Resumo
Este artigo apresenta histórias de uma Confraria de lésbicas hoje idosas que viveram a juventude na cidade de Belo Horizonte. O objetivo é descrever como um grupo de lésbicas se constituiu em uma Confraria a partir do final dos anos 1970 e início dos 80 e, partindo dessas experiências, refletir sobre a invisibilidade lésbica à luz da heteronormatividade. Utilizando o conceito de estigma, busca-se captar os elementos que mantiveram essa geração de mulheres homossexuais entre o gueto, o armário e a invisibilidade, bem como conhecer as alternativas adotadas para estabelecer suas relações homoafetivas. Os dados coletados nas entrevistas em profundidade trazem à tona as estratégias adotadas para a construção de suas identidades e dos territórios seguros que lhes permitiram vivenciar seus desejos homoeróticos e se sociabilizarem entre iguais. Os guetos encontrados ou por elas construídos proporcionaram a vivência de seus proibidos afetos e a criação de longevos e persistentes laços de amizade que se consolidaram em uma potente rede de apoio entre elas na velhice.
Palavras-chave
lésbicas; estigma; gueto; heteronormatividade; invisibilidade
Abstract
This article presents stories of a fraternity of lesbians now elderly who lived their youth in the city of Belo Horizonte, Brazil. The objective here is to describe how a group of lesbians formed a fraternity from the late 70’s and early 80’s, and departing from their experiences, reflect on lesbian invisibility in the light of heteronormativity. We use the concept of stigma to capture the elements that kept the generation of homosexual women between the ghetto, the closet and invisibility, as well as to learn about the alternatives adopted by them to establish amorous relationships with other women. The data collected in the in-depth interviews bring to light the strategies adopted by to construct their identities and safe territories that allowed them to experience their homoerotic desires and socialize among equals. The ghettos found or built by them provided the experience of their forbidden affections and the creation of long-lived and persistent bonds of friendship that ended up consolidated in a powerful support network among them in old age.
Keywords
lesbians; stigma; ghetto; heteronormativity; invisibility
Resumen
Este artículo presenta historias de una Cofradía de lesbianas hoy ancianas que vivieron su juventud en la ciudad de Belo Horizonte. El objetivo es describir cómo un grupo de lesbianas constituyó una Cofradía desde finales de los años 70 y principios de los años 80 y, a partir de sus experiencias, reflexionar sobre la invisibilidad lésbica a la luz de la norma y del concepto de estigma, captando los elementos que mantuvieron a la generación de mujeres homosexuales entre el gueto, el armario y la invisibilidad, así como conociendo las alternativas adoptadas para la constitución de sus relaciones homoafectivas. Los datos recogidos en las entrevistas ponen profundamente de manifiesto las estrategias adoptadas para la construcción de sus identidades y de los territorios seguros que les permitieron experimentar sus deseos homoeróticos y socializar entre iguales. Los guetos proporcionaron la vivencia de sus afectos prohibidos y la creación de lazos de amistad duraderos y persistentes que se consolidaron en una poderosa red de apoyo entre ellas en la vejez.
Palabras clave
lésbica; estigma; gueto; heteronormatividad; invisibilidad
1. Um olhar panorâmico sobre o campo entendido
Éramos tratadas como doentes e pervertidas, párias da sociedade. Um horror! A sociedade hipócrita sempre nos tratou com nojo e desrespeito. Avançamos muito nessa questão, mas ainda estamos longe do ideal. (Capitu, 65 anos)
Fanchona, fancha, lorão, machorra, mulher macho, pata, maria sapatão, chuma, paraíba, lelé, sandalinha, boneca, caminhoneira, bofinho, machona, tomba homem, sapata, sapatona, sapatão!1 1 Os termos foram coletados por ocasião da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT (2011), ocorrida em Brasília (DF). Os homossexuais masculinos eram também designados de forma pejorativa: remendão em lugar de costureiro, refrigerados, bicharoca, bicharocagem, bicharoquice, bicha, bichona, arejado, plumitivo, desmunhecador (Morando, 2009). É importante nos determos sobre os sentidos das palavras: elas designam sujeitos, perpetuam preconceitos e marcam lugares na hierarquia social. Para Cavarero e Butler (2007CAVARERO, Adriana; BUTLER, Judith. 2007. “Condição humana contra ‘natureza’”. Estudos Feministas. setembro-dezembro de 2007. Vol. 15, no 3, p. 647-662.), o gênero é o efeito de um discurso sobre o corpo, produtor dos efeitos que nomeia. As expressões pejorativas que nomearam as lésbicas reforçaram o estigma que pairava sobre suas existências, cujos desdobramentos precisam ser considerados. Como tais discursos reverberaram e marcaram as vidas de mulheres que denominavam umas às outras como entendidas, uma vez que a palavra lésbica representava exposição demasiada?
Sim, entendidas2 2 A palavra é dicionarizada, mas não é de uso corrente nas novas gerações. Segundo o pesquisador Luiz Morando (2009), o termo “entendido” surgiu na virada dos anos 1950/60, em momento ainda indefinido. ! Assim, usualmente, se nomeavam as lésbicas nascidas por volta da década de 1950, obrigadas a viver sua sexualidade de maneira velada ou clandestina. Dessa forma, elas identificavam, entre seus pares, sua orientação sexual, sem, entretanto, serem expostas abertamente aos preconceitos vividos, de modo ainda mais contundente, noutros tempos. Muitas dessas mulheres, já adultas, passaram ao largo das discussões que vinham sendo feitas no âmbito do movimento lésbico feminista. Este é o caso do grupo de lésbicas que dá origem às reflexões contidas neste artigo. Elas viveram a juventude em Belo Horizonte e frequentaram os bares e as boates disponíveis para homossexuais na capital mineira no período entre 1970 e 2000, para preservar a intimidade e o anonimato, seus nomes foram substituídos por nomes de personagens da literatura; os nomes dos grupos, times de futebol, escolas onde estudaram, eventos e festas por elas promovidas foram mantidos no original. A essas mulheres denominaremos confreiras. Contudo, antes é preciso situar a origem da Confraria.
Ainda no final dos anos 1970, e se estendendo pela década de 80, constituiu-se um grupo de sociabilidade lésbica autonomeado “Vila Sésamo”. Eram lésbicas que conviviam nos bares e boates existentes na cidade, em geral administrados por ou de propriedade de três lésbicas fundamentais na história dessa faixa do segmento LGBTQIA na cidade: Norma Sueli (boate Chez Eux), Mani (bar Marrom Glacê e boate Plumas e Paetês) e Mariinha (Bar da Mariinha, além do período de sociedade com Mani) (Morando, 2018MORANDO, Luiz. 2018. “Vestígios de protoativismo LGBTQIA em Belo Horizonte (1950-1996)”. REBEH - Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. Outubro-dezembro de 2018. Vol. 01, no 4, p. 62-76. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/rebeh [Acesso em 10.12.2021]
https://www.revistas.unilab.edu.br/index... : 73-74).
O grupo Vila Sésamo3 3 O apelido do grupo foi dado por uma geração de mulheres mais maduras que as jovenzinhas que o compunham e era uma referência à turma do “Vila Sésamo”, cuja origem é um programa infantil, de mesmo nome, que foi ao ar entre os anos 1972 e 1977, graças a uma parceria entre a TV Cultura e a Rede Globo de Televisão. O apelido pegou e se espalhou na restrita cena lésbica belorizontina. , que atualmente se constitui em uma confraria de mulheres maduras, ficou conhecido na cena lésbica belo-horizontina por dois motivos: pela frequência e volume de jovens a ocupar os poucos bares e boates disponíveis na cidade e pelo forte elo que criaram a partir da prática esportiva.
