Resumo:
Podem se explicar as mudanças na atitude de ‘Sócrates’ perante ‘Protágoras’, no Teeteto? O filósofo parece louvá-lo só para depois o censurar, embora sempre mostre respeitá-lo. Pode tal comportamento ser justificado pela ironia? Que relação liga o sofista às “doutrinas secretas”, atribuídas a discípulos seus? Por que razão ‘Sócrates’ o critica, depois o defende, como se fosse ele o próprio sofista, para acabar por acusar a “Verdade” do outro de se autorrefutar? Este texto tenta responder a estas e outras perguntas, com o objetivo de compreender como pode ‘Sócrates’ afastar ‘Protágoras’ sem nunca o refutar.
Palavras-chave:
Platão; Protágoras; “doutrinas secretas”; argumentos da “Defesa” e da “Autorrefutação”; doxa
Abstract:
Is there an explanation for ‘Socrates’’ wavering attitude towards Protagoras, in the Theaetetus? It seems he praises him only to chide him, though always showing some measure of respect. Can such behaviour be justified by irony? What connection ties the sophist to his disciples’ “secret doctrines”? How can ‘Socrates’ attack the sophist with unfair criticisms, then defend his project as if he were the man himself, and finish accusing Protagoras’ “Truth” of being true to no one? This paper discusses these questions aiming to understand how can ‘Socrates’ sidestep ‘Protagoras’ without refuting him.
Keywords:
Plato; Protagoras; “Secret doctrines”; “Apology” and “Self-refutation” arguments; doxa
Platão e Protágoras
Naturalmente os intérpretes dos diálogos platônicos concentram a sua atenção nas ideias supostamente apadrinhadas pelo A. que estudam, deixando numa relativa obscuridade os pensamentos das personagens que servem de interlocutores aos condutores dos debates: sejam eles Sócrates ou o Hóspede de Eleia. E, contudo, em Platão, há filosofia em todo o texto.
No estudo que dedica à prosopografia dos diálogos, D. Nails (2002NAILS, D. (2002). The People of Plato: A Prosopography of Plato and Other Socratics. Indianapolis/Cambridge, Hackett., p. 256-257) tenta não tomar posição sobre a possível influência de Protágoras em Platão. No entanto, não só os passos dos diálogos que registram a influência exercida sobre outros pensadores a atestam (Cra. 386a-d; Euthd. 286c-d; Men. 91d; R. X, 600c; Sph. 232e; Lgs. IV, 716c), como a riqueza dos debates sobre o “Mito do Protágoras” (320d-328d) ou contra a máxima do Homo Mensura, no Teeteto (152a-183c), a respaldam.
Mas a relação entre o A. e a personagem que representa a figura histórica é complexa, pois, Platão censura o sofista quase sempre que o não elogia. Apesar de sérias, as acusações pontuais contra ele são vagas (no Eutidemo, no Crátilo e no Sofista), ao contrário dos elogios que documentam o prestígio de que é objeto (no Mênon e na República X). No entanto, no Protágoras e no Teeteto, a ambivalência do filósofo gera uma tensão entre os planos dramático e argumentativo que afeta a interpretação dos argumentos apresentados.
Dessa tensão nasce a pergunta sobre a razão que levará Sócrates ora a prestigiar, ora a censurar o sofista. Tentaremos responder-lhe através da análise e da tentativa de reconstrução das concepções epistemológicas e políticas a ele atribuídas por Sócrates no Teeteto.1 1 Esta mesma interrogação é formulada por F. C. S. Schiller (1908) num ensaio que insere a “defesa de Protágoras” no confronto que opõe o “intelectualista” Platão ao “pragmatista” Protágoras. As nossas leituras da “defesa” coincidem num único ponto: no Teeteto, o sofista nunca é refutado.
1. Protágoras, no Teeteto (152a-186e): o problema
Depois de, na “defesa de Protágoras” (Teeteto 166a-168c), ter articulado uma síntese das teses que atribui ao sofista, Sócrates ataca aquela que acha mais relevante entre as que acabou de apresentar (170d-171c). Sustenta que o sofista se autorrefuta ao conceder verdade às opiniões de quantos discordam da dele (171b).
É difícil justificar a reviravolta com que o filósofo desdiz a sua exposição anterior. Mas a complexidade da relação de Platão com Protágoras começa logo no modo como o sofista é introduzido no diálogo. Aproveitando a primeira resposta de Teeteto à pergunta sobre a natureza do saber - “o saber não é mais que percepção” - citando a máxima do Homo Mensura, Sócrates assimila-a a Protágoras e ao relativismo (152a). Começam aí as dúvidas sobre da argumentação do filósofo. Apontando a uma verdade oculta na máxima, Sócrates sucessivamente contextualiza o relativismo numa teoria fluxista (152d-e), que pouco depois insere numa concepção sensista (156a-157c; 159d-160e).
Passa então a atacar este complexo teórico. Depois de criticar a síntese das três teorias com uma cadeia de argumentos erísticos (161c-165e), em tom autocrítico, o filósofo assume a “defesa de Protágoras” (166a-168c). Mas logo inverte esta posição, voltando a castigar o sofista com o “argumento da autorrefutação” (170a-171c).
O debate é interrompido por um amplo interlúdio votado ao elogio da sabedoria (172d-177c),2 2 Para esta afirmação ver Lima (2004). para só terminar com o argumento sobre “as coisas futuras”, acolhido como refutação satisfatória (178c-179d) da tese que defende a verdade das opiniões dos homens. No entanto, em jeito de retratação, Sócrates observa que, apesar de nem todas as opiniões serem verdadeiras, será “mais difícil provar que não são verdadeiras as sensações e as opiniões geradas a partir delas” (179c; ver 167a).
Na verdade, nem após o afastamento da versão catastrófica do fluxismo, dedicado a Heráclito e aos seus discípulos (179e-183c), é superada a ambivalência da posição de Sócrates sobre o sofista. Pois, apesar do triunfal adeus que lhe dirige (183b-c), a prova da insuficiência epistêmica da ontoepistemologia fluxista e sensista será deixada para a refutação da resposta de Teeteto. Reconstituamos o debate contra o sofista desde o seu início.
1.1 Três teorias associadas a Protágoras
A. Relativismo
Comecemos pelo Homo mensura (HM): “O homem é medida de todas as coisas, das que sãο, como são, das que não são, como não são” 3 3 Traduzindo ‘einai’ por “ser” e admitindo a ambiguidade da leitura do verbo grego: sobretudo, predicativa e existencial. (Teeteto 152a; DK80B1; Sextus, Adv. math. VII, 60; Sextus, Pyrr. H. I, 216,1-3; DK80A14).
Ultrapassando as muitas interpretações de que será objeto (Untersteiner, 1954UNTERSTEINER, M. (1954). The Sophists. Oxford, Blackwell., p. 77-91), no breve comentário imediatamente acrescentado por Sócrates4 4 Atribuindo a ‘homem’ o sentido de “cada homem individualmente considerado” (Sócrates e Teeteto servem de exemplos, como o texto oportunamente especifica; ca. Gomperz, 1933, p. 272 ss.: “L’uomo, overossia, la natura umana, è la misura dell’esistenza delle cose”. Lee, 2011, p. 214-215 encontra no passo três tipos de relativismo. , encontramos força bastante para interpretar o HM como a defesa do relativismo individual: as coisas são para cada um - “tu ou eu” - tal como lhe “aparecem”” (152a; phainetai: postulado relativista).
