Resumo
Ao longo da história, a ética médica assumiu diferentes perspectivas. Na atualidade, parece haver indiscutível supremacia do entendimento de que a ética normativa é aquela que melhor atende às necessidades da relação de profissionais da medicina com seus pacientes. Nesse contexto, esta pesquisa buscou investigar como a ética das virtudes pode contribuir para que a deontologia médica possa ser eficaz e virtuosa com vistas ao bem do paciente. Para buscar essa compreensão, realizou-se pesquisa bibliográfica de caráter teórico-conceitual narrativa e crítica. A hipótese levantada é de que, embora a deontologia seja o guia mais aceito e praticado na relação do profissional com o paciente, se não for acompanhada de uma ética das virtudes para orientar a ação médica, não há garantias de que o mero cumprimento da regra seja virtuoso no que tange ao bem do paciente.
Palavras-chave:
Ética médica; Virtudes; Teoria ética
Abstract
Throughout history, medical ethics has taken on different perspectives. Nowadays, the indisputable understanding seems to be that of the supremacy of normative ethics as the one that best meets the needs of the relationship between medical professionals and their patients. Given this context, this investigation sought to understand how the ethics of virtues can contribute so that medical deontology can be effective and virtuous targeting the well-being of patients. To seek this understanding, a bibliographic search of narrative and critical theoretical-conceptual character was carried out. The hypothesis is that although deontology is the most accepted and practiced guide in the professional-patient relationship, if it is not accompanied by an ethics of virtue to guide medical action, there is no guarantee that the mere fulfillment of the rule is virtuous with regard to the patient's well-being.
Keywords:
Ethics, medical; Virtues; Ethical theory
Resumen
La ética médica adoptó diferentes perspectivas a lo largo de la historia. Parece existir actualmente una indiscutible supremacía de que la ética normativa es la que mejor responde a las necesidades de los profesionales médicos y sus pacientes. Por tanto, esta investigación buscó evaluar las posibles contribuciones de la ética de las virtudes para que la deontología médica pueda ser eficaz y virtuosa con vistas al bien del paciente. Para comprenderla, se realizó una investigación bibliográfica teórica-conceptual narrativa y crítica. Se partió de la hipótesis de que cuando la deontología, a pesar de ser la guía más aceptada y practicada en la relación del profesional con el paciente, no va acompañada de una ética de las virtudes destinada a guiar la conducta médica, no está garantizado que el mero cumplimiento de las reglas la haga virtuosa con respecto al bien del paciente.
Palabras clave:
Ética médica; Virtudes; Teoría ética
A formação do profissional de saúde, em especial do médico, tem priorizado a capacitação e a formação relacionadas a aspectos técnicos e científicos. Assim, a falta de formação em questões éticas e bioéticas relacionadas à prática faz que o conhecimento do médico nessa área geralmente seja restrito a uma disciplina ministrada nas fases iniciais do curso de graduação. Uma vez formados, a maioria desses profissionais somente têm contato com questões éticas e bioéticas relacionadas às diretrizes do Código de Ética Médica (CEM) 11 Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, n. 211, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 13 nov 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3MbOz3i
https://bit.ly/3MbOz3i...
, sobretudo quando algum colega ou profissional médico se envolve na violação de alguns desses princípios e o ocorrido se torna de conhecimento público.
Na formação continuada de médicos, a exemplo do que ocorre em eventos científicos e congressos, em seus diferentes campos e especialidades, questões éticas e bioéticas não ocupam lugar central. Essas discussões geralmente ocorrem de modo informal, em rodas de conversa, principalmente quando há casos práticos que envolvem outros colegas.
Essa compreensão reducionista da ética e da bioética por parte de profissionais de saúde, limitada ao CEM, é bastante prejudicial, porque reforça a ideia de que a ética que deve orientar a medicina é apenas a deontológica, com suas sanções e penalidades previstas no próprio CEM. Em outras palavras, a atual estrutura acadêmica e científica reforça a cultura médica de que existe uma única abordagem ética a ser conhecida e temida: a deontologia definida pelo CEM, do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Sabe-se, no entanto, que um profissional da medicina, no exercício da profissão, enfrentará muitos problemas e dilemas éticos e bioéticos, sem que tenha obtido formação adequada para tanto, o que prejudica sua capacidade de deliberação em vista do bem do paciente 22 Neves WA Jr, Araújo LZS, Rego S. Ensino de bioética nas faculdades de medicina no Brasil. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2016 [acesso 14 jan 2022];24(1):98-107. DOI: 10.1590/1983-80422016241111
https://doi.org/10.1590/1983-80422016241...
. Nesse contexto, este artigo aponta que – tendo a medicina como télos ou fim último fazer o bem ao paciente –, conforme destaca o Juramento de Hipócrates, para alcançar esse propósito é preciso que os médicos tenham recebido uma formação que inclua questões éticas e bioéticas, indo muito além da formação deontológica limitada ao CEM.