Os jogos de futebol que as jovens do Vila Sésamo promoviam agregavam em torno delas um considerável número de jovens lésbicas. Várias entrevistadas relataram que, às vezes, no sábado, depois do jogo, havia cerca de quarenta pessoas, que bebiam, tocavam violão, atabaque e o samba rolava solto.
Uma das fundadoras da Confraria, à qual nos referiremos aqui como Capitu, relata que quando chegavam aos locais todo mundo sabia que era fulana do “Vila Sésamo”, “uma turma de mocinhas muito novinhas, muito bonitinhas, que todo mundo queria paquerar”. Jane Eyre (65 anos), talvez a principal referência do grupo, relembra que o handebol e, principalmente, o futebol foram os esportes que as reuniram: primeiro, jogando; depois, quando acabaram joelhos e tornozelos, torcendo, numa clara referência à ligação que elas mantiveram com essas práticas desportivas.
Neste artigo, discorremos sobre os desafios com os quais as jovens lésbicas de outrora precisaram lidar, como o estigma e a discriminação, e apresentamos as alternativas que encontraram para a vivência de seus afetos. As informações mais gerais foram coletadas nas entrevistas em profundidade com nove confreiras, mas aqui serão exploradas apenas passagens das entrevistas de Jane Eyre e Capitu a título de ilustração do que será apresentado. Além disso, foram incorporadas ao texto anotações e reflexões contidas em diário de campo.
A primeira autora deste texto convive com a referida Confraria há cerca de vinte e cinco anos, período de escuta de histórias singulares, engraçadas e desgraçadas. Contudo, a percepção de estar diante de um universo a ser pesquisado só ficou clara após o mestrado. Em uma das etapas da pesquisa que resultou na dissertação intitulada Estratégias de escolarização de homossexuais com sucesso acadêmico (Souza, 2013SOUZA, Janice Aparecida de. 2013. Estratégias de escolarização de homossexuais com sucesso acadêmico. 113 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), foram aplicados cem questionários às integrantes da Confraria. O material ficou flutuando de forma subaproveitada, até que nos demos conta do seu potencial para aprofundamento e conhecimento de um universo ainda pouco conhecido e explorado, assim, resolvemos perscrutar esse universo de lésbicas mais velhas. Na tese Vivências lésbicas na cidade de Belo Horizonte entre as décadas de 1970 e 2000: um retrato falado, entrevistamos vinte e uma mulheres nascidas entre as décadas de 1930 e 1960. Trabalhamos com três grupos distintos: um de proprietárias de bares e boates, um de suas frequentadoras e a Confraria que este artigo apresenta e que tem a sua origem no grupo Vila Sésamo. Estávamos diante de mulheres, em sua maioria, oriundas das tradicionais famílias mineiras, cujo peso do conservadorismo incidia de forma impactante sobre elas. Em que pesem tais condições, elas construíram trajetórias singulares em plena ditadura civil-militar em uma cidade conservadora - Belo Horizonte -, em tempos de amplas restrições de liberdades, e as histórias delas, que sempre circularam a “boca miúda”, estavam por ser registradas, ainda que o tempo, que a todes atravessa e põe “fim”, estivesse limitando tal possibilidade. A longa convivência, somada aos laços de amizade e confiança construídos com o grupo, proporcionou a oportunidade de acessar um universo restrito e contornar a reserva comum à geração de mulheres mais velhas, principalmente no que tange às questões de foro íntimo.
Em algum lugar do passado, moram histórias, resistências, memórias! Repousam ainda sonhos, dores e lutas. Essas lésbicas, atualmente na faixa etária entre 60 e 70 anos, precisaram se inventar diante de um desejo incompreendido e encontrar formas de amar em meio a repressões, violências, opressões e injúrias.
Nesse universo, o armário se apresenta como uma estratégia de proteção, e a invisibilidade se insinua como uma via de mão dupla. De um lado, está a sociedade, que estigmatiza, rotula ou prefere não enxergar essas mulheres dissidentes, principalmente como cidadãs detentoras de direitos. Por outro lado, parece-nos, as lésbicas preferiram não serem vistas a fim de se protegerem de situações embaraçosas e das violências físicas e simbólicas de que poderiam ser alvo, resultando na sua invisibilidade, questionamento já apresentado por Tânia Navarro-Swain (2004):
Onde escondem-se e esconderam-se as lésbicas? Em que nicho de obscuridade e silêncio se pode encontrá-las? Não se fala delas por que não existiram? Ou sua existência representa a desestabilização e o caos na ordem ‘natural’ da heterossexualidade dominada pelo masculino? (Tânia Navarro-Swain, 2004NAVARRO-SWAIN, Tania. 2004. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense. 101 p.: 13)
As gerações mais antigas de lésbicas tiveram suas existências invisibilizadas, suas vozes silenciadas, seus direitos negados e foram estigmatizadas, como se o amor não fosse um direito humano.
Pensar o lugar marginal ocupado pelas lésbicas nos permite compreender a opção pelos guetos, as marcas do estigma que carregam e o motivo da invisibilidade delas em uma sociedade fortemente impregnada pela heteronorma. As lésbicas, diferentemente de pessoas heterossexuais, não estão incluídas, não são aceitas e os preconceitos que sofrem implicam em modos de vida muito particulares. Era comum a essa geração de mulheres uma vida entre o armário e o gueto, territórios nos quais podiam viver suas relações afetivas e sexuais.
De acordo com Sedgwick (2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. 2007. “A epistemologia do armário”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2007. No 28, p. 19-54. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf [Acesso em 15.12.2020].
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf...
: 22), “O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. [...] é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays [...] e, cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora”. Segundo a autora, mesmo entre pessoas assumidamente homossexuais, “há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas” (Sedgwick, 2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. 2007. “A epistemologia do armário”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2007. No 28, p. 19-54. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf [Acesso em 15.12.2020].
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf...
: 22).
Para tentar entender a invisibilidade da homossexualidade feminina, é preciso trazer à tona o modelo heteronormativo, que impõe e aceita como única forma de amor legítima a que acontece entre seres humanos de sexos diferentes. A esse modelo, que impõe normas integralmente masculinas ou femininas e considera a heterossexualidade a única orientação sexual normal, somam-se o sexismo, que privilegia pessoas do sexo masculino, e o patriarcado, sistema social de relações de gênero hierarquicamente desiguais entre si, presente em muitos aspectos da vida social, nos quais a mulher se encontra em desvantagem em relação aos homens. Tais padrões de desigualdade são reproduzidos ao longo do tempo no interior das estruturas sociais com conexões causais em diversas áreas (Walby, 2010WALBY, Sylvia. 2010. “Patricarcado”. In: SCOTT, John. Sociologia: conceitos-chave. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 155-157. 248 p.). Há que se considerar todo esse cenário pesando sobre vidas femininas divergentes do modelo imposto, esperado e desejado na sociedade, com ramificações que se espraiam nas relações familiares, escolares, profissionais e existenciais. Dados coletados nas entrevistas apontam os constrangimentos vividos por essas mulheres quanto a expectativas e cobranças familiares sobre quando se casariam e se teriam filhos - é o patriarcado impondo suas bases à existência delas. Na mulher, sua “natureza está presente, mas cativa, moldada por uma vontade humana segundo o desejo do homem” (Beauvoir, 1980BEAUVOIR, Simone de. 1980. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Vol. 1. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 309 p.: 201). De acordo com Weber (1991WEBER, Max. 1991. Economia e sociedade. Brasília: UNB. 584 p.), a submissão ao senhor garante a legitimidade das regras por ele estatuídas. Existir fora dos preceitos patriarcais para uma mulher heterossexual já exige muito; sendo lésbica, é quase uma maldição. Em cenário tão profundamente desfavorável, a invisibilidade proporcionada por uma vida vivida no armário foi apontada como aspecto favorável para a tessitura de suas estratégias, a fim de encontrarem alternativas para suas relações dissidentes daquela imposta pelo sistema sexo-gênero. Ainda que vivida clandestinamente, a orientação sexual delas trouxe consequências. Segundo Eribon (2008ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 450 p.: 30), “todas as pesquisas de opinião feitas junto aos homossexuais (dos dois sexos) atestam que a experiência do insulto (sem falar até da agressão física) é um dos traços mais comum de suas existências”.
