RESUMO:
Este trabalho apresenta um retrato docente de uma licenciada em Física que aderiu à docência e permanece em uma escola pública. O objetivo é buscar elementos constituintes de sua individualidade que permitam identificar a forma como suas experiências afetaram sua trajetória profissional. O estudo é fundamentado na sociologia à escala individual de Bernard Lahire, com especificações ao Ensino de Ciências. A metodologia consiste na construção de um retrato docente a partir de uma entrevista. Os resultados mostram que, para o caso investigado, a participante manifestou disposições para sua permanência no magistério, sendo elas: disposição ao reconhecimento, disposição à afetividade e disposição à introspecção.
Palavras-chave:
Retratos Sociológicos; Retratos da Docência; Permanência na docência
RESUMEN:
Este trabajo presenta un retrato docente de una licenciada en Física que se ha dedicado a la docencia y permanece en una escuela pública. El objetivo es buscar elementos constitutivos de su individualidad que permitan identificar cómo sus experiencias han afectado su trayectoria profesional. El estudio se fundamenta en la sociología a escala individual de Bernard Lahire, con especificaciones en la Enseñanza de las Ciencias. La metodología consiste en la construcción de un retrato docente a partir de una entrevista. Los resultados muestran que, en el caso investigado, la participante manifestó disposiciones para su permanencia en la docencia, siendo ellas: disposición al reconocimiento, disposición a la afectividad y disposición a la introspección.
Palabras-clave:
Retratos Sociológicos; Retratos Docentes; Permanencia en la Docencia
ABSTRACT:
This paper presents a teacher portrait of a Physics graduate who embraced teaching and continues to work in a public school. The objective is to identify elements of her individuality that help explain how her experiences have influenced her professional trajectory. The study is based on Bernard Lahire’s sociology on an individual scale, with a focus on Science Education. The methodology involves constructing a teacher portrait from an interview. The results show that, in the case studied, the participant exhibited dispositions for her persistence in the teaching profession, namely: a disposition for recognition, a disposition for affection, and a disposition for introspection.
Key words:
Sociological Portraits; Teaching Portraits; Permanence in Teaching
INTRODUÇÃO
No Brasil, há um cenário que vem sendo denunciado desde o início do século XXI sobre a escassez de professores com formação adequada nas escolas, sobretudo nas escolas públicas (Ruiz et al., 2007). Esse cenário não é uma exclusividade do país, de acordo com relatório da Unesco (Unesco, 2023). Uma das razões para isso é o desinteresse dos jovens pela carreira docente, mas mesmo entre aqueles que optam pelos cursos de licenciatura e atingem a diplomação, há aqueles que não atuam nas escolas.
Um dos fatores que perpetuam este cenário é o desinteresse dos licenciados em aderir à docência. Rodrigues et al. (2016) definem a adesão à docência como o processo pelo qual os diplomados nos cursos de licenciatura passam a atuar como professores em escolas de Educação Básica. A evasão docente é outro elemento que agrava o cenário de escassez de professores (Gonzalez-Escobar et al., 2020; Lima & Leite, 2020), somando-se à baixa adesão docente. Em síntese, esse fenômeno consiste na adesão à docência, seguida pelo abandono do magistério após certo intervalo de tempo experenciando a realidade das escolas. Nesse sentido, a permanência de licenciados, no exercício do magistério, depende da adesão aos postos de trabalho e da não evasão desses postos.
Diante do exposto, conduzimos um estudo de caso focado na trajetória de uma licenciada que permaneceu em exercício no magistério. Nosso objetivo com essa investigação é buscar elementos na pluralidade da individualidade da participante da pesquisa (seu patrimônio de disposições) que permitam identificar a forma como suas experiências afetam sua permanência no magistério. Com esta abordagem, nosso estudo visa revelar nuances e desafios que influenciam a decisão dos professores de permanência no magistério, ao mesmo tempo em que busca contribuir para análises fundamentadas na sociologia à escala individual de Bernard Lahire. Para atingir tal objetivo, mobilizamos uma adaptação dos retratos sociológicos (Lahire, 2004) que consiste em uma abordagem que assume a individualidade plural, buscando captar a essência das experiências através de entrevistas.
Na próxima seção, desenvolvemos uma discussão sobre a temática da permanência de professores no magistério. Em seguida, apresentamos o referencial teórico-metodológico que ancora a presente investigação: uma adaptação dos retratos sociológicos para as áreas de Educação e Ensino de Ciências. Após, delineamos nosso estudo de caso e o retrato de uma licenciada em Física que atua como professora em uma escola estadual. Por fim, expomos as disposições dessa docente, por nós identificadas, e discutimos implicações para a área de Ensino de Ciências.
O DESAFIO DE PERMANECER COMO DOCENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA
A literatura específica sobre “formação e ação docente” aponta que a evasão de professores tende a ocorrer no início da atuação profissional (Carvalho & Moura, 2023; Gonzalez-Escobar et al., 2020; Lima & Leite, 2020). Em linhas gerais, o início da docência se refere aos primeiros anos de atuação. Não há um consenso na literatura sobre quanto tempo ainda é considerado início da docência, conforme pontuam Carvalho e Moura (2023) em sua revisão de literatura sobre essa temática.
Para Carvalho e Moura (2023, p. 17), o início da docência “é uma das etapas mais importantes da trajetória profissional por possibilitar ao docente iniciante a construção da sua identidade profissional e por ser responsável pela permanência do professor na docência”. Os autores identificam que as dificuldades enfrentadas pelos professores nesse período estão, na maioria das vezes, associadas a uma discrepância entre a formação recebida e a realidade do trabalho nas escolas (Carvalho & Moura, 2023), resultado que é reforçado em revisões de literatura sobre evasão docente, tanto no cenário nacional (Lima & Leite, 2020), quanto no internacional (Gonzalez-Escobar et al., 2020). Lima e Leite (2020) avaliam que o interesse pela temática da evasão e da permanência de professores vem aumentando nos últimos anos no Brasil.
Sobre a evasão docente, as principais causas identificadas incluem, por vezes de forma inter-relacionada, problemas políticos, econômicos, sociais e pessoais, tais como: condições emocionais individuais (que envolvem relações subjetivas do sujeito com a profissão, construídas a partir de conflitos com a prática profissional que gostariam ou acreditavam que deveriam exercer), condições precárias de trabalho (como a grande extensão da jornada de trabalho, a pressão por produtividade, a falta de recursos na instituição, dentre outros), gestão da escola e do sistema escolar, e questões familiares e de gênero (Lima & Leite, 2020). A maioria dos estudos destaca o impacto de questões salariais, mas outras pesquisas mostram que, apesar de aumentos salariais, essas questões exercem pouca influência na decisão de evadir.
No tocante à permanência, segundo Lima e Leite (2020), os motivos elencados são: a expectativa de satisfação de demandas subjetivas relacionadas à própria constituição do sujeito professor (sendo a sala de aula o local que propicia condições de renovação, atualização e atendimento das demandas e crenças docentes), os laços afetivos e o compromisso social que o docente estabelece com seus colegas e alunos; a paixão pela disciplina ministrada para que os estudantes se reconheçam como seres políticos (históricos, geográficos e sociais), pelo seu próprio engajamento político, pelas (re)significações das relações estabelecidas na escola; a vocação profissional; a falta de novas perspectivas profissionais e a posição profissional consolidada com garantia de estabilidade empregatícia (no caso de cargos públicos), além do exercício de uma atividade rentável.
De acordo com Lima e Leite (2020), pesquisas específicas na área de Ensino de Ciências indicam que a falta de suporte e a inadequação da formação inicial são fatores determinantes para a evasão docente. No entanto, as autoras ressaltam que apenas uma pequena fração dos estudos sobre evasão e permanência aborda diretamente a docência em Ciências, apontando para uma necessidade de mais pesquisas focadas nessa área.
