RESUMO
A construção dos reservatórios hídricos no semiárido brasileiro surge como sendo um dos primeiros sistemas de engenharia para “combate” ou mitigação dos efeitos produzidos pelo fenômeno da seca. O objetivo desse trabalho é analisar as perspectivas que orientam a política de açudagem ao longo dos anos no semiárido brasileiro, com ênfase nas diferentes implicações sobre a região do Seridó potiguar, considerada uma das mais densamente açudadas do país. Observa-se que a açudagem no semiárido brasileiro e, em especial, sobre a região do Seridó potiguar, apesar de inicialmente pensados para o abastecimento hídrico humano e animal, inerente ao discurso de combate à seca, desempenha atualmente importantes funções de convivência com esse fenômeno, atrelando-se às inúmeras atividades econômicas, culturais e ambientais do cenário regional. São diversas as perspectivas relacionadas ao contexto ambiental, aos discursos e intencionalidades dos diferentes agentes sociais, econômicos e jurídicos a partir da conjectura, das demandas e complexidades ao longo do tempo. É, portanto, essencial inserir, paralelamente ao debate da gestão dos recursos hídricos no semiárido brasileiro, a questão das múltiplas finalidades relacionadas ao uso e parcelamento do solo, utilizando a bacia hidrográfica como unidade básica do planejamento.
Palavras-Chave:
Semiárido; Bacia Hidrográfica; Açudes; Seca; Seridó
ABSTRACT
The construction of the water reservoirs in the Brazilian semiarid becoming one of the first engineering systems to "combat" or mitigate the effects produced by the drought phenomenon. The objective of this work is to analyze the perspectives that guide the policy of construction of dams over the years in the Brazilian semiarid, emphasizing the different implications for the region of Seridó Potiguar, considered one of the most densely damed of the country. It is observed that the the construction of dam in the Brazilian semiarid, and in particular the Seridó region, although initially designed mainly for human water supply and animal, inherent to the drought relief discourse, currently plays importants role of coexistence with this phenomenon, linked to other numerous economic, cultural and environmental activities of the regional scenario. There are several roles and outlooks related to the environmental context, the discourses and intentions of the different social, economic and statutory agents based on the conjecture, demands and complexities over time. Thus, it is important to insert, in parallel, to the debate on the policies and management of water resources in the Brazilian semi-arid region, and in particular on the Seridó region, the question of the multiple purposes related to the use and land subdivision of the area influence
KeyWords:
Semiarid; River Basin; Dams; Drought; Seridó
INTRODUÇÃO
É nítida a histórica relação estabelecida entre o sertanejo e o sertão hostil. Nesse espaço, o fenômeno recorrente das secas, através da irregularidade anual e interanual dos totais pluviométricos, tem despertado inúmeros debates ao longo dos anos. Trata-se de um contexto desafiado pela contínua busca de técnicas diversas, que venham atender e suprir as necessidades básicas de subsistência, com o desenvolvimento do próprio semiárido brasileiro.
Como é destacado no primeiro plano diretor do Nordeste, nada se revelaria “como sendo tão importante” no planejamento de desenvolvimento da região como a adoção de uma política de aproveitamento dos recursos hídricos, de modo que seria sua utilização racional um pressuposto para o melhor aproveitamento dos demais recursos naturais dessa região.
A construção dos reservatórios hídricos no semiárido brasileiro surge, portanto, nesse contexto como sendo uma das primeiras alternativas políticas de combate ou mitigação dos efeitos produzidos pelo fenômeno da seca. Trata-se, possivelmente, de um dos sistemas de engenharia mais antigos implantados no interior da região, voltados para a satisfação das necessidades básicas, relacionadas ao abastecimento humano e animal, assim como para o desenvolvimento dos vários polos de concentração social e/ou atividades econômicas.
A região do Seridó potiguar, por exemplo, assim como em grande parte do semiárido brasileiro, destaca-se pela elevada densidade de reservatórios hídricos construídos ao longo de seu processo histórico de ocupação e desenvolvimento com o objetivo de “combater” ou minimizar os efeitos da irregularidade dos totais pluviométricos, dinâmica hidroclimática e os efeitos socioeconômicos da seca. A própria localização estratégica das principais cidades da região encontra-se relacionada, desde a sua colonização, com as margens dos principais rios.