Partiu-se da premissa de que uma formação baseada na ética das virtudes, que contribua para o caráter do médico, possibilitaria o cumprimento da ética deontológica não como instrumento coercitivo e de temor, mas como direcionamento em busca do melhor caminho para o bem do paciente. Buscou-se, também, analisar historicamente a ética médica deontológica e sua presença como guia ético exclusivo na condução do CEM em sua edição mais recente 11 Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, n. 211, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 13 nov 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3MbOz3i
https://bit.ly/3MbOz3i...
. Trata-se de reflexão de caráter teórico-conceitual a partir de revisão de literatura narrativa e crítica apoiada em textos de filosofia e ética médica.
Ética médica e suas mudanças sob uma perspectiva histórica
Durante muito tempo, a ética médica fundamentou-se no paradigma de que havia no médico uma superioridade técnica, ética e religiosa. Essa condição garantia-lhe o exercício da medicina de modo patriarcal, ou seja, além da capacidade e do saber técnico-científico, o médico tinha o poder moral de saber o que era melhor para o paciente. Ao doente restava apenas a submissão ao saber e ao poder do médico 33 Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47..
Essa superioridade dos médicos também era encontrada em outros profissionais, como políticos, juízes e sacerdotes, cada qual em seu respectivo campo de atuação, sendo uma das marcas dessas profissões não serem medidas por padrões morais comuns 44 Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010.. Já os doentes pertenciam ao corpo social comum, sendo, portanto, responsivos a uma moralidade ordinária. Assim, por serem considerados incapazes de tomar decisões sobre o que seria melhor para si, restava-lhes apenas seguir as decisões e recomendações estabelecidas pelos médicos.
Nesse contexto, Gracia lembra que, durante toda a Antiguidade e a Idade Média, a medicina foi conduzida pela ética das virtudes grega e que a virtude grega era aristocrática 55 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 47.. Atribuir-se-ia apenas ao médico a escolha do que seria benéfico, como se pode ver, a exemplo do paternalismo atinente a Hipócrates e seu juramento 66 Cairus HF, Ribeiro WA Jr. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. (Coleção História e Saúde)..
A sociedade em que Hipócrates viveu era aristocrática e profundamente influenciada pela ética das virtudes de Sócrates e Platão. Por ser anterior a Aristóteles, construiu seu Corpus hippocraticum sob os preceitos éticos dos dois filósofos mencionados e da cultura de sua época 66 Cairus HF, Ribeiro WA Jr. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. (Coleção História e Saúde).. O Juramento de Hipócrates foi um texto escrito em coordenadas muito concretas de tempo e lugar, e só aí adquire sentido 77 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 70.. Por isso, o juramento tem caráter eminentemente extrajurídico, sendo entendido como irrevogável, ao contrário de um contrato jurídico, que poderia ser revogado e dissolver-se em comum acordo de ambas as partes.
Neste sentido, desde a Antiguidade e até a baixa Idade Média e início da Idade Moderna, a responsabilidade classificada como forte ou moral somente seria aquela atinente ao médico, ao jurista e ao sacerdote, e a responsabilidade fraca ou jurídica, aquela atrelada a todas as outras atividades, chamadas de ofícios. Nesse sentido, a moral comum, fraca ou jurídica poderia ser considerada revogável à medida que, estando em comum acordo, as partes desfariam seus laços morais 33 Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47.. No entanto, a moral do médico, por seu caráter irrevogável, era uma antípoda da moral jurídica.
O Juramento de Hipócrates, marcadamente sacerdotal, foi o único norte moral da medicina durante mais de 15 séculos. Segundo o entendimento grego presente no juramento, o compromisso do médico com o doente se faz num grau de virtuosidade que o torna irrevogável, pois, se revogável fosse, a ética médica precisaria submeter-se a uma ética jurídica atinente aos demais ofícios 33 Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47.. Esse papel caracteriza-se por ter o domínio da beneficência, que era entendida como paternalismo na Grécia antiga.
A mudança desse paradigma iniciou-se de maneira mais seminal ainda na baixa Idade Média, quando estudantes se formavam nas universidades para exercer atividades que tinham o status de profissão: teologia, direito e medicina. Com o fim daquele período e o início da Modernidade, após a Revolução Francesa, a autoridade moral médica passou a ser repensada e questionada. Nessa fase, o Estado moderno solidificou-se sob o reconhecimento das leis estabelecidas, do direito de mando dessas leis e do exercício da autoridade do Estado 33 Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47..
A autoridade moral foi paulatinamente substituída pela autoridade legal e o domínio passou a se basear nas leis das quais emerge o sistema de burocratização e comando do Estado. A medicina passou a ser compreendida como atividade laborativa comum sujeita às premissas éticas de qualquer outro ofício e subordinada à deontologia das regras sociais, comerciais e jurídicas comuns a todos.
Os clássicos juramentos foram substituídos pelos códigos de ética, e a ética converteu-se em deontologia. Afirma Gracia que o mundo moderno surge quando as pessoas passam a se entender como realidades morais e não físicas 88 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 163., o que o autor classifica como crise de paradigma. Em outras palavras, a mudança do paradigma social forçou a mudança no paradigma ético da medicina.