Em síntese, o diálogo com essas revisões de literatura revela que a decisão de evadir ou permanecer na docência é influenciada por múltiplos fatores inter-relacionados3. Compreender as dificuldades enfrentadas no início da carreira e a importância do apoio contínuo é essencial para desenvolver estratégias eficazes para a permanência dos professores na carreira e, consequentemente, dirimir os preocupantes índices de escassez de professores e o receio de um “apagão” desses profissionais para os próximos anos (Ruiz, et al., 2007; (Unesco, 2023).
O RETRATO SOCIOLÓGICO
Com a finalidade de compreender as práticas sociais de um ator social através da reconstrução de seu patrimônio de disposições, Bernard Lahire edifica o referencial teórico-metodológico dos retratos sociológicos (Lahire, 2002, 2004). O autor assume como premissa a individualidade plural, isto é, que a individualidade dos atores sociais é marcada pela heterogeneidade das disposições portadas pelos sujeitos. Nessa perspectiva, disposições são esquemas de ação - isto é, formas de agir, pensar, crer e sentir - incorporados pelo sujeito que orientam suas práticas nas diversas situações sociais (Lahire, 2002, 2004). A compreensão dessas práticas perpassa aspectos sincrônicos e diacrônicos.
Com relação aos aspectos sincrônicos, os indivíduos podem manifestar disposições distintas em contextos sociais diferentes. Afinal, “nada impede que um cientista também professe uma religião, pratique um esporte ou tenha filhos” (Lima Junior & Massi, 2018, p. 33). Por exemplo, uma professora de Matemática pode manifestar uma disposição rigorista no contexto laboral, mas em um contexto em que atua como pianista em uma banda de jazz mostrar uma disposição para improvisação e flexibilidade, que seria oposta à disposição rigorista. Já sobre o caráter diacrônico de sua teoria, Lahire (2004) discute o que denomina de passado incorporado. Cada pessoa tem experiências diversas ao longo de sua vida e, nesse processo, incorporam novas disposições que passam a integrar um patrimônio cada vez mais heterogêneo. No exemplo da professora de Matemática, sua disposição rigorista pode estar associada a uma formação acadêmica rigorosa.
Nessa perspectiva, a individualidade se manifesta na heterogeneidade das disposições que um mesmo ator pode manifestar nos diferentes contextos sociais, disposições essas que refletem a incorporação de seu passado singular de socializações. Para Lima Junior e Massi (2018, p. 22-23), “Lahire nos ajuda a perceber, por meio de sua abordagem biográfica, como a individualidade é uma propriedade que emerge da vida social e, por isso, não precisa (nem deve) ser definida em oposição a ela”.
Lahire (2004) assume a prática da entrevista biográfica como processo científico que possibilita acessar o patrimônio de disposições dos indivíduos. Nesse sentido, ele busca renovar o gênero biográfico, rompendo com abordagens autobiográficas. Lahire (2004, p. 20) assume como premissa que é “o ponto de vista que cria o objeto”, e esse ponto de vista, em uma pesquisa sociológica, deve ser o do pesquisador, fato que caracteriza sua proposta como sendo fundamentalmente interpretativa. Um retrato capta uma paisagem somente a partir da perspectiva que o retratante adota. Logo, Lahire (2004) assume que o pesquisador deve compreender a entrevista não apenas como um instrumento de coleta de dados, mas também como recurso essencial para construir o retrato sociológico dos investigados; tanto as respostas do entrevistado (retratado) quanto a abordagem do entrevistador (retratante) na condução do processo e na análise dos dados moldam o retrato resultante.
Segundo Lahire (2004), cada retrato sociológico pode ser visto como um estudo de caso. Na obra em que apresenta a proposição original dos retratos sociológicos, Lahire (2004) desenvolveu um estudo centrado no dispositivo, não apresentando um tema ou objeto de pesquisa em suas concepções clássicas, focando em testar conceitos como disposição ou a ideia de patrimônio heterogêneo. De acordo com o autor, um retrato sociológico completo deve ser construído a partir de seis entrevistas abrangendo diferentes esferas de socialização (escola, trabalho, família, sociabilidade, lazer, práticas culturais e corpo) (Lahire, 2004). Na parte empírica dessa obra, cada uma dessas entrevistas teve duração média de 2,2h. Além das entrevistas com os sujeitos, outros procedimentos complementares, tais como entrevistas com pessoas próximas aos investigados, foram adotados (Lahire, 2004).
Para Lahire (2004), um importante critério ao se eleger o sujeito da pesquisa, para compor o caso, é a relação entre entrevistador e entrevistado. A recomendação é que o entrevistado não seja alguém totalmente desconhecido ao entrevistador, porém também não podem ser pessoas próximas. Em todos os casos de sua obra, foram feitas anotações sobre o estabelecimento do contato, explicitação da proximidade entre entrevistador e entrevistado, o local da entrevista e o desenvolvimento das conversas (Lahire, 2004).
Algumas orientações sobre a condução da entrevista dizem respeito ao que perguntar. Recomenda-se que o pesquisador formule questões que o entrevistado normalmente não se faria, questões sem respostas imediatas e preparadas. São essas perguntas que têm maior potencial de fornecer conteúdo analítico (Lahire, 2004; Lima Junior & Massi, 2018). Além da condução da entrevista, outro elemento que marca a participação do pesquisador no retrato produzido é o processo de análise dos dados. A análise deve considerar que as disposições pertencem a uma realidade construída, não podendo ser observadas diretamente; e que há traços disposicionais que podem ser extraídos de partes importantes da entrevista negligenciadas pelos próprios entrevistados. Nesse sentido, lembramos que “falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas, opiniões, etc. Trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que geraram a aparente diversidade das práticas” (Lahire, 2004, p. 27).
No estudo de Lahire (2004), os resultados (ou seja, os retratos), foram apresentados em narrativas longas (de 20 a 50 páginas) contendo excertos das falas, com as inferências sobre as disposições sendo apresentadas ao longo do texto. Ao final, o autor retomava os principais pontos do retrato relacionando-os com as disposições identificadas.
A APROPRIAÇÃO DO RETRATO SOCIOLÓGICO NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
No presente estudo, adotamos a adaptação dos retratos sociológicos, para o contexto específico das áreas de Educação e Ensino de Ciências, que é apresentada no livro intitulado “Retratos da docência: Contextos, saberes e trajetórias” (Massi et al., 2018)4. Lima Junior e Massi (2018, p. 42) argumentam que a flexibilidade da metodologia original dos retratos sociológicos permite tal adaptação, e que a mesma pode ser “empregada com propósitos bastante diferentes”. Considerando as particularidades da profissão docente, a adaptação proposta visa facilitar uma compreensão mais profunda e humanizada da prática pedagógica, centrada nas experiências individuais dos professores. Dias e Gauche (2021), em sua revisão de literatura sobre a adoção dos retratos sociológicos no Brasil, identificam que as pesquisas vêm realizando adaptações ao mobilizarem o dispositivo.
Um aspecto importante dos retratos da docência é que ele é adequado para resolver questões específicas sobre a formação e ação dos professores (Lima Junior & Massi, 2018). Lembramos que a proposição original dos retratos sociológicos não apresentava um objeto de estudo clássico definido (Lahire, 2004), o que torna esta uma diferença importante. Segundo Dias e Gauche (2021), essa diferença marca todas as pesquisas por eles investigadas, as quais utilizaram os retratos sociológicos para compreender a influência das disposições nas trajetórias escolares, nas práticas de leitura de indivíduos, nas práticas linguísticas e nas práticas docentes.
Sobre os retratos sociológicos, Lima Junior e Massi (2018, p. 43) assumem que “os usos dessa metodologia para propósitos da educação ou da educação científica geralmente implicam retratos mais concisos e direcionados”. Isso resulta em uma quantidade menor de entrevistas, além de entrevistas mais curtas. Tendo um objeto de investigação bem delineado, um retrato docente poderia ser constituído a partir de apenas uma entrevista, por exemplo. Dias e Gauche (2021) identificaram que as pesquisas vêm adotando uma quantidade variável de entrevistas, de 1 a 7 (tendo a maioria delas realizado apenas uma), com duração de 40 minutos a 7 horas e 10 minutos.