Igualmente, a referida região (Figura 1) se destaca como uma das principais áreas do estado potiguar a receber investimentos para a construção de açudes públicos e privados, ao longo dos anos. Segundo Molle (1994MOLLE, F. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu Aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN. HME, 1994.), é um dos polos de maior e mais antiga concentração de açudes no país. A força das oligarquias políticas, por vezes grandes latifundiários, é, sem dúvida, um dos grandes propulsores para a disseminação de tais obras na região citada.
Diante da problemática, esse artigo tem como objetivo discutir acerca das principais perspectivas relacionadas à construção de açudes no semiárido brasileiro, assim como sobre os diferentes usos e discursos que envolvem esses sistemas de engenharia, na região do Seridó. Também quais as principais implicações estruturais e funcionais que perpassam a construção dos principais açudes e/ou barragens públicas atualmente presentes no território.
A discussão realizada tende a fornecer um importante conhecimento subsidiário para análise, planejamento e gestão a futuros trabalhos no Seridó potiguar, em sua bacia hidrográfica e em toda a região semiárida com características semelhantes. O esforço não está, pois, em compreender tais objetos per si, mas sim a dinâmica, a funcionalidade e suas respectivas implicações estruturais sobre o território, entre outras tessituras decorrentes.
BREVE ABORDAGEM SOBRE A AÇUDAGEM NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO
A questão dos recursos hídricos relacionada à construção de barragens, açudes, adutoras, entre outros sistemas de engenharia, parece ser tão antiga quanto é a história da civilização humana. Seja para o abastecimento, irrigação ou mesmo para o controle de cheias e inundações, diversas são as tessituras envolvendo a gestão hídrica entre os diferentes povos. Segundo relata Faria (1978FARIA, O. L. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal, Coedição Fundação José Augusto/Coleção Mossoroense, 1978., p. 15), os sumérios, os babilônios e os assírios conseguiram erguer barragens, irrigaram terras, drenar brejos e cavar aquedutos com engenharia de cinco mil anos. O referido autor (op. cit), ainda acrescenta que:
Na China, o imperador Yu (2.205 anos a.C) construiu um importante sistema de barragens que adomava a violência das cheias. E na ensolarada Arábia, 12 séculos antes de Maomé, os sabeus ergueram um dique de 15 m de altura com enormes blocos de pedras. E Assuã - a represa orgulho do povo egípcio - nada mais é que um arremedo em tamanho graúdo, do engenhoso sistema que existiu no velho Nilo de 3.400 a.C.
Sobre essa contextualização, no que diz respeito à construção de açudes no Nordeste brasileiro, Faria (1978FARIA, O. L. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal, Coedição Fundação José Augusto/Coleção Mossoroense, 1978., p. 17) argumenta que “aonde ou quem fez o açude primeiro naqueles sertões não deixou rastro”. A única alusão relacionada à açudagem, conforme acrescenta o referido autor (op. cit), diz respeito às considerações de Pe. Manoel de Jesus Borges, ainda em meados de 1700, quando o religioso fez a requisição de terras “para que se metam muitos gados (...) e fazer açudes aonde houver capacidade”.
O interessante desse fenômeno é, que, no que se refere a essa região do país, diversas são as perspectivas e implicações ao longo dos anos decorrentes da necessidade de armazenamento de água para o abastecimento humano e animal, assim como para outras inúmeras atividades ligadas à irrigação, ao lazer, à produção de alimentos, entre outros.
É a partir das grandes secas de 1825 a 1830 e, em especial, a partir da seca de 1877 (com mais de 500.000 mortes) que se projeta e se analisa a política de açudagem no semiárido brasileiro, como sendo a principal ‘solução’ para a escassez de água nesta região do país (CAVALCANTE, 2012CAVALCANTE, A. M. B. Paisagens insulares no semiárido do estado do Ceará. Revista de Geografia (UFPE) V. 29, No. 3, 2012; REBOUÇAS, 1997REBOUÇAS, A. C. Água na região Nordeste: desperdício e escassez. Estudos avançados, 11 (29), 1997. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141997000100007
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141997...
