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FALA REPRESADA E AMOR TRANSBORDANTE: AMOR E AMIZADE EM MACHADO DE ASSIS

REPRESSED SPEECH AND OVERFLOWING LOVE: LOVE AND FRIENDSHIP IN MACHADO DE ASSIS

Resumo:

Investigamos como Machado de Assis, no conto "Pílades e Orestes", propõe um modo singular de figurar a fala represada como signo ou sintoma da amizade e do amor, tanto no âmbito do personagem como no da forma narrativa. Tentamos mostrar como a postura do personagem Quintanilha pode ser entendida como inversão de papéis sexuais e familiares e como figuração da neurose histérica, em chave psicanalítica. Para tanto, comparamos o conto não apenas com os dois últimos romances de Machado, mas também com tragédias gregas que figuram o mito, além de dois contos da França do século XVIII, de Diderot e de Saint-Lambert.

Palavras-chave:
Machado de Assis; literatura brasileira; literatura comparada; literatura francesa do séc; XVIII; Diderot

Abstract:

We investigated how Machado de Assis, in the short story "Pílades e Orestes", proposes a unique way of representing repressed speech as a sign or symptom of friendship and love both at the level of the character and the narrative form. We try to show how the posture of the character Quintanilha can be understood both as an inversion of sexual and family roles, and as a representation of hysterical neurosis, in a psychoanalytic key. To do so, we compared the short story both with Machado's last two novels, as well as with Greek tragedies that feature the myth, in addition to two short stories from 18th century France, by Diderot and Saint-Lambert.

Keywords:
Machado de Assis ; Brazilian literature ; comparative literature ; French literature of XVIIIth century ; Diderot

O conto "Pílades e Orestes", de Machado de Assis, lançado em 1903, parece-nos um exemplo bastante convincente de que o Machado dos romances dialoga com o dos contos, se é que não nasce deste. Isso torna a análise dos contos crucial para a compreensão dos elementos constitutivos de uma prosa que revela escondendo e faz o leitor refletir expondo a ambiguidade constitutiva das ações narradas. Com uma análise desse conto específico – publicado no volume Relíquias de casa velha , de 1906 –, pretendemos examinar pontos que indiquem certa trilha de experimentação do autor, a desembocar em seus dois últimos romances, Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). "Pílades e Orestes" parece favorecer particularmente tal análise, pois está temporalmente bastante próximo de Esaú e Jacó e, como este, tem dois protagonistas homens cuja amizade (fazendo contraponto com sua negação, a inimizade, de forma explícita no romance) se apresenta como incondicional. Além disso, nos dois casos forma-se um triângulo amoroso em que aquela amizade (no caso do romance, irmandade) é ameaçada pelo terceiro elemento, feminino. Ambas as narrativas parecem fazer da duplicidade um biombo para tratar da duplicidade (e da dificuldade de decidir que ela engendra), bem como da incondicionalidade da amizade. Pretendemos examinar o conto considerando um modo machadiano de revelar escondendo, ou de "dizer calado", como ele define em seu romance derradeiro, uma escrita marcada pela concisão no limite do apenas aludido ou denotado. 1 1 OTratamos da questão da contenção e mesmo da subtração verbal típica do narrador de Machado de Assis no ensaio "Um narrar a menos: o conselheiro no Memorial de Aires " (BARROS, 2006 ).

O título, "Pílades e Orestes", com ressonâncias gregas significando, para o "leitor sagaz" ou erudito, por um lado, a amizade mais fiel e, por outro, cenas trágicas de traição, é desdobrado, logo na primeira frase, em dois nomes bem mais brasileiros: "Quintanilha engendrou Gonçalves". E parte o autor para uma descrição sucinta da relação de proeminência paternal do primeiro sobre o segundo. Já está posta a ideia de relação familiar, central no caso dos mitos gregos do título, de que se recordará o leitor erudito. Para todos os outros, no entanto, o que vai se delineando é uma constituição gradativa de traços de caráter pela via das ações dos amigos, a começar pela herança deixada pelo tio a Gonçalves. Aos poucos se nota que é a descrição psicológica e emocional de Quintanilha, o (pseudo)pai da dupla de amigos, o eixo da narrativa, por meio de pistas sobre as razões latentes de seu agir: "[...] um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos", lê-se – e por ora apenas se ressalte a vagueza enigmática dos últimos substantivos. Parágrafos depois é que se perceberá o quanto elas descrevem com fidelidade o comportamento de Quintanilha.

O mito faz-se presente de forma sutil no primeiro episódio, o conselho de Gonçalves para que o amigo aceite a herança sem dar ouvidos aos parentes. A decisão não corresponderia à de matá-los, como faz Orestes em Electra , de Sófocles, com sua mãe, Clitemnestra, e com o amante dela, Egisto, com a ajuda do amigo Pílades, que mantém seu mutismo? Pelo menos no afeto de Quintanilha, trata-se, sim, de matá-los: ele fechará suas portas aos mais insistentes, que traem sua estratégia bajuladora, e chega a chamá-los de "[...] meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 94). Em todo caso, assim como em Esaú e Jacó , o nível mitológico não é óbvio, ou seja, os protagonistas do conto não são decalques dos Orestes e dos Pílades das tragédias gregas ou francesas de tempos idos. As transposições teatrais do mito, por Sófocles, Eurípedes e Racine, mostram um Orestes obcecado pela vingança, mas cerebral e calculista no momento de pô-la em prática; porém, em relação a Pílades, ele é fidelíssimo e faz de tudo para tentar proteger o primo e amigo de suas desgraças em série. Do mesmo modo, Pílades aparece ou com poucas falas e quase nenhuma ação (na peça de Sófocles), ou também altamente altruísta, na ajuda a um matricida.