A partir da constatação de que “uns sentem frio, outros não, um mesmo vento que sopra” (152b), conclui que “a percepção [de cada um] é sempre do que é e, como saber, irrefutável” (152c). Todavia, achando enigmática esta conclusão, o filósofo pergunta se o sofista não terá reservado a verdade para os seus discípulos.
B. Fluxismo
E responde. Se tudo vem a ser porque: “nada é um em si” - o próprio percipiente incluído5 5 Por isso [“as coisas] “aparecem” (e não “parecem”; embora formas de dokeô venham a ser usadas adiante: 158e; 167c, 171a, passim). Deve se prestar atenção à pontual menção ao comediógrafo Epicarmo (153e), que questiona a persistência da identidade pessoal no tempo (DK23B2). (154a; 156e-157c) - a; “nem é possível atribuir quaisquer qualidades”; sendo “através do movimento, da mudança e da mistura de umas com as outras” que as coisas se geram; então, “nada é [um], mas sempre devém” (152d-e; postulado fluxista).
Atribuída a uma legião de pensadores da qual Parménides é excluído,6 6 A exclusão do Eleata será tudo menos casual, pois, as fórmulas usadas em 152d, acima citadas, expressamente contraditam a exigência de identidade de “o que se pode pensar” (Parménides, B2). tal como o relativismo, a teoria fluxista é também oferecida por Protágoras aos seus discípulos como um saber iniciático (155d-e), dando ensejo à apresentação de um conjunto de concepções problemáticas endereçadas a pensadores não identificados (153a-155e).
C. Sensismo: as “doutrinas secretas”
É então que, elegendo entre eles uns “mais refinados” - talvez Aristipo e os Cirenaicos antigos (Zilioli, 2013ZILIOLI, U. (2013). The Wooden Horse: The Cyrenaics in the Theaetetus. In: BOYS-STONES, G.; EL MURR, D.; GILL, C. (eds). The Platonic Art of Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, p. 167-185., p. 170; 173-175) -, o filósofo se dispõe a revelar mais “doutrinas secretas” acerca das percepções, do que e como algo é captado pelos sentidos e de como uma equivocada utilização do discurso tenta se acomodar ao fluxo (153d-154a; 156a-157d;7 7 Ainda que pareça arbitrário atribuir ao sofista as “doutrinas secretas” (contra, Untersteiner, 1954, p. 26), não há dúvida de que Platão lhes confere um papel relevante na construção da “defesa” (Caizzi, 1978, p. 30, n. 71). Este tópico será abordado adiante. 157b-d). Abraçando “percebido e percipiente”8 8 Como ficará claro na nota seguinte, banido o ser e qualquer natureza estável, o devir arrasta todas as coisas, proibindo o uso de termos e expressões que ignorem que “tudo sempre muda em relação a algo” (157b). Pois, só o hábito e a ignorância justificarão o uso de nomes como “homem” e “pedra”, que não passam de “agregados” (athroismata; 157a-d). (156a ss.) - "gémeos” (156b1) devindo um para o outro (156a-b: postulado sensista) -, toda a percepção, privada, única e irrepetível, faz de cada um juiz das coisas que são e não são para ele9 9 Há, interdependentes um do outro, movimentos lentos passivos (percipientes e percebidos) e rápidos ativos (“eflúvios”: Mênon 76c). Ao se encontrarem uns com os outros geram no percipiente a percepção e fora dele o percebido. No caso da visão, quando o fogo no interior do olho encontra o fogo fora dele (Timeu 45b-d), é produzida a cor (o olho vê “branco”), assim acontecendo com todas as sensações (Teeteto 156c-157a). (159e-160c).10 10 Para esta afirmação ver Théétète, 1995, p. 329, nota 151 do tradutor.
Até este ponto, é evidente que Sócrates ironiza nas suas repetidas referências as práticas iniciáticas e as doutrinas secretas. Aparentemente, o seu intuito será, de algum modo, prolongar a continuada responsabilização do sofista por teorias que, ainda que não lhe sejam atribuídas, se acomodam ao HM como se dele fossem consequências naturais.
1.2 Críticas erísticas
Sempre dedicada ao sofista, Sócrates dirige-lhe então uma crítica retórica (161c-162a), que a seguir ilustra com a exibição de uma panóplia de argumentos erísticos (163b-165e). Não sendo clara a finalidade a que visam neste passo do debate, talvez intentem instruir Teeteto sobre as táticas argumentativas a que recorrem os controversistas, “que disputam ao modo antilógico” (antilogikôs: 164c-d).
2. A “defesa de Protágoras”
Todavia, após a cadeia de armadilhas e paradoxos que dirige às teorias dos alegados seguidores do sofista, o filósofo decide corresponder à solicitação de Teodoro (162a), defendendo Protágoras. Fá-lo com um discurso em que o sofista é por ele representado na primeira pessoa, como se participasse no diálogo (166a-168c). A personificação é brilhante. Mas não será tão real que se preste à discussão sistemática das teses defendidas pelo sofista, como se se achasse presente em pessoa.11 11 Note-se adiante o sarcasmo de Sócrates, imaginando como se comportaria Protágoras se estivesse presente (169d-e), ou se, saindo do chão, aparecesse até ao pescoço para os ridicularizar pelo que diziam (171c-d).
Com vista a preencher essa lacuna, proporemos aqui uma análise e interpretação das teses expostas por Sócrates em nome de Protágoras, recontextualizando-as como se fosse o próprio sofista a apresentá-las. O nosso objetivo é contribuir para a valorização do projeto pedagógico e político nelas implícito, na medida do possível, libertando-o dos pressupostos em que a argumentação de Sócrates o envolve.
O passo (166a-168c) se divide em três partes. Começa (166a-c) com críticas irônicas à utilização por Sócrates das práticas erísticas a que recorreu para refutar as “doutrinas secretas” (161c-162a; 163b-165e), terminando (167d-168c) com recomendações que exortam o filósofo à boa prática, amigável e didática, do confronto entre opositores (Corradi, 2018CORRADI, M. (2018). Protagorean Socrates, Socratic Protagoras: A Narrative Strategy from Aristophanes to Plato. In: STAVRU, A.; MOORE, C. (eds.). Socrates and the Socratic Dialogue. Leiden/Boston, Brill, p. 85-104., p. 93-100). É entre uma e outra que o sofista expõe o núcleo da sua proposta. Vamos resumir, ordenar e numerar cada uma das teses aí apresentadas, que separamos para mais facilmente as podermos comentar.
2.1 As teses
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1. [Sintetizando o exposto atrás (156a-160c), o sofista desafia Sócrates a negar que] “as percepções são individuais” e “o que aparece a cada um se torna, ou é, … para aquele a quem aparece” (166c, passim: postulados relativista, fluxista e sensista).
