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Racismo brasileiro e ideologia do branqueamento orquestrados pela personalidade autoritária1 1 Financiamento: Fundação Araucária (FA) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Brazilian racism and the ideology of whitening served under the orders of the authoritarian personality

El racismo brasileño y la ideología del blanqueamiento vehiculados bajo las órdenes de la personalidad autoritaria

Resumo

O presente artigo buscou analisar o contexto psicossocial no qual o preconceito contra o negro se instaura e articulá-lo com a personalidade autoritária do branco, identificado com um lugar de poder, o que contribui para a manutenção do racismo no Brasil contemporâneo. Para tanto, à luz da psicanálise freudiana e da Teoria Crítica de Adorno, foi realizada uma conceituação do termo preconceito, evidenciando sua adequação diante de uma sociedade estratificada por classes. Além disso, a partir de uma breve retomada histórica sobre a relação de assimetria racial no país, que privilegia brancos e violenta negros, foram investigadas possíveis motivações que sugestionam os indivíduos a apresentarem alguns traços de personalidade autoritária que os conduzem à reprodução da discriminação racial no país. Constatou-se que aqueles que apresentam uma personalidade autoritária aderem a discursos ideológicos destituídos de reflexão crítica e razão lógica consistente, encontrando terreno fértil no racismo estrutural presente na sociedade brasileira, com conexões profundas com o poder político e econômico.

Palavras-chave:
preconceito; racismo; personalidade autoritária; psicanálise

Abstract

This article analyzes the psychosocial context in which prejudice against black people is established, and articulate it with the authoritarian personality of the white people which identifies in a position of power, contributing to the maintenance of racism in contemporary Brazil. Thus, in the light of the Psychoanalysis and the Critical Theory, a conception of the term prejudice was made, evidencing its adequacy in a stratified society. In addition, from a brief historical review of the racial asymmetry, that favors white people and subjects to violence black people, we investigated possible motivations that suggest individuals to present traits of authoritarian personality that lead to the reproduction of racism in Brazil. We observed that those who have an authoritarian personality trait have greater adherence to ideological discourses devoid of critical reflection and consistent logic, and that these discourses will find fertile ground in the structural racism present in Brazilian society, having deep connections with political and economic power.

Keywords:
prejudice; racism; authoritarian personality; psychoanalysis

Resumen

En este artículo se pretende analizar el contexto psicosocial en el que se establece el prejuicio contra el negro y articular con la personalidad autoritaria del blanco identificado con un lugar de poder, contribuyendo para el mantenimiento del racismo en el Brasil contemporáneo. Para ello, a la luz del Psicoanálisis freudiano y de la Teoría Crítica de Adorno, se realizó una conceptualización del término prejuicio, evidenciando su adecuación ante una sociedad estratificada por clases. Además, a partir de una breve reanudación histórica sobre la relación de asimetría racial en el país que privilegia blancos y violentos negros, se investigaron posibles motivaciones que sugestionan a los individuos a presentar algunos rasgos de personalidad autoritaria que los conduce a la reproducción de la discriminación racial en el país. Se encontró que quienes presentan personalidad autoritaria se adhieren a discursos ideológicos con falta de reflexión crítica y razón lógica consistente, y ellos encuentran terreno fértil en el racismo estructural presente en la sociedad brasileña, con profundas conexiones con el poder político y económico.

Palabras clave:
prejuicio; racismo; personalidad autoritaria; psicoanálisis

Introdução

Atualmente, o preconceito e a discriminação racial atravessam o Brasil, mas com outras roupagens que não mais correspondem ao do sistema escravocrata, responsável pela imigração forçada dos africanos para o país. Os filhos dos negros escravizados se tornaram trabalhadores livres, pertencentes às posições mais baixas dentro de uma sociedade de classes, apesar de o sistema de governo vigente ser aquele dito democrático, pautado na ideologia2 2 O conceito de ideologia aqui utilizado se refere à organização de opiniões, atitudes e valores sobre diversos assuntos da sociedade, como “política, economia, religião, grupos minoritários, etc.”(ADORNO, 1950/1965, p. 27). O autor explica que essas ideologias são determinadas por processos históricos, nas quais um indivíduo isolado não tem qualquer influência sobre elas, e que estas “exercem sobre cada indivíduo diferentes graus de atração, que dependem de suas necessidades à medida que estas são satisfeitas ou frustradas” (Idem, p. 27). neoliberal e em princípios da Revolução Francesa. Coimbra e Nascimento (2005COIMBRA, Cecília Maria Bouças; NASCIMENTO, Maria Lívia do. Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes: Revista de Estudios sobre Juventud, v. 22, n. 9, p. 338-355, 2005., p. 2) referem-se a essa incongruência da realidade com o discurso de igualdade, próprios do capitalismo liberal:

Segundo a lógica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres têm liberdade para oferecer e vender sua força de trabalho no mercado, desde que se mantenham no seu devido lugar, desde que não participem dessas misturas indesejáveis, mantendo-se dentro das normas vigentes, desde que, portanto, respeitem as regras impostas por uma sociedade de classes. Sociedade essa que, paradoxalmente, a partir de certos princípios defendidos por uma elite que ascende ao poder, propugna em seus discursos que os direitos humanos, políticos, econômicos, sociais e culturais são direitos de todos, produzindo-os, assim, como direitos universais através de suas famosas palavras de ordem: liberdade, igualdade e fraternidade.

Mesmo com o discurso de que se oportuniza a todos os mesmos direitos, a realidade que encontramos no Brasil evidencia uma disparidade concreta e simbólica entre negros e brancos. Isso significa que a diferença não está apenas na questão econômica, que influencia diretamente as condições materiais dos indivíduos, mas também na conceituação psicossocial (ideológicas).

Segundo os dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2011IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4. ed. Brasília: IPEA, 2011. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf . Acesso em: maio 2021.
https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revi...
, p. 25) sobre a desigualdade racial, os negros representam a maioria da população pobre no Brasil. Ou seja, representam “63,63% do total da população pobre, enquanto os brancos são 35,95%”. Outros dados da pesquisa revelam que a população negra no Brasil tem rendimentos menores do que a branca em todas as situações que envolvem rendimentos arrecadados via ocupação ou seguridade social.