Estudos sobre processos de estigmatização têm mostrado que ele é inicialmente atribuído pelo exterior, seja individual ou coletivo; em seguida, internalizado pelos/as estigmatizados/as, potencializando seu poder de discriminação:
[...] afixar o rótulo de ‘valor humano inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso costuma penetrar na autoimagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo. [...] assim, a exclusão social e a estigmatização dos outsiders (estranhos, desviantes) pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar (Elias; Scotson, 2000ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. 2000. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 225 p.: 24).
Em grupos desviantes, processos de estigmatização e rotulagem são comuns. O desviante é alguém a quem o rótulo foi aplicado com sucesso e o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal, o que acarretaria importantes e deletérias consequências para o convívio social e para a autoimagem do indivíduo, situação que pode levar as pessoas a evitarem alianças embaraçosas com a sociedade convencional. Para Becker (2008BECKER, Howard S. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 231 p.), aos processos de imposição de rótulos sobre aqueles que são designados como desviantes se seguiriam a aceitação do rótulo e a busca por uma comunidade desviante em que o rótulo se tornaria normal. A comunidade desviante na qual as sexagenárias e septuagenárias lésbicas pesquisadas se inserem precisou ser criada e forjada entre as montanhas e os rigores da tradicional família mineira, contexto que imprimiu características distintas a essa comunidade, marcando-a com o peso do silêncio e da discrição como uma das principais virtudes esperadas das mulheres naqueles tempos.
2. Entre preconceitos explícitos, vidas veladas, identidades forjadas
O ato de discutir e problematizar as homossexualidades nos possibilita, como afirma Anderson Ferrari (2008FERRARI, Anderson. 2008. “E quando as homossexualidades invadem a escola?” In: MARQUES, Luciana P.; MARQUES, Carlos A. (orgs.) 2008. (Re) significando o Outro. Juiz de Fora: UFJF. p. 47-49. 142 p.), não apenas pensar as sexualidades, suas práticas e discursos, mas sobretudo nos coloca o desafio de repensar as representações e as identidades que estão presentes na sociedade em geral. No entendimento de Hall (2006HALL, Stuart. 2006. A identidade cultural na Pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 102 p.), a identidade se forma ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, não é algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Por sua vez, Goffman (1988GOFFMAN, Erwing. 1988. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC. 124 p.: 80) sugere que “a identidade social de um indivíduo divide o seu mundo de pessoas e lugares”.
De acordo com Bauman (2005BAUMAN, Zygmunt. 2005. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 112 p.), identidade é algo a ser inventado, e não a ser descoberto; como alvo de um esforço, um objetivo. Para o autor, em um mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, é um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, não para armazenar e manter. Acreditamos ser possível perscrutar a identidade que essa geração de mulheres usou e exibiu, pelo menos no período de maior proximidade, efervescência e convivência nos guetos, local de segurança para aquelas que foram estigmatizadas e rotuladas como desviantes.
Há que se levar em conta a questão geracional como agregadora de algumas singularidades e potencial influenciadora do modo como elas se viam, como eram vistas e como foram capazes de encontrar pessoas e lugares possíveis ou inventar os seus territórios de modo a construir caminhos para se relacionarem. A homossexualidade dessas mulheres hoje maduras não foi vivida de forma explícita; a muitas coube uma vida na clandestinidade e foi nessa vida clandestina que elas percorreram caminhos na direção dos guetos - bares e boates - ou na construção de seus espaços privados e neles se irmanaram. Os laços criados entre elas se ancoram em uma tendência geral de aglutinação que se dá em função de interesses comuns, laços de amizade e afinidades recíprocas. Assim, cabe considerar que a identidade pode ser vista como uma potência que aglutina, por permitir que um/a seja identificado/a por um/a outro/a. Ela pode funcionar também como proteção em uma trincheira na qual semelhantes se escolhem, acolhem e tentam se proteger.
Nesse sentido, a prática de alugar casas e sítios era recorrente, desde muito jovens, ainda nos tempos em que se encontravam para jogar futebol. Essa foi uma das estratégias criadas por elas para viverem seus momentos de privacidade livremente. Além dos frequentes aluguéis de locais para passarem feriados e finais de semana, alguns casais os alugavam por temporadas. Sobre essa estratégia, Jane Eyre nos conta um pouco:
[...] outra prática muito comum era a gente alugar um sítio, por exemplo. Às vezes, a gente fazia até um aluguel permanente, assim, tipo um ano, como se fosse um clubinho, e era um clubinho mesmo. Às vezes, a gente compartilhava aquilo ali com cinquenta pessoas [...], cotizava as despesas mensais e a gente fazia o esquema, quem vai nesse fim de semana, sorteava quem ia poder dormir etc. [...] E ali a gente fazia festas, a gente fazia Réveillon, e era um clubinho mesmo, privê, com tudo que a gente tinha direito. Fazia muito churrasco, muita bebedeira, muita cerveja. Às vezes, já alugamos sítios que tinham quadras, ou campo de futebol. A gente jogava porque a maior parte era ligada a esporte. (Jane Eyre, 65 anos)
A convivência nos sítios e em outros guetos gerou uma enormidade de histórias e a reconfiguração de casais dentro do próprio grupo, em que as trocas de namoradas eram triviais. As entrevistadas relataram que o universo de opções delas era infinitamente menor que o disponível ao universo hétero, que o risco de buscar novas tribos era grande. Sentiam-se inseguras quanto às chances de encontrar outros amores fora do próprio grupo. Assim, com a convivência, acabavam se apaixonando “com alguém de alguém”. Nessas situações, dores e rancores eram frequentes, mas diluídos e perdoados ao longo do tempo; e a convivência, mantida. Outro aspecto desse universo feminino que chama a atenção é se tal fato se relaciona com características próprias do universo feminino ou à necessidade de se manterem unidas. A manutenção de relações de amizade entre ex-amores no universo heterossexual é bem menos trivial.
No caso da Confraria, elas se uniram e se fecharam para se blindarem de preconceitos tão explícitos à época e para viverem suas relações afetivas e sexuais. Era divertido e festivo, mas também constrangedor e difícil. A orientação sexual delas era vista como algo moralmente condenável. Há possibilidades de que suas histórias abarquem representações de um universo muito maior de mulheres homossexuais, da mesma geração, que travaram lutas semelhantes em outras regiões do Brasil.
Conforme já mencionado, optamos por nos referir às lésbicas que deram origem à pesquisa utilizando o termo confreiras. Contudo, este é apenas um dentre os muitos codinomes que foram criados e utilizados por elas, a depender da época, do evento ou do propósito em pauta, como demonstraremos ao longo deste artigo.