Como destaca Raquel Campos, há uma diferença entre as peças onde Orestes e Pílades aparecem, ou seja, Electra , de Sófocles, Coéforas , de Ésquilo, Ifigênia em Táuris e Orestes , de Eurípedes, e Andrômaca , de Racine. Sófocles concentra-se no ato de vingança em si – Orestes mata a mãe, Clitemnestra, e seu amante, Egisto, para vingar a morte do pai, Agamêmnon, morto por ter matado a filha, Ifigênia, a mando da deusa Ártemis, para que os ventos voltassem a soprar e afinal movessem os barcos atenienses de Áulis, em meio à guerra de Troia; Orestes contará o tempo todo com o apoio de Pílades, seu primo e companheiro inseparável, com quem fora criado na Fócida, para onde fora enviado ainda criança; ele o apoia ainda mais do que sua irmã, Electra (CAMPOS, 2022CAMPOS, Raquel. Nomes antigos, caracteres modernos: tradição retórico-poética e modernidade literária em Machado de Assis. Revista de História, São Paulo, n. 181, p. 1-26, 2022. ). Assim, em sua Electra , Sófocles necessariamente dá menos ênfase a Pílades, que merece poucos diálogos, sua mudez sendo mesmo ressaltada na apresentação dos personagens. Nas peças de Ésquilo, de Eurípedes e de Racine, Pílades ganha maior destaque, apesar de seu papel de secundar Orestes em sua trágica missão: assim, pode mostrar sua elevação de espírito e sua abnegação, em espetáculos onde a amizade autêntica, fidelíssima e inabalável dos dois ganha a boca de cena.

Nesse rápido quadro comparativo, destaquemos que a peça de Sófocles – único nome de autor de tragédia citado no conto por Machado, que certamente conhecia, além dessas obras, as duas óperas Ifigênia em Táuris , de Gluck (1779) e de Piccinni (1781) – enfatiza o calculismo de Orestes, ao contrário das peças de Eurípedes, que ressaltam a amizade quase simbiótica dos primos. No verdadeiro trabalho de despistamento que Machado empreende, podemos ver que ambos os aspectos estão em "Pílades e Orestes": há a amizade fidelíssima e, ao final do conto, o que parece frieza ou maquiavelismo de Gonçalves, quando ele consuma o casamento com Camila e, assim, sobrepõe-se à atração de Quintanilha, na verdade é frieza invertida, por assim dizer, já que surpreendentemente fora Quintanilha quem armara tudo para que sua própria fantasia desejante fosse destruída… por seu melhor amigo. Mas vejamos em detalhe essas vicissitudes que surgem como o contrário do que parecem ser.

Sem dúvida, a ligação extrema da dupla é destacada ao longo de todo o texto. Obviamente, lendo o conto em seu modo realista-moderno, a nosso ver inescapável, parece que entramos – ou, pelo menos, os leitores muito atentos entram – nos bastidores psicológicos (ou mesmo inconscientes) da amizade da dupla. E ali o que se vê pode ser Gonçalves como uma espécie de fria referência de líder e modelo (ou de filho em sua imagem idealizada de modelo) para Quintanilha. Gonçalves renegará esse pseudopai (que na verdade se revela feminizado), sendo totalmente incapaz de retribuir o altruísmo, a abnegação, a verdadeira subserviência afetiva de Quintanilha – e o casamento com Camila é a pá de cal na relação. Quintanilha, por sua vez, seria o polo autoanulado do casal – já que, a partir da definição de "casadinhos de fresco", dada pelas más-línguas, pensa-se na ideia de homossexualidade.

Outra leitura possível seria ver em Quintanilha a imagem do neurótico histérico, que foge o tempo todo de seu próprio desejo por conta de uma espécie de busca de referência modelar, de um mestre ou de um objeto que supostamente o ame (e não que ele ame, numa inversão que nos coloca, de novo, na senda feminina). A esse modelo ou objeto obrigado a amar, o(a) histérico(a) dá o condão de apontar caminhos para seu próprio desejo…, no que se fecha o círculo vicioso ou propriamente neurótico: o polo histérico anula seu desejo e exige que seu objeto o deseje e lhe aponte seus próprios desejos como forma de vida. Assim, ao longo de todo o conto, Quintanilha mantém-se na postura de expectativa diante da fala do outro (o idealizado mestre), chegando a antecipá-la, como um pai ou, na inversão da pista dada pelo narrador, como uma mãe: eis o despistamento de Machado, uma vez que há muito de maternal nessa postura. Essa mãe (histerizada) teme perder o afeto do filho (tornado mestre) e passa a paparicá-lo, ou seja, passa a viver em função dos desejos dele, anulando a possibilidade de afloramento do seu próprio.