; CIRILO, 2008CIRILO, J. A. Políticas públicas de recursos hídricos para o semi-árido. Estudos avançados, 22 (63), 2008. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142008000200005.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142008...
). Nesse período, entretanto, permanecem basicamente apenas em papeis e gabinetes.
O início da açudagem pública no Nordeste brasileiro, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, segundo ressalta Ab’Saber (1999), ocorre nos fins do Segundo Império e princípios da República com a construção do Açude Óros, em Quixadá (Ceará). Entretanto, a construção de grandes reservatórios torna-se amplamente incentivada somente a partir de 1909, com a criação e efetivação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS).
Sobre essa assertiva, a título de contextualização, no ano de 1919, a Inspetoria de Obras Contra as Secas passa a se chamar Instituto Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e, em 1945, recebe a denominação de Departamento de Obras Contra as Secas (DNOCS).
Esse órgão, apesar das várias denominações ao longo dos anos, aparece como um dos principais responsáveis por despender grandes investimentos públicos para a construção dos reservatórios hídricos entre os períodos correspondentes a 1919-1922, 1931-1935 e 1958, sendo, muitas vezes, desenvolvidos de maneira precipitada e segundo modelos criticáveis de apropriação (GOMES, 1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979.; MOLLE & CARDIER, 1992; MOLLE, 1994MOLLE, F. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu Aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN. HME, 1994.).
Em tal contexto, sobre a política de açudagem implantada no semiárido brasileiro pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), Santos e Silveira (2001SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI. São Paulo, Editora Record, 2001.) atentam, ainda, para o fato de que “dois programas têm sido as suas bases organizacionais, desde o início do século XX. Trata-se da açudagem pública [...] e da açudagem instituída por meio da cooperação com agentes privados”. É desse modo, conforme acrescenta Santos (2006), que a noção de técnica permite empiricizar o tempo e se encontra com a noção de meio geográfico, fundamental à análise geográfica em questão.
No tocante ao sistema de cooperação, esse se caracterizava, ainda, pela criação de pequenos ou médios açudes privados (com capacidade máxima de 3 milhões de m³), em que, com a ajuda do IFOCS, o proprietário do reservatório se comprometeria a fornecer água para as necessidades domésticas das populações circunvizinhas. Acerca disso, acrescenta-se que o referido órgão cedia gratuitamente à elaboração do projeto de construção do açude, juntamente a doação de um prêmio equivalente à metade do orçamento para sua construção.
É importante aqui ressaltar que toda a política desenvolvida pelo órgão citado (IFOCS) limitava-se basicamente à construção de açudes, barragens e poços, isso porque “toda a problemática da seca estava reduzida ao aspecto hídrico. Nessa concepção, a falta de água era a principal responsável pela pobreza e atraso do Nordeste do Brasil” (GOMES, 1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979., p 64). Nessa perspectiva, o primeiro plano diretor regional destaca como sendo “objetivo básico permitir a estabilização da produção agrícola por meio da irrigação” (1966, p. 125).
Apesar da intensificação na construção de açudes no semiárido brasileiro, a década de 1950 conheceu outra vez as mazelas e os efeitos provenientes do fenômeno da seca. Para Andrade (1981ANDRADE, M. C. A produção do espaço norte-rio-grandense. Coleção Humanas Letras, Natal: Ed. Universitária, 1981.), foi então que se deu início aos questionamentos sobre a insuficiência das políticas de “combate à seca”, admitindo-se que o problema na região não era climático, mas socioeconômico, resultando da falta de adaptação da economia às condições naturais.
Em virtude disso, observou-se a criação do Banco do Nordeste Brasileiro (BNB) e do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). Este último foi o primeiro passo para a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), criada em 1959. Para Gomes (1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979.), as propostas do GTDN defendiam a criação de um órgão de planejamento regional que assumisse todo o comando da política desenvolvimentista, responsável por planos de emergência que englobassem assistência direta, tanto médica como sanitária às populações, e instalações de frentes de trabalho à construção de açudes, barragens e outras obras públicas.
