RESUMO
Neste artigo, objetivamos compreender os discursos que compõem a condição histórico-social de uma amante. Para isso, procuramos refletir sobre o modo como uma mulher em uma relação extraconjugal constrói ético-discursivamente a visão da sociedade a respeito da sua condição amorosa. Inseridos no campo de estudos da Linguística Aplicada, buscamos interpretar a historicidade dos atos discursivos e a repercussão desses atos na representação das subjetividades, por meio da análise dos discursos envolventes ali presentificados. Em vista disso, consideramos os estudos sobre as relações dialógicas do discurso e a compreensão responsiva ativa do chamado Círculo de Bakhtin. Os resultados apontam para um discurso que resgata a noção de mulher amante subserviente, dependente, culpada e destruidora de lares. Apesar dessas conotações, a entrevistada demonstra um relevante grau de responsividade ativa ao renomear e, consequentemente, ressignificar a sua condição amorosa.
PALAVRAS-CHAVE:
Discurso envolvente; Relações dialógicas; Ética discursiva; Compreensão responsiva ativa; Mulher amante
ABSTRACT
The purpose of this paper is to understand the discourses that compose a mistress's social-historical condition. We reflect on how a woman in an extramarital relationship ethically and discursively constructs the society's view on her love life. Within the scope of Applied Linguistics, we interpret the historicity of discursive acts and the repercussion of such acts on the representation of subjectivities, by analyzing the involving discourses in such subjectivities. Accordingly, we consider the studies on the dialogic relationships of the discourse and on the active responsive understanding of the so-called Bakhtin Circle. The findings point to a discourse that resumes the notion of a mistress who is subservient, dependent, guilty, and a homewrecker. Despite these connotations, the interviewee demonstrates a relevant degree of active responsiveness when she renames and, consequently, re-signifies her condition as a mistress.
KEYWORDS:
Involving discourse; Dialogic relationships; Discursive ethics; Active responsive understanding; Mistress
Introdução
Inseridos no campo de estudos da Linguística Aplicada (LA), ciência social transdisciplinar, interrogadora e inquieta com os problemas que envolvem as práticas de linguagem, propomos neste estudo uma discussão sobre “práticas linguísticas mutáveis e contraditórias que as pessoas vivem” (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.13-44., p.36), buscando lançar luz sobre a historicidade dos atos discursivos e a repercussão desses atos na memória e posições sociais dos sujeitos. Relacionando a prática com a teoria, a LA se desenha “como lugar de investimento em uma redescrição da vida social” (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.13-44., p.31) do sujeito marginalizado - neste trabalho, a mulher amante -, considerando a voz de quem vivencia essa situação social. Afinal, concebemos a LA como “uma ciência interessada, ou seja, atravessada por valores” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, M. A linguística aplicada, o Círculo de Bakhtin e o ato de conhecer: afinidades eletivas são possíveis?. In: RODRIGUES, R.; PEREIRA, R. (orgs.). Estudos dialógicos da linguagem e pesquisas em linguística aplicada. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2016. p.47-63., p.52), que tem o compromisso social de “contribuir com encaminhamentos de problemas das práticas sociais das pessoas, ou melhor, questioná-los ou até mesmo (des-re)construí-los” (MOREIRA JÚNIOR, 2018MOREIRA JÚNIOR, R. S. As perspectivas dos outros: uma necessidade na pesquisa em linguística aplicada. Revista Leitura, Maceió, v. 1, n. 60, p.62-68, 2018., p.64), desafiando os limites de uma perspectiva universalizante sobre a produção de conhecimento, em um movimento de desaprendizagem necessário (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. Linguística aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.45-65.).
Observaremos a condição da mulher que, ao longo da história da humanidade, esteve sob rédeas da construção de uma subjetividade que a punha em uma situação social de subalternidade e dependência à figura masculina - emocional, social e financeiramente. Primeiramente ao pai, tios e irmãos, posteriormente ao seu marido. Seus desejos e impulsos sexuais eram supervisionados e domados pelas instituições sociais, da Igreja ao Estado. A mulher normal, além de bem reputada, deveria ser asséptica à volúpia e comportar-se de acordo com as regras da moral e dos bons costumes, pois “ela também carregava o peso do pecado original e por isso, sobretudo sua sexualidade, devia ser vigiada muito de perto” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.45-77., p.49).