Para a psicanálise, o sujeito histérico interessa-se pelo desejo do outro, fica atento para ver se o outro deseja e o que ele deseja e, na sequência, propõe-se como objeto desse desejo. Notando que algo falta ao outro, engaja-se no preenchimento dessa falta, o que lhe dá muita plasticidade. "O sujeito histérico constitui-se quase inteiramente a partir do desejo do Outro" (LACAN, 1998LACAN, Jacques. Le séminaire, livre V: les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998. , p. 365, tradução nossa). Seu desejo subordina-se ao desejo do outro: o que ele deseja, em última instância, é o desejo do outro. "O desejo da histérica não é desejo de um objeto, mas desejo de um desejo" (LACAN, 1998LACAN, Jacques. Le séminaire, livre V: les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998. , p. 407, tradução nossa). Desse modo, o desejo histérico equivale ao desejo em geral, exemplificando perfeitamente o dito de Lacan: "o desejo é o desejo do Outro". Numa relação amorosa, o(a) histérico(a) duvida, não de seu amor pelo outro, mas do amor do outro por si. É a mesma atitude, aliás, atribuída por Freud ao tipo narcisista de escolha objetal: "Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de ser amada; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças" (FREUD, 1974FREUD, Sigmund. Estudos sobre histeria. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 2. , p. 105).

Desviando da seara psicanalítica e voltando ao âmbito ficcional, é importante citar outra obra, essa do século XVIII francês, que certamente serviu de modelo para "Pílades e Orestes". Como bem percebeu o crítico Astrojildo Pereira, "Os dois amigos de Bourbonne" ["Les deux amis de Bourbonne"], conto de Denis Diderot, de 1770, certamente é outra referência do conto: "[...] é sobretudo no conto ' Pílades e Orestes' […] que vamos encontrar a marca de Diderot assinalada de maneira a bem dizer literal", escreve Astrojildo (PEREIRA, 2022PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis. São Paulo; Brasília: Boitempo; Fundação Astrojildo Pereira, 2022. , p. 200). "Havia aqui dois homens que se poderia chamar de os Pílades e Orestes de Bourbonne", lê-se como primeira frase do conto, referindo-se aos protagonistas, Félix e Olivier (DIDEROT, 2002 DIDEROT, Denis. Les deux amis de Bourbonne. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 158, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/diderot-contes.pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
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, p. 5, tradução nossa). Astrojildo aponta a semelhança do desfecho amoroso dos dois contos, mas esquece de dizer que no de Diderot muitas aventuras posteriores ao casamento de Olivier, aceito sem resistência, mas com dor por Félix – e este se encontrará com a viúva do amigo, num encontro pudico e ultrarrespeitoso –, transformarão a narrativa num arrazoado sobre a amizade que desemboca no elogio da pobreza (voltaremos a Diderot adiante).

Apesar de manter o mito como horizonte, portanto, no caso de Machado não há a aplicação direta e ponto a ponto de seus personagens e de suas ações: o autor parece querer exatamente criar outro nível de ambiguidade, que despista o leitor em relação às próprias referências que ele traz da tradição. Isso no sentido de uma quebra de expectativa: o leitor perscrutador – ou erudito – espera achar no conto o Orestes e o Pílades do mito, mas algumas de suas características simplesmente não encaixam com o que se lê. Parece que Machado sempre "desnatura" suas fontes, gregas ou não, o que só faz enriquecer de sentidos a narrativa – e colocar pulgas atrás de orelhas.

Portanto, a leitura do conto vai tornando claro que, como em Esaú e Jacó , o mito só se faz referencial em certos pontos do enredo, de forma a conferir-lhe o que Eugênio Gomes ( 1958GOMES, Eugênio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958. , p. 178) chama de "poetização da realidade, mediante associações sincréticas de caráter mítico", que tem como objetivo que o "realismo psicológico [seja] mitigado". Em nossa análise do romance de 1904, chamamos tal "poetização" simplesmente de uma narrativa em vários níveis, do político-objetivo (no caso do romance, com a Proclamação da República) ao amoroso-subjetivo (a precária dança emotiva entre Pedro, Paulo e Flora), passando pelo artístico-literário e pelas alusões bíblicas ou gregas, tudo isso ainda envolvido em um tom oracular que deve muito à tradição grega já desde a primeira cena, em que Natividade, mãe de Pedro e Paulo, visita a cabocla adivinha Bárbara como a um oráculo, pronta a prever "coisas futuras" para seus gêmeos. O jogo das simetrias, que prolifera em todo o romance, remete a uma lógica que se mostra sub-reptícia à realidade, numa verdadeira e surpreendente matematização (e não apenas poetização) dessa realidade. Não se pode negar que é uma forma inusitada de fugir ao realismo-naturalismo literário, que grassava na época. Tudo fica mais claro quando lemos um trecho como o que se segue, referido exatamente à distância entre o contemporâneo e o mundo grego, apesar do uso – dir-se-ia "em camadas" – que um autor de hoje pode fazer desse legado.

Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão [...] com o número 1.012. [...] não há que dizer do costume, que é velho e velhíssimo. Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides , lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: "Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte ...". A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de audiência

(ASSIS, 1997aASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997a [1904]. , p. 2-3).

Em aparência, é inocente a síntese: "A sorte outrora, a numeração agora [...]". Mas o romance vai mostrando que o arcaísmo da sorte ou de uma dimensão mágica ou mística, sub-reptícia à realidade cotidiana, pode ser aplicado pelo sagaz leitor ao acompanhamento que o narrador (que ora parece ser o conselheiro Aires, ora se confunde com o autor) vai dando aos fatos da narrativa, bem como aos pequenos impasses e variações emocionais dos personagens. Não nos arvoraremos, aqui, a estender a análise desse aspecto importante no romance, até porque já o fizemos no artigo citado; 2 2 Ver nota 1, acima. ele servirá apenas para examinarmos o conto "Pílades e Orestes" sob outro ângulo. Acrescentemos apenas que tal aspecto serve como uma chave de leitura bastante convincente para trechos como esse: "Quando muito, no dia em que perfez aquela idade, a nossa dona sentiu um calafrio. Que passara? Nada, um dia mais que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que número, o nome do número, esta palavra quarenta , eis o mal único" (ASSIS, 1997aASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997a [1904]. , p. 42).

A ideia de ligação da matemática com a linguagem, as duas determinando mudanças sub-reptícias e quase imperceptíveis (mágicas?) no destino, ganha uma figuração paródica, a nosso ver, com o personagem do doutor Plácido, um tipo meio espírita, meio cientista, líder de seita ou clube, que aparece no capítulo XI e desenvolve suas ideias no XIV, capítulo seguinte ao importante "A epígrafe". Misto de protolinguista e matemático esotérico (numerólogo?), Plácido "sabia muito bem o valor dos números, a significação dos gestos não só visíveis mas invisíveis, a estatística da eternidade, a divisibilidade do infinito" (ASSIS, 1997aASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997a [1904]. , p. 164). Intérprete dos acontecimentos com base numa estranha teoria estético-numérica-linguística, Plácido é mais um dos objetos a causar dissidência entre os discípulos, além de ser personagem análogo à cabocla do início.

Em "Pílades e Orestes", a aparente simetria entre os amigos acaba se mostrando uma dissimetria pronunciada, pendendo para o lado de Gonçalves. Arrisquemos uma comparação: o sutil olhar do narrador do conto corresponderia ao do conselheiro, narrador dos dois romances subsequentes de Machado, Esaú e Jacó e Memorial de Aires . Como o conselheiro, o narrador do conto vai captando mudanças quase imperceptíveis nas brechas do cotidiano dos personagens ao redor, como um "oráculo em tempo real" que acompanhasse as minúcias dos acontecimentos individuais e coletivos, amorosos e políticos. Se no romance o narrador se centrará, primeiro, nos irmãos e, em seguida, em Flora, no conto ele concentra-se exclusivamente nas "cautelas e pensamentos" de Quintanilha, que acaba exagerando nos "carinhos" para com o outro – a ponto de levantar suspeitas de homossexualidade, como já indicado. A frase em que afinal se nomeia o mito reúne os dois níveis de leitura que Machado parece querer construir, o do leitor comum e o do curioso e perscrutador: "A união dos dous era tal que uma senhora chamava-lhes os 'casadinhos de fresco', e um letrado, Pílades e Orestes" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 96). A sequência faz pensar no conto como um jogo de pistas escondidas, que só aquele perscrutador é capaz de apreender de forma mais ampla, um jogo que exige decisões de sentido:

Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma cousa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. […] Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dous e três dias

(ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 96-97).

Juntem-se as palavras "lágrimas", "ternura úmida", "sensível", "acender-lhe", "pancadinha no… ventre", "acentuar a intimidade" e "derretê-lo", e tem-se o eco do sentido de "casadinhos de fresco", sem que nada tenha sido dito explicitamente.

O que vai ficando claro é que Quintanilha se anula diante de Gonçalves – assim como Pílades surge mudo e subserviente a Orestes na Electra de Sófocles ou Olivier e Félix engolem palavras não ditas em "Os dois amigos de Bourbonne". "Cautelas e pensamentos", no caso de Quintanilha, significam um zelo desproporcional, que trai sua fragilidade (dir-se-ia de matiz feminina) e mesmo sua infelicidade, posto que o indivíduo nele parece querer se anular. Em outras palavras, é Quintanilha e sua subjetividade o eixo da narrativa até seu desfecho, quando, afinal, notamos o fundo da subjetividade de Gonçalves. A de Quintanilha define-se por uma carinhosa submissão ao amigo, que ele não percebe e de que o leitor só vai se inteirando aos poucos. A sequência de fatos que torna isso patente inclui a bronca que recebe ao mostrar o quadro com o retrato dos dois, que encomendara, e a aceitação do pagamento de juros relacionados ao empréstimo ao amigo, quando este o constrange a tal. A interrupção dessa sequência de "provas" (nosso Quintanilha sendo um réu do julgamento do leitor, mas não dele mesmo, como o é Bento Santiago, o protagonista e narrador de Dom Casmurro ) parece concorrer para que o leitor adie seu diagnóstico. Como se perceberá depois, tais pequenos fatos não tinham como revelar a posição patética de Quintanilha por um motivo: nenhum deles mexia na própria relação simbiótica e sem autorreflexão que eles mantinham.

