Resumo
Este artigo apresenta uma análise crítica da obra de Tristram Engelhardt, com foco no princípio da permissão. Argumenta-se que, em contextos de intensas desigualdades sociais e negação de direitos, a aplicação da ética de procedimentos baseada apenas no princípio da permissão pode resultar na vulnerabilidade moral de indivíduos e grupos que não compartilham de determinada moralidade. Isso pode levá-los a serem expostos a diferentes formas de negação de direitos, violência, exploração, exclusão e estigmatização. Diante dessa realidade, destaca-se a importância de fortalecer uma bioética comprometida com a defesa da dignidade, da diversidade, dos direitos humanos e da justiça social.
Vulnerabilidade; Autonomia; Consentimento; Bioética; Direitos humanos
Abstract
This article presents a critical analysis of Tristram Engelhardt’s work, focusing on the principle of permission. It is argued that, in a context of intense social inequalities and denial of rights, the application of procedural ethics based solely on the principle of permission can result in the moral vulnerability of individuals and groups who do not share a certain morality. This can expose them to different forms of denial of rights, violence, exploitation, exclusion, and stigmatization. Given this reality, the importance of strengthening a bioethics committed to defending dignity, diversity, human rights, and social justice is highlighted.
Vulnerability; Autonomy; Consent; Bioethics; Human rights
Resumen
Este artículo presenta un análisis crítico de la obra de Tristram Engelhardt, centrándose en el principio de permiso. Se arguye que, en un contexto de intensas desigualdades sociales y negación de derechos, la aplicación de la ética de procedimientos basada solo en el principio de permiso puede generar vulnerabilidad moral en los individuos y grupos que no comparten cierta moralidad. Esto puede llevarlos a verse expuestos a diferentes formas de negación de derechos, violencia, explotación, exclusión y estigmatización. Ante esta realidad, se destaca la importancia de fortalecer una bioética comprometida con la defensa de la dignidad, la diversidad, los derechos humanos y la justicia social.
Vulnerabilidad; Autonomía; Consentimiento; Bioética; Derechos Humanos
O reconhecimento do pluralismo moral em sociedades seculares, nas quais se relacionam estranhos morais, é o fundamento sobre o qual Hugo Tristram Engelhardt Jr. desenvolve sua abordagem a partir do livro The foundations of bioethics , publicado originalmente em 1986 11. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics. New York: Oxford University Press; 1996. .
De acordo com Engelhardt, estranhos morais são indivíduos e grupos que não compartilham uma moralidade substantiva, isto é, não reconhecem a mesma autoridade moral a partir de valores comuns. De acordo com o autor, o único modo legítimo de estabelecer uma relação ética entre estranhos morais é por meio do princípio da permissão, uma vez que não envolveria a interferência de moralidades externas.
Para Engelhardt, num mundo secular em que a pluralidade moral é valorizada – onde podem habitar pacificamente grupos de diferentes visões religiosas, ideológicas e morais –, a busca por consensos éticos entre estranhos morais não é viável, visto que, dada a ausência de valores e autoridades morais comuns, não seria possível resolver seus conflitos por meio de argumentos racionais, ideológicos ou religiosos 22. Engelhardt HT Jr. The search for a global morality: bioethics, the culture wars and moral diversity. In: Engelhardt HT Jr, organizador. Global bioethics: the collapse of consensus. Salem: M&M Scrivener Press; 2006. p. 18-49. . Diante dessa impossibilidade, o autor propôs o princípio da permissão como um parâmetro para relações contratuais neutras, isentas de valores, entre estranhos morais, transferindo aos indivíduos – e não às moralidades externas – a autoridade moral de suas decisões.
O princípio da permissão aponta, então, que a única autoridade legítima para mediar a relação entre estranhos morais é uma forma específica de contrato baseado no consentimento, tal como sustentado na seguinte máxima: não faça aos outros aquilo que eles não fariam para eles mesmos , e faça a eles aquilo que cada um é contratado para fazer 33. Engelhardt HT Jr. Op. cit. 1996. p. 123. .
De acordo com Engelhardt, enquanto os estranhos morais não compartilham uma identidade moral, os amigos morais podem resolver conflitos éticos evocando valores ou autoridades morais comuns, por exemplo: livros sagrados, lideranças religiosas, códigos de ética profissional ou membros mais velhos de uma família. Desse modo, na relação entre amigos morais, a autoridade do princípio da permissão pode ser substituída pela própria moralidade compartilhada, enquanto na relação entre estranhos morais tal substituição é ilegítima 44. Engelhardt HT Jr, organizador. Global bioethics: the collapse of consensus. Salem: M&M Scrivener Press; 2006. .
Ou seja, segundo o autor, diante das divergências e dos dilemas morais, os estranhos morais devem resolver seus conflitos por meio de uma ética procedimental, neutra e contratual, cuja legitimidade se definirá na formalidade do acordo, e não no conteúdo moral do que é acordado.