Do ponto de vista das políticas públicas instituídas para o Nordeste brasileiro, as quais complementam a açudagem nessa região do país, podem ser ainda analisadas nos respectivos períodos, a saber: I) até meados de 1959, com a presença de um Estado voltado às trocas de favores com o poder local, conduzido pela figura do coronel, as ações são assistenciais e as respostas setoriais; II) A partir de 1960, destaca-se uma “modernização conservadora”, ainda com intermédio dos coronéis, mas as ações assistenciais passaram a ser acompanhadas, a partir da criação da SUDENE; III) depois de 1970, há a exclusão cada vez mais crescente da figura do coronel tradicional e a valorização do funcionário público, detentor da técnica e acesso a benesses públicas. Nesse momento, ocorre o estabelecimento de ações implementadas por vários outros organismos federais, além da SUDENE (GOMES, 1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979.; BURSZTYN, 1984BURSZTYN, M. O poder dos donos: planejamento e clientelismo no Nordeste. Petrópolis/RJ: Vozes, 1984.; CHACON, 2007CHACON, S. S. O sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido. In: CHACON, S. S. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, Série BNB teses e dissertações, n. 08, 2007. 354 f.).
São, pois, inúmeras as tessituras que permeiam as perspectivas e implicações relacionadas à açudagem no semiárido brasileiro, ao longo dos anos, com destaque à (re)configuração dos diferentes territórios. Conforme acrescentam Duflo e Pande (2005DUFLO, E.; PANDE, R. Dams. National Bureau of Economic Research, NBER Working Paper No. 11711, October, 2005.), a construção de barragens é, pois, um caso particularmente bom para o estudo acerca do afastamento potencial entre as implicações produtivas e distributivas de uma política pública.
PERSPECTIVAS SOBRE A AÇUDAGEM NA REGIÃO DO SERIDÓ POTIGUAR
No estado do Rio Grande do Norte, assim como em grande parte do semiárido brasileiro, a difusão das políticas de açudagem tem historicamente representado consideráveis parcelas do investimento público, especialmente em meados da década de 1930, através da construção de grandes barragens, ou mesmo de pequeno e médio porte. Segundo ressalta Gomes (1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979., p. 84), a política de açudagem se caracterizaria nesse período, como sendo “a principal forma de atuação do Estado no processo de organização do espaço agrário regional, bem como no processo de produção espacial”.
Assim, é importante ainda ressaltar a construção de um dos primeiros açudes construídos no Nordeste brasileiro (o açude Recreio), no ano de 1842, localizado no município de Caicó, região do Seridó potiguar. Em 1902, esse município já contava com mais de 200 açudes e, em 1915, a região do Seridó notoriamente se destacava pelos aproximados 710 açudes (GUERRA E GUERRA, 1909GUERRA, P.; GUERRA, T. Seccas contra a secca. Fundação Guimaraes Duque, quarta edição, coleção mossoroense, 1909 [fac símile].; FARIA, 1978FARIA, O. L. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal, Coedição Fundação José Augusto/Coleção Mossoroense, 1978.; MOLLE, 1994MOLLE, F. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu Aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN. HME, 1994.).
Entre o surgimento e aumento progressivo da pequena açudagem na região do Seridó verifica-se que tal fenômeno ocorre mais especificamente entre o período de 1885 - 1915. Corresponde, grosso modo, ao período entre o fim da grande seca de 1877 e o início da economia algodoeira na região, e começo da atuação do IOCS no Nordeste brasileiro, havendo, entretanto, a continuação do seu crescimento posteriormente. Crandall (1923CRANDALL, R. Geografia, geologia, suprimento d'água, transporte e açudagem nos estados orientais do Nordeste do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba. Rio de Janeiro, IFOCS, 2ª edição, 1923., p.80) destaca como sendo uma condição para a riqueza do Seridó, apontando que “este é o único districto que encontramos durante alguns annos de viagem no sertão do norte, onde se pode obter manteiga e queijo durante todo anno. Isso é certamente devido aos pequenos açudes”.
É, entretanto, ainda importante ressaltar, como aponta Faria (1978FARIA, O. L. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal, Coedição Fundação José Augusto/Coleção Mossoroense, 1978.), que mais de dois terços dos pequenos e médios açudes particulares na região do Seridó haviam sido construídos de forma a não resistir às secas prolongadas ou ainda aos ‘invernos’ mais rigorosos caracterizados por grandes índices pluviométricos em pouco espaço de tempo.