A ideia da falta de autorreflexão remete-nos, de novo, ao conto de Diderot ( 2002 DIDEROT, Denis. Les deux amis de Bourbonne. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 158, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/diderot-contes.pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
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, p. 5, tradução nossa), no qual os protagonistas também se pautam pelo não-dito: "Cem vezes Félix tirou Olivier de aventuras desagradáveis a que seu caráter impetuoso o conduzira; e nunca este último pensara em agradecê-lo por isso; eles voltavam juntos para casa, sem se falar, ou falando de outra coisa". Perguntados, eles sempre falavam do que o outro lhe fizera, nunca de si mesmos – outra forma de remeter a amizade ao silêncio preservador da "bolha" ou da servidão ao outro. Ao final do conto, num procedimento bem ao estilo de Diderot, surgem alguns anexos à narrativa, simulando uma carta do cura Papin, um bilhete de Madame **** e um arrazoado final do narrador, com direito a uma breve teoria do romance e a uma filosofia ética da amizade dos que nada possuem – e que portanto só têm para trocar a própria amizade.

O mesmo narrador, no início do conto apontara esse tipo de amizade como "animal e doméstica", em oposição à amizade "refletida", que necessita de reciprocidade consciente, ou seja, da avaliação de correspondência entre as ações amicais. Note-se que uma visão materialista e, pelo menos em intenção, pouco idealizada impõe a ideia de que deve haver reciprocidade ou igualdade de entrega de ambas as partes. E, no entanto, sabe-se que o afeto e o amor, na espécie humana, podem muitas vezes ganhar ares de transbordamento – pense-se numa mãe em relação ao filho, pense-se no amor romântico que, para a geração de Diderot (como se sabe, a mesma de seu amigo Rousseau), começava a ganhar os contornos que o Ocidente lhe dará. Vai ficando claro ao longo do conto que a amizade "animal" ou "dos que nada têm" impõe um nível de exclusividade: é um amor incondicional que cria um espaço de não intervenção das pressões da realidade circundante – mas que exige uma fidelidade, interna à "bolha" ali criada, e qualquer intromissão da realidade deve se submeter à lógica da amizade sentida como inabordável (nos dois sentidos: não se consegue falar a respeito – é animal – e não se consegue intervir ou tocar em seu núcleo duro).

Prisões, brigas, ações fora da lei, assassinatos, fugas de um cadafalso: o conto de Diderot tem um enredo aventuresco em que nem o choque corporal, nem a intervenção da lei têm força diante da amizade de dois homens simples tornados verdadeiros bandidos (e a carta do cura Papin tenta nos convencer de que eles nunca seriam modelo ético para nada, perante a Igreja – eis Diderot jogando com as várias leituras, inclusive a moralista). Mas, ao escrever "Os dois amigos de Bourbonne", Diderot jogava também em outro nível: o conto é uma resposta impertinente – porque crítica –, mas sutil a "Os dois amigos: conto iroquês" ["Les deux amis: conte iroquois"], 3 3 O povo iroquês habitava a costa atlântica da América do Norte, até a região dos lagos. de Saint-Lambert (1716-1803), um nobre militar que fazia sucesso entre as damas da corte e de quem Voltaire gostava como poeta, mas cujo talento literário, vazado de sentimentalismo, foi atacado por muitos nos círculos da Paris e da Londres da época.

O conto centra-se na amizade de Tolho e Mouza, jovens iroqueses ainda entrando na sexualidade adulta (18 anos). Misturam-se formação afetiva, mas também erótica, na senda de romances de libertinagem, com a exploração de outras terras e outros costumes, típica dos contos filosóficos. Em rituais de sua crença, perante o Grande Espírito, Tolho e Mouza fazem, um do outro, manitus [ manitous ] – ou seja, objetos sagrados prontos a salvá-los de situações de perigo. Mas surge Erimê (Érimé, no original), a moça que trará a cizânia, a partir da paixão triangular – entre os iroqueses, diz o narrador, a castidade dos homens é valorizada, enquanto as mulheres disputam os melhores guerreiros. A trama, recheada com um bucolismo sentimental que será explorado no pior romantismo que o fim do século preparava, deságua numa disputa triangular de tom sensible ou mesmo larmoyant [lacrimejante] (para citar uma expressão da época, ligada à narrativa sentimental): pruridos éticos ligados à amizade oprimem subjetivamente os protagonistas, que acabam se ajeitando (aliás, como os personagens do romance sentimental e protorromântico talvez mais influente do século, Júlia ou A nova Heloísa , de Rousseau, de 1761) num trio que admite se amar mutuamente.