As confreiras mantiveram vínculos de convivência e amizade que remontam à juventude, passaram ao largo das discussões do movimento lésbico que se desenvolvia em São Paulo e Rio de Janeiro4 4 Miriam Martinho, cofundadora dos primeiros grupos de lésbicas brasileiro, diz desconhecer que tenha havido um movimento como o GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista) em Minas Gerais. , mas vivenciaram juntas as dores e as delícias de serem quem são na cidade de Belo Horizonte, sob o impacto de vinte e um anos de ditadura civil-militar, cercadas pelas montanhas, pelos olhares, julgamentos e rigores da tradicional família mineira.
Exemplo das limitações impostas pelo regime civil-militar pode ser encontrado na ‘Operação Sapatão’ realizada na cidade de São Paulo, em 15 de novembro de 1980, sob o comando do então delegado José Wilson Richetti, conhecido por comandar rondas policiais violentas contra homossexuais. Dentre as várias operações e batidas frequentes em bares e boates destinados ao público homossexual, aquela teve como foco os bares frequentados pelas lésbicas na capital paulista. Foram invadidos o Ferro’s, Último Tango, Canapé e Cachação, todos na rua Martinho Prado (Oliveira, 2017OLIVEIRA, Luana F. 2017. “Quem tem medo de sapatão? Resistência lésbica à Ditadura Civil-Militar (1964-1985)”. 2017. Periódicus. Maio-outubro de 2017. Vol. 1, no 7, p. 6-19. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/21694/14301 [Acesso em 11.12.2020].
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: 16).
No fim, todo mundo teve que pagar. Quanto tivesse. A moça não viu ninguém sendo fichado, mas a polícia ficou com os nomes e os números de todas. Um mês depois da operação, o ambiente na Rua Martinho Prado era desalentador. Bares e boates vazias. Até na rua, pouca circulação. Sinal de que daqui pra frente as lésbicas não teriam sossego nem nos poucos bares “em que são confinadas” (Colaço, 2009COLAÇO, Rita. (05.04.2009). Operação Sapatão - Richetti. 15 nov. 1980. Memória/História MHBML-GBT. Disponível em: Disponível em: https://memoriamhb.blogspot.com/2009/04/operacao-sapatao-richetti-15-nov-1980.html [Acesso em 11.12.2020].
https://memoriamhb.blogspot.com/2009/04/... apud Oliveira, 2017OLIVEIRA, Luana F. 2017. “Quem tem medo de sapatão? Resistência lésbica à Ditadura Civil-Militar (1964-1985)”. 2017. Periódicus. Maio-outubro de 2017. Vol. 1, no 7, p. 6-19. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/21694/14301 [Acesso em 11.12.2020].
https://periodicos.ufba.br/index.php/rev... : 16).
Uma das confreiras passou por situação semelhante na cidade de Belo Horizonte ao ser pega nas imediações do estádio de futebol Mineirão com a sua namorada dentro do carro: ambas foram extorquidas, tendo que entregar o que tinham nas carteiras para se livrarem das ameaças. Embora o “confinamento” e o medo da repressão possam ser comuns às lésbicas que viveram dramas semelhantes no mesmo período, nas mais diversas regiões do Brasil, as reservadas mineiras que viveram na então “pacata” Belo Horizonte evitaram envolvimentos políticos e exposições. Os atravessamentos entre ditadura e homossexualidade foram relatados mais como algo que pairava no ar do que vivido na carne, contudo, as interações sociais entre as lésbicas mineiras carregam suas peculiaridades. Pensando na perspectiva apontada por Simmel (1983SIMMEL, Georg. 1983. “Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal”. In: M. Filho, E. (org.) Georg Simmel. São Paulo: Ática. p. 165-181. 189 p.), as interações sociais surgem com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Assim sendo, podemos pensar os vínculos por elas construídos ancorados não só na resistência a uma heterossexualidade compulsória, mas também como desdobramento da necessidade de se preservarem de violências físicas e simbólicas, conhecerem seus pares e com elas se relacionarem.
2.1 De algum lugar do passado aos vínculos presentes
As jovens do Vila Sésamo, inicialmente unidas pela prática de esportes, criaram laços de amizade que resistiram aos anos, bem como construíram estratégias para viver, à revelia do modelo patriarcal e heteronormativo, a negada sexualidade que desejavam.
Os primeiros contatos entre elas se deram em dois colégios da capital mineira - Champagnat e Batista Mineiro. A partir dessas escolas, formaram-se dois times de futebol que congregavam as então jovens meninas: o “Come Aqui” e o “Cubelo”. O primeiro se reunia mais frequentemente na Quadra dos 15, na rua General Carneiro; o segundo, na Quadra do Branco, na avenida Petrolina. Chegaram a ser vitoriosas com o time “Cabeça” no II Torneio Feminino de Futebol, ocorrido em Belo Horizonte, evento noticiado em reportagem do jornal Diário da Tarde de 23 de junho de 1981. O encontro dos times ampliou o círculo e lotou a arquibancada, muitas jovens iam aos jogos para paquerar, o que possibilitou a formação de vários casais entre elas. Mas para além de encontros amorosos, esses espaços permitiam a elas estabelecerem amizades e construírem redes de sociabilidades que substituíam muitas vezes aquelas formadas por amigos/as de infância e a própria família. Nas palavras de Eribon,
Os amigos encontrados nos lugares gays substituem as relações familiares, mais ou menos deixadas de lado, assim como as relações no lugar de trabalho, tão difíceis de se estabelecer e de serem mantidas para um gay ou uma lésbica, sobretudo quando procuram esconder o que são. (Eribon, 2008ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 450 p.: 51)
À revelia das normas e convenções sociais impostas, elas resistiram e construíram uma rede de convivência e apoio. “Jogos e bebidas sempre estiveram muito presentes. Tanto a prática esportiva de campos e quadras, quanto os jogos de cartas, como truco e pôquer, comportamentos próprios do universo masculino até então” (Jane Eyre, 65 anos).
Fica evidente o volume de mulheres e a intensidade da convivência entre as confreiras de forma muito marcada quando jovens estudantes. À medida que foram construindo suas carreiras profissionais, elas se mantiveram jogando futebol por muito tempo nos finais de semana; depois, concentraram-se no vôlei. Esses eventos rotineiramente terminavam nas mesas dos bares do entorno de onde jogavam. Com o passar do tempo, os encontros foram ficando mais pontuais: no bar da amiga, em festas de aniversários e réveillons, em viagens nacionais ou internacionais que faziam e fazem juntas, nos encontros para assistirem na televisão às partidas de futebol ou irem aos estádios. À medida que foram se aposentando, presenciamos a retomada dos encontros com algum vigor, mas em grupos menores: o processo de envelhecimento agregava suas peculiaridades, com a ‘quantidade’ cedendo espaço à ‘qualidade’ das relações que desejavam.
O esporte continuou sendo um elemento central para a coesão das confreiras em tempos presentes. Dentre os diferentes grupos de WhatsApp que elas criaram a partir da disseminação dessa tecnologia, o que mais congrega participantes é exatamente o Cartoleiras das Minas5 5 O Cartoleiras das Minas está vinculado ao Cartola. Ele tem um aplicativo oficial e milhares de outros apps relacionados, tendo se transformado em um negócio gigantesco. Cf. o portal https://globoesporte.globo.com/cartola-fc/ . Jane Eyre (65 anos) relatou que o grupo mais ativo no qual a “sapataria” que ela conhece se organiza atualmente é o Cartoleiras. “Ele é totalmente focado no jogo e na festa de premiação, que virou um mini Baile do Papel Almasso”6 6 A grafia com “SS” se refere a uma brincadeira do grupo: “Super Sapatas”. O papel almaço é uma referência a uma folha de papel dupla e pautada usada na geração delas. , evento que merece destaque e sobre o qual discorremos na próxima subseção.