Em termos gerais, os açudes na região semiárida, e em especial na região do Seridó potiguar, não podem ser configurados como sendo simples objetos geográficos. Esses representam e refletem a condição essencial do sertanejo, de sua cultura e de seus meios para a sobrevivência, seu apaziguo em tempos difíceis, fornecendo as bases para a sua sobrevivência e permanência no campo, por meio do abastecimento humano e animal, assim como para o desenvolvimento das inúmeras atividades produtivas de geração de renda.
São amplos os benefícios socioeconômicos diretos e indiretos relacionados à construção de açudes no semiárido brasileiro. Esses tendem a reduzirem o impacto das secas, proporcionando um suprimento estável do recurso hídrico, assim como o desenvolvimento de atividades agrícolas irrigadas e de vazante, juntamente as atividades de lazer, criação e produção de peixes. Neste sentido, Faria (1978FARIA, O. L. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal, Coedição Fundação José Augusto/Coleção Mossoroense, 1978., p. 43), referindo-se aos açudes dos municípios de Jardim e Serra Negra (localizados na região do Seridó potiguar), ressalta que:
(...) estes açudes rendem em vazantes 50 contos, mais de 50% do capital empregado. [...] os seis maiores custaram 25.000$, os proprietários tiraram deles 19 contos só em peixe. Esta quantia não representa o valor real do peixe no açude, em virtude do processo de pescaria mais em uso: “a meiação”, mas apenas a metade e muitas vezes menos.
A partir da construção desses sistemas de engenharia, os espaços se transformavam em verdadeiros núcleos de adensamento humano, em áreas potenciais para o desenvolvimento socioeconômico e/ou das condições necessárias para a existência da vida. Esses poderiam ser, pois, caracterizados como verdadeiros núcleos de convergência humana para onde se dirigiam as levas de sertanejos, quando assolados pelos períodos severos de seca. A partir de meados da década de 1930, os açudes no semiárido se destacariam como sendo importantes objetos de à difusão da educação e da pesquisa. Molle (1994MOLLE, F. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu Aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN. HME, 1994., p.28), ao citar G. Duque, ressalta que:
[...] pensávamos em utilizar os açudes como pequenos polos de desenvolvimento e que ali se faria a exploração do peixe, da vazante, da irrigação e da energia, quando possível, e a parte científica seriam levadas daquele mesmo tempo, os trabalhos experimentais; [...] assim daríamos ao açude uma função muito mais ampla do que simplesmente explorar a água à vazante e a irrigação.
Dessa maneira, frequentemente citados como verdadeiros refúgios e polos dinamizadores da configuração territorial juntamente à fixação dos sertanejos afligidos pela irregularidade de água, Eloy de Souza (1951) aponta ainda um relatório realizado pelo engenheiro Dr. Eduardo Parisot, no qual o mesmo faz referência ao açude público “Mundo Novo”, localizado também no município de Caicó/RN e inaugurado em 1912, como um importante reservatório hídrico para a região do Seridó que na seca de 1919 teria ‘abrigado e alimentado’, aproximadamente, cerca de 1.500 famílias.
Entre o início do século XX até meados da década de 1950, observa-se que a política relacionada à construção de grandes reservatórios hídricos, ou mesmo de pequeno e médio porte, esteve intimamente ligada ao discurso do “combate à seca”. Nesse período, na região do Seridó, por exemplo, destacam-se a construção dos grandes açudes públicos dos municípios de Caicó (Itans e Mundo Novo), de Acari (Gargalheiras), entre vários outros.
Com a construção desses reservatórios, tem-se o aumento dos fluxos. Obras como a do açude Itans, localizado no município de Caicó/RN, a título de ilustração, considerada de médio porte, segundo ressalta Morais (1999MORAIS, I. R. D. Desvendando a cidade - Caicó em sua dinâmica espacial. Natal, Senado Federal, 1999.), chegou a empregar até cinco mil pessoas em sua construção, fazendo-se necessária a fixação e/ou a criação de bairros inteiros ainda hoje situados em suas proximidades, como, por exemplo, o bairro Itans no referido município.