Agregada com essa desigualdade social advém a desigualdade simbólica, que se expressa em um sentimento de superioridade do branco em relação aos negros, os quais muitas vezes, como autodefesa, tentam negar todos os elementos representativos que não sejam próprios da cultura branca. Isso porque elementos da cultura negra adquiriram uma conotação pejorativa diante de um racismo estrutural, ou seja, que vai muito além das relações interpessoais, está nas entranhas de uma sociedade, sendo expresso em sua história, economia e cultura (FANON, 1980FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas (1952). Tradução de Renato da Silveira. Bahia: EDUFBA, 2008.).

Nesse sentido, buscou-se depreender algumas disposições psíquicas próprias da personalidade autoritária associada à branquitude, compreendida como um lugar de poder “em que os brancos tomam sua identidade racial como norma e padrão” (SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014., p. 46). No Brasil contemporâneo, esse fenômeno reforça a manutenção da assimetria racial que historicamente violenta e oprime negros, enquanto coloca brancos em posição de privilégio econômico e de status elevado.

Para trilhar esse percurso, inicialmente será apresentada a definição de preconceito e evidenciada sua assimilação em uma sociedade estratificada por classes. Em seguida, serão investigadas possíveis motivações que sugestionam os indivíduos a apresentarem alguns traços de personalidade autoritária que os conduzem à reprodução da discriminação racial no país.

Personalidades autoritárias: disposições psíquicas e função ideológica

A palavra preconceito, segundo o dicionário online,3 3 Disponível em: https://www.dicio.com.br/preconceito/ é definida como “ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial”; “opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos”; “estado de abusão, de cegueira moral”; ou, ainda, “superstição”. A partir desses significados, constata-se que a palavra preconceito está relacionada a uma preconcepção de algo, sem considerar adequadamente seus dados reais, e, quando o faz, apresenta uma interpretação equivocada e cristalizada, fundada em uma crença ou em um misticismo.

Caniato (2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008., p. 22) afirma que o preconceito é uma “atribuição social de malignidade a determinados indivíduos ou grupos, correspondente a uma categorização de classe social que, muitas vezes, veicula uma atitude política e étnica aversiva”. O preconceito serve para manter estruturas de poder vis que privilegiam poucos sob a égide do dinheiro. Certos funcionamentos sociais são ofuscados para que haja uma adesão passiva da população que internaliza o preconceito e a violência nele embutida. Nas palavras da autora, “a escolha de quem deve ser hostilizado atende a interesses político-econômicos hegemônicos da época” (CANIATO, 2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008., p.22).

Esses interesses político-econômicos correspondem a uma sociedade contemporânea que está submetida à lógica do Capital, no qual o humano do homem é transferido ideologicamente para a mercadoria, que passa a ser objeto de desejo. Ou seja, o homem é coisificado e, para que ele retome a sua humanidade, é levado a acreditar que precisa “ter”, consumir, para que lhe seja devolvido seus atributos humanos, que estão incorporados nos objetos de consumo. Nesse sentido, os indivíduos são conduzidos a pensarem, agirem e se relacionarem não em busca de uma vida saudável e permeada por vínculos amorosos, mas sim como peças da engrenagem de um sistema econômico que, para se manter em vigor, necessita de uma fluidez contínua de compra e venda no bojo de seu mercado financeiro.

Nesse cenário, o preconceito serve perfeitamente como uma ferramenta social para naturalizar a condição social da população pobre, culpabilizando-a por não ter dinheiro e nem valor. São taxados e “perseguidos como os portadores do mal” (CANIATO, 2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008., p. 24). Os ricos, como expressão do outro lado da moeda, são aqueles designados como os “portadores do bem”, a quem está destinada a liberdade ao prazer no consumo e na fruição dos próprios impulsos libidinais.

A naturalização do pobre vai ao encontro de uma mudança de perspectiva que vem ocorrendo desde o século XIX: as causas de fenômenos diversos estão sendo atribuídas exclusivamente ao indivíduo e não mais às determinações sociais que as constituem. Assim, perde-se a articulação da mediação social na compreensão dos elementos que constroem o preconceito.

Em vista disso, compreende-se que o preconceito está intrínseco à sociedade de classes, pois, além de culpabilizar o indivíduo se sua classe social for considerada inferior, tal como pontuou Caniato (2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008.), ele resulta de uma ordem social que dissemina valores e diferencia seus integrantes para manter a desigualdade e a propriedade privada.

Além da nítida dicotomia entre ricos e pobres, outros indivíduos ou grupos sociais podem estar sujeitos aos preconceitos sem necessariamente pertencerem às classes economicamente mais baixas da sociedade. Aqueles estigmatizados como “portadores do mal” são assim designados por vários motivos que representam um desvio, uma resistência ou transgressão às normas provenientes desse sistema político-econômico que privilegia o grande capital em detrimento dos indivíduos.

O preconceito, conforme descreve Caniato (2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008.), é um fenômeno presente em sociedades autoritárias e excludentes e que, portanto, ganha forte expressão nos tempos atuais a partir da vigência do sistema econômico capitalista, com suas estruturas ditas democráticas.4 4 A definição liberal de democracia, segundo Chauí (2012, p. 149), consiste em “um regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”. Entretanto, o conceito de liberdade que visaria aos direitos civis para atender às demandas dos indivíduos restringiu-se à “competição econômica chamada de ‘livre iniciativa’ e à competição política entre partidos que disputam as eleições” (Idem, p. 149). Para Chauí (2012CHAUÍ, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, 2012.), o sistema capitalista vigente impede a existência de uma sociedade verdadeiramente democrática, visto que a divisão social presente na sua constituição implica conflitos de interesses pela dominação de um grupo sobre o outro. Assim, o direito à liberdade prometido a todos os indivíduos, conforme pontua a autora, é defrontado com “obstáculos impostos pela desigualdade econômica, social, cultural e política e pela privatização da informação pelos oligopólios que dominam os meios de comunicação”(CHAUÍ, 2012CHAUÍ, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, 2012., p. 154).