A sociedade brasileira sofreu uma série de mudanças durante o século XIX, o que promoveu a formulação de uma mentalidade burguesa que reorganiza as vivências familiares e domésticas, o tempo e as atividades femininas (D'INCAO, 2017D'INCAO, M. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.223-240.)1 1 Dentre as transformações, essa autora cita a consolidação do capitalismo, o incremento da vida urbana com novos formatos de convivências sociais e ascensão da burguesia. . No Brasil, durante a época colonial e até um pouco depois desse período, o bom casamento era uma preocupação para as moças, um compromisso familiar que deveria seguir normas que antecediam o matrimônio e perduravam após ele, isto é, iam desde o resguardo da virgindade até o recato nas relações conjugais. A mulher era devota do lar, da família e do casamento, em outras palavras, dos afazeres domésticos, da criação dos filhos e do cuidado com o marido. Além dessas características esperadas, as mulheres eram desobrigadas de qualquer trabalho produtivo, mas exerciam, por sua vez, uma função de manutenção do status, visto que elas eram, ao mesmo tempo, peças fundamentais para contribuir no “projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães” (D'INCAO, 2017D'INCAO, M. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.223-240., p.229). Nesse sentido, o adultério era visto como um grande crime. Um crime para a mulher, que poderia pagar com a própria vida este pecado, porque “a própria lei permitia que ‘achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero'” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.45-77., p.59).
Em compensação, havia um abrandecimento para o homem em adultério tanto pela Igreja quanto pelo Estado, uma vez que ele “tinha plena liberdade de exercer sua sexualidade desde que não ameaçasse o patrimônio familiar” (SOIHET, 2017SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.362-400., p.381). Em decorrência disso, poderia vingar a sua honra ao ser surpreendido com a sua esposa adúltera, afinal, conforme o Código Penal Brasileiro de 1890, “só a mulher era penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de um a três anos. O homem só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e manteúda2 2 Termos, em português arcaico, que significam tida e mantida financeiramente. ” (SOIHET, 2017SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.362-400., p.381). Entretanto, ainda assim, não sofria sanções similares às das mulheres.
A partir desse sucinto retrato das condições das relações conjugais e extraconjugais entre homens e mulheres de há pouco mais de um século, é possível perceber as repercussões dos discursos3 3 A relação entre práticas sociais, discursos e sentidos será tratada mais adiante. desse período histórico nos dias atuais. Tempo em que aos homens ainda lhes é conferido socialmente o poder de possuir uma relação extraconjugal ao passo que às mulheres não só não lhes é concedida essa opção como também é visto como abjeto o seu papel de amante. Elas são fortemente criticadas e marginalizadas em ambas condições: como adúltera e como amante. Aos homens, em contrapartida, é-lhes concedido o rótulo de garanhão, símbolo da virilidade, nessas mesmas condições. Esse quadro social é percebido com alto grau de normalidade e aceitação de modo que, comumente, o homem adúltero não é posto em xeque quanto à sua infidelidade. Há, portanto, discursos próprios em cada dimensão do gênero, há o que é ou não permitido, há divisão de lugares e de papéis. Esses discursos próprios, permissões, espaços e papéis são vigiados pela sociedade por meio de discursos coercitivos e da impressão de uma ética discursiva, ou seja, de um sentido que seria apropriado para implementar a situação vivida. Os sentidos compartilhados para o entendimento do que é ser fiel ou não na sociedade, da necessidade de punição ou de honradez pelos atos da mulher ou do homem, explicitam o desejo de estruturação dos sentidos e, obviamente, o desejo de uma previsibilidade da ética discursiva (SOUTO MAIOR, 2019SOUTO MAIOR, R. Características ético-discursivas e dialogicidade nas interações culturalmente sensíveis em sala de aula: convivência como objeto de ensino, 2019 (mimeo).), essa compreendida como sentidos compartilhados como verdade, como discurso envolvente (SOUTO MAIOR, 2009SOUTO MAIOR, R. As constituições de ethos e os discursos envolventes no ensino de língua portuguesa em contexto de pesquisa-ação. 2009. 200 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2009., 2020SOUTO MAIOR, R. Identidade e ação leitora na educação de jovens e adultos: o ethos especular da resistência e a interdição da compreensão. In: FREITAS, A.; FREITAS, M.; RIBEIRO, N. (orgs.). Leitura: história e provocações sob múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras , 2020. p.103-126.; LIMA; SOUTO MAIOR, 2012LIMA, A.; SOUTO MAIOR, R. Responsividade e discursos envolventes: observando o ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Eutomia, v. 2, p.94-413, 2012.).