Com o início da Modernidade e as mudanças socioeconômicas e políticas desse período, ganhou força a ideia da liberdade econômica baseada no entendimento de que cada um produz o máximo em benefício de todos 33 Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47.. Nesse modelo liberal buscava-se certo controle do Estado, submetendo a sociedade a normas éticas e jurídicas razoáveis. A diferença não se dava mais entre estado de natureza, como definido em Hobbes 99 Hobbes, T. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural; 1978., e sociedade civil, mas entre âmbito público (civil) e âmbito privado (pessoal e familiar), então se passou a valorizar mais a autonomia do que o paternalismo.
Embora as mudanças sociais, econômicas e políticas da Modernidade fossem o contexto para também se exigirem mudanças na medicina, pode-se dizer que esta, de certo modo, resistiu às mudanças da modernidade e que uma revisão mais ampla da medicina somente ocorreu no século XX.
Na década de 1970, teve início o chamado movimento de direitos dos doentes e os maus profissionais, classificados como os espiritualmente perversos 1010 Gracia D. Op. cit. 2010. p. 298., passaram a receber muitas críticas. Por outro ponto, ainda que lentamente, a relação médico-paciente, que era vertical e paternalista desde os primórdios da prática dos cuidados da saúde, passou aos poucos a se horizontalizar, assim como outras relações sociais, como de pais e filhos e patrões e empregados. Em lugar do mando paternalista, surgiu a responsabilidade compartilhada, e, aos poucos, desapareceu aquela concepção de moralidade superior e inferior 44 Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010..
A moralidade que se forma dá-se no nível público ou numa ideia de ética mínima e comum a todas as profissões e ocupações e deve ser regida pelos princípios da não maleficência e da justiça, tendo como norteador fundamental o requisito da responsabilidade jurídica. Já no nível privado, numa perspectiva de ética máxima, o princípio que deve prevalecer é o da autonomia e da beneficência. Desse modo, independentemente da ocupação, deve-se atuar sob o véu do mesmo modelo ético, respeitando a autonomia dos agentes sociais e permitindo-lhes definir o que entendem por beneficência 44 Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010..
As clássicas profissões não mais conseguiam apoiar-se no antigo paradigma paternalista e, ao mesmo tempo, tiveram dificuldade para se amoldar a um novo modelo. Essa falta de segurança de como se deve agir não raramente termina em desgaste da profissão, desmoralização e confronto entre os polos envolvidos nessa relação.
O movimento dos direitos do doente assegurou, também, a concessão ao consentimento informado. Dessa forma, o direito e a vontade do paciente também passariam a ser respeitados, garantindo o modelo liberal, em que a liberdade de escolha é compreendida como um direito. Este é garantido por lei e defendido nos tribunais, e tais normas devem ocorrer em nível público ou numa ideia de ética mínima e comum a todas as profissões 44 Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010..
Fundamentos éticos presentes no Juramento de Hipócrates
O Juramento de Hipócrates foi erigido sob o véu social, cultural e ético do mundo grego, com forte tendência paternalista e sacerdotal. Inspirado na ética das virtudes de Sócrates e Platão, o juramento, afirma Gracia, é um texto escrito em coordenadas muito concretas de tempo e lugar, e só aí adquire sentido 1111 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 71..
O modelo da ética das virtudes foi posteriormente sistematizado por Aristóteles, em especial a partir de sua obra Ética a Nicômaco. Na visão da sociedade grega e nas bases culturais sobre as quais se erigiu toda a filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, os indivíduos jamais seriam considerados iguais entre si. As diferenças entre eles eram aceitas como naturais na physis, e por meio delas inúmeras atividades humanas seriam realizadas nos mais diferentes graus de importância e complexidade 1212 Dall'Agnol D. Ética. Florianópolis: UFSC; 2014..
No escopo em que Hipócrates redigiu o juramento, o médico (…) se compromete a uma responsabilidade forte, daí um caráter sacerdotal 1313 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 72., com uma entrega total, absoluta e perpétua. Ou seja, uma entrega como a esperada dos pais aos filhos ou de um sacerdote a seus seguidores, o que caracteriza seu caráter eminentemente extrajurídico: o compromisso do juramento não é jurídico, mas sacerdotal. E este sentido sacerdotal impõe impunidade jurídica 1414 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 89..
Sendo um juramento baseado na virtude (areté), sua ética é majoritariamente beneficente, visto que a atitude moral do ato médico gera benefício ao paciente. Por isso, o profissional médico deve ser virtuoso ou, em termos tanto antigos quanto atuais, ter excelências morais e intelectuais. A partir do entendimento do ethos grego, é o médico que deve e pode dizer o que é bom para o paciente.
A atitude dos pacientes sustentava-se na certeza de que os médicos, por serem mais virtuosos, buscariam seu bem. Nesse sentido, identifica-se que as palavras presentes no Juramento de Hipócrates remetem a um paternalismo que impede o exercício da autonomia e da deliberação do paciente 66 Cairus HF, Ribeiro WA Jr. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. (Coleção História e Saúde)..