No livro de Massi et al. (2018), os retratados eram conhecidos do grupo de pesquisadores por terem participado anteriormente de outra pesquisa específica sobre suas experiências em mestrados profissionais em Ensino de Ciências, na qual os dados foram coletados por meio de uma única entrevista com cada participante. Para o estudo reportado no livro, entrevistas complementares foram realizadas “visando ampliar o relato sobre sua trajetória e testar as disposições encontradas na primeira entrevista [, focando] na reconstrução de sua trajetória escolar, acadêmica e profissional” (Lima Junior & Massi, 2018, p. 48-49). Entretanto, o critério de proximidade entre entrevistador e entrevistado nem sempre é adotado em pesquisas que mobilizam os retratos sociológicos (Dias & Gauche, 2021).
Outro aspecto dos retratos da docência é a forma como os resultados são apresentados. Diferentemente da proposição original, os retratos docentes são mais concisos (de 22 a 33 páginas) e trazem um levantamento de algumas hipóteses de disposições ao seu final. Cada retrato apresenta de uma a três hipóteses de disposição, sendo cada uma composta de alguns elementos, a saber: descrição (consiste na descrição da disposição), gênese (trata da origem da disposição), série de práticas coerentes (descrição de práticas em diferentes contextos que indiquem presença da disposição), experiências relativamente relevantes (se refere a experiências contextuais distintas que podem ter afetado a disposição), transferibilidade de contextos (consiste na comparação entre as tomadas de posição nos diferentes contextos) e inibição (se refere a situações nas quais tomadas de posição são feitas de forma a não caracterizar a disposição em questão) (Massi et al., 2018).
Para Lima Junior e Massi (2018, p. 49), a forma alternativa de apresentar os resultados não muda o fato de que “a construção dos retratos e o levantamento das hipóteses de disposições acontecem de forma totalmente articulada, uma vez que as informações de cada material se retroalimentam”. Segundo Dias e Gauche (2021, p. 10), a literatura vem seguindo o modo de apresentar os resultados de Lahire, por vezes adotando, de modo complementar, “quadros de disposições e/ou notas sintéticas no final de cada Retrato para que alguns pontos de análise pudessem ser retomados ou explicitados”.
Os elementos apresentados (quantidade de entrevistas, duração das entrevistas, apresentação dos retratos acompanhada das hipóteses sobre as disposições e, principalmente, o uso da metodologia visando analisar um objeto bem definido) são os que marcam as adaptações dos retratos docentes (Massi et al., 2018) em relação aos retratos sociológicos (Lahire, 2004). Conforme pontuado por Dias e Gauche (2021), esses elementos marcam as adaptações feitas pelas pesquisas brasileiras das áreas de Educação e Ensino de Ciências que utilizam o dispositivo, sem desconfigurar a metodologia; por outro lado, há aspectos que devem se manter inalterados de modo a não descaracterizar o dispositivo: detalhamento do contato com o entrevistado e da condução da entrevista (o que contempla explicitação do local em que as entrevistas ocorreram e a forma de conduzir se afastando de relato autobiográfico), análise dos dados buscando a identificação das disposições e a apresentação dos retratos em forma de narrativa com excertos das falas.
DELINEAMENTO DO ESTUDO DE CASO
Delineamos nosso estudo ancorados nos retratos da docência (Massi et al., 2018). Utilizamos apenas uma entrevista semiestruturada, contemplando questões pertinentes ao ensino de uma disciplina específica e à docência. Partimos de questionamentos visando explorar a individualidade do sujeito em direção a sua permanência docente, contemplando necessariamente aspectos de sua trajetória escolar, acadêmica e profissional.
Em virtude de um projeto de tese de doutorado em andamento, desenvolvido pelo primeiro autor do presente texto5, o entrevistado deveria ser alguém formado em Licenciatura em Física por uma determinada universidade em um período específico. O convite para participação na pesquisa foi feito em um grupo dentro de um aplicativo digital de trocas de mensagens instantâneas, voltado para licenciados em Física, com 57 membros de todas as regiões do Brasil. Na ocasião, satisfazendo aos requisitos, apenas uma pessoa se voluntariou. No nosso caso, a entrevistada foi colega do entrevistador em um curso pré-vestibular popular6, na condição de professora de Física, no ano de 2014 (a entrevista foi realizada em dezembro de 2023), satisfazendo o princípio da proximidade entre entrevistador e entrevistado (Lahire, 2004).
A entrevista foi realizada de forma virtual, através de uma plataforma online de comunicação e reunião digital, sendo que tanto o entrevistador quanto a entrevistada participaram de suas respectivas residências. A entrevista foi conduzida pelo primeiro autor do presente trabalho, principal responsável na condição de retratante. Isso foi feito de modo a permitir que a conversa fluísse mais naturalmente, mas sempre buscando provocar situações que promovessem “um excedente de consciência” (Lima Junior & Massi, 2018, p. 41) sobre a entrevistada. A entrevista não contemplou integralmente as seis dimensões preconizadas por Lahire (2004), tendo ênfase no trabalho. Nessa dimensão, por exemplo, haviam questões específicas como “Tu considera abandonar a docência para atuar em outra área?”. A duração aproximada da entrevista foi de 2,5 h e foi gravada em áudio, posteriormente transcrito e analisado sob a luz do referencial adotado. Apresentamos o retrato da entrevistada seguido pela proposição de hipóteses quanto à suas disposições, tomando como exemplos os retratos apresentados em Massi et al. (2018), porém um pouco mais conciso.
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PROCEDIMENTOS ÉTICOS ADOTADOS
Além de satisfazer os critérios supracitados na seção anterior, a entrevistada - que chamaremos de Bruna Lopes7 - concordou em participar da pesquisa considerando a dimensão ética, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido fornecido virtualmente. Esse termo foi construído considerando as questões éticas pertinentes aos estudos que mobilizam entrevistas biográficas (Creswell, 2012). Nele foram explicitados os objetivos do projeto de pesquisa de doutoramento ao qual o estudo está vinculado, bem como dos procedimentos desenvolvidos para estes serem atingidos. O termo também informava sobre a liberdade que Bruna tinha em optar por não participar da pesquisa ou, enquanto participante, de se retirar da mesma em qualquer momento. Ademais, o termo indicava a possibilidade de a participante fazer perguntas sobre o estudo sempre que quisesse, além de garantir que os dados coletados serão utilizados apenas para fins acadêmicos e que sua identidade ficaria reservada, garantindo anonimato.
Na primeira aula de Bruna Lopes como regente de disciplina (final de 2013), o entrevistador estava presente. Eles se conheceram naquela ocasião. O entrevistador e outros colegas professores que já atuavam no curso pré-vestibular popular em questão estavam presentes nessa aula para observar e prestar suporte à Bruna com feedbacks ou mesmo alguma intervenção direta, caso viesse a ser necessário. Portanto, tratava-se de um espaço que oportunizava formação docente de forma colaborativa. Contudo, o entrevistador só se fez presente na primeira aula de Bruna. Os dois mantiveram contato via grupos em redes sociais digitais de professores do curso ou em reuniões pedagógicas ou de planejamento presenciais. Essa relação se manteve ao longo de 2014. Em 2015, o entrevistador deixou esse espaço de educação, perdendo o contato com Bruna. Ambos se encontraram em algumas outras ocasiões excepcionais, como seminários realizados na universidade em que Bruna se formou. Dessa forma, não havia, de fato, uma relação de proximidade entre o entrevistador e a entrevistada, estando ocasionalmente os dois no mesmo grupo de aplicativo digital de trocas de mensagens instantâneas voltado para professores de Física de todo o Brasil no momento do convite de participação na pesquisa.