Igualmente importante, diante da não correspondência e insuficiência das políticas desenvolvidas relacionadas com o discurso de “combate à seca”, surge à necessidade de se pensar à criação de órgãos e/ou instituições de apoio e fomento à população atingida pela seca nessa região do país. Sobre essa assertiva, destacam-se a criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do grupo de trabalho para o desenvolvimento do Nordeste (GTDN), sendo este último o primeiro passo para a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), criada após as manifestações decorrentes da seca em 1958.
Esse contexto destaca-se com a implantação de um novo discurso e/ou perspectiva, relacionados à construção de alternativas de desenvolvimento da região, a partir da ideia de “convivência” com o fenômeno da seca. Para Andrade (1981ANDRADE, M. C. A produção do espaço norte-rio-grandense. Coleção Humanas Letras, Natal: Ed. Universitária, 1981.), havia o objetivo de substituir a política assistencialista e tecnocrata, até então desenvolvida, por uma mais social.
Segundo é ressaltado por Gomes (1979GOMES, R. C. C. A política de açudagem e a organização do espaço agrário do Seridó norte-rio-grandense. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Geografia, 1979.), são exemplos de projetos regionais o Polo Nordeste, Projeto Sertanejo, Provárzea, entre outros, cujo principal objetivo era o de concentrar recursos em certas áreas do interior nordestino. Com relação a região do Seridó potiguar, observou-se o desenrolar dos projetos de Vazante e o Projeto Terra Verde, com a finalidade de desenvolver a produção da fruticultura irrigada e produção de hortaliças.
Dessa forma, juntamente com a política de açudagem desenvolvida na época e a criação dos projetos anteriormente citados, a região do Seridó desenvolveu uma irrigação com alto potencial produtivo, servindo de base para a subsistência de diferentes culturas agrícolas, a exemplo das áreas localizadas nos açudes Gargalheira, em Acari, que irrigava cerca de 1.000 ha de terras, e o açude Itans, em Caicó, com cerca de 2.500 ha (Figura 2).
Além disso, é importante ressaltar a criação dos perímetros irrigados, localizados em áreas potenciais para a produção agrícola irrigada, juntamente às condições favoráveis de solos. Destacam-se na região do Seridó o perímetro irrigado Itans/Sabugi, localizado no município de Caicó, e o perímetro irrigado de Cruzeta, no município de mesmo nome, com a presença de cerca de 100 famílias (GUERRA, 1981GUERRA, O. A Batalha das Secas. In: ROSADO, Vingt-un, (org). Memorial da Seca. Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal/ESAM. Coleção Mossoroense, 163, 1981.). Outra política desenvolvida nesse tempo relaciona-se à implantação das pisciculturas no Nordeste, com a produção e reprodução de alevinos. No Seridó destaca-se a instalação de uma das mais importantes estações de piscicultura do Nordeste atualmente, então localizada no município de Caicó/RN - a estação de piscicultura Estevão de Oliveira, próximo ao açude público Itans (Figura 3).
A construção dos vários açudes públicos na região do Seridó juntamente às políticas implantadas ao longo da atuação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) tornou-se, pois, de fundamental importância, conforme se pode perceber ainda atualmente na fixação e crescimento de várias comunidades rurais e pesqueiras, entre outras inúmeras alternativas e oportunidades estruturais e funcionais sobre esse território.
Apesar da importância preferencial para o abastecimento humano e animal, em quase todos os municípios localizados na região do Seridó, é nítida a vocação e potencialidade dos açudes para as atividades de lazer, turismo, pesca, entre outros. Sobre essa assertiva, os açudes dos municípios de Acari (Gargalheiras) e Parelhas (Boqueirão), por exemplo, destacam-se, atualmente, de modo ainda incipiente, como núcleos de atração turística e ocupação por balneários, vila de pescadores, perímetros irrigados (Figuras 4 e 5).
Igualmente interessante, entretanto, em volta das perspectivas sobre esses sistemas de engenharias (açudes), existe atualmente uma possível “ressignificação” do discurso realizado. Com o aumento da demanda hídrica pela população urbana, da “problemática da seca” com sucessivos anos de escassez pluviométrica, o discurso acerca da funcionalidade desses reservatórios tem novamente sido colocado em pauta e discussão pela sociedade regional.