Engelhardt destaca que estranhos morais, ainda que não compartilhem uma amizade moral, podem ser amigos afetivos. Segundo o autor: estranhos morais costumam ser efetivamente amigos. Na verdade, os indivíduos são muitas vezes casados com estranhos morais 55. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics: liberty and life with moral diversity. Reason Pap [Internet]. 1997; [acesso 6 jun 2023];22:101-8. p. 102. Disponível: https://reasonpapers.com/pdf/22/rp_22_9.pdf
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O contrário também é verdadeiro, ou seja, amigos morais podem não ser amigos afetivos. Assim, a amizade afetiva não seria uma precondição para que estranhos morais possam estabelecer um acordo baseado no princípio da permissão ou que amigos morais possam resolver conflitos a partir de valores ou autoridades comuns.
Em suas últimas produções, Engelhardt passou a considerar a existência de inimigos morais, um conceito ausente em seus primeiros escritos, caracterizando-os como aqueles que usam força malévola e/ou não consentida contra os moralmente inocentes 55. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics: liberty and life with moral diversity. Reason Pap [Internet]. 1997; [acesso 6 jun 2023];22:101-8. p. 102. Disponível: https://reasonpapers.com/pdf/22/rp_22_9.pdf
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Enquanto em boa parte de sua obra – inclusive no livro The foundations of christian bioethics 66. Engelhardt HT Jr. The foundations of christian bioethics. Salem: M&M Scrivener Press; 2000. , de 2000, no qual defende uma visão de bioética religiosa baseada no cristianismo ortodoxo – o foco de Engelhardt era a busca por condições de relações legítimas entre estranhos morais, em suas últimas produções, especialmente no livro After God: morality and ethics in a secular age 77. Engelhardt HT Jr. After God: morality and bioethics in a secular age. Yonkers: St Vladimir's Seminary Press; 2017. , de 2017, Engelhardt assume a trincheira do que chamou de uma “guerra cultural” contra a bioética secular, diante da qual não acreditava mais na possibilidade de resolver acordos.
Essa ruptura, de acordo com Engelhardt, ocorre uma vez que as diferenças entre as reivindicações morais e bioéticas dos crentes e as do estado secular são tão diferentes em conteúdo e justificativa, não há lugar para compromisso 88. Engelhardt HT Jr. After God: morality and bioethics in a secular age. Rev Bioethikos [Internet]. 2014 [acesso 6 jun 2023];8(1):80-8. p. 85. Disponível: https://saocamilo-sp.br/assets/artigo/bioethikos/155560/a7.pdf
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. Nesse sentido, segundo Engelhardt, nas últimas décadas teria se consolidado um “fundamentalismo laico” na bioética que não permitiu mais aos religiosos julgar publicamente a moralidade, ou melhor, a imoralidade do aborto, fornicação, adultério, atos homossexuais e suicídio assistido por médico 99. Engelhardt HT Jr. Op. cit. 2017. p. 59. .
Como ponto de partida da análise crítica da obra de Engelhardt, estabeleceu-se uma premissa a respeito desse aspecto problemático da relação entre estranhos morais a partir do contexto de forte polarização moral, ideológica, religiosa, étnica e cultural que atravessa o mundo. Nesse contexto, muitos grupos são desconhecidos como agentes morais dignos de interlocução ou reconhecimento de direitos de cidadania, o que inviabiliza qualquer relação ética legítima 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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Nesse sentido, se não for possível estabelecer uma ética baseada na valorização da diversidade e no convívio enriquecedor entre as diferenças, o mínimo é seguir o paradoxo da tolerância conforme proposto por Karl Popper, para quem a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da própria tolerância. Segundo Popper: se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes 1111. Popper KR. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: Itatiaia; 1974. p. 289. .
Essa premissa permite identificar as limitações do conceito de inimigos morais que Engelhardt expressou em sua reflexão tardia, uma vez que a ideia de “inimigos” pressupõe que os dois lados de um conflito moral buscam se atacar mutuamente, o que, conforme aponta o paradoxo da tolerância de Popper e o conceito de vulnerabilidade moral que será apresentado a seguir, não é sempre o caso.
Essa impossibilidade ocorre porque, nas relações de intolerância que marcam, por exemplo, a homofobia, por um lado, há o discurso intolerante, que busca anular a identidade e os direitos dos homossexuais, por outro, há a vítima da intolerância, aquele que é perseguido, violentado ou excluído por não seguir a moralidade religiosa que o condena.
O conceito de vulnerabilidade moral, tal como será utilizado neste estudo, foi apresentado na Revista Bioética por Sanches, Cunha e Mannes em 2018 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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como forma de destacar situações em que as pessoas sofrem riscos e danos devido a argumentos e julgamentos morais que são explicitamente definidos como corretos ou desejáveis e que são, muitas vezes, ainda que nem sempre, defendidos por vozes representantes do ethos dominante em determinada sociedade.