Bruna foi informada que entrevistas biográficas tendem a apresentar potencial de reviver traumas do passado e de que, em virtude disso, a abordagem da entrevista adotaria medidas específicas para garantir um ambiente acolhedor. Durante a entrevista, o entrevistador utilizou técnicas de escuta ativa, ficando atento a quaisquer sinais de desconforto por parte de Bruna, a quem foi garantida a liberdade de omitir questões sensíveis de sua biografia, ou mencioná-las sem a necessidade de detalhá-las. Ademais, foi enfatizado que Bruna poderia pausar ou encerrar uma conversa a qualquer momento, sem necessidade de justificativa. Após a entrevista, mantivemos contato com Bruna para verificar seu bem-estar, reforçando nosso compromisso com sua segurança emocional. Essas ações visaram minimizar os riscos potenciais de revivência de traumas e garantir que a participação na pesquisa fosse uma experiência respeitosa e segura.
O termo de consentimento livre e esclarecido disponibilizado para (e assinado por) Bruna Lopes previa que as produções decorrentes da análise de seus dados deveriam passar por ela a fim de obter a sua aprovação. Essa medida foi importante, pois a riqueza de detalhes da entrevista pode levar a uma identificação não intencional de Bruna para quem a conhece, considerando a publicidade de dados pessoais específicos. Assim, o presente manuscrito foi revisado por Bruna Lopes que manifestou concordância com a publicação de seu conteúdo.
O RETRATO DE BRUNA LOPES
Bruna Lopes é uma professora, licenciada em Física, que ministra aulas para o Ensino Médio (Física e Biomecânica) e o Ensino Fundamental (Matemática) em uma escola pública estadual localizada na região central de uma capital brasileira. Nessa escola, ela trabalha apenas no turno da manhã, atendendo 10 turmas com cerca de 180 alunos ao total. No turno da tarde, trabalha em um curso pré-vestibular (privado) ministrando aulas de Física. Além disso, atua com aulas particulares.
Bruna é oriunda de uma família de classe média, a mais jovem de três irmãos. Sobre eles, comentou que quando ingressou no curso de licenciatura, seu irmão estava começando o mestrado em Física na mesma universidade. Sobre sua irmã, pontua que quando fez o vestibular na condição de treineira (condição de estudantes que fazem o exame antes de estarem na etapa de escolarização necessária), ela sugeriu o curso de Matemática, mas ressaltou, por diversas vezes, que Bruna optasse pelo Bacharelado, não pela Licenciatura. Suas duas avós, apesar de não terem concluído o equivalente ao Ensino Fundamental, atuavam como professoras das séries iniciais, pois na época a formação não era um requisito para o magistério.
Bruna Lopes afirma não ter sofrido resistências da família quanto a sua escolha, exceto brincadeiras pontuais. Acredita que isso se deva ao fato de seu irmão ter cursado Física e os familiares terem concentrado sua descrença com o curso no ingresso dele.
Entrevistador: “Certo, mas em relação à Licenciatura? Teu irmão fez Física, mas foi Bacharelado. Ele se tornaria um “Cientista” ao final do curso. Tu escolheu Licenciatura, se tornaria uma professora. Como tua família lidou com isso?”
Ela responde que:
Foi de boa, até. Afinal, minhas avós são professoras, né. Tenho duas primas que são professoras também. Então, já é uma família que tem professores. [...] Mas, agora eu vejo que talvez naquela época, ainda por ser de uma família com professores, rolasse ainda esse preconceito de ser professor e até hoje eu sinto que por mais que eles estejam muito orgulhosos de mim, de como eu me sai e tal, de eu conseguir pagar minhas contas, conseguir viver com a minha profissão, mas ainda assim rola muito preconceito por ser professora de escola pública. Nisso rola bastante preconceito na minha família. Uma vez meu pai disse: “Bah, mas tu vai continuar sendo essa professorinha de escola pública pra sempre?”... Eu acredito na escola pública (risos). Eu sei que eles apoiam, mas tem preconceito. [...] Minhas avós trabalharam em escolas públicas, mas minhas primas trabalham em escolas privadas. Eu acho que vem mais da questão dos meus pais acharem que eu não vou ter onde cair morta se eu continuar trabalhando em escola pública, do que pelo fato de ser em escola pública, porque a gente sabe que a diferença salarial é grotesca, né? [...] Então é mais nesse sentido deles terem uma preocupação de se eu vou ter dinheiro, se eu vou conseguir guardar dinheiro, se eu vou ter dinheiro para comprar uma casa, para me sustentar, querer fazer viagens, querer passear, enfim, ter uma boa qualidade de vida.
Quanto à sua infância, Bruna considera ter sido uma criança muito extrovertida e comunicativa, que buscava sempre brincar e interagir com os outros. Ela teve sua escolarização em uma escola privada de sua cidade. Durante a escolarização, ela frequentava atividades de contraturno ofertadas pela escola, entre elas, oficinas de Teatro. Essas oficinas eram ofertadas através de um convênio entre a escola e a companhia de teatro. Nelas, Bruna se sentia bem, acolhida e entende que tinha boas relações com os colegas e com a professora (que era sua prima). Acredita que essa vivência foi importante, pois lhe oportunizou desenvolver a fala em público, controlando a inibição, além de técnicas vocais e de outras naturezas, pertinentes para sua atividade laboral atual.
Bruna relata gostar de “estudar para aprender” desde o início de sua escolarização, mas narra um desconforto com avaliações, afirmando ter bloqueios com provas e instrumentos similares. Ela acredita que não devemos estudar para demonstrar que aprendemos algo em avaliações, mas porque é importante aprender para ampliar nossa visão sobre o mundo.
Após o convênio da escola com essas oficinas encerrar, Bruna passou a realizar ginástica artística no contraturno. Diferentemente do Teatro, ela avalia que essa experiência foi negativa e traumatizante. Por ser uma criança considerada “gordinha”, Bruna era alvo de bullyng por parte dos colegas e o colã utilizado na atividade ressaltava essa condição. Ela percebeu que os colegas da turma regular que assistiam suas apresentações pela ginástica acabavam fazendo comentários sobre sua condição e intensificando a prática de bullyng. Ademais, ela não conseguia realizar alguns movimentos que, aparentemente, são básicos na ginástica. “Por exemplo, dar estrelinha é algo que qualquer ginasta consegue fazer e eu não conseguia. [...] Eu vi que aquilo não é pra mim, eu não estou me desenvolvendo muito na ginástica”. Após um ano na ginástica, e em virtude do bullyng sofrido, Bruna Lopes mudou de escola.
Durante a sétima série, já na escola nova, Bruna ingressou na dança como atividade de contraturno. Na dança, ela se sentiu realizada. Não era necessário usar uma roupa específica que lhe causava desconforto e percebeu que conseguia ter um bom desempenho nessa atividade. “Eu gostava muito de dançar, porque eu sempre me destaquei [...] Eu conseguia me destacar, eu tinha solos na dança, na hora de formar os grupos eu ficava mais na frente. Então eu gostava muito porque eu conseguia fazer bem aquilo que eu fazia”. Ela continuou frequentando aulas de dança mesmo depois que a escola parou de ofertar a atividade, inclusive por algum tempo após a conclusão do Ensino Médio.
Nessa fase de sua vida, Bruna também realizou atividades junto à igreja que frequentava. Ela passou pelos ritos de iniciação da igreja católica (como a catequese). Devido a seu destaque de desempenho e desinibição nesses ritos, passou a integrar grupos de jovens e também foi convidada a ministrar palestras sobre passagens da bíblia nesse contexto.
No segundo ano do Ensino Médio, Bruna participou de uma chapa que concorreu (e venceu) às eleições ao grêmio estudantil de sua escola. Em seu terceiro ano, ela teve oportunidade de ter conversas com os professores fora do contexto da sala de aula, em virtude de sua atuação no grêmio estudantil. Segundo Bruna, esse contato fez com que ela percebesse que os professores não eram apenas “palestrantes”, que chegavam na sala, davam sua aula e iam embora (visão que ela tinha até então). Ela passou a ver não apenas seus professores sob uma nova perspectiva, mas também a compreender a docência de uma forma diferente.