Os dados a seguir fornecem um perfil aproximado das confreiras e suas amigas. Como mencionando anteriormente, durante nossa pesquisa para o mestrado em 2011, foram aplicados cem questionários: uma parte, disponibilizada na rede social da Confraria; outra parte aplicada nos encontros mensais que aconteciam por ocasião da organização da terceira edição do Baile do Papel Almasso, que contou com quatro edições: em 2009, 2010, 2011 e 2017. Quando inquiridas sobre a orientação sexual, 55% das entrevistadas se declararam homossexuais; 16%, lésbicas; 14%, bissexuais; 7%, gays; 7% não se definiram e apenas 1% não respondeu. Chama a atenção que apenas 16% das entrevistadas tenham se declarado lésbicas. A justificativa era que a palavra carregava uma conotação pejorativa e que elas preferiam se identificar como homossexual ou gay.
Curioso perceber que, ainda em dias atuais, a palavra lésbica esteja praticamente ausente do vocabulário das mais velhas. Com relação aos 14% das entrevistadas que se declararam bissexuais, nenhuma delas estava em relacionamentos afetivos ou sexuais com homens no momento da pesquisa, sendo possível que essa identificação estivesse ligada mais com uma possível experiência ou lembrança vinda de algum lugar do passado. A oportunidade de explorar essa incógnita surgiu em alguns encontros, nos quais várias relataram ter tido algum namorado quando jovem e ainda viviam com os pais. Já outras disseram ter lançado mão da companhia de um amigo gay que desempenhou o papel de namorado em algum evento familiar ou profissional.
Quanto ao grau de escolaridade, os dados coletados pelos questionários aplicados em 2011 indicam que 40% tinham pós-graduação/especialização; 32%, graduação completa; 14%, Ensino Médio; 9%, graduação incompleta e 5%, mestrado/doutorado.
Saindo dos questionários aplicados por ocasião do mestrado já referido e nos atendo aos dados coletados mais recentemente no doutorado, em relação ao pertencimento de classe, todas se situaram na classe média, refletindo o nível de escolarização e as profissões declaradas por elas, o que não significa que todas tenham o mesmo poder aquisitivo, há uma grande variação de renda entre elas. Contudo, dentre as entrevistadas apenas uma relatou ter passado recentemente por dificuldades financeiras com o bar de sua propriedade, mas pôde contar com o auxílio das confreiras para superar esse momento: elas compraram vouchers como antecipação de receita e ajudaram com o pagamento do salário da funcionária do bar e dos custos operacionais por um ano. Ainda assim, o bar não resistiu ao período pandêmico. Sobre a questão racial tão ligada à classe social no Brasil, somente uma entrevistada se autodeclarou parda, mas ficou em dúvida se seria branca...
Os dados coletados foram atualizados e aprofundados nas entrevistas em profundidade que dão corpo à tese já mencionada na qual este artigo teve sua origem e estão apresentados na tabela a seguir. Nela constam informações sobre nove confreiras entrevistadas para a tese. Embora sejam exploradas as entrevistas de duas confreiras (Jane Eyre e Capitu), várias das análises feitas ao longo deste artigo foram desenvolvidas a partir do conteúdo dessas nove entrevistas. Como podemos observar, o perfil socioeconômico delas não variou muito em relação ao que foi encontrado nos questionários aplicados em 2011.
O hábito de uma vida em gueto se mantém entre elas, característica que se apresenta bastante razoável se analisada à luz dos tempos por elas vividos e das marcas por eles deixadas. Algumas vivências de preconceitos e discriminação experienciadas por lésbicas costumam oscilar entre a aversão e o desejo. Em ambas as situações, a vulnerabilidade feminina há que ser levada em consideração. Quando se pensa o uso da cidade e dos espaços que nela se cria para a interação entre as pessoas, é preciso considerar a hostilidade e os riscos que uma exposição pública da homossexualidade impõe. Se ainda em dias atuais há riscos, o período de restrições de liberdades no qual as confreiras viveram suas juventudes colocou para elas desafios ainda maiores. Ser desviante em plena ditadura exige táticas e estratégias de sobrevivência.
O Baile do Papel Almasso foi uma das várias estratégias encontradas por elas para continuarem a viver à revelia da heteronorma. Mesmo com a redução da pressão pós-regime civil-militar, ficaram as marcas, os temores e os hábitos comuns a quem carrega um estigma. Ao ser perguntada se sentia orgulho da sua vida como mulher lésbica, Jane Eyre responde em tom reflexivo e hesitante: “Orgulho, nunca. Nunca. [...] Hoje eu acho que eu vivo a síntese, a aceitação e tolerância. Acho que aconteceram juntas, mas muito mais recentes, muito recentes...”
Em que pesem as trajetórias ricas e instigantes vividas nos guetos pelas hoje sexagenárias e septuagenárias lésbicas, no que se refere ao lugar por elas ocupado na sociedade nos âmbitos profissional, familiar e social, o desconforto e o constrangimento sempre estiveram presentes. Jane Eyre faz um relato bastante comovente:
[...] tinha um desses lugares que a gente frequentava, que era de um senhor mais velho, bonachão, e ele tratava a gente superbem, mas ele tinha um filho que olhava para a gente com raiva. Visivelmente. E esse cara, um dia, eu fui ao Mineirão, com uma parte dessa turma que jogava futebol, fomos ao Mineirão [...] e quando a gente estava chegando, a gente estava indo ao bar comprar uma cerveja para entrar para o campo - naquela época era liberado. Ele estava com um grupinho de mais uns dois ou três, mais afastado. E ele, de repente, começou a gritar para o Mineirão inteiro que estava por perto, todo mundo fica embolado nos bares, foi um constrangimento horroroso.
- Ah!, sapatão! Olha a sapatão aí, gente. Olha aí, que bando de sapatão. É vocês mesmo. É, tá olhando o quê?
Foi um negócio horroroso. Foi um negócio horroroso. Esse marcou demais. Nós ficamos tão chateadas! Imagina, todo mundo olhando pra gente e ele gritando, e os amigos dele rindo. Aí o povo olhava, uns ria, outros... Foi a pior sensação. [...] Foi num lugar com muita gente, e a gente se sentindo a pior coisa que tem. Todo mundo olhando para a gente, com aquele olhar... Um lugar muito masculino também, que é um campo de futebol...
Os espaços públicos legaram a essas mulheres muitos constrangimentos. As delícias ficaram restritas aos guetos e espaços privados, áreas nas quais esbanjaram criatividade e união.
2.2 Territórios entendidos entre elas
É possível considerar um território a partir das interações humanas que se dão em determinado espaço físico, mas também, como afirmam Guattari e Rolnik (1996GUATTARI, E.; ROLNIK, S. 1996. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes. 1996. 439 p.), enquanto território existencial, relativo tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’. Cientes da impossibilidade de um conceito unificador para o termo, neste artigo nós o consideramos em sentido amplo e em consonância com o objeto em estudo.
A cena lésbica noturna de Belo Horizonte foi capitaneada pela trindade Norma Sueli - Mani - Mariinha. Elas foram as pioneiras, abriram os primeiros bares e boates na cidade a partir do início dos anos 1970.