Do mesmo modo, o direito de os indivíduos participarem da política é tolhido pela “ideologia da competência técnico-científica” (CHAUÍ, 2012CHAUÍ, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, 2012., p. 154), que consiste em atribuir poder natural àqueles que detêm o conhecimento técnico-científico. No caso, as classes sociais se tornam divididas por aqueles que são competentes, que dirigem “a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos” (CHAUÍ, 2012CHAUÍ, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, 2012., p. 154, p. 154), e pelos incompetentes, os quais apenas conseguem se subordinar, submissos a uma “verdade” técnica que é afirmada cotidianamente pelos meios de comunicação.

Nesse sentido, os indivíduos tendem a perceber o mundo sob as lentes de uma inconsciência regressiva orquestrada por ideologias, uma vez que “a violência dos preconceitos da sociedade contemporânea destrói as capacidades discriminadoras, questionadoras e de julgamento da consciência psíquica dos indivíduos” (CANIATO, 2008CANIATO, Angela Maria Pires. A violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e da subjetividade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 2, n. 60, p. 20-31, 2008., p. 28).

A regressão egoica de indivíduos educados dentro da sociedade democrática atual remete ao movimento de massa descrito por Freud (1921/2011)FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., cujos integrantes teriam capacidade intelectual inferior em relação a quem não está incluso nela. Tanto é que uma vez inserido nessa “massa”, ideias opostas poderão “coexistir e suportar umas às outras, sem que resulte um conflito de sua contradição lógica” (FREUD, 1921/2011FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 28). Desse modo, a construção de uma ideia pautada em dados da realidade se torna dispensável, não sendo mais necessário o uso de uma coerência lógica para a consolidação de convicções e princípios que regem o ideário de populações inteiras, pois elas são doutrinadas a “refletirem” a partir de seus medos, necessidades, desejos, culpas e repressões. O requisito para que aconteça a formação de uma massa e a ligação entre seus membros, portanto, “é que esses indivíduos tenham algo em comum, um interesse partilhado num objeto, uma orientação afetiva semelhante em determinada situação” (FREUD, 1921/2011FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 34).

Nessa lógica, Freud (1921/2011)FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011. aponta a existência de três mecanismos psíquicos, necessários para a consolidação dessa massa, cujas pulsões mais destrutivas são expressas. O primeiro deles é a idealização, que se manifesta na figura de um líder seguido e exaltado, colocado na posição de seu ideal de Eu que “é amado pelas perfeições a que o indivíduo aspirou para o próprio Eu, e que através desse rodeio procura obter, para satisfação de seu narcisismo” (FREUD, 1921/2011FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 71). O segundo é a identificação que “se empenha em configurar o próprio Eu à semelhança daquele tomado por ‘modelo’” (FREUD, 1921/2011FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 62), e que, no caso, ocorre entre os indivíduos da massa para que se estabeleça a homogeneização e a unidade entre as consciências frente ao comando do líder. Por fim, há a projeção, que será mencionada mais adiante por condenar os grupos alvos de preconceito.

Por agora, atenta-se à noção de pulsão de morte descrita por Freud (1920/2020)FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer (1920). Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica , 2020., cuja meta é a destruição, pois sua função é desligar, desinvestir em direção a um movimento regressivo até uma recondução ao estado inorgânico, anterior à vida. No que tange à violência dos preconceitos, ainda que indiretamente, o autor contribui para sua elucidação à medida que compreende a agressividade e o ódio que são projetados nos objetos do mundo exterior como expressões da pulsão de morte. Essa dimensão destrutiva dirigida para o exterior remete a um narcisismo das pequenas diferenças em que a preservação e a exaltação da identidade de um grupo se sustentam na hostilidade capaz de justificar atrocidades a um outro, que possui uma diferença próxima daquele que produz o ataque. Dentro dessa perspectiva, o autor elucida:

Nas antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-los (FREUD, 1921/2011FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 57)

À vista disso, a destrutividade que se vincula ao preconceito revela muito sobre o indivíduo que o reproduz. Não obstante, Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 48) acrescenta que há uma relação entre os estereótipos do preconceito e os objetos a quem são destinados; nas palavras do autor, “o objeto não é totalmente independente do estereótipo apropriado pelo preconceito que lhe diz respeito”.

Desse modo, não tem como pensar sobre o preconceito sem considerar a sua relação com o termo estereótipo. Para Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 49), o preconceito se caracteriza justamente por um estereótipo que é direcionado a um objeto “e por um determinado tipo de reação frente a ele, em geral, de estranhamento ou hostilidade”. Ou seja, o estereótipo é um conteúdo específico que é fixado ao indivíduo ou grupo que sofrerá o preconceito. Além disso, o estereótipo é composto por vários conteúdos fixados ao objeto, mas um deles será o principal e dele derivará os demais. O estereótipo é, portanto, formado a partir “de distinções estabelecidas pela cultura entre sexos, ocupações, doenças, raças, povos, religiões, idade, etc.” (CROCHÍK, 1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 49).

Conforme expõem Adorno e Horkheimer (2006ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento (1969). Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.), os valores e os papéis sociais que originam os estereótipos componentes do preconceito são preservados e valorizados com a justificativa da autoconservação, como exemplificado pelo antissemitismo na Alemanha nazista. Assim, com a função de auxiliar esse engodo, os preconceitos serviriam para “conservar a ordem estabelecida na medida em que tendem a fixar e naturalizar a realidade a partir da qual são criados” (CROCHÍK, 1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 50). Nessa perspectiva, os estereótipos são socialmente condicionados, mas considerados como inerentes aos objetos, no caso, aos indivíduos ou grupos alvos do preconceito. Conforme afirma Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 48), “algo é percebido no objeto que não pertence a ele, mas às circunstâncias que o levam a agir de determinada forma”.

A se considerar que algumas características socialmente estabelecidas são compreendidas como intrínsecas ao objeto, constata-se que há uma leitura equivocada sobre os indivíduos ou grupos alvos do preconceito. A percepção sobre estes pode não ter nenhuma relação com a realidade, visto que não há “necessidade de contato com o objeto do preconceito” (CROCHÍK, 1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 49) para que ele exista.

A experiência, conforme aponta Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 49), “é medida por conteúdos pré-formulados, mas ele serve para reformular o conceito previamente formado”. Entretanto, quando essa reformulação não acontece, é porque existem conflitos psíquicos que possuem ganhos com essa distorção inflexível da realidade externa. Nesse sentido, não é possível que os estereótipos se alterem a partir da experiência, pois esta é negada. O indivíduo, portanto, é submetido a uma heteronomia determinada pela cultura por meio de estereótipos que, no nível psíquico, possuem a função de aliviar seu sofrimento.