Assim, a perseguição de cristãos por dissidências islâmicas em certas regiões do Oriente Médio, a destruição de terreiros de religiões de matriz africana por certos grupos de cristãos no Brasil, além do ressurgimento da negação de direitos civis da população LGBTQIA+ e de imigrantes em países da Europa e nos Estados Unidos, são exemplos de como estranhos morais podem ser vulnerabilizados, excluídos ou estigmatizados simplesmente por diferir do padrão moral daqueles que unilateralmente os elegem como “inimigos morais”.
A vulnerabilidade moral aponta, portanto, para as situações em que indivíduos e grupos não são reconhecidos em sua dignidade e em seus direitos por discursos morais explicitamente defendidos por outros grupos, deixando de se tornar simplesmente estranhos morais para se tornar vulneráveis morais 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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Desse modo, levando em consideração a perspectiva da vulnerabilidade moral, este artigo problematiza o princípio da permissão, desenvolvido por Engelhardt, a partir da seguinte questão: é possível existir um procedimento contratual legítimo envolvendo indivíduos e grupos em que a moralidade seja a própria causa de suas vulnerabilidades?
Princípio da permissão entre estranhos morais: análise crítica
A autonomia desempenha um papel fundamental na bioética, especialmente nas correntes anglo-saxônicas. Beauchamp e Childress, em Principles of biomedical ethics 1212. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 2013. , abordam a autonomia como um dos quatro princípios orientadores para a solução de conflitos éticos na área da saúde. Eles destacam que a autonomia não deve ser vista apenas como um princípio ou valor abstrato que define um indivíduo, mas como uma garantia de que o agente moral terá suas opiniões, suas escolhas, seus valores e suas crenças respeitados. Esses autores diferenciam a autonomia como um aspecto do “ser” autônomo e da “decisão” autônoma, enfatizando a importância de considerar elementos como intencionalidade, conhecimento aprofundado dos fatos relevantes e ausência de influências ilegítimas que possam influenciar a decisão.
Engelhardt critica as proposições de Beauchamp e Childress sobre a autonomia porque eles a definem em termos de valor substantivo, isto é, plena de conteúdo moral, ao lado de outros princípios igualmente substantivos, como justiça, beneficência e não maleficência. Em contrapartida, Engelhardt defende localizar a autonomia na perspectiva da neutralidade do procedimento contratual, baseado em seu princípio da permissão 11. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics. New York: Oxford University Press; 1996. .
Conforme analisado por Lysaught 1313. Lysaught MT. And power corrupts: religion and the disciplinary matrix of bioethics. In: Guinn DE, editor. The handbook of bioethics and religion. New York: Oxford University Press; 2006. p. 93-124. , a partir das categorias de Foucault, a ética de procedimentos contratuais não se apresenta como uma moralidade neutra, mas impregnada pelos valores que compõem a realidade na qual o contrato é estabelecido. Isto é, ao requerer uma suposta neutralidade e ao naturalizar as condições em que o princípio da permissão é aplicado, esse princípio acaba por legitimar as relações de poder historicamente consolidadas no contexto. Dessa forma, sob a aparência de neutralidade, a ética procedimental baseada na permissão acaba por privilegiar um lado específico: o daqueles que detêm privilégios nas relações de poder.
Não é coincidência que Engelhardt, ao hipervalorizar a suposta neutralidade do procedimento baseado na permissão e ao naturalizar as condições objetivas em que ele é aplicado, encontre bases para justificar várias de suas defesas absolutas do livre mercado, incluindo a negação do direito ao acesso à assistência à saúde pública por parte dos estados 1414. Cândido AM, Alcântara R, Garrafa V. Secularismo, pós-modernidade e justiça na assistência à saúde em Engelhardt. Rev. bioét. (Impr.) [Internet] 2020 [acesso 6 fev 2024];28(3):471-8. DOI: 10.1590/1983-80422020283409
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e a aceitação da venda de órgãos humanos de pessoas pobres para pessoas mais ricas 1515. Engelhardt HT Jr. Giving, selling, and having taken: conflicting views of organ transfer. Indiana Health Law Rev [Internet] 2004 [acesso 6 jun 2023];1(1):31-49. Disponível: https://journals.iupui.edu/index.php/ihlr/article/view/16445
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Para entender melhor o contexto das proposições de Engelhardt, é importante considerar que o autor aborda o aprofundamento das diferenças morais a partir de dois pontos de vista opostos, possivelmente contraditórios 1616. Madrid R. La bioética de Tristram Engelhardt: entre la contradicción y la postmodernidad. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 6 fev 2024];22(3):441-7. DOI: 10.1590/1983-80422014223026
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. Por um lado, em sua obra Fundamentos de bioética 11. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics. New York: Oxford University Press; 1996. , ele sistematiza o princípio da permissão expressando uma perspectiva libertária. Por outro, em uma abordagem religiosa conservadora, ele defende uma ética substantiva baseada nos valores do cristianismo ortodoxo 44. Engelhardt HT Jr, organizador. Global bioethics: the collapse of consensus. Salem: M&M Scrivener Press; 2006. , 77. Engelhardt HT Jr. After God: morality and bioethics in a secular age. Yonkers: St Vladimir's Seminary Press; 2017. . Nessa última perspectiva, o autor focaliza especialmente o agravamento dos conflitos morais envolvendo o que ele chama de perspectiva “laicista” da bioética, a partir da qual aponta para a “guerra cultural” em curso na área.