Ética deontológica
O conhecimento acumulado na história está expresso na forma de leis e normas a serem apreendidas, entendidas e seguidas para a vida em sociedade. Os indivíduos são conduzidos, induzidos, treinados e direcionados a seguir as normas: isso denomina-se deontologia. Até o século XVI, apesar de existirem códigos jurídicos e religiosos de viés totalmente deontológicos, a ética, quando de seu estudo filosófico, sustentava-se majoritariamente na chamada ética das virtudes, que chegou por meio da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles. Uma alternativa a esse modelo encontra-se somente em Immanuel Kant 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007., com a ética da razão, no século XVIII.
Diferentemente dos gregos, Kant buscava, sem recorrer a Deus, algum conceito que fosse comum a todos os indivíduos. Para o pensador, esse parâmetro pode ser encontrado na razão, visto que somos diferentes dos animais porque somos detentores de razão 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007.. Isto permite aceitar que todos os seres humanos têm a possibilidade de ter um arcabouço ético comum, de modo a reconhecer o que é certo de ser realizado, desde que se apoie em sua razão.
Essa especulação filosófica permite compreender que é a razão a responsável por motivar o indivíduo a mudar a abordagem mundana da vontade, deixando de encará-la como puramente sinônimo de liberdade para ser entendida como fruto de uma reflexão advinda da razão: liberdade é poder fazer tudo o que é racionalmente permitido e, assim, a razão é entendida como sinônimo de liberdade. Desse modo, para Kant 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007., a vontade passaria a ser uma vontade boa. A liberdade plena é alcançada ao agir no cumprimento do que deve ser feito, o que ocorre a partir da vontade boa, e esta, por sua vez, passa a ser condutora das ações com vistas ao cumprimento do dever.
A existência de conceitos morais – a priori, universais – como base da ética permite ao indivíduo definir o que é bom ou ruim, mesmo sem uma experiência prévia, afirma Kant 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007.. Por acreditar que os conceitos morais fazem parte da racionalidade de todos, o filósofo estabelece que o agir moral está baseado apenas na razão 1212 Dall'Agnol D. Ética. Florianópolis: UFSC; 2014.. A razão do indivíduo é o motor de sua autonomia e esta, quando movimentada pela razão, o levará às escolhas mais acertadas moralmente para si e para a coletividade em que vive. A razão humana, assim, conduzirá, de modo autônomo, o agir dos seres humanos sob a égide de máximas do dever 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007..
Kant somente consideraria alguma lei ou norma moral como máxima se esta pudesse ser testada e obter êxito perante as regras gerais da moral, definidas por ele como imperativo categórico, isto é, um mandamento da razão: age apenas segundo uma máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal 1616 Kant I. Op. cit. 2007. p. 59.. Disso decorre que, por atrelar-se ao cumprimento de leis e normas testadas e aprovadas pelo imperativo categórico, passariam a ser respeitadas racionalmente por todos os seres humanos indistintamente. Com isso, seu modelo ético classifica-se como ética deontológica.
A deontologia parte da ideia de que a lei ou a norma determina o bem ou o mal, o certo ou o errado. Ou seja, o bem e o mal não são prévios à lei moral, mas são nesta definidos, e somente a lei moral torna algo digno de ser classificado como bem ou mal.
No Ocidente, onde desde a tenra idade se entende que o certo e o errado são estabelecidos por alguma lei ou regra, não é de se surpreender que um guia bioético médico se tornasse o condutor da ética biomédica. Foi o que aconteceu com a obra de Beauchamp e Childress, de 1979, intitulada Princípios de ética biomédica 1717 Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143.. Inspirados no Relatório de Belmont (1978), de cuja equipe Beauchamp participou como membro, os autores afirmam que os princípios que devem dirigir a ética biomédica são autonomia, beneficência, não maleficência e justiça 1717 Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143..
Embora os autores não estabeleçam nenhum caráter hierárquico entre os princípios e afirmem que, em caso de conflito, é preciso analisar caso a caso, a opção teórica pelos utilitaristas, e mesmo por Kant, permite reconhecer que os princípios em defesa do indivíduo têm precedência em relação ao coletivo. Beauchamp e Childress evocam Kant: violar a autonomia de uma pessoa é tratá-la meramente como um meio, de acordo com os objetivos de outros, sem levar em conta os objetivos da própria pessoa 1717 Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143..
A não maleficência elencada por Beauchamp e Childress aproxima-se do preceito hipocrático primum non nocere, do qual se apreende não causar dano acima de tudo. Os autores entendem por beneficência (…) uma ação realizada em benefício do outro (…) o princípio da beneficência se refere à obrigação moral de agir em benefício dos outros 1818 Beauchamp TI, Childress JF. Op. cit. p. 282..
A concepção de justiça estabelecida por Beauchamp e Childress, por sua vez, contém elementos de diferentes concepções de justiça, como justiça distributiva, justiça equitativa e proporção do justo, as quais se resumem na ideia de que as pessoas devem ser tratadas de modo equitativo. Afirmam os autores que há uma situação de justiça (…) sempre que caibam às pessoas benefícios ou encargos em razão de suas propriedades ou circunstâncias particulares, como o fato de serem produtivas ou haverem sido prejudicadas pelos atos de outra pessoa 1919 Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 352..