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2. “cada um é medida das coisas que são e das que não são (HM: postulado relativista) e difere imensamente dos outros: a uns são e aparecem umas coisas, a outros outras” (postulados fluxista e sensista: 166d).
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3. “não digo que não haja sabedoria e homens sábios: se a uns de nós aparecem e são más as coisas, chamo sábio a quem é capaz de as mudar [de modo a] aparecerem e serem boas para ele” (166d).
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4. por exemplo, enquanto “ao doente a comida aparece e é amarga, ao saudável ela aparece e é o contrário (159b-e; 156a-b: postulado sensista); mas não é possível fazer um deles mais sábio, nem chamar ignorante ao doente por ter estas opiniões, nem sábio ao saudável por ter outras” (166e).
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5. a mudança de uma condição pior para outra melhor é operada pela educação; o médico muda por meio de drogas, o sofista por aquilo que diz.
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6. Não é possível fazer alguém que tenha opiniões falsas tê-las verdadeiras, “porque não se pode opinar coisas que não são, nem ser afetado por outras coisas além daquelas que afetam [alguém], as quais são sempre verdadeiras “(167a).
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7. “alguns que, devido a uma má condição de alma, têm opiniões afins a ela, são levados a opiniões úteis, diferentes dessas: aparências às quais alguns, por inexperiência, chamam “verdadeiras”, e eu “melhores que as outras, em nada mais verdadeiras” (167b).
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8. “aos sábios … que tratam do corpo, chamo médicos; [aos que tratam] das plantas, agricultores, pois também estes as tratam contra as más percepções; quando alguma enfraquece, provocam nelas sensações úteis e saudáveis e também verdadeiras” (167b-c).
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9. “os sábios e os bons oradores fazem com que as cidades opinem coisas úteis e justas, contra as más” (167c).
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10. “o que a cada cidade “parece” (dokêi: 167c5) justo e belo é isso para ela enquanto assim acreditar; contra os males, o sábio faz com que as coisas pareçam e sejam úteis às cidades” (167c).
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11. “de acordo com isto, o sofista, capaz de ensinar os seus discípulos, é sábio e merecedor de boa paga pelos educados [por ele]” (167c-d).
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12. “e assim, uns são mais sábios que outros e ninguém tem uma opinião falsa; e até tu [Sócrates] … serás medida” (167d).
2.1.1 Comentário
Α maioria das teses apresentadas é dirigida à elucidação do problema criado pelos sentidos que o sofista atribui a ‘sábio’ e ‘sabedoria’. Pois, se cada um é a “medida da sua própria sabedoria”, como poderá ele ser considerado “sábio” e “mestre” (161d-e) por todos os outros, que também são “medida”?
Exposto o princípio geral (3), as teses 4 a 8 exemplificam a diversidade de casos em que, como médico, sofista ou agricultor, “o sábio” torna “saudáveis” e “úteis”, em suma “melhores”, as percepções “danosas”. Nas teses 9 e 10, é conferido destaque ao orador, cuja função consistirá em educar não apenas os seus discípulos, mas as próprias cidades.
A tese 11 justifica a dignidade e respeito merecidos pelo sofista (incluindo o pagamento devido); enquanto a 12, respondendo ao questionamento anterior de Sócrates (161d-e), relativo às diferenças que distinguem os “sábios” dos outros, cujas opiniões nunca são falsas, encerra esta seção da “defesa” com a nota irônica de que até o próprio filósofo terá de ser “medida”.
2.1.2 Unidade da “defesa”: “verdade”, “verdadeiro” / “falso”
O conjunto das teses da “defesa” aponta a finalidades complementares. Começando por remeter para os postulados que comandam as três teorias, passa à descrição do quadro delas resultante e daí à caracterização do projeto que justifica a intervenção do sofista na realidade política em que os cidadãos se acham inseridos. Apresentado por ‘Protágoras’, o projeto é dirigido a ‘Sócrates’ e contrastado com concepções implicitamente por ele defendidas (166c-168c).
Todo o confronto que os opõe gira em torno da reformulação das noções de ‘verdade’ e ‘falsidade’, como são habitualmente entendidas por Platão, nelas residindo - sem que o texto chame a atenção para isso - o núcleo da argumentação do sofista na “defesa” (6). ’Protágoras’ deixa claro que, seja em que condição alguém se encontre e seja qual for a mudança que o afete, as suas opiniões nunca passarão da falsidade à verdade, e por duas razões: primeira, por “não ser possível [alguém] opinar “coisas que não são””; segunda, por “serem sempre verdadeiras as coisas que [o] afetam” (167a). É nestas duas alegações, sobretudo na segunda, que se acha o pomo da discórdia que o opõe ao filósofo.
Apesar das confusões produzidas pelo fato de ambos falarem pela boca de Sócrates, é manifesto que o sofista rejeita a leitura da ‘verdade’ imposta pelo filósofo e aceita pela tradição. Para ‘Sócrates’, ‘verdade’ e ‘falsidade’ são indissociáveis da linguagem, vindo a ser caracterizadas como “qualidades” do discurso (Sofista 263b). No Teeteto, são consideradas contrárias e excludentes, significando a negativa “contrariedade”.12 12 Note-se a função que as disjunções excludentes entre “ser” e “não ser”, “saber” e “não saber” (Teeteto 188a-c) assumem no argumento.
Nada disto é aceitável pelo sofista, para quem, dita daquilo “que afeta [cada um]” (ta an paschêi: 167a8), alheia ao discurso, a verdade não pode ser lida como contrária e excludente da falsidade. Que relação poderão ter uma com a outra? Sendo impossível “opinar falsidades” (ou ti ge pseudê doxazonta: 167a6; oudeis pseudê doxazei: 167d2), tal como “opinar as coisas que não são” (ta mê onta … doxasai: 167a7-8), estas não se referem a “coisas que não existem”, nem à falsidade das opiniões sobre elas, mas a “coisas” que, não sendo percebidas por ninguém, não podem gerar opiniões.
Diferindo cada um de todos os outros (167d) e sendo as “coisas que [o] afetam” (ta an paschêi: 167a8) “sempre verdade” (aei alêthê: 167b113 13 Ver, em 152c, a caracterização da percepção como “sem falsidade” (Théétète, 1995, p. 155; p. 336, n. 197; p. 330, n. 154; p. 331, n. 161, do tradutor). ), ‘verdade’ e ‘diferença’ não apenas são compatíveis, mas complementares uma da outra, refletindo a diferente “condição” (hexis) em que cada um se acha.14 14 Como se vê em “cada um difere imensamente de qualquer outro”; e “a uns aparecem umas coisas, a outros outras” (166d).
Portanto, enquanto, no Sofista platônico, na nova leitura da negativa aí fixada (257b-c), as “diferenças” se referem às “qualidades” - verdadeiro e falso - atribuídas aos enunciados (263b, d), ’Protágoras’ aplica-as às afeções que cada um experimenta (2): sempre verdadeiras para ele e diferentes das que afetam qualquer outro. Portanto, a negativa deve significar um certo tipo de ‘diferença’.