Os mecanismos que sustentam o preconceito, segundo Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996.), fazem parte da constituição do Eu. Referenciando Freud (1915/2017)FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos (1915). Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., o autor explica a cisão entre o “bom” e o “mau” mediada pelo princípio do prazer, na qual o primeiro é compreendido como interno ao Eu, e o segundo como externo ao Eu. Esse funcionamento psíquico remete ao que Freud (1915/2017)FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos (1915). Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. aponta como as primeiras experiências do indivíduo, por ele não conseguir suportar estímulos desprazerosos (externos e/ou pulsionais). Nomeada de fase objetal, que se desenvolve logo após a fase puramente narcísica, o Eu se torna correspondente a um Eu-prazer purificado que substitui o Eu-real por colocar “a marca distintiva do prazer acima de todas as outras” (Freud, 1915/2017FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos (1915). Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 55). Os objetos que se apresentam como fonte de prazer são incorporados ao Eu, em contraposição ao mundo externo, que coincide com o que é alheio e odiado “a ponto de tornar-se uma propensão à agressão contra o objeto, uma intenção de aniquilá-lo” (1915/2017 p. 57).

A experiência, diante dessa cisão, teria a função de repará-la, ao introjetar o princípio de realidade na constituição psíquica do indivíduo. Logo, a experiência propiciaria uma consciência autônoma, enquanto a compreensão do mundo a partir dos estereótipos favorece uma regressão egoica em que a malignidade e a fraqueza são negadas como pertencentes a si e projetadas no outro. Assim, as estruturas sociais que preconizam os estereótipos se comunicam diretamente com o inconsciente dos indivíduos, fazendo-os perceber a realidade conforme as carências de um Eu fragilizado que necessita mascarar o sofrimento para suportá-lo.

Além disso, com o advento do capitalismo atual, essa consciência atrofiada corresponde aos interesses culturais, pois cabe ao indivíduo apenas seguir regras e instruções para que o sistema produtivo se preserve. Crochík (1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 59) expõe o objetivo dessa estrutura que retira do indivíduo a sua autonomia:

Como a racionalidade da produção capitalista é voltada para o lucro e não para as necessidades humanas, e como com as transformações sociais ocorridas neste século a racionalidade do mundo do trabalho se propaga às outras esferas da vida, o objetivo da realidade torna-se o de ser um mundo perfeitamente administrado, ou seja, como a racionalidade virou o fim do próprio sistema racional, mas não mais um meio para que todos possam ter uma vida digna, a sociedade tornou-se irracional.

Destarte, não se torna conveniente para uma sociedade administrada que seus indivíduos tenham consciência reflexiva sobre sua condição subjugada e de desamparo. Nas palavras do autor, “o pensamento é treinado para adaptar-se à realidade tal como se apresenta e não para refleti-la a partir daquilo que a determina” (CROCHÍK, 1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 60).

Nesse contexto, a noção de coletivo se perde, se torna escassa e, portanto, é preciso que os indivíduos voltem a si para que seu sofrimento seja atenuado. Isso porque se o indivíduo, enquanto ser social, não encontra proteção nessa sociedade, é preciso desprezar tal característica. Freud (1921/2011)FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011. aponta que, quando situações ameaçadoras surgem, as ligações libidinais tendem a se desintegrar. Quando isso acontece, o pânico é instaurado e as regras socialmente estabelecidas não são mais seguidas, apenas “a ameaça de um poder coletivo é capaz de conter o caos” (CROCHÍK, 1996CROCHÍK, Jose Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, v. 3, n. 4, p. 47-70, 1996., p. 61).

Sociedades com regimes nitidamente autoritários, como o fascismo, ou ideais conservadores próprios de pensamentos chamados de “extrema direita”, presentes em sociedades democráticas, são facilmente aderidos e instaurados, haja vista que sua população se identifica com o líder que se mostra em um primeiro momento injustiçado por aqueles que detêm o poder. Assim, quanto mais fragilizada uma população se encontra, como em momentos de crise econômica com altos índices de desemprego, mais facilmente ela tende a ser capturada por um discurso ideológico que se comunica diretamente com seu inconsciente, sem dispor de uma coerência lógica.

Sobre o discurso ideológico segundo uma ótica marxista, Carone (2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012.) evidencia duas características: representação falsa da realidade e instrumento de domínio das classes detentoras do poder econômico. Adorno (1985, apud CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 17) amplia a compreensão desse conceito a partir da análise do discurso fascista e menciona que a ideologia não pode ser desmascarada pelo poder da crítica, pois ela “não pretende ser verdadeira e sim, uma mentira manifesta da boca dos seus líderes; então a crítica ideológica perde totalmente a sua eficácia” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 17). Isso se explica porque a mentira manifesta possui a função de manter a segurança psicológica desses indivíduos de modo que “a única forma de combater o fascismo é através do estudo da psicologia do destinatário de sua mensagem” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 17, grifos do autor).

Nomeados de personalidade autoritária, esses indivíduos possuem uma predisposição psicossocial para o fascismo. Isso significa que existem características que os predispõem a serem preconceituosos. De acordo com Carone (2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 15), tais características “não são inatas ao sujeito, mas adquiridas durante o seu processo de socialização: elas são psicossociais”.

O estudo sobre personalidade autoritária, pesquisa realizada por Adorno e alguns psicólogos clínicos e sociais na década de 1930 nos Estados Unidos, confirmou que esta predisposição ao preconceito não esteve restrita à população da Alemanha de Hitler nem da Itália de Mussolini, uma vez que os indivíduos que foram submetidos a tais pesquisas viviam nos Estados Unidos, um país historicamente dito democrático.

Foram feitos testes com adultos brancos, de classe média, letrados, e que não eram integrantes de partidos e nem da polícia, na tentativa de mensurar “opiniões, valores e atitudes do sujeito em relação ao objeto do preconceito: judeus e demais minorias étnicas” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 18, grifos do autor), para avaliar os conteúdos latentes e manifestos dessas tendências ideológicas de cunho preconceituoso. Nesse sentido, a personalidade autoritária “representou a primeira tentativa rigorosa científica de se estudar a questão política da ideologia com os instrumentos da psicologia social e da psicologia clínica psicanaliticamente orientada” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 20, grifo do autor).