Ao final do Ensino Médio, Bruna Lopes fez vestibular para Contabilidade e não passou. A escolha por Matemática no ano anterior (como treineira), e por Contabilidade naquele ano, se deve a um interesse que ela manifestava por contas, cálculos e Matemática no geral. Contudo, sua primeira opção profissional, ainda mais jovem, foi ser médica veterinária. Além de gostar de animais, a justificativa usada por ela era ancorada numa ideia de cuidado e afeto.
Após a não aprovação, Bruna ingressou em um curso pré-vestibular. A sua relação com os professores de lá levaram-na a considerar ser professora, em particular, de Física. Conforme relata:
No cursinho, por ter professores que me agradavam, né, que eram queridos e tudo mais, eu percebi que eu gostava de Física, eu só não sabia que eu gostava. E aí eu me peguei numa aula, lembro até hoje, era sobre condução de calor, e aí o professor tava lá explicando, eu pensei: ‘nossa, como é que eu posso explicar para alguém isso?’ Aí eu tava pensando comigo: ‘Como é que eu faria? Que didática eu teria?’ Ali eu pensei: ‘Opa... Por que eu não faço Licenciatura em Física? Afinal, eu aparentemente gosto de ajudar meus colegas a estudar, eu gosto de Física e estou aqui pensando em como eu daria essa aula’. Aí eu me inscrevi para Licenciatura e só foi.
Durante o ano em que estava no cursinho, Bruna deixou de fazer as atividades na companhia de dança para focar nos estudos visando o ingresso na universidade. Muitos foram os fatores que a levaram a escolher a instituição, como reconhecer sua qualidade, ser uma universidade gratuita, seu irmão estudar lá e poder acompanhá-la, além de levá-la e buscá-la. Ao final desse período, foi contemplada com a aprovação no curso e na instituição desejada, ingressando na Licenciatura em Física em 2012.
Sobre o ingresso e primeiras experiências na universidade, ela relata ter se deparado com um ambiente bastante hostil, em que vivenciou diversas experiências negativas. Ela destaca experiências com professores e colegas que lhe magoaram muito, como por exemplo, discursos repetidos por diversas vezes que a faziam crer que ela não era boa em Física e que ali não era o seu lugar. Como resultado desse processo, Bruna Lopes percebe uma mudança muito expressiva em quem ela era antes de entrar no curso e após a saída dele. A criança e adolescente comunicativa e extrovertida, que gostava de interagir com as pessoas e se alegrar através dessas interações, deu lugar a uma mulher introvertida que passou a evitar cada vez mais o contato social (“Eu era uma pessoa antes, ali nos dois primeiros anos [na universidade], e sou outra agora”).
Quando questionada sobre o motivo para ela ter permanecido no curso, mesmo diante de todas essas dificuldades, Bruna Lopes responde:
Primeiro porque o meu pai sempre falava pra mim que não interessa que curso que a gente tenha começado a fazer, desde que a gente tenha um diploma em mãos é isso que é o mais importante. Se no futuro eu querer fazer outra coisa da minha vida, pelo menos eu tenho um diploma e posso dizer: ‘eu tenho uma graduação’. [...] Eu tenho pra mim que terminei mais por teimosia, do tipo: ‘eu comecei, eu já sofri tanto aqui então eu vou terminar logo’. Então foi mais por teimosia do que por querer terminar o curso. Os professores foram horríveis comigo, os colegas foram horríveis comigo, a minha experiência da metade do curso para o final foi absurdamente terrível... Eu terminei por pura teimosia.
Em 2013, Bruna ingressou no Programa institucional de Bolsas de iniciação à docência (PIBID). No PIBID, ela participou de um projeto sobre fotografia. Nesse contexto, conheceu Rodrigo Almeida, seu colega no projeto. Rodrigo lhe convidou para ter uma experiência em sala de aula no âmbito de um cursinho pré-vestibular popular e ela aceitou. Diferentemente do PIBID em que a atuação dos bolsistas nas escolas é em grupo e sob constante supervisão de professores, no curso pré-vestibular popular os licenciandos assumem o papel de professores regentes. Bruna relata que estava muito nervosa em sua primeira aula, mas não se sentiu sozinha. Ela afirma que haviam alguns professores de Física do cursinho presentes na ocasião, que estavam ali para prestar algum suporte caso fosse necessário (Rodrigo Almeida, Rafael Ferreira e o entrevistador).
Depois dessa sua iniciação docente como regente eventual, Bruna seguiu nesse cursinho naquele ano, ministrando ocasionalmente algumas aulas. No ano seguinte, foi convidada para atuar em um outro curso pré-vestibular popular. Ela aceitou e nesse espaço atuou efetivamente como professora de uma turma, permanecendo de 2014 até 2016. Relata que houve uma cisão do corpo docente desse curso e então ela, junto à um grupo de professores, fundou um outro curso pré-vestibular popular. Seguiu nesse espaço por aproximadamente 1 ano, até assumir, no final de 2017, um cargo de professora de Física em uma escola da rede estadual, com regime de contrato temporário, mas por tempo indeterminado. Nessa instituição, ela permanece até o momento da entrevista.
Sobre a sua trajetória como professora, Bruna avalia uma evolução em dois aspectos principais: interação com estudantes em sala de aula e conhecimento sobre Física. Além disso, ela discute uma mudança de sua percepção sobre o papel do ensinar Física, embora este ponto não receba o mesmo destaque em sua fala. Nesse sentido, ela avalia que sua prática inicialmente, na escola, era voltada para resoluções de exercícios de vestibular (e justifica isso pela sua vivência nos cursinhos), mas passou a ter uma abordagem muito mais conceitual, privilegiando a presença dos fenômenos físicos no cotidiano dos estudantes, a partir de reflexões sobre a razão de ensinar Física. Ela exemplifica:
Quando eu entrei em Leis de Newton com meus alunos esse ano eu só enunciei as três leis e foi basicamente isso. Eu não resolvi aplicações das leis de Newton, não resolvi problemas. Porque a gente ficou tanto na parte conceitual e eles se interessaram tanto pela parte conceitual, que eu fiquei só ali. Então acabou que eu achei que foi muito mais proveitoso para a aprendizagem deles ter ficado só nessa parte do que ter entrado mais na parte matemática da coisa, na parte de resolver questões sobre isso. [...] Esse tipo de situação demandou bastante tempo e eu preferia que eles entendessem mais esses conceitos do que resolver uma questão de bloquinhos, digamos assim, né? Por mais que eu ache interessante tu saber as aplicações e tudo mais, mas eu acho que foi muito mais proveitoso para eles, eu instigar que eles gostem de Física. Até porque, o restante do ano foi aquela parte de cinemática que é muito matemática. [...] Meu pensamento foi mudando ao longo dos anos com o que eu ando vendo que os alunos querem. Não adianta nada eu querer impor o que eu acho que para eles seja melhor, se no final das contas a aula é para eles, né? Então eles que “mandam”, digamos assim, em como que o rumo das aulas deve ser, pelo menos na minha visão, porque sem aluno a gente não tem o porquê dar aula, né?
Para ela, as experiências pregressas lhe permitiram desenvolver habilidades de desinibição para falar em público. Atividades em que se apresentava para uma plateia (como ocorreu no teatro, na igreja e na dança) lhe preparam para estar à frente de uma sala de aula. Ademais, percebe-se a diferenciação, feita por Bruna, entre sua vida pessoal e profissional.
Quando eu estou em um grupo de amigos, em que todos nós estamos sentadinhos conversando, eu fico nervosa de falar entre eles. Então, é mais uma questão de ‘eu estou na frente de um palco’, que seria o quadro, e falar da frente do meu público que seriam os alunos, para mim é muito diferente de estar entre um grupo de pessoas sentadas conversando e falar com elas [...] No pessoal, [a Bruna] é uma pessoa introvertida que tem dificuldade de falar com as pessoas [, já] no profissional, as pessoas acham que eu não tenho dificuldade nenhuma em interagir com os outros, que eu sou extremamente extrovertida, então eu acho que na verdade, eu até falo para os alunos que a “Bruna não professora” é uma Bruna completamente diferente da “Bruna professora”.
