ideia de opulência da região e da percepção de uma nova fase marcada pelo (re)começo, o início de um novo tempo em uma terra aparentemente intocada, à espera do progresso.

A contribuição dos liberais do Pará para a institucionalização da região amazônica pode ser pensada a partir dos quatro estágios teorizados pelo geógrafo finlandês Anssi Paasi, visto que a região ganhou as seguintes modelagens: territorial, considerando os debates sobre a ‘questão do Amapá’; simbólica, tendo em vista as novas nomeações e imagens do território regional; institucional, conjuntura marcada pela criação de um campo político de representatividade no parlamento, na política local ou na imprensa; e identitária, pois colaborou para o estabelecimento da região como parte do sistema regional e da consciência social.

Este artigo contribui para a historiografia brasileira naquilo que diz respeito à emergência da região amazônica, oportunidade em que se examinou o papel de parte da classe política dessa área do país no processo de institucionalização da região perante a nação. O artigo contribuiu para compreender o momento em que os representantes políticos dessa parte do país alargaram o espaço de atuação política, oportunidade em que passaram a fazer menção não só aos aspectos provinciais, mas também ao Vale do Amazonas e à região amazônica. Tal movimento revela que a região não é natural, mas é uma construção, na medida em que possui uma história de elaboração. Singulariza esse estudo o exame da participação dos membros do Partido Liberal do Pará no processo de institucionalização da Amazônia, contribuindo, assim, para a reflexão sobre a atuação das classes políticas na emergência dos recortes regionais.

  • 1
    Sobre este assunto, conferir Albuquerque Júnior (2011)Albuquerque Júnior, D. M. (2011). A invenção do Nordeste e outras artes. Cortez., Said (2007)Said, E. W. (2007). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras., O’Gorman (1992)O'Gorman, E. (1992). A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. Editora da Universidade Estadual Paulista. e Chiaramonte (2017)Chiaramonte, J. C., Marichal, C., & Granados, A. (2017). Criar a nação: história dos nomes dos países da América Latina. Hucitec..
  • 2
    Conferir Gondim (1997)Gondin, N. A. (1997). A invenção da Amazônia (2. ed.). EDUA. e Maués (1999)Maués, R. H. (1999). Uma outra ‘invenção‘ da Amazônia: religiões, histórias, identidades. Edições CEJUP..
  • 3
    Conferir A. Cardoso (2017)Cardoso, A. (2017). Amazônia na monarquia hispânica: Maranhão e Grão-Pará nos tempos da União Ibérica (1580-1655). Alameda. e Chambouleyron e Souza Junior (2016)Chambouleyron, R., & Souza Junior, J. A. (2016). Novos olhares sobre a Amazônia Colonial. Paka-Tatu..
  • 4
    Antes de 1850, poucas e espaçadas referências eram feitas a essa parte do país a partir das nomenclaturas ‘região amazônica’ e ‘Amazônia’.
  • 5
    A historiadora Magda Ricci define a Cabanagem como um movimento que eclodiu em 7 de janeiro de 1835 na cidade de Belém, quando “um grande número de homens – que se autoproclamavam ‘patriotas’ e que vinham de várias partes da Amazônia – invadiram as ruas da cidade de Belém, assassinando autoridades, senhores de escravos e quem mais os impedisse de viver o que entendiam ser sua liberdade” (Ricci, 2003Ricci, M. (2003). O fim do Grão-Pará e o nascimento do Brasil: movimentos sociais, levantes e deserções no alvorecer do novo Império. In F. S. G. Gomes (Org.), Os senhores dos rios (pp. 165-193). Editora Campus., p. 180).
  • 6
    Em meados do século XIX, com o contexto de expansionismo americano direcionado para a América Central e o Caribe, o tenente da armada estadunidense, Matthew Maury, desencadeou uma campanha em prol da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, um projeto oficialmente relacionado à comunicação e ao comércio, mas que possuía outros objetivos, como a colonização agrícola das margens do Amazonas com o plantio de algodão e borracha. Tendo em vista a discussão aberta por Maury acerca da possível integração comercial dos vales dos rios Amazonas e Mississipi, nos Estados Unidos, aventa-se que o uso do termo ‘vale’ para o Amazonas tenha derivado da percepção de vale para os americanos. À época, as elites brasileiras se debruçaram sobre os escritos de Maury para apoiar ou para criticar.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) (Código de Financiamento 001).

  • Santos, R. J. (2023). O fim do Grão-Pará e a institucionalização da região amazônica: o papel dos liberais paraenses na mudança do status regional no século XIX. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20210099. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0099.

REFERÊNCIAS

Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Couto Henrique

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    01 Ago 2022
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