Na perspectiva libertária, conforme anteriormente indicado, Engelhardt defende que argumentação racional com base em premissas ou valores comuns não pode resolver os debates éticos entre estranhos morais, pois seria impossível estabelecer normas ou princípios moralmente obrigatórios para todos os seres racionais sem recorrer à força ou à conversão. Essa visão é a base para a defesa de seu “mercado de ideias morais”, em que cada pessoa poderia buscar pacificamente seus próprios fins, mesmo sem compartilhar uma visão moral comum ou uma visão específica de justiça 1717. Engelhardt TH Jr. Op. cit. 2006. p. 22. .
Na obra Global bioethics: the collapse of consensus , de 2006 44. Engelhardt HT Jr, organizador. Global bioethics: the collapse of consensus. Salem: M&M Scrivener Press; 2006. , Engelhardt discute a impossibilidade de um consenso para a bioética global, assim como qualquer consenso moral universal sustentado por argumentos seculares, racionais e lógicos, devido à existência de diferentes comunidades morais ao redor do mundo que discordam e disputam a definição de premissas básicas e regras de evidência sobre questões éticas, religiosas e políticas.
Isso significa que o conflito insolúvel para a bioética global está relacionado não apenas à definição de práticas e normas morais consideradas corretas ou verdadeiras, mas também às bases da própria moralidade. É diante da impossibilidade de que estranhos morais cheguem a um acordo sobre a visão moral do “correto”, “justo”, “bem” ou “mal” que Engelhardt propõe o procedimento baseado na permissão como meio de buscar soluções, mesmo que provisórias, para a resolução de conflitos bioéticos globais.
Quanto a essas posições de Engelhardt, é fundamental enfatizar que os conflitos bioéticos, sejam eles globais ou localizados, ocorrem em contextos concretos, permeados por desigualdades materiais que determinam as posições de privilégio ou vulnerabilidade nas relações em que um acordo poderia ser alcançado 1818. Cunha T, Garrafa V. Vulnerability: a key principle for global bioethics? Cambridge Q Healthc Ethics [Internet]. 2016 [acesso 6 jun 2023];25(02):197-208. DOI: 10.1017/S096318011500050X
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Portanto, ao aplicar o princípio da permissão, é de extrema importância considerar as diversas situações e características que influenciam as posições de privilégio ou vulnerabilidade dos envolvidos, tais como escolaridade, gênero, renda, sexualidade, religião, etnia, situação econômica, entre outras. Ignorar essas realidades seria postular um exercício filosófico abstrato, sem aplicabilidade prática – ou, pior ainda, em contextos de fortes desigualdades sociais e econômicas, seria uma forma violenta de exploração ilegítima dos indivíduos e grupos em situações de diversas vulnerabilidades 1818. Cunha T, Garrafa V. Vulnerability: a key principle for global bioethics? Cambridge Q Healthc Ethics [Internet]. 2016 [acesso 6 jun 2023];25(02):197-208. DOI: 10.1017/S096318011500050X
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Além disso, conforme destacado, algumas pessoas envolvidas nos conflitos morais podem estar na situação específica de vulnerabilidade moral, na medida em que fazem parte de coletividades que determinam valores e padrões considerados adequados, corretos ou naturais, e cuja proximidade ou distanciamento desses padrões pode torná-las suscetíveis a exclusões, violências e estigmatizações 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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Nesse sentido, a suposta neutralidade do procedimento baseado exclusivamente no princípio da permissão se torna ainda mais problemática, pois é precisamente nessa dinâmica que os estranhos morais podem se tornar vulneráveis morais.
Vulnerabilidade moral em bioética: exclusão, estigmatização e violência
O termo “vulnerabilidade”, em sua origem etimológica, se refere à suscetibilidade a ferimentos, danos e sofrimento. No contexto da bioética, a vulnerabilidade se manifesta em diversas dimensões, incluindo a biológica, que destaca como certas condições físicas – como idade ou características genéticas – tornam os indivíduos suscetíveis a doenças, e a social, que enfatiza como as desigualdades presentes no contexto socioeconômico geram suscetibilidade a doenças, violência e exclusão.