A fim de explorar essas características desses papéis, o entrevistador questionou sobre seus gostos, tanto da “Bruna não professora”, quanto da “Bruna professora”. A primeira afirma gostar de jogar (jogos eletrônicos) e cozinhar. A segunda gosta muito de dar aula, apesar de considerar cansativo. Sobre cozinhar e jogar, Bruna afirma serem coisas que despertaram seu interesse. Dessa forma, ela buscou conhecer mais, estudar sobre. Quanto a cozinhar, fez cursos onlines e cogitou cursar gastronomia, mas afirma não fazer uma graduação por saber que terá que fazer provas e sua resistência a essas avaliações configuram maior obstáculo. No tocante a jogar, ela afirma que jogava League of Legends (LOL)8, mas por ter uma rotina estressante, percebia que o estresse adicional gerado no jogo lhe fazia mal, psicologicamente, passando para jogos de plataforma single player, como Super Mário. Ao ser questionada sobre o que lhe gerava estresse no LOL, Bruna elenca alguns fatores: ser mulher (“quando as pessoas (no jogo) identificam que eu sou mulher, elas se tornam mais hostis só por isso. Eu tentava esconder ao máximo meu gênero”); não conseguir performar bem, principalmente em dias de trabalho mais cansativos (“Se eu trabalhava muito e ia jogar depois, isso afetava completamente o jogo e eu acabava não jogando porque eu não conseguia prestar tanta atenção por estar com sono ou algo assim [...] acabava não tendo um bom desempenho e as pessoas me xingavam”).
A “Bruna professora” avalia que seus colegas docentes lhe percebem como uma pessoa “extremamente responsável e organizada” e lhe consideram “uma boa professora, uma boa profissional”. Ela também relata se dar muito bem com os alunos e seus pais. Ela afirma se esforçar para estabelecer laços com os estudantes e que quase sempre consegue atingir esse objetivo. Nota que esses laços se estendem aos pais dos estudantes, conforme sua fala: “Quando os pais dos alunos vêm conversar comigo, é sempre de uma maneira tranquila e calma. Tipo, ‘meu filho confia em ti, então eu acredito que eu consiga confiar em ti também’”. Um exemplo pontual é o caso da estudante “Duda”:
Essa era uma aluna muito difícil. Ela não se abria com nenhum professor além de mim, assim. Eu sou a única professora com quem ela se dá bem, mas isso porque eu corri muito atrás dela. Eu tentei muito, muito, muito fazer com que ela se desse bem comigo. Aí eu finalmente consegui, mas pelo fato dela não gostar da escola, não gostar dos outros professores, ela acabou se distanciando e largando a escola de mão. A mãe dela veio falar comigo e disse: “Olha, a Duda gosta muito de ti, e tudo mais”...
Ao falarmos da rede estadual de ensino, Bruna Lopes afirma que não cogita mudar de escola. Ela se sente acolhida e pertencente à comunidade escolar a qual está inserida. Ao tratarmos desse ponto, ela traz a questão da preocupação com seu vínculo de trabalho (contrato temporário). Bruna relata que fez o último concurso de seu estado, justamente com o objetivo de ocupar sua própria vaga e obter maior estabilidade, mas não obteve êxito, embora tenha ido bem em Física (conhecimentos específicos). Nas suas palavras: “Eu estou até com medo [que] algum dos aprovados no concurso tente tirar minha vaga. Como eu tô lá na escola já faz quase 7 anos, eu me apeguei demais aos meus colegas, à minha direção, aos meus alunos. Me dá um negócio só de pensar em sair de lá”. Ao ser questionada sobre a possibilidade de mudar de dependência administrativa, responde:
Eu não gostaria de dar aula em uma escola privada porque eu sinto que eu tenho um tipo de relacionamento, tanto com meus colegas quanto com meus alunos... [...] Meu ideal sempre foi trabalhar na escola, sobretudo na escola pública, por uma questão de que gosto de fazer as pessoas se interessarem. Principalmente na escola pública porque eu sei que eu sou capaz de fazer uma mínima diferença na vida deles com relação a eles aprenderem Física ou até para aplicar isso no dia-a-dia deles ou até se eles quiserem ingressar numa universidade. Eu acho que eu tenho a capacidade de fazer eles minimamente se interessarem, para que no futuro eles consigam abrir portas de alguma forma com isso. Isso é outra coisa, na escola particular eles vem, digamos assim, a maioria, de berço de ouro, então eles já têm isso mais na vida deles, então eu prefiro fazer a diferença na vida de quem mais precisa. [...] Eu gosto muito de saber que eu fiz a diferença na vida de alguém. E claro, cursinho privado porque eu preciso de dinheiro, preciso trabalhar de alguma forma, mas eu no futuro me vejo em algum momento que eu esteja mais estável financeiramente, voltando para cursinho popular.
No tocante a possibilidade de evadir da docência, ela afirma já ter pensado muito sobre isso. “É muito estressante, né? Mas aí eu paro pra pensar: ‘que profissão que não é estressante’? Eu gosto do que eu faço, eu acho que eu sou boa no que eu faço, e eu não gostaria de fazer uma mudança tão grande assim na minha vida de mudar de profissão”.
Patrimônio de disposições de Bruna Lopes
Na presente seção, discutimos as hipóteses que desenvolvemos sobre as disposições que identificamos que identificamos a partir da construção do retrato de Bruna Lopes, a saber: disposição ao reconhecimento (Agostini & Massi, 2018; Lahire, 2004; Norte & Lima Junior, 2018), disposição à afetividade (Nascimento & Barolli, 2018) e disposição à introspecção. É importante destacar que essas categorias não são as únicas possíveis e que outros autores podem classificá-las de outra maneira. No entanto, acreditamos que são as categorias que têm o maior poder explicativo para o caso de Bruna.
Hipótese 1: Disposição ao Reconhecimento
Descrição: As disposições competitivas podem se manifestar em disputas na busca por reconhecimento por parte do indivíduo (Agostini & Massi, 2018; Lahire, 2004). Isto é, o sujeito que porta tal disposição tende a realizar ações buscando reconhecimento através de competição. Essa lógica se mostra inerente a uma visão de mundo em que aqueles que vencem e se destacam em competições vão adquirir reconhecimento (e.g., o campeão de um torneio). Segundo Norte e Lima Junior (2018), entretanto, é possível encontrar a disposição ao reconhecimento mesmo em pessoas não competitivas, desde que suas ações estejam orientadas a buscar reconhecimento. Segundo os autores, os indivíduos “movidos por disposição ao reconhecimento distinguem-se por uma tendência a buscar validação para tudo aquilo que fazem e que lhes pareça resultado de esforço, uma conquista” (Norte & Lima Junior, 2018, p. 161, nosso destaque).
Assumimos que esta noção de reconhecimento diverge de um entendimento comum na medida em que não há necessidade desse reconhecimento por terceiros ser explicitado. Portanto, basta que o próprio sujeito identifique que suas ações são validadas nos efeitos que elas gerem nos outros, “buscando que suas realizações sejam percebidas, legitimadas, consagradas” (Norte & Lima Junior, 2018, p. 161).
Gênese: Identificamos que Bruna busca reconhecimento desde tenra idade. No contexto social escolar, entendemos que a nota nas provas é uma forma de reconhecimento e legitimação para ela. Por mais que não explicite, percebemos que a sua resistência a provas e avaliações, que constitui característica marcante em espaços de escolarização, guarda relações com o receio de não atingir métricas de excelência e, portanto, não ser reconhecida. Logo, uma nota baixa legitimaria um resultado que indicaria falta de esforço.