Consequentemente, os contextos epistêmicos a que o filósofo e o sofista se referem claramente se distinguem. Pois, enquanto o primeiro aborda a verdade de uma perspectiva lógica, o outro a remete para o âmbito psicopolítico em que o sensismo é inserido (7), no qual será redefinida pragmaticamente (8).
Os homens diferem uns dos outros porque as “condições” (hexis: 167a4; hexeôs: a4; hexei: b1) em que cada um se acha - ou seja, aquilo que o afeta e o modo como é afetado - igualmente diferem (2). E essas sempre são umas “melhores” ou “piores” que outras (3, 4, 5, 7, 8).15 15 Note-se, em 167b, o cuidado posto na proibição de usar “mais verdadeiras” para qualificar as “aparências melhores”.
É para combater os efeitos, por vezes perniciosos, dessas diferenças (e os conflitos delas resultantes) que as cidades recorrem a médicos para melhorarem a saúde dos doentes; encarregam agricultores do tratamento da fraqueza das plantas; chamam sofistas e oradores (o próprio Protágoras, implicitamente) para difundirem entre os cidadãos e implantarem nas cidades “o que é justo e nobre” … “enquanto [essas] assim acreditarem” (167c).
Na “defesa”, nunca Protágoras terá de conceder verdade a todas as opiniões, pois, se “não há opiniões falsas”, verdade e falsidade não serão contrárias e excludentes. Diferem umas das outras porque aquilo que afeta cada um certamente difere do que afeta qualquer outro (166d). Pelo contrário, é Sócrates quem admite que, da “verdade” das percepções de cada um, “se geram” as suas opiniões (179c; 161d, 178b).
Com este movimento, Ética, Ontologia, Lógica, Psicologia, em suma, toda a metafísica, são erradicadas do horizonte do Saber. Antecipando muitos debates atuais, as figuras platônicas e aristotélicas que definirão ‘sujeito’ e ‘objeto’ da cognição num contexto predicativo são aqui redescritas. A percepção é caracterizada a partir dos postulados fluxista e sensista, pela “união e fricção” dos “movimentos” lentos e rápidos ora ativos, ora passivos, suportando o relativismo16 16 Evidenciando a dependência em que as teses de Protágoras se acham em relação ao fluxismo e ao sensismo; “dependência” atrás mascarada pela irônica atribuição destas doutrinas ao sofista. (Teeteto 152d; 153e-154a; 156a-157b). Consequentemente, ignorando as reservas expressas sobre o poder do discurso (157a-c), o confronto das opiniões no qual o saber se degrada passa a habitar as sociedades em que a democracia impera, constituindo - para o bem e para o mal - o infindável drama da política.
2.1.3 ’Ser’, ‘aparecer’, ‘parecer’
Ao longo da “defesa” - pelo fato de ser ele próprio quem fala -, ‘Sócrates’ obriga ‘Protágoras’ a fazer concessões às críticas por ele apresentadas. Além das questões em torno da ‘verdade’, são relevantes as expressões que recorrem a formas dos verbos ‘ser’ e ‘parecer’, proibidas pelo postulado fluxista (157a8-c1).
Depois de ter atribuído ao sofista responsabilidade por uma ontoepistemologia governada pela “deslocação, movimento e mistura”, o filósofo sabe que, desprovido de identidade, “nada é um em si”, ou receptivo de qualidades (152d). No entanto, apesar de o fluxo impedir que, de “alguém” e de “alguma coisa” - sempre em devir um para o outro (157a-d) -, se diga “algo” “que é”, ‘Sócrates’ não deixa de pôr “é” na boca de ‘Protágoras’.
De resto, na “defesa”, o sintomático emparelhamento de “ser” com “aparecer” ou “devir” (166c-e), de algum modo respeitando o HM, embora expresse por vezes uma intenção irônica da parte do sofista (166d), decerto também sinaliza a dificuldade do filósofo de utilizar uma linguagem que em absoluto dispense qualquer recurso ao verbo ‘ser’.
2.1.4 “Mudar”, “Educar”
A atribuição destas tarefas aos sofistas não só se mostra consistente, como, sugerindo se dirigir a Protágoras, aponta às teorias atrás expostas tomando-as como base da concepção em que se apoia a “defesa”. É com ela que o sofista responderá “com maior nobreza” (166c) às críticas sérias à sua teoria e prática (nas quais Sócrates mal tocou, como patenteiam as exortações que antecedem - 164e-165a - e encerram o passo: 168c).
Há ainda uma última questão digna de registro. É “pela educação” … “por meio de discursos” (167a) que “sábio… e sofista são capazes de instruir os que são educados por eles” (167c-d), operando a mudança nos seus discípulos “de uma condição pior para outra melhor” (167a3-4). Desse modo, poderá ‘Protágoras’ concluir que, “se [Sócrates] se deixar persuadir por ele” (168b2) … não deixará de acolher as teses que ele sustenta e o filósofo ataca.
2.2 Protágoras e as teorias a ele associadas por Sócrates
Questionamos atrás a associação ao sofista das três teorias apresentadas antes da “defesa”, notando os repetidos sinais do caráter irônico dessa atribuição (152c, 153a, 154d-e, 155e-156a, etc.). Conhecedores da extensão do projeto pedagógico avançado na “defesa”, podemos agora perceber que essa “ironia” mascara a clara dependência do sofista relativamente a essas teorias.
Cremos que o relativismo (152a-c) é facilmente “colado” a Protágoras como uma das possíveis leituras do HM, insinuando ser o próprio sofista - não só a personagem platônica - o legítimo defensor do relativismo. Todavia, na forma comprimida, habitual numa máxima, como Sócrates insinua, o HM apresenta um caráter enigmático (152c).
Será então para aclarar a máxima que é avançada a ontologia fluxista. Não há dúvidas sobre a sua atribuição a Heráclito. Mas são demais quantos aceitarão a tese de que “o movimento produz o devir e o que parece (dokoun) ser” (153a), embora se mantenham distantes do fluxismo “catastrófico”, sustentado pelos discípulos do Efésio, ridicularizados adiante (181c-183a). E, contudo, a fundamentação do relativismo não pode ficar pela adoção do fluxismo, pois, enquanto concepção epistemológica, aquele terá de ser enquadrado por uma teoria que se mostre capaz de explicar o funcionamento das percepções.
É essa a função desempenhada pela epistemologia sensista (156a-157c), da qual o projeto de Protágoras em muitos pontos se mostra dependente (teses: 1, 2, 5, 7, 12). Na verdade, sem a prévia aceitação de uma epistemologia aparentada com a dos primeiros Cirenaicos (Zilioli, 2013ZILIOLI, U. (2013). The Wooden Horse: The Cyrenaics in the Theaetetus. In: BOYS-STONES, G.; EL MURR, D.; GILL, C. (eds). The Platonic Art of Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, p. 167-185., p. 177), não conseguirá o sofista tornar saudável a cidade democrática, nem se apresentar como corretor das deficiências dos cidadãos (167a-c), em suma, desenvolver o seu projeto. Articuladas umas com as outras pela resposta de Teeteto (152a, 160d-e), é na síntese resultante que se mostram a unidade e a coerência do projeto avançado pelo sofista.