Cunha e Garrafa 1818. Cunha T, Garrafa V. Vulnerability: a key principle for global bioethics? Cambridge Q Healthc Ethics [Internet]. 2016 [acesso 6 jun 2023];25(02):197-208. DOI: 10.1017/S096318011500050X
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analisaram como as ênfases em diferentes dimensões da vulnerabilidade caracterizam as perspectivas regionais da bioética. Na bioética anglo-saxã, a vulnerabilidade está relacionada à ausência de autonomia; na bioética europeia, está associada a uma dimensão existencial e ontológica dos seres vivos; nas bioéticas africanas e asiáticas, a vulnerabilidade surge a partir das ênfases em relações comunitárias e familiares, respectivamente; nas bioéticas latino-americanas, a ênfase recai na vulnerabilidade social.
Conforme indicado, a vulnerabilidade moral 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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busca destacar uma dimensão transversal da vulnerabilidade, que está relacionada à suscetibilidade ao sofrimento e ocorre na dimensão intersubjetiva da própria moralidade – ou seja, aos sofrimentos decorrentes de discursos definidores de padrões morais, culturais, teóricos, ideológicos ou religiosos que tornam aqueles que desviam desses padrões suscetíveis a diversas formas de exclusão, estigmatização ou violência.
A proposta de definição de vulnerabilidade moral foi rapidamente incorporada em diferentes estudos da bioética. Sastre e colaboradores 1919. Sastre GS, Monteiro EAS, Costa JEM, Macedo LF, Braga TLG, Bastos TR, Soeiro ACV. Sexo entre homens e vulnerabilidade moral: percepções de estudantes de medicina sobre as restrições à doação de sangue. Rev Eletrônica Acervo Saúde [Internet]. 2020 [acesso 4 jun 2023];12(10):e4512. DOI: 10.25248/reas.e4512.2020
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, por exemplo, aplicaram a vulnerabilidade moral na análise das opiniões de estudantes de medicina sobre restrições das doações de sangue por homens que fazem sexo com homens. Frutos e outros 2020. Frutos Esteban FJ, López San Segundo C, Cerezo Prieto M, Montes López E. Diversities: photoetnography, coeducation and moral vulnerability. En-Claves del Pensamiento [Internet] 2022 [acesso 4 jun 2023];16(31):1-17. DOI: 10.46530/ecdp.v0i31.505
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analisaram a vulnerabilidade moral por razões de identidade de gênero e orientação sexual no ensino superior em Salamanca, na Espanha. Alegria 2121. Alegria LA. A transmissão do vírus HIV face à tutela penal e a (im)possibilidade de atribuição à autonomia da vítima [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2020. discutiu a vulnerabilidade moral de pessoas que vivem com HIV em relações sorodiscordantes. Brotto e Rosaneli 2222. Brotto A, Rosaneli C. Vulnerabilities of family caregivers of patients with rare diseases: an integrative review. Psicol Saúde Doenças [Internet]. 2021 [acesso 6 fev 2024];22(02):659-73. DOI: 10.15309/21psd220228
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analisaram expressões da vulnerabilidade moral de familiares cuidadores de pacientes com doenças raras. Santos e Pereira 2323. Santos GO, Pereira Quina CC. Família homoafetiva, entre o afeto e os desafetos sociais: uma questão bioética. Rev Bras Bioét [Internet]. 2020 [acesso 6 fev 2024];16(e16):1-17. Disponível: https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/35312
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identificaram como a vulnerabilidade moral de famílias homoafetivas se relaciona à imposição de um modelo heteronormativo de casamento. Waltrick e colaboradores 2424. Waltrick LT, Stein F, Marinho A. Vulnerabilidade e bioética: discussões sobre o filme Um homem entre gigantes. Rev bioét (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 6 fev 2024];29(1):186-93. DOI: 10.1590/1983-80422021291458
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aplicaram o conceito na análise de vulnerabilidade de atletas em relação a temas como culto à imagem corporal, doping , assédio moral e abandono de carreira.