Muitos dos açudes públicos da região do Seridó, por exemplo, que antes serviam como áreas de lazer e para o desenvolvimento de atividades agrícolas, passam a se adequar atualmente às novas normas instituídas pela legislação federal, relacionadas à situação legal das áreas de preservação permanente (APP’s), de modo a se constituírem na conjectura atual em verdadeiros sistemas hídricos com prioridade para o abastecimento humano e animal.
Segundo acrescenta Tundisi (1987), esses diferentes usos de represas são, pois diretamente influenciados pelo nível de desenvolvimento econômico e social e pelas possibilidades tecnológicas do país, dependendo também dos usos tradicionais do sistema na bacia hidrográfica. Nesse contexto, embora as normas legais estabelecidas pela Resolução CONAMA n° 303/2002 atribuam a esses reservatórios uma área mínima de proteção, esse é um contexto que revela, na maioria das vezes, o conflito de forças e interesses dos mais diversos agentes públicos e privados.
É deste modo que a açudagem oferece, então, uma importante base de suporte para outras formas de organização, usos e possibilidades sociais. Esses objetos se apresentam como verdadeiras rugosidades no espaço que, integrados ao sistema social, sofrem consideráveis mudanças de suas funções e de seus valores. Santos (1992SANTOS, M. Espaço & Método. São Paulo: Nobel, (coleção espaços), 1992.) ressalta ser esse um contexto que se perfaz a partir de formas provenientes de tempos distintos (rugosidades). O problema consiste, portanto, conforme acrescenta o referido autor (op cit, 1988b) em reconhecer o efeito dessas superposições sobre a existência de cada sociedade. Na região do Seridó, a evolução da açudagem pode ser melhor observada na tabela a seguir (ver tabela 1):
Destarte, conforme corroboram Santos e Silveira (2001SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI. São Paulo, Editora Record, 2001.), observa-se que a inserção desses adventos técnicos se apresenta, nesse contexto, como um dos principais elementos que constantemente tem renovado a materialidade, as relações e as funções nos e sobre os diferentes territórios. É, pois, o reflexo e a condição das diferentes relações socioeconômicas, culturais, políticas, técnicas e dinâmicas naturais em andamento, dialeticamente construídas.
CONCLUSÕES
A política de açudagem no semiárido brasileiro se apresenta como um fenômeno significativo à criação de fixos produtivos (os reservatórios hídricos), pressupondo o surgimento de novos fluxos que, por sua vez, exigem novos fixos - dialeticamente associados.
Estabelecer, pois, de forma sistematizada uma estreita referência sobre os reservatórios, no planejamento e gerenciamento das bacias hidrográficas no semiárido brasileiro e, especificamente, nesse caso, sobre a região do Seridó potiguar, torna-se, pois, de grande importância ao entendimento acerca da complexidade desses subsistemas com outras diferentes relações hidroclimáticas, morfopedológicas e biológicas, diante das ações humanas.
Apesar de inicialmente pensados para o abastecimento hídrico humano e animal, os açudes desempenham, pois, atualmente diversas funções e perspectivas relacionadas as intencionalidades dos diferentes agentes sociais, econômicos e jurídicos a partir da conjectura, das demandas e complexidades como produtos e processos ao longo do tempo.
O interessante de toda essa contextualização, seja talvez o modo operandis com que se modifica o discurso em torno do fenômeno seca. Ao longo dos anos, em associação com a política de açudagem, o “combate” cede cada vez mais espaço para o discurso de “convivência” com o referido fenômeno e com a integração das atividades socioeconômicas.
É, portanto, essencial inserir paralelamente à discussão da gestão dos recursos hídricos no semiárido brasileiro, a questão das múltiplas finalidades relacionadas ao uso e parcelamento do solo, utilizando a bacia hidrográfica como unidade básica do planejamento.
REFERÊNCIAS
- AB’ SABER, A. N. Dossiê Nordeste seco. Estudos avançados 13 (36), 1999.
- ANDRADE, M. C. A produção do espaço norte-rio-grandense. Coleção Humanas Letras, Natal: Ed. Universitária, 1981.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2017
Histórico
-
Recebido
22 Fev 2015 -
Aceito
20 Set 2017