E, no entanto, é nesse passo que Sócrates aponta a sua crítica ao fio condutor da argumentação que desenvolverá a seguir. Apesar de até aí as três teorias se acharem intimamente associadas (160d-e), a incapacidade de Sócrates refutar o sofista obrigará Platão a separar o debate sobre Protágoras do exame da resposta dada atrás por Teeteto (184b-187a).
2.3 Síntese: Platão e Protágoras
Perguntemos então se o Autor do Teeteto poderá não criticar as propostas avançadas pelo sofista? Poderá encará-las com a sofrida ironia com que avalia o seu confronto com Eutidemo e Dionisodoro? Poderá manter a paciência com que força Crátilo a ceder às suas objeções, acabando por enviá-lo para os campos na companhia de Hermógenes (440e)? Conseguirá, no Teeteto, disfarçar com ironia a rede de provocações que ele próprio monta? Ou deverá refutar o sofista com a sobranceria com que despacha o prestigioso mestre de retórica e os seus dois discípulos, no Górgias?
Cremos que Platão não adotará nenhuma destas atitudes porque este ‘Protágoras’, acima dos seus outros competidores, é apontado como o seu maior inimigo.17 17 Veja-se a avaliação que lhe é dispensada no Sofista, onde uma única menção (232d-e) chega para o identificar como o alvo das críticas do Hóspede de Eleia, ao longo do passo em que lhe é atribuído o saber daquilo que ignora (232a-234e). Não estamos já diante do celebrado pensador progressista que condensa a sua sabedoria num mito, como no Protágoras, mas - pela boca do próprio Sócrates - perante o reformador e ativista político capaz de dispensar à elite dos jovens atenienses a educação de que carece para se envolver com o poder na cidade. E - como o filósofo bem pressente - as consequências que sofrerá serão tremendas, dado o triunfo do sofista trazer consigo o fim da maiêutica e da prática da dialética (161e), disseminando entre os jovens, com a sua arte da disputa, a “capacidade de discutir acerca de todas as coisas” (Sofista 232e), não as sabendo (233a-c).
3. O “argumento da autorrefutação”
São muitos e dignos de aprofundamento os ensinamentos a serem extraídos da “defesa”. No entanto, após uma breve troca de propósitos com Teodoro, Sócrates opta por voltar a criticar Protágoras, se concentrando na tese que nunca poderá aceitar (158e, 160c): “todas as opiniões são verdadeiras” (170b-c). Porquê? Com que finalidades? Como?
Entremeados na ampla conversa com Teodoro, o filósofo enumera três tópicos. O primeiro aponta o foco à questão que o levou a arrastar o sofista para a discussão da resposta de Teeteto (152a ss.): a máxima “o homem é a medida de todas as coisas” (HM: 168d-169a). Na sequência, embrulhada num breve interlúdio dramático (169a-d), retorna a anterior objeção de Sócrates (161d-e): se a sabedoria se acha disseminada por cada um, como é que há “sábios” (169d)? Por fim, contornando o sensismo, o postulado relativista retorna também, porém, agora reformulado na terminologia doxástica18 18 Gradualmente, a partir de 167c, acompanhando o uso de doxazô (167a), o verbo dokein vai substituindo phainomai, dominante até aí (166e) na caracterização das percepções. Mas só a reformulação do postulado relativista na terminologia doxástica (170a) deverá marcar o abandono da perspectiva sensista. (dokoun, dokei: 170a3-4).
Se note que, à luz do sensismo, a opção não será correta por opor uma barreira ao devir que arrasta percipiente e percebido (156a-157b), mas é necessária para fixar na temática da opinião o debate da tese que defende a impossibilidade da opinião falsa (170a-b).
Dessa nova abordagem resultam doze interrogações encadeadas, rematadas pela conclusão do argumento. Se “os homens crêem que sabedoria e ignorância existem entre eles” e que “sabedoria é pensar com verdade e opinião falsa é ignorância” (170b), não implicam estas concepções que “as opiniões [dos homens] … não são sempre verdadeiras”, mas podem ser “verdadeiras ou falsas” (170c)? A pergunta, que coloca a doxa no foco do argumento da “autorrefutação” (170a-171c), abre a porta à contestação do reducionismo sensista,19 19 Pontualmente aludido quase no final do argumento: “o próprio Protágoras concordará que nem qualquer homem nem cão será medida do que não aprendeu” (171c1-2). proposto por Protágoras a partir das “doutrinas secretas” (152a-160e).
O fato de qualquer um considerar verdadeiras as suas opiniões não consentirá que “muitos se tornem juízes do teu” [de Protágoras] “juízo (kriseôs: 170d6), ou será que sempre achamos que opinas a verdade” (170d-e)? Então, se o sofista aceita que a maioria dos homens não concorda com ele, daí não resultará ser “a opinião de Protágoras verdadeira para ninguém” (170e)? Pois, ao conceder verdade à opinião de quantos discordam da dele, não admite “[ele] ser falsa a sua opinião” (171b)? De modo que, uma vez que a contestação se estende a todos (hypo pantôn), “a “Verdade” de Protágoras não seria verdadeira para ninguém: nem para qualquer outro, nem para ele próprio.” (171c).
3.1 Eficácia do argumento
O argumento arrasa as duas principais teses atribuídas ao sofista: o HM e a de que não é possível opinar falsidades (167a). Chega a essa conclusão inserindo as opiniões no confronto que as opõe. Que razão levará “milhares e milhares de homens” a acharem falsa a opinião de Protágoras (170d-e), se não a circunstância de crerem que há opiniões verdadeiras e falsas se opondo umas às outras (170c)? Não será que, tendo por verdadeiras as suas opiniões, consideram falsas aquelas que as contradizem (170d)?
Não podem chegar a essa conclusão, pois, se as mesmas opiniões são verdadeiras (para uns) e falsas (para outros), o fato de Protágoras conceder verdade àqueles que contestam as suas teses não implica que ele se autorrefute. Se o que ele sustenta é que a sua opinião é verdadeira para ele, tal como a dos que o contestam o será só para eles, não haverá contradição entre as opiniões em conflito.
3.1.1 Revisão: o saber de Protágoras
A maioria da produção atribuída aos sofistas se perdeu. Em particular, apesar de a informação sobre Protágoras nos chegar através de fontes distantes no tempo, a substância das suas “doutrinas” colhe-se nos diálogos de Platão, como se pode confirmar a partir de DK80A5-9, 13, 19, 21-26; B1, e de Untersteiner, 1954UNTERSTEINER, M. (1954). The Sophists. Oxford, Blackwell., p. 9-91; em especial, p. 25-26). Mas o custo desta assimilação do pensamento do sofista a Platão é elevado, se manifestando na dificuldade de separar a figura histórica da personagem dos diálogos, logo, da elaboração pela qual é responsável Platão.
No Teeteto, associado a Protágoras e à HM, é descrito um complexo doutrinal que engloba três teorias. O relativismo da HM é explicado pela ontologia fluxista e esta pelo postulado sensista, que reduz a percepção ao encontro dos movimentos lentos e rápidos, ativos e passivos, que amarram os órgãos sensíveis ao mundo exterior (152d, 153d-154a, 156a-157c, 159c-160c). Deles brotam, geminados, percebido e percipiente (156b, 156e-157b), tornados interdependentes um do outro (159e-160b) no fluxo.