Série de práticas coerentes: Há uma ideia por parte de Bruna de que ela “se sente bem fazendo algo bem” (e a métrica sobre fazer algo bem ou mal é estabelecida externamente, perpassando o reconhecimento dos outros sobre suas ações). “Quando esse reconhecimento não vem, surge uma grande insatisfação que coloca o sujeito novamente em movimento” (Norte & Lima Junior, 2018, p. 161).
Percebemos essa disposição em diferentes práticas de Bruna Lopes.
Eu me cobro muito para sempre tentar fazer o melhor que eu consigo, mas sei que às vezes eu não tenho forças físicas e nem psíquicas para fazer isso... [...] Quanto melhor eu faço algo, mais feliz eu fico. Quando eu percebo que eu não consigo fazer bem algo eu costumo desistir, costumo nem começar. Se eu ver que não vou conseguir fazer, nem começo, porque eu acho que isso vem muito da minha cobrança que se eu comecei, eu preciso terminar e eu preciso fazer bem aquilo. Eu acho que isso talvez esteja relacionado a jogar [, por exemplo], porque como eu já não tava conseguindo fazer bem aquilo, não tava mais conseguindo jogar direito, eu abandonei.
Experiências relativamente relevantes: Diversas são as experiências que reforçam essa disposição na trajetória de Bruna Lopes. Nas atividades extraclasse, podemos perceber o quanto ela valoriza e investe nas atividades que considera ter um bom desempenho e ser reconhecida (teatro, grupo jovem, dança), enquanto abandona atividades em que não consegue ter um bom desempenho (ginástica e jogos eletrônicos multiplayer).
Transferibilidade de contextos: Por mais que estabeleça diferenciações claras entre suas atuações na dimensão laboral e na dimensão pessoal, avaliamos que a disposição ao reconhecimento perpassa por quase todos os contextos que Bruna integra(ou). Segundo ela, ser professora “tem mais a ver com fazer a diferença na vida de uma pessoa, do que uma realização pessoal”. Bruna dá indícios que sua realização pessoal passa por sua realização profissional que, por sua vez, se manifesta nesse seu desejo de “fazer a diferença na vida de uma pessoa”. Notoriamente, frente à definição de disposição ao reconhecimento adotada, não significa que há necessidade da “pessoa que teve a vida modificada” por Bruna externalizar isso, com atitudes que indiquem gratidão, por exemplo. Nesse sentido, seu trabalho docente pode ser consagrado através do desenvolvimento de seus estudantes.
Portanto, ser uma professora que incentiva seus estudantes a gostarem de Física e uma colega que desempenha um bom trabalho da perspectiva dos pares é um marcador de consagração no contexto profissional; satisfazer o anseio do pai de ter concluído uma graduação é um marcador de legitimação no contexto familiar; assumir posições de destaque na dança ou no grupo jovem é um marcador de percepção no contexto de outras atividades. No sentido inverso, são marcadores de não reconhecimento não ter um bom desempenho no LOL e o receio de fazer provas como obstáculos para cursar gastronomia no contexto de atividades de lazer e no contexto educacional, respectivamente.
Inibição: Avaliamos que por mais que elementos da disposição ao reconhecimento se fizessem presentes durante a graduação, Bruna acabou não desistindo do curso e conseguindo encerrar sua trajetória acadêmica com a diplomação. Todavia, esse processo fez com que Bruna realizasse ações que seguem no caminho oposto do esperado pela sua disposição ao reconhecimento, o que pode ter forjado novas disposições, marcando a forma como seu passado foi incorporado.
Hipótese 2: Disposição à Afetividade
Descrição: A disposição à afetividade orienta as emoções e sentimentos relacionados à afeto, acolhimento e compaixão, ou seja, é uma disposição predominantemente “para sentir”. A afetividade, em si, se refere à capacidade do ser humano de ser impactado pelo mundo externo e interno, por meio de sensações que envolvem a energia que os sujeitos direcionam aos objetos, sejam eles concretos ou representações psíquicas (Nascimento & Barolli, 2018).
Gênese: Cronologicamente, a primeira vez que identificamos a disposição à afetividade em Bruna Lopes é na sua primeira opção profissional, ao manifestar querer ser médica veterinária em uma perspectiva de cuidado e afeto com relação aos animais, mas que reflete a perspectiva que adotava com respeito aos seus familiares.
Série de práticas coerentes: A disposição ao afeto de Bruna faz com que ela tenha formas de pensar e agir voltadas a ajudar os outros: medicina veterinária por querer cuidar dos animais; a escolha pela Licenciatura em Física por gostar “de ajudar [os] colegas a estudar”; a busca por ser ter uma boa relação afetiva com os estudantes; a preocupação em ter um mau desempenho no LOL e acabar prejudicando os companheiros de equipe.
Experiências relativamente relevantes: A disposição à afetividade de Bruna contribuía para desenvolver sua desinibição de falar em público nas palestras nos grupos de jovens da igreja ou assumir posição no grêmio estudantil de sua escola (por sua sensação de acolhimento e boas relações nesses contextos), mas também acabou gerando sensações que lhe marcaram negativamente durante a graduação. Como estratégia para permanecer no curso, tornou-se mais reservada, evitando expor-se emocionalmente aos colegas e professores, com receio de se machucar. Essa forma de agir durante a segunda metade da graduação passou a ser um princípio orientador de suas práticas da esfera pessoal de sua vida. Profissionalmente, é possível perceber a intensidade da disposição à afetividade no episódio da aluna “Duda”.
Transferibilidade de contextos: Há uma série de elementos, em contextos sociais bastante distintos, que indicam que as formas de sentir e agir de Bruna são geradas por sua disposição à afetividade: no teatro, ela traz a questão do afeto, principalmente com a professora, em virtude de ela também ser sua prima; na ginástica e na primeira escola ocorreram alguns episódios de bullyng, além do não acolhimento e falta de relações afetivas que a fizeram mudar de escola; a sua escolha pela licenciatura passa por uma dimensão afetiva; o início da docência, no cursinho, foi marcado por um episódio em que ela se sentiu acolhida pela presença de outros professores mais experientes, que estavam ali para lhe dar apoio e suporte e não como “juízes de sua prática”; o receio que apresenta de um dos concursados requerer a sua vaga na escola em que atua tem a ver com o pertencimento traduzido nos laços afetivos que construiu com aquela comunidade escolar; a afetividade também se realiza na preocupação que ela demonstra com os seus estudantes, seja com o desenvolvimento sociocognitivo daqueles da escola ou com a aprovação no vestibular daqueles que frequentam o cursinho (“Poxa, eu fiz parte dessa realização do sonho deles. Eu gosto muito de saber que eu fiz a diferença na vida de alguém”).
Inibição: Dentre todos os contextos sociais contemplados na entrevista, o único em que não identificamos práticas coerentes com a disposição à afetividade de Bruna Lopes foi na dança, possivelmente por ausência de aportes empíricos nesse contexto social.
Hipótese 3: Disposição à Introspecção
Descrição: Propomos a disposição à introspecção como uma inclinação para a reflexão interna, a contemplação e uma abordagem reservada ou reflexiva em relação às interações sociais e ao próprio autoconhecimento. Pessoas que portam essa disposição tendem a apresentar uma postura observadora e reflexiva em situações sociais. Elas podem preferir ouvir em vez de falar, e podem ser mais seletivas sobre quando e como compartilham suas opiniões e sentimentos.
Gênese: Dentre as estratégias adotadas para persistir no curso, Bruna desenvolveu uma disposição à introspecção, como evidenciado por mudanças em seu comportamento social e interações durante e após esse período. A mudança de comportamento de Bruna não é meramente circunstancial, mas reflete uma incorporação profunda de suas experiências passadas, resultando em uma tendência estável e recorrente para a introspecção, tornando-a mais contemplativa e reservada. Destacamos que se trata de um período de vida, não um episódio isolado, que forjou essa disposição em Bruna.