Em vista disso, foi constatado que sujeitos com essa estrutura de personalidade tendem a “selecionar os estímulos ideológicos que o clima cultural de sua época propicia, assim como suas ações e comportamentos políticos” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 15). Ou seja, a ideologia do sistema político vigente se propaga sobre os indivíduos, formando um pensamento hegemônico dentre uma população.

Levando em consideração os estímulos ideológicos dos anos 1930 nos Estados Unidos, os conteúdos latentes foram avaliados a partir de frases afirmativas, nas quais os indivíduos alvos do preconceito não foram mencionados explicitamente. Portanto, as tendências irracionais foram mascaradas por racionalizações. Frases como “Um insulto a nossa honra deve sempre ser punido” e “O homem de negócios e o industrial são muito mais importantes para a sociedade do que o artista e o professor”(CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 18), foram utilizadas para esta avaliação.

Como resultado, verificou-se algumas disposições dessa personalidade. A primeira se refere aos traços sadomasoquistas que se manifestam na submissão (ao líder) e na agressividade autoritária (contra grupos oprimidos). A próxima é a anti-intracepção, que se revela na dificuldade dos indivíduos em contatar seus sentimentos e, por conseguinte, se sensibilizar com o outro, sendo, no nível manifesto, “um homem racional”. Dessa disposição também advém «a valorização do poder e da dureza (quem é duro consigo mesmo também o é com os demais)» (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 19), pois se o indivíduo não consegue sentir suas próprias emoções, tampouco conseguirá ponderar a sua severidade consigo e com os demais.

Outra disposição latente averiguada é a projeção, mecanismo em que os anseios e desejos dos indivíduos que não são passíveis de serem trazidos à consciência por serem imorais perante as regras sociais são depositados no outro. Ou seja, características consideradas espúrias e indignas são negadas como pertencentes a si e projetadas (lançadas) no outro, alvo de preconceito. Nesse sentido, a recorrente atenção voltada para os aspectos sexuais das outras pessoas se relaciona ao sadomasoquismo, à projeção e à intolerância própria do convencionalismo - outra disposição da personalidade autoritária. Isso porque é “como se os outros realizassem as ‘sujeiras’ que gostariam mas são impedidos de realizar” (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 19), pois os indivíduos de personalidade autoritária precisam agir de acordo com o que é decente e virtuoso, precisam ser a referência dos “valores” e “bons costumes”.

A partir dessas disposições latentes citadas, se formam estruturas psíquicas etnocêntricas que funcionam como sustentação para que sejam manifestadas atitudes discriminatórias contra o outro, alvo de preconceito. Conforme Carone (2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 19), essa estrutura sofre variações de “sujeito para sujeito, dependendo de como esses traços se combinam na forma de um caleidoscópio, onde as figuras se multiplicam, mas os componentes são os mesmos”.

Nesse sentido, advém a necessidade de guardar as devidas especificidades de cada indivíduo, além de compreender que estas personalidades autoritárias podem ser desenvolvidas em diversos contextos sociais, seja ele em um regime autoritário ou em um regime democrático, nas primeiras décadas do século XX ou em pleno século XXI. Basta que exista um pensamento hegemônico no momento histórico e local onde se vive, com ideologias fascistas, para que a adesão e apoio às atrocidades cometidas contra os “inimigos” sejam justificadas “racionalmente” por populações inteiras.

A personalidade autoritária que discrimina e violenta o negro no Brasil

No Brasil, desde o período das grandes navegações, século XV e XVI, a dominação do português sobre o africano demarcou a diferenciação simbólica e concreta que se reflete até os dias de hoje. O pensamento hegemônico que colocou o europeu como modelo etnocêntrico desde aquela época ainda reverbera fortemente no ideário da população. Carone e Bento (2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.) apontam que a identidade racial do branco é constituída por um sentimento de superioridade e tem suas origens no Brasil desde o período colonial, uma vez que a estrutura político-social de colonizadores e colonizados desenvolvida na época produziu assimetria nas subjetividades de ambos.

Não mais por meio da escravidão, a desigualdade racial na contemporaneidade continua atravessando o país ao destinar ao negro uma condição de inferioridade em relação ao branco no que diz respeito às posições socioeconômicas, ao status, aos ideais de beleza, aos elementos culturais, dentre outros aspectos que perpassam suas vivências. No entanto, não é raro discursos de brancos que se eximem da responsabilidade de pensar sobre a desigualdade racial, isso quando não a desconsideram. O silenciamento de seus privilégios, que geram obstáculos para os negros nos mais diversos setores da sociedade, corresponde a uma característica do pacto narcísico da branquitude, cujo objetivo é conservar as vantagens decorrentes de uma herança histórica, mas que é encoberto por um discurso meritocrático que atribui exclusivamente ao branco merecimento pelo seu esforço e destaque em espaços institucionais (BENTO, 2022BENTO, Maria Aparecida Silva. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. ).

À vista disso, há uma ideologia no imaginário da população brasileira de que o branco nada tem a ver com a desigualdade que coloca o negro como escória social. Mais especificamente, o branco tende a negar suas implicações nas amplas diferenças concretas e simbólicas existentes entre esses dois grupos. Conforme Carone e Bento (2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2014., p. 26), existe “um acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais do Brasil”.

Nesse sentido, por mais que o racismo brasileiro tenha bases seculares, há uma contradição nessa realidade, pois, embora seja evidente a adesão da população a essa ideologia, também há discursos que afirmam a inexistência de racismo no Brasil. Isto é, o preconceito e a discriminação racial são tratados como algo distante e, portanto, sem importância. Carone e Bento (2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.) apontam que a ideia de democracia racial, que permite que o branco não assuma sua condição de privilégio, é afirmada com discursos como os de Gilberto Freyre, que usa a política de miscigenação - que ocorreu no final do século XIX e início do século XX - como sinal de aproximação e diluição de conflitos entre brancos e negros no país. Entretanto, o fato é que essa política de miscigenação foi usada para promover a emigração de quase quatro milhões de europeus para branquear a população e dissolver a importância do negro como referência no país, pois este era considerado intelectual e moralmente inferior aos brancos.