Depois de sua sistematização, o principialismo proposto por Beauchamp e Childress rapidamente se espalhou pelo mundo todo, pois nele se reconheceu uma alternativa prática de orientação aos conflitos no campo da saúde e, em especial, na condução da prática clínica. Embora represente uma grande conquista à humanidade, conquista esta da qual não se pode abrir mão, diante da complexidade de situações e valores que envolvem a vida humana, o principialismo também se revela insuficiente em certas circunstâncias.
Engelhardt afirma que as pessoas são moralmente autônomas pois têm caráter autolegislador 2020 Engelhardt HT Jr. Fundamentos da bioética. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2008. p. 42. e, por viverem em uma sociedade pluralista e democrática, marcada pela diversidade de valores, a relação entre as pessoas – e, nesse caso, entre médico e paciente – pode não ser de amigos morais, que partilham uma mesma escala de valores, mas, sim, de estranhos morais.
No entanto, mediante a pluralidade e diversidade de valores que permeiam o mundo contemporâneo, o mero seguimento das bases propostas pelo principialismo nem sempre faz que o agir seja virtuoso. A diversidade de valores exige que profissionais da saúde sejam capazes de se perguntar: embora a orientação do modelo principialista seja esta, nesta situação, como posso ser virtuoso visando ao bem do paciente? Devo seguir a norma ou devo violar a orientação para que o bem do paciente seja alcançado?
Diferentemente do modelo principialista, em que há obrigação de se seguirem os princípios, Kant 1515 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007. considerou que o verdadeiro motor moral não era o agir por obrigação a uma lei, mas por vontade própria, o que ele chamou de agir por vontade boa. Por outro lado, não é esse enfoque filosófico do agir pelo dever que motiva a ideia de uma ética médica jurídica, pois, para o jurista, o dever não cumprido não implica uma sanção moral filosófica, mas uma coerção penal.
Essa diferenciação é marcante, pois a sociedade ainda se fundamenta na ideia de que toda ação moral está atrelada ao binômio direito/dever. A consequência do ato, qual seja, o agir corretamente (no caso, em conformidade com a Lei), não depende de nenhum valor individual ou escolha do indivíduo. Dar-se-á por uma normatização ética que está acima da opinião individual, não mais autônoma, mas heterônoma.
O Código de Ética Médica
O novo CEM (Resolução CFM 2.217/2018) 11 Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, n. 211, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 13 nov 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3MbOz3i
https://bit.ly/3MbOz3i...
trouxe o acréscimo de um novo princípio fundamental. São, no total, 26 princípios fundamentais, com 11 normas definindo os direitos do médico quando do exercício de sua profissão. Todos os 117 artigos iniciam com a expressão “é vedado ao médico”, a qual remete a uma normatização moral negativa, em que vedar se aproxima de “não permitir”. Nesse sentido, assim como em muitos outros códigos de conduta, o negativo tem mais destaque que o positivo.
Segundo Dall'Agnol, esse detalhe semântico deve-se a (…) um agir que se dê “não” como uma consequência direta das crenças e normas subordinadas ao sujeito ativo, no caso o médico, mas sim um agir coordenado por regras, lei ou normas externas ao sujeito. Isto é, um agir ético deontológico, em que se age não por convicção pessoal ou interna, mas por respeito a regras externas ao indivíduo. Aqui, poder-se-ia inferir um agir certo dentro da lei por obrigação jurídica e pelo receio da penalidade. Um agir não sustentado por convicções, mas por medo de coerção. Não por autonomia, mas por heteronomia 2121 Dall'Agnol D. Op. cit. p. 87..
Desse modo, conclui-se que o CEM, em sintonia com o objetivo que lhe compete de regular, propõe-se a ser um código de condutas deontológicas e heterônomo. Nesse sentido, o CEM não se diferencia de códigos das outras profissões, cumprindo algo muito mais coercitivo e proibitivo do que educativo.
No entanto, é nesse aspecto que esta reflexão se devolve, ou seja, não se trata de diminuir a importância do CEM ou mesmo questionar sua validade, mas mostrar que, para que o código seja cumprido de modo virtuoso, e não como mero instrumento formal, é preciso que o médico tenha também formação naquilo que é chamado de ética das virtudes. Ou seja, se o CEM se apresenta como normatização que traz muitas proibições, como algo heterônomo, a ética das virtudes permite que o agir se fundamente na ideia de que é melhor agir desse modo, porque isso é melhor para o bem do paciente. Em outras palavras, são duas perspectivas: uma proibitiva, de caráter negativo, e outra positiva, que vai ao encontro da missão da própria medicina.
Fundamentos da ética das virtudes
Nesta seção, pretende-se demonstrar como a ética das virtudes pode guiar a conduta deontológica de profissionais de saúde, tanto em sua formação como em sua prática, de modo que as decisões, embora ainda sejam tomadas com base na deontologia dos códigos, sejam as mais virtuosas possíveis. Assim, sustenta-se que, diante da diversidade de valores e do pluralismo moral dos tempos atuais, além de cumprir os deveres da deontologia, também é preciso buscar agir considerando o universo de valores de cada indivíduo. Desse modo, o bem realizado não deve ser compreendido no sentido de que se cumpriu com o dever da deontologia, mas, sim, como um dever moral da profissão.