Série de práticas coerentes: A disposição à introspecção se manifesta desde a interação com professores e colegas na segunda metade da graduação, mas também marca o convívio social de Bruna Lopes com seus amigos e familiares (“Quando eu estou em um grupo de amigos, em que todos nós estamos sentadinhos conversando, eu fico nervosa de falar entre eles”).
Experiências relativamente relevantes: No LOL, esconder seu gênero e se manifestar somente quando estritamente necessário mostram-se estratégias que consolidaram sua disposição à introspecção. O receio de agressões gratuitas por ser mulher lhe tornou mais contemplativa do que atuante (como foi no passado em contextos sociais como o grupo jovem da igreja, o grêmio estudantil e a dança).
Transferibilidade de contextos: A opção de deixar o LOL e buscar jogos single player como alternativa de lazer endossam uma orientação de evitar convívio social e valorizar atividades individuais. Nesse sentido, as interações sociais dão lugar à introspecção. Ao não optar por um curso institucionalizado de gastronomia, Bruna demonstra valorizar a possibilidade de desenvolver suas habilidades culinárias individualmente, respeitando o tempo necessário ao seu processo de aprendizagem. Foram movimentos reflexivos que provocaram um interesse de Bruna em buscar ser uma professora melhor, bem como questionar sobre o que isso significa. Todo esse processo de autoconhecimento está imbricado por reflexões introspectivas.
Inibição: Bruna Lopes não realiza práticas orientadas pela sua disposição à introspecção no contexto social da sala de aula (“na ação”), por mais que ações mais introspectivas se façam presentes na sua docência nos momentos de autoavaliar sua prática (“sobre a ação”).
DISCUSSÃO
Diversas razões para a permanência docente já foram identificadas na literatura, como a satisfação de demandas subjetivas na sala de aula, laços afetivos, compromisso epistemológico e social, paixão pela disciplina, e questões de estabilidade e rentabilidade profissionais (Lima & Leite, 2020). Todavia, nosso trabalho não foca nas razões em si, mas propõe compreendê-las como elementos que nutrem às disposições da professora investigada, fazendo com que sua ação frente à trajetória docente seja permanecer. Para o caso de Bruna Lopes, fomos capazes de identificar, através de uma investigação sobre a sua individualidade - seu passado incorporado na forma de disposições e suas práticas singulares nos contextos sociais em que atua - importantes disposições que influencia(ra)m sua permanência no exercício da docência em uma escola pública estadual: disposição ao reconhecimento, disposição à afetividade e, em alguma medida, disposição à introspecção.
Sobre a disposição ao reconhecimento, Bruna é reconhecida como uma profissional competente pela comunidade escolar, no contexto social laboral. Ela vê sua prática docente ser consagrada ao despertar nos estudantes o interesse pela Física. Além disso, a legitimação de seu trabalho se dá pelo sucesso dos seus alunos em exames vestibulares e desenvolvimento sociocognitivo. Sua relação com o reconhecimento em outros contextos de sua vida indica que ela prioriza atividades que consegue ter bom desempenho, abandonando as demais. Essa disposição é determinante uma vez que Bruna e os outros reconhecem o seu trabalho como sendo bem feito e, segundo ela, importante para transformar a vida de alunos que realmente precisam.
Em paralelo, a disposição à afetividade faz com que ela construa laços importantes na comunidade escolar em que está inserida. Ela constrói uma boa relação com colegas, equipe diretiva e, sobretudo, com o corpo discente. Ela se esforça para dirimir a distância entre professor e alunos, sendo uma professora próxima dos estudantes e alguém sobre quem os próprios alunos conversam com seus pais. O acolhimento e o pertencimento à comunidade escolar são elementos que marcam sua decisão de permanecer (e inclusive geram medo de sair da escola), atrelados a sua disposição à afetividade.
A disposição à introspecção, embora importante para o autodesenvolvimento de Bruna, surge de experiências negativas vivenciadas por ela no contexto de sua formação inicial, indicando um passado incorporado de experiências sociais universitárias nocivas. Dessa forma, há de se questionar sobre a influência que as instituições formadoras exercem sobre os licenciandos com relação a sua permanência no curso e sobre como esses efeitos irão afetar suas trajetórias dali em diante.
Avaliamos que as experiências negativas e desafiadoras vivenciadas por Bruna durante sua graduação marcaram um período de inibição de sua disposição ao reconhecimento e a fizeram desenvolver uma disposição à resistência ou resiliência (Barolli, 2018; Lahire, 2004) para aquele contexto específico. Contudo, não identificamos que Bruna manifesta, de forma marcante, tal disposição em outro contexto social ou em outras práticas, de modo que ela parece não ter sido incorporada.
A permanência de Bruna no magistério é marcada por razões indicadas pela literatura (Lima & Leite, 2020), que no seu caso nutrem as suas disposições: realização na sala de aula (reconhecimento e afetividade); renovação contínua (introspecção e reconhecimento); atendimento às crenças docentes (reconhecimento, introspecção e afetividade); construção e valorização de laços emocionais com colegas e estudantes (afetividade); compromisso epistemológico e social com a Educação, sobretudo, com a escola pública (reconhecimento e afetividade); paixão pela Física e o desejo de influenciar os estudantes a se interessarem pela disciplina, fomentando seu desenvolvimento como cidadãos (reconhecimento e afetividade).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Visando implicações para políticas públicas e formação de professores, avaliamos que as disposições são estruturas que podem exercer influência sobre a prática docente dos professores e, inclusive, sobre as decisões dos licenciados em aderirem e permanecerem no magistério. Elas, geralmente, têm origens na infância das pessoas, mas momentos da vida que envolvam conflitos ou mudanças significativas tendem a ser oportunidades para a gênese de novas disposições - como ficou claro no caso de Bruna Lopes.
Ao tecer o retrato docente de Bruna, conseguimos acessar sua individualidade por meio de seu patrimônio de disposições. Assim, foi possível perceber como razões que são elencadas pela literatura são manifestadas por ela e são significadas a partir das disposições identificadas como reconhecimento, afetividade e introspecção, permitindo ressignificarmos a forma como suas experiências afetam sua trajetória profissional.
Acreditamos que investigações futuras que mobilizem o referencial dos retratos da docência, ocupadas com as trajetórias docentes, deveriam explorar outros casos de permanência além de contemplarem casos de licenciados que evadiram do magistério ou sequer ingressaram. Desse modo, poderemos identificar quais outras disposições influenciam trajetórias e de que forma.
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Cabe destaque à relação entre evadir e persistir: conhecer as causas que levam alguém a evadir não implica saber o que leva alguém a persistir, ou seja, não se pode pressupor que o oposto das causas da evasão docente consiste nas causas para a permanência, como se houvesse uma relação direta. Por exemplo, dentre os resultados de Lima e Leite (2020), os motivos que levam às decisões de evadir ou persistir não guardam tal relação direta.
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Em virtude do nome do livro, passaremos a nos referir a essa apropriação como Retratos da docência ou Retratos docentes.
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O referido projeto de pesquisa busca contribuir para as discussões referentes ao acompanhamento das trajetórias de egressos de cursos de licenciatura em Ciências, em particular, de Física.
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Segundo Matiello e Fonseca (2023), um curso pré-vestibular popular é uma iniciativa educacional voltada para a preparação acessível ou gratuita de estudantes, principalmente das classes populares, para exames de ingresso no ensino superior. Estes cursos, que surgiram como resistência aos “cursinhos” tradicionais e caros, também enfatizam a educação crítica e multicultural, abordando temas como raça, gênero e sexualidade. Além de focar na formação política e cidadã, esses cursos oferecem oportunidades de desenvolvimento profissional para professores em início de carreira. Vinculados a movimentos sociais e iniciativas comunitárias, os cursos pré-vestibulares populares contribuem para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil.
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Trata-se de um codinome que adotamos com a finalidade de garantir o anonimato da participante da pesquisa. Nesse sentido, demais nomes de pessoas também são substituídos por codinomes.
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Um jogo de equipe desenvolvido pela Riot Games, no ano de 2009. As equipes têm como objetivo comum destruir a base da equipe adversária.