Seguindo a lógica de que, se fosse intensificada a mistura entre raças para que características físicas do branco suplantassem as dos negros, haveria uma mudança qualitativa do nível intelectual e moral da população brasileira, é possível perceber que ser considerado branco no Brasil está relacionado estritamente ao status, ao fenótipo e à aparência física, independente da genética e da etnia. É diferente do que ocorre em outros países, como os Estados Unidos, que associam o status quo de branco somente à origem étnica e genética, ou como a África do Sul, que considera apenas o fenótipo e a origem (SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.).

Vemos assim que a branquitude - aqui considerada como “traços de identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre o branqueamento”(CARONE; BENTO, 2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2014., p. 25) - teve origem no Brasil Colônia e está presente até os dias de hoje. Assim, contrariando o ideário de que o branco não faz parte da constituição do racismo no país, prioriza-se aqui enxergá-lo como agente do preconceito e da discriminação racial, e não apenas como indivíduo passivo que atribui ao negro a condição de aspirar à branquitude.

Ao considerar que a personalidade autoritária corresponde a uma predisposição discriminatória de indivíduos etnocêntricos que prezam o convencionalismo5 5 O convencionalismo se caracteriza por um apego excessivo às convicções e preconceitos (CARONE, 2012), mantendo posições ideológicas seculares que, a partir da ideologia do branqueamento, fortemente difundida no Brasil, coloca o negro como escória de uma sociedade classista e racista. Assim, o preconceito, a falta de oportunidades, as opressões e até mesmo os assassinatos contra a população negra, infelizmente, tendem a se perpetuar. (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012.), a sociedade brasileira sugestiona o desenvolvimento dessas personalidades mantenedoras do racismo, uma vez que mantém características do colonialismo escravocrata, conforme explana Chauí (2013CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.):

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão (CHAUÍ, 2013CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013., p. 158).

Nessa sociedade que perpetua relações de poder assimétricas, há uma atmosfera cultural propícia para uma estruturação psíquica formada a partir de ideologias fascistas e pensamentos hegemônicos, haja vista que o país possui um passado escravocrata recente que deixou marcas evidenciadas cotidianamente.

Como herança desse passado colonial e escravocrata, aquele que introjeta a ideologia do branqueamento, predominante na sociedade brasileira, irá se identificar com um ideal branco que consiste na valorização de todos os elementos próprios da cultura branca, desde as características físicas até as crenças e hábitos. Em contrapartida, os elementos representativos da cultura negra passam a ser desqualificados, subjugados e até mesmo criminalizados. Dessa maneira, o negro passa a ser alvo de depreciação e de preconceito, enquanto o branco é colocado em uma posição de superioridade e privilégio.

No entanto, por mais que o branco internalize, em maior ou menor intensidade, a ideologia do branqueamento e esteja em uma posição privilegiada na sociedade brasileira, ele não reconhece a sua posição de superioridade diante dos negros, pois essa ideologia é introjetada ao mesmo tempo que perpassa em seu imaginário uma “[...] representação homogênea que os brasileiros possuem de si mesmos” (CHAUÍ, 2013CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013., p. 7). A autora explica que há uma solução imaginária para a resolução de uma tensão real, de maneira que coexiste o discurso de que negros são vagabundos e incompetentes ao lado de um orgulhoso sentimento de ser brasileiro e possuir uma rica e invejada mistura de raças.

Essa característica evidencia um discurso que dispensa os dados da realidade. É uma lógica que se assemelha a um funcionamento psíquico regido pelas leis do inconsciente facilmente encontradas no movimento de massa descrito por Freud (1921/2011)FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros trabalhos (1921). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.. O pensamento que deveria estar integrado aos dados de realidade se torna fragmentado; o privilégio da brancura, que está diretamente associado às desvantagens do ser negro, é negado ou justificado por discursos embasados pelo preconceito ao naturalizar classes sociais e qualificar brancos como mais esforçados, inteligentes e belos.

Melaine Klein (apud Zimerman,1999ZIMERMAN, David Epelbaum. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.), ao contribuir e desenvolver os pressupostos da psicanálise, teoriza sobre a posição esquizoparanóide, que muito expressa essa dissociação do real para dar vazão às fantasias inconscientes, as quais aderem às ideologias presentes no meio social no qual se vive. Essa posição da autora nada mais é do que uma dissociação da mente agregada aos distúrbios da percepção provenientes de projeções. Esta dissociação, também chamada como clivagem ou splitting, acontece pela necessidade de conter as experiências prazerosas e eliminar as desprazerosas. Mesmo que as sensações de prazer e desprazer façam parte da estrutura psíquica do indivíduo, a necessidade de dissociá-las possivelmente acontece quando há um contato demasiado das experiências ruins em detrimento das boas, o que culmina em uma alta frustração, considerada, por vezes, insuportável. Assim, o psiquismo efetua sua própria cisão e projeta elementos causadores destas angústias em prol da autodefesa.

Nesse sentido, a cisão egoica do branco, no que concerne às questões raciais do país, pode se conjecturar sobre a projeção de objetos maus que recaem sobre o negro em uma tentativa de omitir de sua própria consciência a responsabilização pela opressão do negro. Devido a tamanha desigualdade racial, uma integração do ego desses indivíduos implicaria assumir uma condição de privilégio conquistada em cima da exploração do negro, a qual dividiu a população entre ricos e pobres, bons e maus, superiores e inferiores, brancos e negros.

Na mesma lógica de funcionamento, Carone (2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012., p. 15) aponta que os indivíduos que desenvolveram uma personalidade autoritária durante seu processo de socialização estão suscetíveis a “[...] idealizarem o grupo e o líder com os quais se identificam (in group ou endogrupo) e a projetarem qualidades negativas nos grupos com os quais se contra-identificam (out-groups ou exogrupos), os objetos do preconceito”.