Diversos outros trabalhos seguem utilizando a vulnerabilidade moral como parâmetro para análise de uma variedade de conflitos bioéticos envolvendo, por exemplo, violência contra mulheres idosas 2525. Swiech LM, Renk V. The education of health professionals in coping with violence against elderly women. In: Seven Publicações, organizadora. Pathways to knowledge: exploring the horizons of education. São José dos Pinhais: Seven Publicações; 2023. p. 1-15. , acesso aos serviços de saúde por populações indígenas 2626. Honorato MM, Oliveira NP, Domingues RJS, Cremaschi RMC, Coelho FMS, Silva JAC. Princípio bioético da autonomia na atenção à saúde indígena. Rev bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 6 fev 2024];30(2):373-81. DOI: 10.1590/1983-80422022302533PT
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, populações LGBTQIA+ 2727. Alves MES, Araújo LF. Interseccionalidade, raça e sexualidade: compreensões para a velhice de negros LGBTI+. Rev Psicol IMED [Internet]. 2020 [acesso 6 fev 2024];12(2):161. DOI: 10.18256/2175-5027.2020.v12i2.3517
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, 2828. Oliveira LH, Rocha RCA, Sanches MA, Rosaneli C. Vulnerabilidades sociais e morais da população LGBTQIA+. Rev Inclusiones [Internet]. 2022 [acesso 6 fev 2024];9:223-49. Disponível: https://www.revistainclusiones.org/index.php/inclu/article/download/3398/3424
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ou pessoas que sofrem de esclerose lateral amiotrófica 2929. Torres MS, Fernández GEL. La intervención sanitaria como alternativa bioética frente a la vulnerabilidad e inequidad en salud. Convención Internacional "Cuba-Salud 2022" y Feria Comercial "Salud para Todos"; 17-21 out 2022; virtual. La Habana: Ministerio de Salud Pública de Cuba; 2022. , vulnerabilidades de crianças e adolescentes em situação de sofrimento psicológico 3030. Cardoso AMR, Lima MG, Cunha TR. Interseccionalidade de vulnerabilidades infantojuvenis na atenção em saúde mental. Rev Colomb Bioét [Internet]. 2021 [acesso 6 fev 2024];16(2):e3496. Disponível: https://www.medigraphic.com/pdfs/bioetica/rcb-2021/rcb212e.pdf
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, entre outros 3333. Naves RM. Experiência estética e posicionamento ético: a arte com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2019. , 3434. Silva RCD, Silva ABB, Alves FC, Ferreira KG, Nascimento LDV, Alves MF, Canevari CCJ. Bioethical reflections on the access of transgender individuals to public health. Rev. bioét (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 6 fev 2024];30(1):195-204. DOI: 10.1590/1983-80422022301519EN
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.
A análise dos conflitos abordados nessa variedade de publicações indica que o princípio da permissão ou o processo de consentimento aparecem frequentemente como questões secundárias. Isso ocorre porque o que está sendo violado nessas situações não é a autonomia na tomada de decisões, mas as diversas formas de exclusão, estigmatização e violência que acontecem na intersecção de vulnerabilidades, especialmente a vulnerabilidade moral.
Em muitos desses conflitos, a vulnerabilidade moral se origina de uma valoração discursiva e intersubjetiva sobre comportamentos, ideias e identidades, o que a torna menos perceptível e mais difícil de ser identificada do que outras dimensões da vulnerabilidade, como a biológica ou social.
Dessa forma, no contexto do acirramento das disputas sobre valores e visões de mundo que caracterizam o início do século XXI e do aprofundamento de desigualdades sociais no contexto da globalização econômica, o princípio da permissão de Engelhardt não só se mostra insuficiente, mas pode também gerar e manter a vulnerabilidade social e moral, na medida em que oculta e legitima as condições objetivas e subjetivas que conformam os contextos em que o suposto contrato moral é firmado.
A perspectiva da vulnerabilidade moral permite identificar como o pensamento engelhardtiano sobre pluralidade moral desconsidera que ela se concretiza de forma desigual, especialmente no exercício de direitos e no reconhecimento da própria agência moral de sujeitos e grupos em situação de vulnerabilidade. Nessa concepção, em contextos de pluralismo, a vulnerabilidade moral pode surgir como uma consequência de moralidades excludentes, discriminatórias e estigmatizantes.
Vulnerabilidade moral diante do princípio da permissão de Engelhardt
De acordo com os argumentos apresentados, em sociedades com altos níveis de desigualdade e exclusão, a adoção do consentimento como único parâmetro para a resolução de controvérsias entre estranhos morais se configura como um problema ético em si. Isso ocorre porque resulta na possibilidade de aprofundar as inúmeras formas de sofrimento de sujeitos e grupos que ocupam posições socialmente subalternas ou que não compartilham a moralidade padrão.
Esse problema do consentimento também pode ser abordado a partir de outra perspectiva: em que circunstância um sujeito ou grupo pode consentir em nome de outro? Engelhardt diferencia duas formas de consentimento: A) consentimento implícito: em que indivíduos, grupos e estados têm autoridade para proteger os inocentes da força não consentida ; e B) consentimento explícito: em que indivíduos, grupos e estados podem decidir fazer cumprir contratos ou criar direitos sociais 3535. Engelhardt HT Jr. Op. cit. 1996. p. 122. .
Tanto na situação A quanto na B, a autoridade moral pode ser usada para proteger qualquer sujeito contra atos sem seu consentimento. Contudo, conforme já indicado, o risco do consentimento e da permissão como único padrão para as relações entre estranhos morais reside no fato de que a relação entre eles só pode ser reconhecida como legítima na medida em que tanto A quanto B gozam de igualdade mínima de direitos e condições materiais, e quando são igualmente reconhecidos em sua dignidade.