A ética da virtude proposta por Aristóteles, embora não defendesse uma igualdade entre as pessoas, não impedia que virtuosidade moral fosse ensinada pelo hábito e para todos e que fosse aprimorada e aprendida 1212 Dall'Agnol D. Ética. Florianópolis: UFSC; 2014.. Afirmava o filósofo que somente uma vida virtuosa é que poderia tornar o indivíduo feliz. Ao estabelecer a distinção entre virtudes intelectuais e morais, Aristóteles afirma que as primeiras são ensinadas, ao passo que as segundas são adquiridas pelo hábito 2222 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Poética. 4ᵃ ed. São Paulo: Nova Cultural; 1991. (Coleção Os Pensadores).
Ao problematizar a questão da ética das virtudes à medicina, Pellegrino e Thomasma afirmam que a ética das virtudes é mais necessária à medicina que a ética deontológica. De acordo com os autores, [a medicina] é em si mesma um exercício de sabedoria prática – um modo correto de agir, em circunstâncias difíceis e incertas, na busca de um fim específico, isto é, o bem de uma pessoa particular que está doente. É quando a escolha de uma ação boa e correta se torna difícil, quando as tentações do autointeresse são mais fortes, quando nuances inesperadas do bem e do mal surgem, e quando ninguém está olhando, que as diferenças entre uma ética baseada na virtude e uma ética baseada na lei e/ou no dever podem ser claramente distinguidas 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122..
Tendo como referência os quatro princípios propostos por Beauchamp e Childress, Pellegrino e Thomasma 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122. opõem-se à ideia de que não há uma hierarquia dos princípios e estabelecem a beneficência como princípio primeiro e maior. Sustentam os autores que apenas seguindo a beneficência se alcançará o fim maior da profissão médica, ou seja, fazer o bem. Segundo eles, existem níveis de beneficência, e esta pode ser entendida como muito mais que uma não maleficência.
Para os autores, a beneficência é o princípio ético que encoraja o médico a acionar seus comprometimentos morais e apoio pessoal aos pacientes, ao invés de respeitar somente seus direitos 2424 Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 43.. Seguem eles afirmando que, apesar de as virtudes não terem valor por si próprias, elas têm valor instrumental, pois os médicos mais virtuosos seguirão melhor as regras.
Reforçando essa ideia, Petry afirma: (…) entretanto, pode-se argumentar que as virtudes no principialismo não somente reforçam a prática a partir dos princípios, mas, muitas vezes, constituem-se na condição para a aplicação correta deles, dada a variedade de circunstâncias que podem ocorrer e porque os princípios não são capazes de fornecer uma diretriz clara a ser seguida, cabendo ao agente julgar o que deve ser feito. Nesse caso, por exemplo, seria necessária a virtude do discernimento 2525 Petry FB. Princípios ou virtudes na bioética? Controvérsia [Internet]. 2005 [acesso 14 nov 2021];1(1):49-65. p. 65. Disponível: https://bit.ly/3efMwzY
https://bit.ly/3efMwzY...
.
Em sua obra, Pellegrino e Thomasma 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122. oferecem o que chamam de uma melhor solução ao debate entre kantismo e utilitarismo, afirmando que o valor primordial em medicina é o bem do paciente, e isso não é totalmente representado pela tradição deontológica nem pela utilitarista. Contrapondo-se à tradição kantiana e sua eleição da supremacia da autonomia, os autores destacam que, apesar de concordarem que a liberdade é importante em uma sociedade pluralista, esta não pode ser vista como condição maior da moralidade.
Ao tratar da concepção de autonomia, os autores afirmam que, para Aristóteles, a ética é parte da política e a autonomia é como um presente dado de um para o outro com vistas ao bem comum. Assim, a autonomia nos impõe pelo menos duas obrigações: nos obrigar a usar nossa liberdade ao determinar o que devemos fazer, e obrigar a usar nossa liberdade para a promoção do bem social e a maximização do bem de seus pares 2626 Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 55..
Ao tratar da beneficência baseada na confiança, Pellegrino e Thomasma lembram que há um contrato fiduciário nas relações médico-paciente, apoiado exclusivamente na confiança, e reforçam que uma ética das regras não fornece garantias de que suas regras serão cumpridas 2727 Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 63-64.. A confiança deve emergir da beneficência. Somente numa relação assim apoiada na beneficência, tanto médico quanto paciente mantêm confiança entre si na busca dos melhores interesses advindos desse relacionamento.
Ao tratar do bem, Pellegrino e Thomasma 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122. reforçam a ideia de que o bem do paciente é o motor primordial e mais antigo associado à medicina. E, ao definir o que é o bem do paciente, os autores recorrem à tradição aristotélica, segundo a qual o bem é intrínseco às coisas boas e estas, por sua vez, devem fomentar o engrandecimento do ser humano. Além disso, embora o bem possa adquirir diferentes sentidos, da parte do paciente o bem é o que ele busca possuir, e da parte do médico, significa cumprir seu dever de fazer sempre o melhor para o paciente.