Dentre os disponíveis para essa geração de lésbicas, os que figuram em seus repertórios de casos e lembranças eram basicamente o que a cidade dispunha e foram frequentados mais assiduamente ao longo dos anos 1970 e 1990 (o período de funcionamento de alguns é aproximado). Um dos primeiros frequentados foi o Stage Door, sua existência data do ano de 1968, no início dos anos 1970 foi arrendado por uma lésbica e seu sócio, momento que as entendidas da época passaram a ocupar o espaço mais intensamente, o bar funcionava no Teatro Marília; havia também a rua Sergipe, espaço conhecido na época como “Rua da Lama”; o Frater (1992-1994), na rua Levindo Lopes; as boates Chez Eux (1975), Marrom Glacê (no final dos anos 1970) e Plumas e Paetês (1981-1991) - os espaços disponíveis para o público homossexual feminino eram poucos7 7 O mapeamento das boates e bares frequentados consta como anexo no final deste artigo. . Foram entrevistadas, além das pioneiras proprietárias desses espaços, outras figuras importantes na cena homossexual belo-horizontina. Lamentavelmente, algumas viraram estrela e levaram consigo muitas histórias que ficaram por serem contadas e registradas.
Além da modesta cena lésbica belo-horizontina focalizada neste artigo, elas criaram outros territórios para seus encontros. Um exemplo é o Festiranga, quando jovens; na fase madura da vida, o Cartoleiras das Minas; o Vaga Beer (apresentados mais adiante) e o Baile do Papel Almasso. A proposta deste último nasceu do desejo de reencontrar aquelas amigas que foram ficando pelo caminho. Com considerável expertise na realização de festas e eventos, elas mobilizaram suas competências e formalizaram a Confraria em 2009. Na abertura do livro de registro de sua criação, consta o seguinte texto:
Baile do Papel Almasso
Regras iniciais da Confraria 11/02/2009
Primeiro objetivo: festa de confraternização de final de ano.
Data: 27 ou 28/11/ 09 - Decisão em 04/03/2009
Adesão: por meio da aquisição de camiseta ao custo estimado de R$ 10,00 que deverá ser usada nas reuniões mensais da Confraria. Participantes: máximo de 200, sempre indicados por algum já inscrito e sujeitos a aprovação da comissão organizadora. A característica do evento será definida em função do valor arrecadado.
Desistência: não haverá devolução. A cota de participação poderá ser repassada para outra pessoa, também sujeita à aprovação da comissão organizadora.
Estilo de festa inicialmente pretendida: salão de festas, música ao vivo. Bebidas incluídas: espumantes, cerveja, whisky, refrigerantes e água. Segurança, buffet, decoração, garçons, faxineiras.
[...]
Reuniões: toda primeira quarta-feira do mês, para prestação de contas, avaliação e decisão sobre os próximos passos.
Pagamentos: primeiro pagamento em 04/03/2009, com depósito em conta a ser definida ou entregue na reunião. [...] O valor básico de R$ 10,00 poderá ser majorado caso seja comprovada a necessidade e aprovado em Assembleia mensal. Próximas decisões serão registradas neste livro a cada reunião, marcada para 04/03/2009 a próxima.
A Confraria superou as expectativas e mobilizou 205 participantes, conforme relação em seu livro de criação, no qual era oficializada a adesão e foram estabelecidos os critérios para a participação. Os encontros aconteciam mensalmente. Além dos objetivos elencados acima, fica evidente o tom seletivo do grupo, mas demonstra também o desejo de tornar o evento acessível àquelas que atendiam aos requisitos exigidos.
A capacidade de mobilização de um grupo tão expressivo tem suas raízes nas relações criadas na juventude. Uma característica comum à Confraria é manter vínculos de amizade com a maioria das ex-namoradas, mesmo quando a relação termina em conflito, o que acaba contribuindo para a coesão do grupo. O tempo, o sentimento de pertencimento a um mesmo gueto, a manutenção dos laços de longa data e os contatos relativamente frequentes parecem amenizar os motivos do término da relação. Uma delas disse, certa vez, que, se fosse romper relações por causa das mulheres que namorou de alguém, não seria amiga de ninguém. Tais atitudes de tolerância parecem evidenciar a importância de minimizar conflitos e manter laços.
Por ocasião do Baile do Papel Almasso, elas criaram também um grupo virtual para interação, prestação de contas e postagem de fotos das festas que aconteceram em 2009, 2010, 2011 e 2016. O texto de abertura assim o apresentava:
[...] é uma Confraria de amigas que se reúnem toda primeira quarta-feira do mês no “Cantinho da Úrsula” e, anualmente, no último sábado de novembro, em uma bela festa noturna, animada, dançante, de alto astral, pra dar a largada nas festas de comemoração de final de ano, recarregando as baterias para mais um ano de saúde, alegria e sucesso (Texto extraído do yahoo groups, acesso em 14 ago. 2019).
Como o objetivo era fazer uma festa na qual o maior número possível dessas mulheres que conviveram um dia estivesse presente, elas propuseram encontros mensais no bar da Úrsula, uma das confreiras, localizado no bairro Sagrada Família, regional Leste de Belo Horizonte. O pagamento parcelado foi a alternativa encontrada para que todas pudessem participar, contribuindo aos poucos. Os encontros mensais colaboravam, ainda, para movimentar, de forma solidária e bastante festiva, o bar.
As três primeiras edições do Baile do Papel Almasso foram realizadas em um salão de festas situado no bairro Cidade Nova; a de 2017 ocorreu na casa noturna Liberty Hall. Paralelamente aos encontros mensais para a organização e realização do baile, foram feitas campanhas solidárias para recebimento de livros, roupas, auxílio financeiro para aquisição de algum remédio e alimentos para doação. Há, entre as confreiras, algumas que capitaneiam tais ações e várias que com elas contribuem.
Quando jovens, os incipientes encontros aconteciam em quadras para a prática de esportes e em bares. Um deles, de propriedade de uma das confreiras, o Cabeça de Touro (1978-1979), funcionou em uma garagem na rua João Carlos, no bairro Sagrada Família. A mesma confreira manteve, até recentemente, o bar Cantinho da Úrsula no mesmo bairro. Lamentavelmente, o estabelecimento fechou em 2021, diante dos desafios impostos pela pandemia de Covid-19.
Ambos os espaços foram redutos de muitos encontros e se tornaram importantes locais de convivência e confraternização entre elas. O Cabeça de Touro foi local onde viagens, férias e novos encontros eram combinados, além de ser espaço onde foi gestado o Festiranga. Tratava-se de uma festa durante a qual as participantes vestiam um traje barango para a época e faziam concurso de músicas e performances também barangas, com premiação das melhores. O Festiranga aconteceu entre o final dos anos 1970 e 1980. A primeira edição foi realizada no próprio Cabeça de Touro; as edições seguintes migraram para espaços alugados. A festa contava com público restrito, sempre fartamente regada a comes, bebes, muita música e dança!
Eu estava na organização do Festiranga. O Festiranga nasceu no bar da Úrsula, o Cabecinha. Era uma garagem, as mesas eram aqueles carretéis enormes de fiação da Cemig. A gente sentava lá, tomava todas e cantava. Tivemos essa ideia: “vamos fazer um Festiranga?”, lá dentro do bar. Todo mundo vestido de baranga. Quem instituiu esse nome eu não sei. Aí fomos todo mundo de baranga e ficou. Aí “vamos fazer outro?”. Aí foi aumentando, aumentando, alugamos sítio, vendemos convites, tomou outra proporção. (Capitu, 65 anos)
As festivas jovens lésbicas de outrora envelheceram e seguem celebrando a vida e os encontros. Se os eventos foram muitos na juventude, na maturidade se mantiveram ainda com algum vigor, como é o caso do Vaga Beer. Este é o nome do evento que uma das líderes da Confraria criou em 2011 para comemorar a aposentadoria. Os eventos do Vaga Beer são semestrais. Os encontros acontecem intencionalmente às segundas-feiras à tarde, ocasião na qual o livro de adesão é assinado e a feliz aposentada recebe a Medalha do Mérito Vagaba. A medalha conta com três categorias: bronze para aquelas que se aposentaram, mas continuam trabalhando; prata para as aposentadas que eventualmente fazem alguns bicos; para as aposentadas plenas, medalha de ouro!