De acordo com a ideologia do branqueamento, é pressuposto que os negros se enquadrariam em um “exogrupo”, no qual teriam qualidades negativas para que o “endogrupo” (branco) pudesse ser fortificado e vangloriado como o referencial normativo da sociedade. Dentro desse endogrupo, a figura de um líder que corresponde ao movimento de massa citado por Freud (1921/2011) se apresenta de forma mais ou menos difusa no atual contexto brasileiro, está nas entranhas de representantes dos poderes políticos institucionais, na autoridade de pastores, de influenciadores digitais, de pais de família, dentre outras figuras masculinas que possuem uma certa visibilidade e que ganham força à medida que somam narrativas que correspondem a expressões atualizadas de um colonialismo escravocrata.

Essas narrativas dizem respeito a um “nacionalismo antidemocrático que tem como base o supremacismo branco e o conservadorismo social e religioso” (BENTO, 2022BENTO, Maria Aparecida Silva. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. , p. 54), cujo propósito consiste em um projeto nacionalista de homens brancos que se caracteriza pelo “militarismo, o desprezo por leis e instituições, o machismo e o racismo, e o ódio a intelectuais e artistas” (BENTO, 2022BENTO, Maria Aparecida Silva. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. , p. 51), além de forte afeição por líderes autoritários e desdém aos direitos e à dignidade humana. A coesão desse grupo, portanto, condiz com a defesa de “valores tradicionais” e com a perpetuação da exclusão, sobretudo do negro, entendido como uma ameaça ao “cidadão de bem”.

Logo, tendo como justificativa a manutenção da ordem e da segurança a partir de uma perspectiva etnocêntrica, se legitima a corrupção do sistema judiciário quando ela é condescendente com o branco e severa com o negro; se financia o genocídio da população negra por uma polícia truculenta e quiçá pela política de acesso às armas por civis; se mantém o racismo institucional, que evidencia as esferas sociais de disparidades entre branco e negros; se favorece a emergência de políticos com posturas violentas, antidemocráticas e explicitamente preconceituosas, vide Jair Messias Bolsonaro. Nesse sentido, a norma, construída por séculos a partir de homens brancos ganha caráter de universalidade e é mantida por personalidades autoritárias compactuadas com o lugar de poder da branquitude, associadas à masculinidade e ao nacionalismo.

Como desdobramento dessa posição de um grupo que é enaltecido como modelo a ser seguido e identificado como guardião de boa conduta, ao negro é imputado o lugar de bode expiatório, posto como objeto de projeção diante de possíveis aspirações frustradas do branco para que este consiga suportar sua condição de humanidade real, sentida como fracassada. Tais fracassos podem derivar do próprio sofrimento inerente ao ser humano: as intempéries da natureza, a decadência do corpo e as relações interpessoais, conforme Freud (1927/1996)FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927). Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1996. descreveu em O mal-estar na civilização. Os ideais egoicos e os estilos de vida inalcançáveis fabricados pela Indústria Cultural6 6 “O conceito de indústria cultural, cunhado por Horkheimer e Adorno (1985a), é uma trama em que necessariamente se enlaçam outros conceitos (tanto da esfera social quanto da subjetiva). Eles tecem um momento histórico em que ocorre a mercantilização da produção simbólica dos homens e, com isso, a anulação da sua humanidade, uma vez que esses (sob a imposição da mercadoria) não podem ser a multiplicidade e singularidade que os caracteriza, mas se tornam homens coisificados, cuja interioridade é de tal forma violentada que, para eles dizerem ‘não’ à reprodução dos ditames sociais, é um processo muito difícil de ser feito porque fragilizada suas instâncias críticas norteadoras de uma ação emancipatória”(ADORNO apud RODRIGUES; CANIATO, 2012, p. 229). seriam dois potencializadores dessa frustração, pois, uma vez inserido na lógica dessa indústria que produz subjetividades, o desejável se torna inatingível pelo seu teor falso.

Dentro dessa lógica, a satisfação é sempre algo a ser atingido na atual sociedade consumista. Conforme aponta Severiano (2010SEVERIANO, Maria de Fátima Vieira. “Lógica de mercado” e “lógica de desejo”: reflexões críticas sobre a sociedade de consumo contemporânea a partir da Escola de Frankfurt. In: SOARES, Jorge Coelho Soares (Org.). Escola de Frankfurt: inquietudes da razão e da emoção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 121-141., p. 23), a promessa de completude e felicidade, “via identificação idealizada com as imagens de marca”, é buscada continuamente devido à frustração sutil dessa ideologia. Desse modo, fica simples deduzir que a classe média branca, por exemplo, gostaria de possuir um maior capital financeiro, além de um padrão de beleza idealizado pelas grandes mídias. Como resultado dessa lógica mercadológica que padroniza ideais de beleza e de comportamentos, o negro, com seus traços fenotípicos, condição socioeconômica e particularidades culturais, se torna alvo fácil de escárnio e preconceito. Nesse sentido, o negro passa a ser culpabilizado por suas características psicofísicas e pela condição pobre que lhe foi historicamente destinada; destarte, se torna objeto de preconceito, tal como ocorreu com os judeus na Alemanha nazista, criminalizados pela crise econômica e moral que o país vivia na época. No Brasil imputa-se ao negro essa mesma posição de culpabilidade, para que o branco consiga tolerar de forma menos angustiante suas frustrações, que jamais serão transformadas em conquistas satisfatórias. Mais especificamente, o branco tende a se conformar por não possuir o corpo ideal e a não ter tanto dinheiro quanto gostaria, pois lhe resta o status quo de ser branco, sendo um ‘‘alívio”, portanto, não ser negro.

Além do mecanismo de projeção sobre o negro, que pode servir para abrandar os sentimentos de angústia do branco, Carone (2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012.) aponta outras tendências dos indivíduos de personalidade autoritária: traços sadomasoquistas, a anti-intracepção e o convencionalismo, já citados acima. Ao transpor tais traços psíquicos para os brancos, dentro do contexto de discriminação racial brasileiro, observa-se que o sadomasoquismo se expressa na adesão do branco aos ditames da indústria cultural (masoquismo) e na opressão e violência contra o negro (sadismo). No que diz respeito à anti-intracepção, ela significa que o branco que não possui facilidade em entrar em contato com seus próprios sentimentos tende a não desenvolver uma sensibilidade suficiente que possibilite uma compreensão de si e uma empatia com o outro, principalmente quando este outro possui características peculiares que foram estigmatizadas socialmente, como é o caso do negro. Desse modo, julgar, discriminar e condenar o negro pode se tornar um hábito trivial, haja vista que ser duro com o outro é justificado pela dureza que se tem consigo. Nas palavras de Adorno (1995ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund (Org.). Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 128-129., p. 128-129):

Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quando se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. [...] o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quando esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.