O interessante em relação ao falar e ao calar, como vínhamos destacando, é que os selvagens são primeiro descritos como aqueles que não precisam falar para transmitir o que sentem, mas ao longo do conto surge a mesma verborragia que marca o romance único de Rousseau e que tem um sentido geral de demonstrar a "verdade do coração" transbordando para a linguagem, bem como articular uma nova semântica da subjetividade apaixonada, que hipnotizava o leitor da época (e o sabemos por conta da própria fama de Rousseau como uma espécie de farol moral e afetivo para um imenso número de leitores da época, Europa afora). Leiamos apenas dois trechos:

Os selvagens falam pouco, porque têm poucas opiniões, e essas opiniões se repetem; mas têm um sentimento vivo e frequentemente o expressam por meio de exclamações ou gestos. Um amigo precisa revelar ao amigo [...] seus medos, as suas esperanças, o sentimento que o domina. Durante a navegação, os dois iroqueses mantiveram profundo silêncio. Finalmente Mouza olhou para Tolho com ternura e baixou os olhos e a cabeça consternado. Tolho, que encontrou o olhar de Mouza, não conseguiu manter o olhar e virou a cabeça, corando (SAINT-LAMBERT, 2002 SAINT-LAMBERT, Jean-François de. Les deux amis: conte iroquois. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 233, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Saint_Lambert_Les_deux_amis.pdf ). Acesso em: 23 dez. 2023.
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, p. 13-14, tradução nossa).

Mas ainda não foi naquele momento que pensei que poderia te amar menos; foi quando te vi, um dia antes da nossa partida, conversando com Erimê, que pegou sua mão, e você olhou para ela com olhos amorosos. Estremeci como uma jovem que vê uma serpente e a ouve sibilar; fiquei agitado, perturbado, confuso, com ciúmes do coração de Erimê e do seu. Quando saímos, pensei ter tido um vislumbre de que a mais bela garota não te amava mais do que eu, e que você ainda poderia ser metade da minha alma

(SAINT-LAMBERT, 2002 SAINT-LAMBERT, Jean-François de. Les deux amis: conte iroquois. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 233, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Saint_Lambert_Les_deux_amis.pdf ). Acesso em: 23 dez. 2023.
https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Sai...
, p. 20, tradução nossa).

Note-se o esforço do índio – efeminizado e debruçado com atenção e intensidade sobre a questão do ciúme – em falar "tudo o que sentia", como se fosse possível tudo falar... Ressalte-se, portanto: ao contrário dos contos de Diderot e de Machado, o de Saint-Lambert traz várias linhas de confissões (título da famosa autobiografia de Rousseau) amorosas, que se tornaram a marca do conto e do romance sentimental e romântico. Trata-se de uma retórica do transbordamento, com uma nova codificação dos modos como se deveria não apenas falar do amor, mas também atentar, a cada momento, para os altos e baixos do sentimento – como faz Saint-Preux na Nova Heloísa .

O conto de Diderot, além da concisão da narrativa e do silêncio de fidelidade entre os amigos, tem momentos também larmoyants , mas numa extensão menor. E, no seu final, os textos que o narrador anexa, incluindo sua miniteoria do romance, servem para tornar o conto muito mais reflexivo e menos empático e sentimental. Essa teoria divide em três categorias os modos de narrar da época: haveria o "conto maravilhoso", à moda de Homero, de Virgílio ou de Tasso (portanto, épico); o "conto agradável" ( plaisant ), de La Fontaine a Ariosto (fábulas ou sátiras leves); e, por fim, "o conto histórico", de Scarron ou Cervantes, diz o narrador. Nota-se, na teoria, a sequência do menos para o mais verossímil, até costear o que a modernidade chamaria de "realismo" (herdeiros do picaresco espanhol, como os citados Scarron e Cervantes, já eram considerados os criadores de uma narrativa próxima ao baixo e concreto, aos costumes e ao cotidiano).

Diderot contrapõe a idealização e a abstração do cura Papin e sua postura beata e moralizante à ideia de uma amizade só verdadeira se sentida e mantida por aqueles que nada possuem – mas que para Papin são ímpios e não merecem servir de modelo de amizade. Há claro conflito de um membro da Igreja diante dos pobres, que Diderot, provocativamente, quer trazer à baila. Mas o que interessa na comparação com "Pílades e Orestes" é que a base da relação entre Olivier e Félix é o não-dizer, além dos ímpetos e dos temperamentos: ambos são tão abnegados na amizade mútua quanto podem ser violentos ao defendê-la ou ao defender um ao outro da violência e da injustiça do mundo circundante, que ameaça a "bolha", bem murada, da amizade. Quanto à vida amorosa com a inclusão das mulheres naquele mundo exclusivista, "Os dois amigos de Bourbonne" parece mesmo um conto sentimental – e sabemos como Diderot ambicionou dominar também a narrativa sentimental, mesmo que com laivos, discretos ou não, de erotismo, já que foi autor do romance A religiosa .