Assim, o bem gerador de benevolência é fundamentalmente diferente da benevolência paternalista atrelada a Hipócrates. Conforme Pellegrino e Thomasma 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122., o profissional da medicina deve buscar não somente aquilo que se pode chamar de bem médico, mas, também, o bem do paciente. Desse modo, fica evidente que a benevolência contemporânea considera que o bem aferido à atitude do médico em atuar tecnicamente na busca da cura deve ser complementado pela compreensão de bem do próprio paciente, considerando seus interesses e, sobretudo, suas crenças e sua escala de valores.
Afirmam os autores 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122. que o bem supremo deve ser o ponto de partida do raciocínio moral de uma pessoa, e esse bem é composto de quatro componentes. São eles, em ordem decrescente: 1) o bem último, o télos da vida, como concebida pelo paciente; 2) o bem que se baseia na capacidade de o paciente raciocinar e escolher; 3) os melhores interesses do paciente; e 4) o bem biomédico ou clínico 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122..
Ao tratar do bom profissional da medicina, Pellegrino e Thomasma distinguem a benevolência da beneficência. Para os autores, a benevolência consiste em desejar o bem do paciente, ao passo que a beneficência consiste em fazer o bem. Desse modo, uma pessoa que faz a coisa certa e boa relaciona o fazer o bem ao respeito aos direitos inerentes do outro ser humano e ao reconhecimento dos deveres e obrigações. Reforçam os autores que apenas a virtude do médico seria uma garantia definitiva de que o bem do paciente será respeitado e desejado 2323 Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122..
Assim, do médico virtuoso se espera confiantemente que professe o correto e o bem intrínseco a sua prática, pois a virtude está vinculada à disposição de fazer o bem, este que é o fim último da medicina. Em contraponto àqueles que argumentam que o verdadeiro bem ao paciente está limitado à correta aplicação do conhecimento médico, os autores lembram que o fim imediato da medicina não é simplesmente o desempenho técnico proficiente, mas o uso deste desempenho para alcançar um bom fim, o bem do paciente 2828 Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 139.. É o bem do paciente que contempla seu projeto de vida, suas crenças, seus valores e sua visão de mundo.
A necessidade da ética das virtudes é reconhecida por Beauchamp e Childress 1717 Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143. quando estes apresentam as bases do principialismo. Para os autores, sem uma ética das virtudes, há maior dificuldade de alcançar o télos das atividades biomédicas de fazer o bem. E acrescentam os autores que somente atuando na busca do bem o sujeito agirá de acordo com normativas dadas por alguma deontologia.
Desse modo, afirma-se que ser virtuoso não significa agir com base na virtude tal como entendida pelos gregos, mas, sim, reconhecendo que o paciente é portador de uma moralidade, de uma visão de mundo e de valores que precisam ser respeitados. Ou, nas palavras de Beauchamp e Childress: a moralidade, sem traços de caráter, reações emocionais e ideais maiores que os princípios e regras, seria fria e sem entusiasmo 2929 Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 495..
A complexidade de interesses e situações que envolvem a relação médico-paciente faz que alguns médicos adotem certas medidas de cautela, por meio de documentos assinados em conjunto por ambas as partes, o que ficou conhecido como medicina defensiva. Diante dessa realidade, Beauchamp e Childress propõem o conceito de integridade moral, atribuindo-lhe o significado de firmeza, confiabilidade, inteireza, integração de caráter moral. Para eles, integridade moral é um traço de caráter de uma integração coerente de valores morais justificáveis, e fidelidade a estes valores quando dos julgamentos e ações. Um aspecto vital dela é a fidelidade a normas básicas de obrigação 3030 Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 508..
As virtudes, ponderam os autores 1717 Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143., estabelecem expectativas a qualquer relacionamento humano digno, porém, na contemporaneidade, a excelência moral não é mais que um hobby ou outro projeto concernente ao próprio agente, pois a sociedade se afastou da diretriz aristotélica de uma vida admirável pela realização moral.
Considerações finais
Ao chegar ao término desta reflexão, que buscou analisar como a ética das virtudes pode contribuir para que o médico faça uso do CEM de modo virtuoso, com vistas ao bem do paciente, e não apenas como um instrumento jurídico de defesa do médico, conclui-se que a falta de uma formação acadêmica e continuada dos médicos, relacionada ao mundo dos valores, incapacita esses profissionais a avaliar a essência da própria profissão e, consequentemente, de seu agir.
A lógica da sociedade atual fundamenta-se no que se pode chamar da era dos direitos. Desse modo, se na história passada da medicina o paciente não tinha direitos, pois o médico era quem detinha o saber técnico, científico, moral e religioso, na atualidade o paciente tem o direito de ser informado e esclarecido adequadamente sobre sua doença, de escolher o tratamento a que deseja ser submetido, de ser respeitado por sua religiosidade e pela escala de valores que orientam sua vida.
Esses dois contextos, isto é, a inadequada formação médica ao mundo dos valores e a era dos direitos do paciente, geram situações conflitantes e de desconfiança na relação médico-paciente. Da parte do médico, há o receio de que seu paciente venha a processá-lo juridicamente por algum procedimento que julgou como inadequado; e da parte do paciente, há o receio de que o médico não tenha agido buscando seu bem, mas por interesses pessoais, econômicos ou mesmo institucionais. Para dar conta dessa desconfiança, o CEM foi instituído com o objetivo de enfatizar a missão da medicina e de proteger o paciente. Na prática, no entanto, o CEM tem sido mais utilizado como instrumento de proteção jurídica do médico do que do paciente.