Todavia, estas teorias só serão aceitáveis se a competência opinativa for reduzida à cadeia de processos associados às percepções. Se estes são sempre verdadeiros para quem os experimenta (167a-b), Sócrates poderá pensar que também o serão as opiniões a eles afins, por eles geradas (178b, 179c). Por isso, apesar de rejeitar a tese de que todas as opiniões são verdadeiras a partir da “experiência presente de cada um”, o filósofo admite ser difícil contestar a verdade das opiniões geradas pelas percepções [de cada um] (179c3-4; por mais que, “se todas as coisas se movem”, … “não se possa falar de percepção mais do que de não-percepção”: 182d-e).
Consequentemente, se Protágoras defende que cada opinião se fecha na privacidade do opinante, é claro que a tese que, a partir do HM, atribui verdade às opiniões dos homens só poderá ser verdadeira para ele próprio e quem com ele concordar.
3.1.2 Avaliação da “autorrefutação”
Enquanto se apoiar na ontoepistemologia das “doutrinas secretas”, a tese do sofista não poderá deixar de seguir os processos pelos quais são geradas as opiniões de todos. De resto, esse é o motivo pelo qual os termos e expressões articulados nas opiniões de cada homem são verdadeiros, nesse momento e apenas para ele (166c).
Para a leitura que Platão faz das teses que atribui a Protágoras não terá de ser assim. Mas não, para a do próprio sofista: não apenas por, na sua defesa no Teeteto, ele nunca a formular; mas também pelo fato de qualquer opinião se limitar à “experiência” (tauta… ha an paschê: 167a) de cada um.
Está então equivocado o “argumento da autorrefutação”? Sim.20 20 Embora ‘Sócrates’ possa aceitar que os opositores de Protágoras considerem falsa a tese do sofista por acharem verdadeira a sua própria opinião, não pode pensar que o outro aplica à sua tese essa inferência. Pois, não é por os opositores do sofista considerarem falso o HM e ele atribuir verdade a essa opinião que se contradiz, já que, para ele, nenhuma verdade pode contradizer ou ser contradita por outra, sendo a falsidade impossível. Portanto, “Protágoras não deve aceitar a inferência de “p é falso para os oponentes de Protágoras” para “p é falso para Protágoras”” (Fine, 1998FINE, G. (1998). Relativism and Self-Refutation. In: GENTZLER, J. (ed.). Method in Ancient Philosophy. Oxford, Clarendon Press, p. 137-163., p. 161).
Associando o relativismo ao sensismo (teses 1, 2, 6), o sofista deverá defender que ‘p’ será verdade apenas para ele próprio. Não será, portanto, afetado pelo fato de outros discordarem dele, dado que as suas concepções não podem ser contestadas por eles, tal como as deles pelas suas. Lhe restará apenas a saída de persuadir os seus opositores, como tentou fazer com Sócrates (168b1-2).
Resta, no entanto, outro recurso a Platão. A concentração do argumento na doxa confere a esta um estatuto cognitivo independente do relativismo, libertando o filósofo da obrigação de refutar um complexo de teorias, que, em certa medida, aceita (179c). Para se ver livre do sofista e do debate contra o reducionismo sensista, lhe basta regressar ao exame da resposta de Teeteto à pergunta “o que é o saber” (152a; 184a-b).
3.2 Retorno ao saber
Iniciando o elenchos contra o jovem, a coincidência do fluxismo com o relativismo e o sensismo na resposta dele (160d-e) é imediatamente posta em causa pelo protesto de Sócrates. Reclama o filósofo que não podemos deixar que as “coisas percebidas através deles (di’ ôn: “os sentidos”21 21 Na falta de um termo que especificamente se refira aos “sentidos”, Platão recorre quer a expressões pronominais por vezes obscuras, quer aos nomes próprios dos sentidos (“ver”, “ouvir”, etc.). Se atente, porém, no caso focado na nota seguinte. : 184c9) se tornem “percepções22 22 Bom número de tradutores opta por “percepções”. Acompanhada por muitos, M. Dixsaut objeta, preferindo neste passo traduzir “aisthêseis” por “sentidos” (2002, p. 40, n. 3; Théétète, 1995, p. 228, n. 326 do tradutor; p. 353-354), reforçando a coerência do termo com o referente dos dois pronomes usados: ôn e toutôn (ver n. 22). Admitindo a ambiguidade entre as duas traduções, optamos por “percepções”. em nós instaladas como em cavalos de madeira”23 23 Que quererá Sócrates dizer com a analogia com o “cavalo de Tróia”? Talvez apenas que, aceitando as “doutrinas secretas”, não poderemos atribuir às percepções a estabilidade exigida por essa “competência” (185c4) que o argumento mostrará ser requerida para processar as percepções, de modo a atingir a “verdade” e o “saber” (186d-e). (184d2-3). Sugere então admitir a alma como: “uma certa forma (idean), … para a qual convergem todas essas [percepções: aisthêseis], com a qual percebemos as coisas percebidas através daqueles (toutôn: “os sentidos”), como [se fossem] instrumentos”24 24 “Coisas percebidas” traduz o Grego “aisthêta”; o termo “sentidos” é tradução dos pronomes “ôn” (ver notas 19 e 20) e “toutôn”, a que se referem “aisthanometha” e “aisthêta”; “aisthêseis” é traduzido por “percepções” (184d2), sem excluir a opção por “sentidos”; ver n. 22, acima. (184d).
A manobra é feliz, pois, sem ter de voltar ao sofista, Sócrates consegue, rejeitando o vínculo que unia Teeteto a Protágoras e ao sensismo (160d-e), separar a opinião da percepção. Reinserida na sua relação com o saber (152a-c; 187a-b), poderá então a opinião ser encarada como verdadeira ou falsa (187c).
4. A doxa reformulada
Afirmamos repetidas vezes que Platão teria de eliminar Protágoras dos domínios da reflexão filosófica.25 25 Eliminação que obrigará a provar sucessivamente que: o Não-Ser participa do Ser (Sofista 258b-c); a falsidade participa do Não-Ser; a opinião e o discurso participam da falsidade (260b-c; 260e-261a). O próprio Sócrates tinha manifestado perplexidade quando apontou o ridículo em que cairiam a maiêutica e a dialética se o que cada um opina através da percepção for verdade (161d-e). Tendo se mostrado incapaz de refutar o sofista, basta que Sócrates estabeleça, a par da percepção (185a1; 184d-185a), a doxa como “competência” (dynamis: 185c4 e ss.) cognitiva.
Essa abordagem da cognição prolonga a proposta na República V. Opondo a epistêmê à agnôsia: (477a-b), Sócrates insere a doxa entre uma e outra e, sem referir as percepções, denomina [as três] como “competências” (dynameis), definindo-as como o “gênero de seres pelos quais somos capazes de fazer aquilo de que somos capazes” (477c1-2). Deixando cair a “ignorância”, distingue-as pelo domínio e função que lhes são próprios: “sobre que [coisa cada uma] é” e “o que leva a cabo” (477c-d). Caracteriza então a primeira como “infalível” e a intermédia como “não infalível” (477e7), aplicada a “o que é e não é” (478d4-6).