Em "Pílades e Orestes", as questões monetárias e testamentais relacionam – como costuma acontecer com Machado – o mundo reduzido e protegido da amizade incondicional (apenas para Quintanilha, como ficará claro no final do conto) com o mundo concreto, que é também o mundo dos interesses. O interesse único, aqui, é manter a "bolha" da amizade. O cenário só muda de fato quando surge Camila, a bela "prima segunda" de Quintanilha. Aqui, retorna sutilmente o mito grego estampado no título: depois de matar a mãe e o amante desta, o frio Orestes casará com a prima, Hermíone, filha de Menelau. Camila toca piano – assim como a Flora de Esaú e Jacó e a Fidélia de Memorial de Aires – e é de um recato que aguça a curiosidade de Quintanilha. Outra vez, como no caso do amigo, há algo de feminino, mas também de infantil em jogo: se Quintanilha é apresentado pelo narrador como tendo a afetividade de um pai em relação a Gonçalves, não apenas sua compleição física ("[...] o primeiro era baixo e moreno, o segundo [Gonçalves] alto e claro [...]", lê-se no início do conto), mas também seu comportamento é de submissão, submissão feminina e infantilizada, já que muda: ele não consegue revelar seu amor, mantém-se no limbo da idealização. Se infante em latim é "aquele que não fala", o "incapaz de falar", tanto Camila como o próprio Quintanilha são flagrados nessa posição, por razões diferentes; já o mutismo seguro de Gonçalves, em especial por conta do final da narrativa, surge como uma opção calculada, uma postura adulta e masculina de objetividade – não uma incapacidade.

Se Camila pousava seus "olhos mortais" em Quintanilha "[...] como as crianças que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai [...]", a "afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor", e ele "[...] quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 99). Tal engolir das palavras será decisivo, e o próprio narrador o indica: "Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha". Ao contar a Gonçalves, é esse que pratica o mutismo, mesmo quando

Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente que o outro mal a pôde ouvir:

– Não me pergunte nada; faça o que quiser.

– Gonçalves, que é isso?, perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado

(ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 100).

Note-se que, pronto a ouvir e aceitar um ríspido "é asneira!" do amigo, Quintanilha simplesmente fica desnorteado quando o outro, em vez de indicar a direção do desejo para o polo submisso da dupla, deixa-o livre para escolher como agir – e o desnorteamento culminará no fim trágico para Quintanilha.

Logo se revela que a causa profunda que leva Quintanilha a tal estado é a contenção da fala do outro, o que remete, mais uma vez, para o privilégio da palavra por parte de Gonçalves e, portanto, para seu domínio (também verbal). O trecho é claro: "Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota , crédulo , paspalhão , e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma cousa que pegava com o respeito" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 100). O atordoamento diante do vazio de sentido que Gonçalves insiste em lhe oferecer é o único fato que leva Quintanilha a suplantar sua cegueira em relação ao protegido mundinho exclusivo da dupla de amigos, pelo menos por instantes: ele percebe o interesse do outro por Camila.

Assim como Flora e os gêmeos em Esaú e Jacó , Quintanilha mantém a vagueza de sua atração por Camila ao não lhe revelar seu amor; a menina, do mesmo modo, não emite sinais convincentes de que se sente atraída. Ambos parecem manter-se em limbo amoroso, mas por motivos diferentes: ela é criança, de fato; ele o é por deficiência de caráter – Freud diria: neurose. A agonia confirma suas limitações psicológicas, mais explícitas do que as de um Bentinho: o excesso de cautela e de pensamentos sempre o enreda num impasse de zelosa atenção ao que Gonçalves deseja, em patente incapacidade de impor o que quer – nem a si mesmo. O fundo de sua condição torna-se cristalino quando surge uma questão tão fundamental quanto a atração amorosa. E o muro de autoimpedimentos só se desfaz no sonho, em que Gonçalves surge com seu estilo de usar patéticos chamamentos qualificativos: "Infame [...], por que me vens tirar a noiva de meu coração [...]?" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 101) A cena onírica do coração do amigo na própria boca só reforça o traço que mais diferirá dos dois últimos romances de Machado: um patético bem dosado, que retorna no final e que se deixara flagrar como pista machadiana no trecho:

Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser apático

(ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 97).

Tal traço se explica pelo próprio perfil psicológico de Quintanilha, centro da trama: era homem de uma forte paixão, pelo amigo, que sublimava suas outras ações possíveis no mundo: não trabalhava, vivia de renda, uma opção, aliás, decidida pelo próprio Gonçalves, e que permitia o isolamento em relação à família, para a manutenção da "bolha" daquela amizade. Afunilando todo seu estar-no-mundo na direção da amizade, esta se torna incondicional, simbiótica, e seus desejos são anulados ou sublimados para que brilhem os de Gonçalves – mas os desejos reprimidos irrompem em momentos involuntários, como no caso de gargalhadas que lhe escapavam ou em sonho. O coração do amigo na boca, entupindo-lhe e impedindo que ele lhe contraponha qualquer palavra, é uma imagem que inclui o símbolo da verdade rousseauniana com o da palavra represada…

No nível formal, a palavra também se mostra represada: uma espécie de dizer ocultando nos faz presumir que estamos diante de uma amizade completamente igualitária, "selvagem" ou "animal e doméstica", no sentido de Saint-Lambert e de Diderot – ou seja, que, vindo da infância, é incondicional e mesmo inconsciente em sua falta de limites de entrega mútua, o que impediria o final do conto. O próprio título já despista o leitor, pois, como vimos, fica o tempo todo ambíguo quem seria Pílades e quem, Orestes. E mesmo no trecho que acabamos de analisar as palavras represadas do diálogo não enganam só Quintanilha, pois, se destacamos a fragilidade deste diante de um suposto maquiavelismo do outro, que exploraria a insegurança do amigo com seus silêncios e má vontades diante do tema Camila, a conclusão da cena nos leva a outra leitura: "– Entendo, disse Quintanilha subitamente, ela será tua./ – Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava escada abaixo […]" (ASSIS, 1997b______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906]. , p. 102).