Com isso, o CEM acabou por reforçar a ideia presente na medicina de que o agir virtuoso depende do seguimento de regras e normas como algo heterônomo, sem nenhuma referência aos valores individuais do profissional. Nesse sentido, diante da complexidade envolvida no mundo dos valores da atualidade, complexidade esta manifestada em cada paciente, pode-se concluir que a obediência cega dos profissionais médicos ao CEM pode representar uma atitude imoral, contrária aos ideais e à missão da medicina, embora possa ser legal.
Não se pretende, com este artigo, diminuir a necessidade e a importância do CEM, propor uma revisão de seus princípios e normas, tampouco sua suspensão, mas, sim, destacar que seu uso somente será virtuoso se os profissionais que utilizam o código também forem virtuosos. Desse modo, a ética das virtudes representa uma complementaridade, e não uma oposição.
Na obra Fundamentos de bioética, Gracia intitula seu epílogo “O médico perfeito”, afirmando que o médico só chega a ser “bom” e “perfeito” quando tiver convertido a sua virtuosidade técnica e a sua virtude moral em uma espécie de segunda natureza, num modo de vida. O médico perfeito é o médico virtuoso 3131 Gracia D. Op. cit. 2007. p. 780..
Em outro contexto, ao dar testemunho de sua atuação como professor do curso de medicina, Gracia afirma que, ao estimular seus estudantes na busca do valor intrínseco das coisas, a experiência mostrou que eles descobrem um novo mundo, coisas fundamentais, não somente para a sua atividade profissional, mas para a sua vida e para a vida. Produz-se neles uma transformação que não será possível esquecer 3232 Gracia D. Construyendo valores. Madrid: Triacastela; 2013. p. 259. Tradução livre..
O desafio, portanto, não está em melhorar o código, mas, sim, em oferecer formação qualificada no mundo dos valores, tanto na formação acadêmica quanto na formação continuada a todos os médicos, de modo que possam alcançar a excelência moral de sua profissão e, assim, que possam deliberar de modo a considerar o bem do paciente. A aquisição da excelência moral fará que ele não seja apenas um bom médico, mas, também, um médico bom.
Referências
-
1Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, n. 211, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 13 nov 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3MbOz3i
» https://bit.ly/3MbOz3i -
2Neves WA Jr, Araújo LZS, Rego S. Ensino de bioética nas faculdades de medicina no Brasil. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2016 [acesso 14 jan 2022];24(1):98-107. DOI: 10.1590/1983-80422016241111
» https://doi.org/10.1590/1983-80422016241111 -
3Gracia D. Fundamentos de bioética. 2ᵃ ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2007. p. 47.
-
4Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010.
-
5Gracia D. Op. cit. 2007. p. 47.
-
6Cairus HF, Ribeiro WA Jr. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. (Coleção História e Saúde).
-
7Gracia D. Op. cit. 2007. p. 70.
-
8Gracia D. Op. cit. 2007. p. 163.
-
9Hobbes, T. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural; 1978.
-
10Gracia D. Op. cit. 2010. p. 298.
-
11Gracia D. Op. cit. 2007. p. 71.
-
12Dall'Agnol D. Ética. Florianópolis: UFSC; 2014.
-
13Gracia D. Op. cit. 2007. p. 72.
-
14Gracia D. Op. cit. 2007. p. 89.
-
15Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 2007.
-
16Kant I. Op. cit. 2007. p. 59.
-
17Beauchamp TI, Childress JF. Princípios de ética biomédica. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2002. p. 143.
-
18Beauchamp TI, Childress JF. Op. cit. p. 282.
-
19Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 352.
-
20Engelhardt HT Jr. Fundamentos da bioética. 3ᵃ ed. São Paulo: Loyola; 2008. p. 42.
-
21Dall'Agnol D. Op. cit. p. 87.
-
22Aristóteles. Ética a Nicômaco. Poética. 4ᵃ ed. São Paulo: Nova Cultural; 1991. (Coleção Os Pensadores)
-
23Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente. São Paulo: Loyola; 2018. p. 122.
-
24Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 43.
-
25Petry FB. Princípios ou virtudes na bioética? Controvérsia [Internet]. 2005 [acesso 14 nov 2021];1(1):49-65. p. 65. Disponível: https://bit.ly/3efMwzY
» https://bit.ly/3efMwzY -
26Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 55.
-
27Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 63-64.
-
28Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. p. 139.
-
29Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 495.
-
30Beauchamp Tl, Childress JF. Op. cit. p. 508.
-
31Gracia D. Op. cit. 2007. p. 780.
-
32Gracia D. Construyendo valores. Madrid: Triacastela; 2013. p. 259. Tradução livre.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Nov 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2022
Histórico
-
Recebido
28 Mar 2022 -
Revisado
17 Ago 2022 -
Aceito
23 Ago 2022