No Teeteto, porém - ao aceitar a definição do “saber” como “opinião verdadeira” (187b) -, Sócrates mostra-se incapaz de explicar como ocorre a “opinião falsa” (187d ss.), que acabou de tornar possível ao afastar da pesquisa Protágoras e a sua máxima (183b-c). E, no entanto, o sofista só deixará de ameaçar a investigação sobre o saber quando o problema da falsidade (Sofista 236e-237a) for resolvido (263b-264a).
No Teeteto, rejeitada a candidatura da percepção ao saber (186e) e eliminada qualquer possibilidade de passagem do “não-saber” ao “saber” e do “não-ser” ao “ser” (188a-c), estendida à percepção e à opinião (188d-189b), a opinião falsa é justificada como “uma espécie de outra opinião” (allodoxian: 189b-c). Mas a tentativa só serve para lançar a pergunta acerca da natureza da “opinião”.
Para lhe responder, inserida no pensamento (dianoia; dianoeisthai: 189d-e), a “opinião” é caracterizada como o resultado do “diálogo interior da alma consigo mesma”. Quando, no processo de pergunta e resposta que trava, não com outro pela voz, mas consigo mesma, em silêncio, a alma chega a algo definido e não duvida, chama-lhe doxa (189e-190a).
Definitivamente erradicados Protágoras e o sensismo, só então a “opinião” é caracterizada como competência cognitiva e legitimada a atribuição à alma das funções de fixar, interpretar e operar sobre as afeções recebidas através dos sentidos (186a-b) pela descodificação das “percepções”26 26 Remetendo para o interlúdio (171d-177c) o juízo sobre Protágoras e confirmando a refutação de Teeteto no argumento sobre as percepções sensíveis (184b-187a); e Santos (2021). (186b-c).
E, contudo, essa explicitação não chegaria para anular os efeitos do HM, se a abordagem da doxa, no Teeteto (189e-190a), não viesse a ser confirmada e aprofundada no Sofista (263e-264b). O HE repete aí os termos usados por Sócrates, embora gradualmente os vá associando a dados novos. Pensamento e discurso, que o passo citado do Teeteto (189e-190a) associa, mas não relaciona, começam a convergir quando, espelhando a até aí silenciosa doxa,o logos torna manifesto o pensamento [de alguém] “saindo da boca através da voz com expressões (rhêmatôn)”27 27 Justificamos esta tradução de ‘rhêma’ pelo fato de, no Teeteto, logos ser definido como “entrelaçamento de “nomes” (202b), sem fazer qualquer referência a “verbos”. e nomes” (Teeteto 206d).
Decerto, ‘logos’ deve aqui ser entendido como “discurso”. Porém, quando o pensamento - “diálogo da alma consigo mesma sem voz” (189e-190a) - “sai [da alma] com voz através da boca” (206d), lhe sendo consentidas “afirmação e negação” (Sofista 263e), melhor que por ‘discurso’, será traduzido por ‘enunciado’. Pois, só como “conclusão” (apoteleutêsis) do pensamento, a opinião é expressa por um enunciado ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ (264a-b).
Cremos que a transformação da “opinião em silêncio” no “fluxo que sai da boca” poderá apontar duas traduções de ‘doxa’: como “crença”, a primeira, como “opinião”, a segunda. Pois, se a “opinião” for entendida como “aquilo que [“a crença”] “leva a cabo” (ho apergazetai: Rep. V 477d1-2), só afirmando e negando será verdadeira ou falsa.
Com esta conclusão não só Platão se vê definitivamente livre de Protágoras, como, mesmo sem o ter refutado,28 28 Note-se que, ao contrário de Teeteto, nem o sofista, nem Heráclito, se envolveram com a questão do “saber”. produz um enunciado (“Teeteto voa”: 263a-b) “real e verdadeiramente falso” (263d). Dá assim prova da deficiência da “Verdade” do sofista (Teeteto 167a; 170e).
4.1. Dois equívocos?
Sem ter acesso à obra do sofista, não poderemos saber se ele aceitaria a tese que Platão lhe atribui: “as opiniões dos homens são sempre verdadeiras” (170c). Mas talvez possamos supor que a assimilaria àquela que defende serem “as coisas que [cada um] experimenta sempre verdadeiras [para ele]” (167a), extrapolando da verdade das coisas experimentadas para a das opiniões.
A nosso ver, a distinção estabelecida no Teeteto, refinada no Sofista, pode constituir a solução platônica para o problema posto pela dificuldade de refutar as teses atribuídas ao sofista pelo filósofo. Se as “crenças” de cada um representam o que ele sente, serão necessariamente verdadeiras para ele. Poderá esse fato psicológico - inegável para Protágoras ou qualquer outro homem -, se confundir com aquilo que - afirmado ou negado por cada um - constitui a opinião como o fato lógico que condensa a verdade e a falsidade expressas pelo enunciado?
Se assim for, o confronto entre o sofista e o filósofo assenta em dois equívocos: o primeiro entre dois usos de ‘verdade’ (da afeção sentida e da opinião expressa); o segundo em dois fatos distintos (um psicológico, identificado como “crença”;29 29 No De anima, III,3,428a20-21, Aristóteles resolve o mistério da doxa com a introdução da noção de “convicção” (pistis), alegando que a verdade ou falsidade da doxa não podem depender de quem a profere se achar “convencido” de que ela é verdade. outro lógico, definido como “qualidade” de um enunciado produzido (Sofista 263b), identificado com a “opinião”: 264a-b). Um e outro bastarão para justificar a relevância do debate que os opõe para o desenvolvimento das epistemologias de Platão e de Aristóteles.
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1
Esta mesma interrogação é formulada por F. C. S. Schiller (1908)SCHILLER, F. C. S. (1908). Plato or Protagoras? London, Blackwell. num ensaio que insere a “defesa de Protágoras” no confronto que opõe o “intelectualista” Platão ao “pragmatista” Protágoras. As nossas leituras da “defesa” coincidem num único ponto: no Teeteto, o sofista nunca é refutado.
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2
Para esta afirmação ver Lima (2004)LIMA, P. B. de (2004). Platão: Uma poética para a filosofia. São Paulo, Perspectiva..
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3
Traduzindo ‘einai’ por “ser” e admitindo a ambiguidade da leitura do verbo grego: sobretudo, predicativa e existencial.
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4
Atribuindo a ‘homem’ o sentido de “cada homem individualmente considerado” (Sócrates e Teeteto servem de exemplos, como o texto oportunamente especifica; ca. Gomperz, 1933, p. 272GOMPERZ, T. (1933). Pensatori greci. II. Firenze, La Nuova Italia, p. 272-302. ss.: “L’uomo, overossia, la natura umana, è la misura dell’esistenza delle cose”. Lee, 2011, p. 214-215LEE, M. K. (2011). The Theaetetus. In: FINE, G. (ed.). Oxford Handbook of Plato. Oxford, Oxford University Press, p. 411-436. encontra no passo três tipos de relativismo.