Mantendo a linha seletiva e organizada, peculiar ao grupo, o Vaga Beer também tem um livro de adesão no qual consta o seguinte texto de abertura:
Contrato de Adesão: solicito minha adesão ao grupo “Vaga Beer”. Declaro que sou aposentada/me aposentarei ao longo do ano de X, sem intenção de permanecer em qualquer atividade remunerada com trabalho executado regularmente.
Sustentando a tradição histórica, a Confraria realiza seus encontros em festas fechadas, promovidas por elas, ou em bares com os quais criaram algum tipo de vínculo, como é o caso do bar de uma delas, ou o Bar do Luizinho, no Prado, e o Mané Doido, no Mercado Central. Este último foi palco da primeira edição do Vaga Beer em 2011.
Embora a maneira formal e cuidadosa com a qual elas organizam suas festas e eventos possa indicar certa burocracia, o argumento delas refere-se aos cuidados necessários com a transparência quando as ações envolvem valores monetários. Outras vezes é para festejar na forma, um pretexto para a farra, como acontece no ato da assinatura dos livros ou na concessão de uma medalha ou crachá, puro divertimento.
Os eventos criados no Vila Sésamo metamorfoseado em Confraria se apresentam como potentes e criativas estratégias para a vivência dos relacionamentos homoafetivos das entrevistadas e ilustram como a manutenção dos vínculos criados nos guetos alicerçou a longeva convivência que possibilitou também a construção de uma rede de apoio entre elas. Quando jovens, foram capazes de criar tanto espaços abertos o suficiente para permitir a eventual entrada de novas possibilidades de afeto e namoro quanto restritos o bastante para preservarem os casais formados e se blindarem de violências. Exemplos das estratégias por elas adotadas quando jovens são encontrados nas várias edições do Festiranga, nos jogos de handebol e futebol que promoviam, nas viagens e celebrações de datas especiais (como aniversários e réveillons), no aluguel de barracões, casas e sítios compartilhados até o final dos anos 1990.
A partir dos anos 2000, já em uma fase mais madura, nomeando-se confreiras e seguindo o fluxo da vida e das possibilidades trazidas pela contemporaneidade na área tecnológica, suas derivações e implicações, elas mantêm contato via redes sociais, como Facebook e WhatsApp. Tais contatos se intensificaram nesses espaços devido ao isolamento social em virtude da pandemia de coronavírus que assolou o planeta e impôs suas restrições, no Brasil, a partir de março de 2020, estendendo-se até 2022.
Dentre os vários grupos nos quais elas interagem, no Facebook conhecemos o Vila Sésamo e o Oia a Roupa no Varal. Esta expressão se refere a uma senha, um código que elas utilizavam quando jovens para alertar as amigas da presença de algum “careta”, expressão utilizada para se referir aos heterossexuais.
Os grupos virtuais nos quais interagem são variados. As confreiras se dividem entre eles; algumas participam de mais de um, a depender dos interesses que congregam. No WhatsApp, conhecemos o Vila Sésamo (14 mulheres), com perfil político-ideológico bastante conservador; o Vizinhas Forever (dez mulheres), que congrega as moradoras em um condomínio situado em Nova Lima (MG); o Polêmica (27 mulheres), que surgiu com o objetivo de ser um grupo sem censura de temas; o Mineirão l (onze mulheres e um gay), composto por cruzeirenses; o Camisa 12 (24 mulheres), formado por atleticanas; o Cartoleiras das Minas (36 mulheres). Este último é composto por um mix de torcedoras de vários times que discutem e organizam os festejos em torno de assuntos futebolísticos. A presença masculina é praticamente inexistente nos grupos: apenas um gay furou o cerco no grupo do Mineirão, acolhimento que enfrentou resistências.
Em outros tempos, essas mulheres celebraram a vida com as amigas, paqueraram e namoraram pelos bares e boates destinados ao público hoje designado como LGBTQIA+ e nos territórios que inventaram para si. À medida que foram envelhecendo, algumas se uniram e vivem em condomínios ou localidades próximas à capital belo-horizontina, como Nova Lima e Lagoa Santa.
É sabido que territórios de “pegação” se relacionam muito mais com um universo socialmente construído para homens homossexuais. Entretanto, faz-se necessário conhecer mais sobre os possíveis territórios pelos quais transitaram as homossexualidades femininas.
Historicamente, o espaço público sempre foi território destinado aos homens, e o privado, às mulheres. Com relação aos homossexuais, homens e mulheres sempre usaram os espaços públicos de maneira distinta (Teixeira, 2003TEIXEIRA, Alexandre E. 2003. Territórios homoeróticos em Belo Horizonte: um estudo sobre as interações sociais nos espaços urbanos. 100 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.). Além dos poucos bares e boates de que a cidade dispunha, as confreiras construíram seus territórios privados para a vivência da homossexualidade.
Teixeira (2003TEIXEIRA, Alexandre E. 2003. Territórios homoeróticos em Belo Horizonte: um estudo sobre as interações sociais nos espaços urbanos. 100 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.), em sua dissertação Territórios homoeróticos em Belo Horizonte: um estudo sobre as interações sociais nos espaços urbanos, constatou que “as interações nos lugares de ‘pegação’ tiveram como desdobramentos a criação de marcas e vínculos necessários ao processo de construção das identidades homoeróticas dos entrevistados”. O autor afirma “não ter encontrado registros, por meio da pesquisa bibliográfica e da pesquisa de campo, sobre a existência de espaços específicos, na cidade de Belo Horizonte, que propiciassem encontros fortuitos entre mulheres, nos mesmos parâmetros que os masculinos” (Teixeira, 2003TEIXEIRA, Alexandre E. 2003. Territórios homoeróticos em Belo Horizonte: um estudo sobre as interações sociais nos espaços urbanos. 100 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.: 12-13).
A ocupação dos espaços disponíveis e a criação de outros espaços mais reservados de sociabilidade parecem ter sido fundamentais para a interação e a afirmação da identidade dessa geração de lésbicas. Era comum às que viviam em Belo Horizonte - várias vieram do interior do Estado - fazerem uso de espaços privados que propiciaram a construção de duradouras relações de amizade.
Para Eribon (2008ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 450 p.: 51), as redes de amizade são muito importantes para os gays mais velhos, principalmente quando cessam de participar das vidas dos bares e dos lugares de paquera. Para as lésbicas, o quadro não é diferente, principalmente se levarmos em conta a escassez de locais de encontro exclusivo para elas em tempos atuais. Quase não há na cidade bares e boates voltados para lésbicas. As jovens de hoje em dia ocupam a cidade de uma forma mais livre.
Embora as confreiras formem um núcleo coeso e fechado, em tempos atuais têm se mostrado abertas, colaborativas e fraternas, no sentido de ajudar e acolher, quando alguma questão se apresenta àquelas com as quais conviveram e criaram laços um dia. A rede de contatos é vasta: muitas lésbicas contemporâneas a elas mantêm com o grupo contatos menos frequentes, superficiais ou circunstanciais; em algumas ocasiões, têm relações mais intensas devido a algum evento, festa ou celebração.