Isso implica que A ou B não sejam excluídos, segregados ou negados como agentes morais por não compartilharem os valores de outras moralidades, inclusive da moralidade procedimental. Caso contrário, quando um estranho moral estiver em situação de vulnerabilidade moral, o princípio do consentimento será aplicado de forma desproporcional e ilegítima.
Nesses casos, novamente, percebe-se como a vulnerabilidade moral pode muitas vezes – embora nem sempre – estar relacionada à vulnerabilidade social, especialmente quando, por razões socioeconômicas, indivíduos e grupos em situação de miséria e pobreza são rotulados por discursos meritocráticos que os inferiorizam moralmente, considerando-os “incapazes”, “incompetentes” ou “pouco esforçados”.
Um fator complicador é que a vulnerabilidade moral é frequentemente menos explícita do que a vulnerabilidade social, que pode ser determinada objetivamente por condições socioeconômicas, enquanto a dimensão moral da vulnerabilidade, sendo intersubjetiva, muitas vezes não é sequer percebida ou reconhecida pelos próprios sujeitos que a vivenciam.
Por outro lado, essa reflexão leva a considerar que, embora a vulnerabilidade moral esteja potencialmente presente em situações de vulnerabilidade social, isso não é uma condição absolutamente necessária para sua identificação: afinal, pessoas que compartilham uma mesma realidade social privilegiada em relação às condições de emprego, moradia e renda podem estar vulneráveis por questões estritamente morais, sofrendo processos de estigmatização, discriminação e exclusão dentro de seus grupos sociais.
Nesse sentido, pode-se citar o exemplo de pesquisa na área da bioética que demonstrou como médicos e profissionais de saúde de um hospital que atendem o programa de abortamento previsto em lei no Distrito Federal sofrem processos de exclusão e estigmatização por parte de outras equipes de saúde que consideram o programa moralmente condenável 3636. Rocha WB, Silva AC, Leite SML, Cunha TR. Percepção de profissionais da saúde sobre abortamento legal. Rev. bioét (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 6 fev 2024];23(2):387-99. DOI: 10.1590/1983-80422015232077
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. Nesses casos, a estigmatização dentro de um mesmo grupo socioeconômico pode revelar uma forma específica de violação da dignidade humana, relacionada à vulnerabilidade moral.
Dignidade humana, vulnerabilidade moral e o princípio da permissão
O conceito de dignidade normalmente remete à “fórmula da humanidade” proposta por Kant na segunda proposição do imperativo categórico de sua obra Fundamentos da metafísica dos costumes 3737. Kant I. Groundwork of the metaphysics of morals. New York: Cambridge University Press; 2012. . Nessa formulação, Kant destaca o dever moral de tratar todo ser racional como um fim em si mesmo e nunca como um meio para outros fins.
Esse conceito normativo também está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos , que estabelece a dignidade humana como um valor fundamental, a partir do qual derivam diversos princípios e direitos, conforme expressa seu art. 1º: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade 3838. United Nations. Declaração Universal dos Direitos Humanos [Internet]. Geneva: United Nations; 1948 [acesso 6 fev 2024]. Disponível: https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-declaration/translations/portuguese?LangID=por
https://www.ohchr.org/en/human-rights/un...
.
Contudo, Engelhardt, coerente com sua perspectiva ética de procedimentos baseada na permissão, ou seja, aparentemente desprovida de conteúdo moral, criticou fortemente o conceito de dignidade humana e os direitos humanos, considerando-os meros slogans da moralidade secular dominante, incompatíveis com a mediação de relações entre aqueles que não compartilham dessa moralidade 3939. Engelhardt HT Jr. Bioethics critically reconsidered: living after foundations. Theor Med Bioeth [Internet]. 2012 [acesso 6 fev 2024;33(1):97-105. . Especialmente ao rejeitar os valores da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) 4040. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Unesco; 2005. , Engelhardt questionou a falta de fundamentação de seus princípios éticos e a desconsideração das divergências sobre o tema, que persistem no contexto do pluralismo moral global.
Por outro lado, na perspectiva aqui apresentada da vulnerabilidade moral, a dignidade representa um valor fundamental, uma vez que, em um sentido afirmativo, é a condição que possibilita que os sujeitos sejam reconhecidos como interlocutores legítimos nas relações entre estranhos morais, enquanto em um sentido negativo, sua violação – por meio de exclusão, violência e estigmatização – torna impossível uma genuína relação ética 1010. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 6 fev 2024];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224
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.