Nesse sentido, a indiferença com o outro se torna uma das formas de barbárie da contemporaneidade (PUCCI; FRANCO; GOMES, 2014PUCCI, Bruno; FRANCO, Renato; GOMES, Luiz Roberto. Teoria Crítica na Era Digital: desafios. São Paulo: Nankin, 2014., p. 47). O indivíduo passa a ser conduzido pela competição, apatia e discriminação em relação ao outro, desde que esse outro tenha alguma particularidade que o diferencie dele mesmo, estigmatizando-o. O negro, geralmente distante dos parâmetros econômicos e de status que atribuem valor aos indivíduos, é colocado historicamente como alvo da agressividade autoritária (fascista) branca.

Considerações finais

Com este trabalho foi possível analisar que o racismo no Brasil é resultado de uma estrutura de poder político econômico que perdura há séculos e que encontra ressonância em uma população que adere aos discursos ideológicos fascistas, destituídos de reflexão crítica e razão lógica consistente. Além disso, o racismo é muitas vezes invisibilizado por decorrência da naturalização da desigualdade entre negros e brancos na sociedade brasileira, tornando difícil pensá-lo como efeito de uma sociedade estratificada por classes sociais e endossada por personalidades autoritárias brancas. Desse contexto destaca-se que as manifestações psíquicas da personalidade autoritária do branco são resultantes de um Eu fragilizado, cuja consciência não consegue intervir criticamente na comunicação entre o inconsciente e as ideologias neoliberais regidas pelas estruturas sociais autoritárias vigentes. Assim, a posição de privilégio que o branco ocupa quase sempre é negada por ele, e expressa a marginalização histórica do negro na sociedade brasileira.

Nesse cenário, em que a ideologia da democracia racial ganha lastro, a divisão de classes demarcada pela cor da pele parece ser apagada da memória e, por conseguinte, são retiradas as possibilidades de simbolização dos estigmas sociais impregnados na subjetividade negra. Como forma de resistência a essa omissão e à fragmentação da história racial no Brasil, os contrastes e desigualdades que transpõem os estereótipos precisam ser resgatados e evidenciados. O reconhecimento da história que constitui a nação brasileira se mostra como uma abertura que denuncia um sistema político-econômico excludente e potencializa a luta pela construção da igualdade racial no país.

Longe de esgotar a temática, este trabalho visou suscitar reflexões que confrontem contradições socioeconômicas sustentadas por personalidades autoritárias que difundem e sustentam o racismo. Assim, objetivamos somar forças com o movimento negro para o enfraquecimento do racismo, a favor de políticas afirmativas para a população negra, em busca de uma sociedade mais justa.

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  • SEVERIANO, Maria de Fátima Vieira. “Lógica de mercado” e “lógica de desejo”: reflexões críticas sobre a sociedade de consumo contemporânea a partir da Escola de Frankfurt. In: SOARES, Jorge Coelho Soares (Org.). Escola de Frankfurt: inquietudes da razão e da emoção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 121-141.
  • ZIMERMAN, David Epelbaum. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.
  • 1
    Financiamento: Fundação Araucária (FA) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    O conceito de ideologia aqui utilizado se refere à organização de opiniões, atitudes e valores sobre diversos assuntos da sociedade, como “política, economia, religião, grupos minoritários, etc.”(ADORNO, 1950/1965ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund et al. La Personalidad Autoritaria (1950). Tradução de Dora e Aída Cymbler . Buenos Aires: Proyección, 1965., p. 27). O autor explica que essas ideologias são determinadas por processos históricos, nas quais um indivíduo isolado não tem qualquer influência sobre elas, e que estas “exercem sobre cada indivíduo diferentes graus de atração, que dependem de suas necessidades à medida que estas são satisfeitas ou frustradas” (Idem, p. 27).
  • 3
  • 4
    A definição liberal de democracia, segundo Chauí (2012CHAUÍ, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, 2012., p. 149), consiste em “um regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”. Entretanto, o conceito de liberdade que visaria aos direitos civis para atender às demandas dos indivíduos restringiu-se à “competição econômica chamada de ‘livre iniciativa’ e à competição política entre partidos que disputam as eleições” (Idem, p. 149).
  • 5
    O convencionalismo se caracteriza por um apego excessivo às convicções e preconceitos (CARONE, 2012CARONE, Iray. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Sociologia em Rede, v. 2, n. 2, 14-21, 2012.), mantendo posições ideológicas seculares que, a partir da ideologia do branqueamento, fortemente difundida no Brasil, coloca o negro como escória de uma sociedade classista e racista. Assim, o preconceito, a falta de oportunidades, as opressões e até mesmo os assassinatos contra a população negra, infelizmente, tendem a se perpetuar.
  • 6
    “O conceito de indústria cultural, cunhado por Horkheimer e Adorno (1985a), é uma trama em que necessariamente se enlaçam outros conceitos (tanto da esfera social quanto da subjetiva). Eles tecem um momento histórico em que ocorre a mercantilização da produção simbólica dos homens e, com isso, a anulação da sua humanidade, uma vez que esses (sob a imposição da mercadoria) não podem ser a multiplicidade e singularidade que os caracteriza, mas se tornam homens coisificados, cuja interioridade é de tal forma violentada que, para eles dizerem ‘não’ à reprodução dos ditames sociais, é um processo muito difícil de ser feito porque fragilizada suas instâncias críticas norteadoras de uma ação emancipatória”(ADORNO apud RODRIGUES; CANIATO, 2012RODRIGUES, Samara Megume; CANIATO, Angela Maria Pires. Subjetividade e indústria cultural: uma leitura psicanalítica da cumplicidade dos indivíduos com a lógica da mercadoria. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 2, n. 18, p. 227-246, 2012., p. 229).

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Editora responsável pelo processo de avaliação:

Cláudia Castanheira de Figueiredo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Dez 2019
  • Revisado
    16 Jun 2022
  • Revisado
    16 Set 2022
  • Aceito
    07 Jun 2023
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