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5
Por isso [“as coisas] “aparecem” (e não “parecem”; embora formas de dokeô venham a ser usadas adiante: 158e; 167c, 171a, passim). Deve se prestar atenção à pontual menção ao comediógrafo Epicarmo (153e), que questiona a persistência da identidade pessoal no tempo (DK23B2).
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6
A exclusão do Eleata será tudo menos casual, pois, as fórmulas usadas em 152d, acima citadas, expressamente contraditam a exigência de identidade de “o que se pode pensar” (Parménides, B2).
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Ainda que pareça arbitrário atribuir ao sofista as “doutrinas secretas” (contra, Untersteiner, 1954, p. 26), não há dúvida de que Platão lhes confere um papel relevante na construção da “defesa” (Caizzi, 1978, p. 30, n. 71)CAIZZI, F. D. (1978). Il frammento 1 D.-K. di Protagora. Annali della Facoltá di Lettere e Filosofia… di Milano 31, p. 30.. Este tópico será abordado adiante.
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8
Como ficará claro na nota seguinte, banido o ser e qualquer natureza estável, o devir arrasta todas as coisas, proibindo o uso de termos e expressões que ignorem que “tudo sempre muda em relação a algo” (157b). Pois, só o hábito e a ignorância justificarão o uso de nomes como “homem” e “pedra”, que não passam de “agregados” (athroismata; 157a-d).
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Há, interdependentes um do outro, movimentos lentos passivos (percipientes e percebidos) e rápidos ativos (“eflúvios”: Mênon 76c). Ao se encontrarem uns com os outros geram no percipiente a percepção e fora dele o percebido. No caso da visão, quando o fogo no interior do olho encontra o fogo fora dele (Timeu 45b-d), é produzida a cor (o olho vê “branco”), assim acontecendo com todas as sensações (Teeteto 156c-157a).
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10
Para esta afirmação ver Théétète, 1995, p. 329, nota 151 do tradutor.
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11
Note-se adiante o sarcasmo de Sócrates, imaginando como se comportaria Protágoras se estivesse presente (169d-e), ou se, saindo do chão, aparecesse até ao pescoço para os ridicularizar pelo que diziam (171c-d).
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12
Note-se a função que as disjunções excludentes entre “ser” e “não ser”, “saber” e “não saber” (Teeteto 188a-c) assumem no argumento.
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13
Ver, em 152c, a caracterização da percepção como “sem falsidade” (Théétète, 1995, p. 155; p. 336, n. 197; p. 330, n. 154; p. 331, n. 161, do tradutor).
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14
Como se vê em “cada um difere imensamente de qualquer outro”; e “a uns aparecem umas coisas, a outros outras” (166d).
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15
Note-se, em 167b, o cuidado posto na proibição de usar “mais verdadeiras” para qualificar as “aparências melhores”.
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16
Evidenciando a dependência em que as teses de Protágoras se acham em relação ao fluxismo e ao sensismo; “dependência” atrás mascarada pela irônica atribuição destas doutrinas ao sofista.
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17
Veja-se a avaliação que lhe é dispensada no Sofista, onde uma única menção (232d-e) chega para o identificar como o alvo das críticas do Hóspede de Eleia, ao longo do passo em que lhe é atribuído o saber daquilo que ignora (232a-234e).
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18
Gradualmente, a partir de 167c, acompanhando o uso de doxazô (167a), o verbo dokein vai substituindo phainomai, dominante até aí (166e) na caracterização das percepções. Mas só a reformulação do postulado relativista na terminologia doxástica (170a) deverá marcar o abandono da perspectiva sensista.
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19
Pontualmente aludido quase no final do argumento: “o próprio Protágoras concordará que nem qualquer homem nem cão será medida do que não aprendeu” (171c1-2).
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20
Embora ‘Sócrates’ possa aceitar que os opositores de Protágoras considerem falsa a tese do sofista por acharem verdadeira a sua própria opinião, não pode pensar que o outro aplica à sua tese essa inferência.
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Na falta de um termo que especificamente se refira aos “sentidos”, Platão recorre quer a expressões pronominais por vezes obscuras, quer aos nomes próprios dos sentidos (“ver”, “ouvir”, etc.). Se atente, porém, no caso focado na nota seguinte.
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Bom número de tradutores opta por “percepções”. Acompanhada por muitos, M. Dixsaut objeta, preferindo neste passo traduzir “aisthêseis” por “sentidos” (2002, p. 40, n. 3DIXSAUT, M. (2002). Natura e ruolo dell’anima nella sensazione. In: Il Teeteto di Platone: struttura e problematiche. Napoli, Loffredo, p. 39-62.; Théétète, 1995, p. 228, n. 326 do tradutorPLATON (1995). Théétète. Traduction et présentation par NARCY, M. Paris, GF Flammarion.; p. 353-354), reforçando a coerência do termo com o referente dos dois pronomes usados: ôn e toutôn (ver n. 22). Admitindo a ambiguidade entre as duas traduções, optamos por “percepções”.
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Que quererá Sócrates dizer com a analogia com o “cavalo de Tróia”? Talvez apenas que, aceitando as “doutrinas secretas”, não poderemos atribuir às percepções a estabilidade exigida por essa “competência” (185c4) que o argumento mostrará ser requerida para processar as percepções, de modo a atingir a “verdade” e o “saber” (186d-e).
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“Coisas percebidas” traduz o Grego “aisthêta”; o termo “sentidos” é tradução dos pronomes “ôn” (ver notas 19 e 20) e “toutôn”, a que se referem “aisthanometha” e “aisthêta”; “aisthêseis” é traduzido por “percepções” (184d2), sem excluir a opção por “sentidos”; ver n. 22, acima.
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Eliminação que obrigará a provar sucessivamente que: o Não-Ser participa do Ser (Sofista 258b-c); a falsidade participa do Não-Ser; a opinião e o discurso participam da falsidade (260b-c; 260e-261a).
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Remetendo para o interlúdio (171d-177c) o juízo sobre Protágoras e confirmando a refutação de Teeteto no argumento sobre as percepções sensíveis (184b-187a); e Santos (2021)SANTOS, J. T. (2021). Sensação e Saber não são o mesmo (Teeteto 186e). In: CORREIA, A.; RENAN, R.; RENNYER, W. (eds.). Pensamento & Realidade: Entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno [recurso eletrônico]. Porto Alegre, Editora Fi, p. 76-99..
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Justificamos esta tradução de ‘rhêma’ pelo fato de, no Teeteto, logos ser definido como “entrelaçamento de “nomes” (202b), sem fazer qualquer referência a “verbos”.
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Note-se que, ao contrário de Teeteto, nem o sofista, nem Heráclito, se envolveram com a questão do “saber”.
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No De anima, III,3,428a20-21, Aristóteles resolve o mistério da doxa com a introdução da noção de “convicção” (pistis), alegando que a verdade ou falsidade da doxa não podem depender de quem a profere se achar “convencido” de que ela é verdade.
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SANTOS, J. T. (2024). Protágoras no Teeteto: Argumentos da “defesa” e da “autorrefutação”. Archai 34, e03414
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
06 Jun 2023 -
Aceito
05 Set 2023