Note-se, no trecho, que Gonçalves nem sabia que o outro falava de Camila!, eis o escândalo do trecho. Nesse ponto, retorna à mente a frase inicial, "Quintanilha engendrou Gonçalves", como um pai: em vez de fragilidade ou neurose, tem-se um desejo (paterno, mas que, como vimos, tem traços de maternidade, dada a submissão e cuidado a cada momento, e mesmo infantil, já que o mudo e firme Gonçalves é quem manda nos desejos do outro) de entrega no sentido absoluto (ou maternal) da palavra: imagina-se que uma mãe tem de desenvolver a capacidade de perceber e favorecer os desejos do filho, deixando-o florescer do jeito que se apresenta, e sem incutir seus próprios desejos de entremeio. Sabemos que isso, no limite, é impossível – e aqui está outro segredo do conto – e que o desejo, na verdade, nunca é exclusivo de ou autogerado por ninguém, mas, como mostra, por exemplo, a teoria de René Girard a partir de Freud, é da ordem da imitação: desde tenra idade, imitamos o desejo do outro (primeiro, o dos pais; depois, o dos amigos; em seguida, o das personagens famosas, da publicidade etc.), e a inveja, mas também parte do que chamamos amor é, na verdade, vontade ou necessidade de mimetizar ou misturar nossos supostos desejos com os que os outros nos apresentam. Obviamente, a modernidade criou um conceito de maturidade ou autonomia pelo qual se pode medir se o indivíduo se centra, minimamente, em seus próprios desejos ou se os aliena de si – e a psicanálise é um dos caminhos para mensurar isso. Não que a máquina mimética deixará de funcionar (pense-se que a publicidade atua sobre sujeitos supostamente autônomos…), mas guarda-se um rol de desejos a singularizar o sujeito individual em sua trajetória. Portanto, se a cena pode ser lida como exposição da subserviência neurótica de Quintanilha ou de firmeza maquiavélica de Gonçalves, na verdade, com sua conclusão, nota-se que o que Quintanilha entrega – voluntariamente! – é a própria possibilidade de autonomia de seu desejo, representada pela eventual vida a ser construída com Camila. É o ato autoanulador final de uma trajetória em que Gonçalves sequer percebeu que teve a própria vida desejante construída pelo companheiro… – e, nesse sentido, dele também não se pode dizer que erigiu sua própria autonomia. Um conto que parece ter sido escrito para louvar ou analisar a amizade na verdade acaba de nos mostrar seu maior (e talvez, em alguma medida, inescapável) perigo: qualquer entrega, amorosa ou amical, presume algum grau de autoanulação, mesmo que branda ou inconsciente.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997a [1904].
  • ______. Pílades e Orestes. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997b [1906].
  • BARROS, André Luiz. Um narrar a menos: o conselheiro no Memorial de Aires. In: ROCHA, João C. C. À roda de Machado de Assis: ficção, crônica e crítica. Chapecó: Argos, 2006. p. 271-300.
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  • DIDEROT, Denis. Les deux amis de Bourbonne. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 158, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/diderot-contes.pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
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  • FREUD, Sigmund. Estudos sobre histeria. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 2.
  • GOMES, Eugênio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958.
  • LACAN, Jacques. Le séminaire, livre V: les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998.
  • PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis. São Paulo; Brasília: Boitempo; Fundação Astrojildo Pereira, 2022.
  • SAINT-LAMBERT, Jean-François de. Les deux amis: conte iroquois. La Bibliothèque électronique du Québec. (Col. À tous les vents, v. 233, versão 1.01). Edição virtual de: Les deux amis de Bourbonne et autres contes. Paris: Gallimard, 2002. Disponível em: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Saint_Lambert_Les_deux_amis.pdf ). Acesso em: 23 dez. 2023.
    » https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Saint_Lambert_Les_deux_amis.pdf
  • 1
    OTratamos da questão da contenção e mesmo da subtração verbal típica do narrador de Machado de Assis no ensaio "Um narrar a menos: o conselheiro no Memorial de Aires " (BARROS, 2006BARROS, André Luiz. Um narrar a menos: o conselheiro no Memorial de Aires. In: ROCHA, João C. C. À roda de Machado de Assis: ficção, crônica e crítica. Chapecó: Argos, 2006. p. 271-300. ).
  • 2
    Ver nota 1, acima.
  • 3
    O povo iroquês habitava a costa atlântica da América do Norte, até a região dos lagos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2024
  • Aceito
    29 Abr 2024
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