3. Conclusão
Tecemos estas linhas conscientes da limitação quanto à perseguida e desejada, porém inalcançável isenção a que estamos sujeitas e emaranhadas nas teias do pessoal que é também político. Afinal, ao ouvir, transcrever, interpretar e analisar, construímos algo novo que nasce da mistura do que o outro oferece com quem somos, do encontro daquilo que o outro traz com aquilo que reside em nós.
A motivação para as reflexões apresentadas se relaciona com a escassez de estudos sobre lésbicas mais velhas, fato que nos coloca diante de um grupo que ainda está por registrar a sua história. A proximidade com o campo da pesquisa e a escolha do objeto colocam em tela o desejo de, conforme elucida Haraway (2005Haraway, Donna. 2005. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu. 2005, no 5, p. 7-41.), garantir uma ética em direção à justiça e à emancipação, evidenciando, sem constrangimentos, a imbricação do projeto científico com o campo político.
Se parece óbvio que passar a vida ao lado de amigas/os feitas ao longo das suas trajetórias e que a construção dessas relações ocupa um lugar importante para o bem-estar de qualquer ser humano em qualquer tempo, menos óbvio é o impacto dessas amizades, principalmente se levarmos em conta que, quando somos jovens, não estamos atentas à importância crucial que tais relações e afetos podem assumir na velhice.
Se, atualmente, casais de homossexuais adquiriram o direito de se casarem e terem filhos, tal direito chegou tardiamente para a geração de mulheres mais velhas. Importante resgatar as inúmeras injustiças vivenciadas por viúvas de relações homoafetivas no momento da partilha dos bens, diante da família da falecida. A essas mulheres foram negados vários direitos, dentre eles o de constituir uma família com todo o aparato legalmente disponível às pessoas que se enquadravam na heteronorma.
Ficou evidente o suporte que encontraram umas nas outras tanto para as suas performatizações identitárias quanto para a criação ou ocupação de territórios nos quais construíram seus vínculos afetivos. Os encontros entre elas criaram raízes que frutificaram em uma rede de solidariedade e apoio que se mantém na velhice. Contudo, para que houvesse raízes e frutos, o gosto pelos esportes, seja praticando quando jovens ou acompanhando na atual fase da vida, forneceu um insumo fundamental.
Em que pesem os desafios enfrentados por essas idosas lésbicas, os dados coletados indicam que aquelas que se irmanaram na Confraria puderam contornar as dificuldades socialmente impostas a elas e foram capazes de manterem fortes e persistentes vínculos.8 8 Um aspecto que chamou a atenção durante o período pandêmico se relaciona aos números crescentes de separações, resultado do longo confinamento a que fomos submetidos/as em função da pandemia. Ao contrário do que tem sido noticiado no campo das relações heterossexuais, os casais de lésbicas com os quais convivemos ou temos contato têm confessado estar mais unidos.
Chama a atenção o fato de serem poucos os espaços pelos quais transitam sem filtros. Elas têm dificuldade e muitas críticas quanto à exposição pública, mais comum em tempos presentes, de jovens casais de lésbicas. Entre algumas delas, o sentimento é de aversão a essa exposição.
Bebendo na fonte dos clássicos, Durkheim (1977DURKHEIM, É. 1977. O suicídio: estudo sociológico. Trad. Luz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença. 420 p.), em seu célebre estudo sobre o suicídio, aponta os desdobramentos advindos do rompimento dos vínculos sociais, bem como da importância da manutenção deles para a coesão social.
Assim, há que se considerar a sociabilidade enquanto relevante elemento formador da identidade. Os vínculos sociais e afetivos criados e mantidos pelas confreiras foram responsáveis pelas inúmeras estratégias por elas adotadas para vivenciarem seus afetos à revelia das duras restrições, como são exemplos as citadas festas, festivais, bailes e criação de grupos temáticos, iniciativas nas quais esbanjaram e esbanjam criatividade.
Quando jovens e esportistas, as confreiras parecem ter marcado um gol ao pegarem o “fio de Ariadne”: com ele, teceram suas estratégias para transitar pelo labirinto minotáurico da vida de forma singular9 9 O mito de Teseu e o fio de Ariadne é um dos mais conhecidos da mitologia grega. Foi por meio do fio de ouro de Ariadne que Teseu conseguiu sair do labirinto após derrotar o Minotauro. . Teceram o Vila Sésamo, o Festiranga, o Baile do Papel Almasso, o Vaga Beer. Subdividiram-se e se reagruparam no WhatsApp de acordo com seus interesses, muitas vezes transversais, no Vizinhas Forever, no Polêmica, no Mineirão, no Camisa 12, no Cartoleiras das Minas. E seguem, criando e celebrando, entre amigas, a vida.
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Os termos foram coletados por ocasião da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT (2011), ocorrida em Brasília (DF). Os homossexuais masculinos eram também designados de forma pejorativa: remendão em lugar de costureiro, refrigerados, bicharoca, bicharocagem, bicharoquice, bicha, bichona, arejado, plumitivo, desmunhecador (Morando, 2009MORANDO, Luiz. 2009. “Entre documentos e silêncios: a rede social de homossexuais em Belo Horizonte na década de 1960”. E-COM. 2009. Vol. 2, p. 1-14. Disponível em: Disponível em: http://revistas.unibh.br/index.php/ecom/article/view/531/303 [Acesso em 08.07.2021].
http://revistas.unibh.br/index.php/ecom/... ). -
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A palavra é dicionarizada, mas não é de uso corrente nas novas gerações. Segundo o pesquisador Luiz Morando (2009MORANDO, Luiz. 2009. “Entre documentos e silêncios: a rede social de homossexuais em Belo Horizonte na década de 1960”. E-COM. 2009. Vol. 2, p. 1-14. Disponível em: Disponível em: http://revistas.unibh.br/index.php/ecom/article/view/531/303 [Acesso em 08.07.2021].
http://revistas.unibh.br/index.php/ecom/... ), o termo “entendido” surgiu na virada dos anos 1950/60, em momento ainda indefinido. -
3
O apelido do grupo foi dado por uma geração de mulheres mais maduras que as jovenzinhas que o compunham e era uma referência à turma do “Vila Sésamo”, cuja origem é um programa infantil, de mesmo nome, que foi ao ar entre os anos 1972 e 1977, graças a uma parceria entre a TV Cultura e a Rede Globo de Televisão. O apelido pegou e se espalhou na restrita cena lésbica belorizontina.
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Miriam Martinho, cofundadora dos primeiros grupos de lésbicas brasileiro, diz desconhecer que tenha havido um movimento como o GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista) em Minas Gerais.
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5
O Cartoleiras das Minas está vinculado ao Cartola. Ele tem um aplicativo oficial e milhares de outros apps relacionados, tendo se transformado em um negócio gigantesco. Cf. o portal https://globoesporte.globo.com/cartola-fc/
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A grafia com “SS” se refere a uma brincadeira do grupo: “Super Sapatas”. O papel almaço é uma referência a uma folha de papel dupla e pautada usada na geração delas.
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O mapeamento das boates e bares frequentados consta como anexo no final deste artigo.
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Um aspecto que chamou a atenção durante o período pandêmico se relaciona aos números crescentes de separações, resultado do longo confinamento a que fomos submetidos/as em função da pandemia. Ao contrário do que tem sido noticiado no campo das relações heterossexuais, os casais de lésbicas com os quais convivemos ou temos contato têm confessado estar mais unidos.
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O mito de Teseu e o fio de Ariadne é um dos mais conhecidos da mitologia grega. Foi por meio do fio de ouro de Ariadne que Teseu conseguiu sair do labirinto após derrotar o Minotauro.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
10 Ago 2021 -
Aceito
03 Abr 2023