Ao se afastar da abordagem kantiana que relaciona o valor da dignidade à capacidade de racionalização, é possível concordar com a perspectiva de Sanches, para quem a dignidade decorre do fato de o ser humano simplesmente existir e, ao mesmo tempo, ser aceito no contexto social de sua existência. Segundo o autor, fundar a dignidade humana apenas na pessoa como autoconsciente, ou apenas no cidadão enquanto socialmente aceito, seria o mesmo que fundar a dignidade humana numa posição passível de sofrer um amplo escalonamento 4141. Sanches MA. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo: Edições Loyola; 2004. p. 102. , o que é incompatível com a ideia de igualdade intrínseca à dignidade.
Ainda de acordo Sanches, a exploração econômica de um ser humano por uma pessoa, por um sistema econômico ou mesmo por um governo, não raro, está sustentada num esquema ideológico em que a dignidade do explorado é teórica e praticamente negada ou diminuída 4141. Sanches MA. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo: Edições Loyola; 2004. p. 102. . Nesse sentido, o autor aponta para a importância de se romper os dualismos morais entre vida e consciência, entre ser humano e pessoa humana e entre existência e reconhecimento social.
A superação desses dualismos é fundamental para reduzir as manifestações de vulnerabilidade moral, especialmente no contexto do acirramento daquilo que Engelhardt chamou de “guerra cultural”. Afinal, nesse cenário, o fato de um sujeito ou grupo existir, ou ser reconhecido como ser humano, de forma alguma significa que automaticamente sua dignidade e seus direitos estarão protegidos.
Em síntese: violência, exploração econômica, desemprego, discriminação, estigmatização e exclusão são algumas das raízes que alimentam os fundamentalismos e as crescentes ondas de ódio contra minorias sociais e morais por todo o mundo. Nesse contexto, desconsiderar a dignidade como valor fundamental para a bioética ou restringi-la a determinados atributos de consciência ou reconhecimento social é determinante também para o aprofundamento da vulnerabilidade moral.
Considerações finais
Este estudo abordou criticamente a relação entre o princípio da permissão de Engelhardt e uma dimensão específica da vulnerabilidade, relacionada à negação do reconhecimento do outro como agente moral, por meio de estigmatização, exclusão e outras formas de violação de dignidade e desigualdades de direitos, opções e oportunidades.
É importante destacar que esse olhar crítico não implica desconsiderar a importância da permissão, da autonomia e do consentimento nos debates de bioética em geral, e sim busca ampliar a reflexão a partir da consideração dos contextos objetivos e subjetivos em que tais princípios se aplicam, relacionando-os ao reconhecimento/negação da dignidade e à existência de igualdade/desigualdade.
Ao responder negativamente à pergunta que orientou a análise, ou seja, ao apontar a impossibilidade de haver um procedimento contratual legítimo envolvendo indivíduos e grupos cuja moralidade é a própria causa de sua vulnerabilidade, identificamos importantes limitações do princípio da permissão de Engelhardt, especialmente nos casos em que ele pode ocultar, gerar, manter ou aprofundar vulnerabilidades, resultando em uma dimensão de vulnerabilidade moral.
Por outro lado, concordamos com Engelhardt, principalmente em suas obras iniciais, quando afirma que a existência de estranhos morais em uma sociedade pluralista não é, por si só, um problema ético. Pelo contrário, em nossa análise, a diversidade moral é um fenômeno eticamente positivo, pois expressa a riqueza de culturas, valores, religiões, ideologias e modos de vida que podem florescer nas coletividades humanas. No entanto, quando as diferenças morais resultam em formas de vulnerabilidade, surge um problema importante para a bioética. Nesses casos, torna-se imperativo analisar os contextos e procedimentos que podem contribuir para a reprodução de dinâmicas excludentes e violentas.
Por fim, concordamos com Engelhardt também no que diz respeito à problemática de estabelecer princípios e valores éticos universais fundamentados na racionalidade moderna, eurocêntrica, mas não compartilhamos das mesmas razões para sustentar essa crítica.
Enquanto Engelhardt rejeita os valores éticos universais em defesa da supremacia dos interesses individuais em detrimento dos coletivos, baseamos essa problemática na realidade concreta e na história, em que tais valores se mostraram como legitimadores de processos como colonização, escravização e imposição de padrões de desenvolvimento que vulnerabilizaram e continuam vulnerabilizando inúmeros indivíduos e grupos que não compartilham da moralidade hegemônica no contexto moderno/ocidental.
Essas considerações indicam a necessidade de desenvolver mais estudos para estabelecer a bioética não como uma ferramenta procedimental neutra, supostamente isenta de valores substantivos, mas como um campo teórico e prático comprometido com a defesa da vida, da dignidade, da diversidade, da justiça social e de outros valores relacionados à proteção dos sujeitos e grupos que estão em diversas relações de vulnerabilidade, incluindo a vulnerabilidade moral.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
8 Ago 2023 -
Revisado
10 Dez 2023 -
Aceito
8 Jan 2024