Discurso envolvente é um termo concernente à impressão de verdade que alguns segmentos linguístico-discursivos a priori nos dão independentemente de uma busca genealógica de sua origem ou ainda independentemente de uma possível necessidade de atualização desse sentido no seio do acontecimento. Ainda podemos dizer que o discurso envolvente é um sentido dado social e historicamente aos interlocutores, como uma memória social que pode reforçar relações de poder e pode funcionar como estratégia de manutenção de poder.
Os sentidos, nesse contexto, constroem a inteligibilidade sobre o mundo e sobre as práticas sociais e são apreendidos no e através do discurso que, neste estudo, é entendido em uma perspectiva ideológica e dialógica (VOLOCHÍNOV, 2013VOLOCHÍNOV, V. (Do Círculo de Bakhtin). Que é a linguagem. In: VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores , 2013. p.131-156.; VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.). A linguagem, a nosso ver, é um elemento fundamental para a compreensão das práticas sociais, por intermédio da compreensão de como os discursos operam. Segundo Volochínov (2013, p.144, grifo do autor)VOLOCHÍNOV, V. (Do Círculo de Bakhtin). Que é a linguagem. In: VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores , 2013. p.131-156., “é óbvio que sem o auxílio da palavra não teriam nascido nem a ciência nem a literatura. Nenhuma cultura poderia realizar-se se a humanidade estivesse privada da possibilidade de comunicação social, de que a nossa linguagem é sua forma materializada”. A partir do discurso e com ele, certas constituições identitárias vão sendo constituídas, reproduzidas e/ou reformuladas a partir de certos acontecimentos ético-discursivos4 4 A título de exemplo, letras de canções muito conhecidas no nordeste brasileiro, e ainda hoje bastante reproduzidas em festas urbanas populares, ratificam certos sentidos ou crenças, como Amor de rapariga e Rapariga é você, ambas lançadas na primeira década dos anos 2000. As duas músicas relatam o conflito entre duas mulheres, a parceira oficial de um homem e a suposta amante dele, sobre quem seria a melhor companheira, sem pôr em discussão a responsabilidade e compromisso do homem adúltero para com elas. Ao contrário disso, nas músicas supracitadas, há uma disputa sobre quem permanecerá com ele e a culpabilização integral da mulher amante pelo relacionamento extraconjugal, o que parece incumbir ao homem adúltero o status de vítima das circunstâncias ou, mais bem, uma característica natural ao comportamento masculino. É sobre essa condição, de mulher amante, que nos debruçamos neste estudo para lançar algumas reflexões historicamente situadas. , como discutiremos mais adiante.
Objetivamos, portanto, compreender os discursos que compõem a condição histórico-social de uma amante através dos sentidos que fundam as interpretações desses discursos. Para isso, buscamos refletir sobre como uma mulher em uma relação extraconjugal5 5 Optamos por assumir essa referência por ser um termo conhecido e socialmente compartilhado. , colaboradora da pesquisa, constrói ético-discursivamente a visão da sociedade a respeito da sua condição amorosa, por meio de uma análise discursiva na perspectiva do chamado Círculo de Bakhtin. A partir disso, lançam-se duas questões pertinentes neste trabalho: a) Que discursos essa mulher tem de sua condição amorosa? e b) Como a colaboradora percebe a visão da sociedade sobre as mulheres que estão em uma relação extraconjugal? As perguntas promovem uma análise interpretativista (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, C. Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa: tipos, técnicas e características. Revista Travessias, Cascavel, v. 2., n. 3, s/p, 2008.), na medida em que impulsionam a observação dos deslocamentos de sentidos ao estudar o que a colaboradora registra sobre o discurso do outro, em um movimento de alteridade. Essas questões orientaram a entrevista semiestruturada levada a cabo, na qual a colaboradora respondeu a perguntas previamente elaboradas, relacionadas às questões de pesquisa supracitadas, como também respondeu a outras questões pensadas durante as suas respostas, com o objetivo de que ela expressasse melhor os discursos por ela construídos.
O artigo está dividido em três partes. Na primeira, discutimos a noção de discurso, responsividade e ato ético-discursivo. Na segunda parte, apresentamos, em uma perspectiva histórica, as condições das relações extraconjugais durante o período histórico compreendido como Brasil Colônia até a década de 1950, caracterizada como Anos Dourados. Por fim, na última parte, apresentamos a análise do estudo.
1 A orientação dialógica do discurso
Ao tratar das relações humanas, que se concretizam por meio das múltiplas linguagens, fazemos alusão ao discurso (VOLOCHÍNOV, 2013VOLOCHÍNOV, V. (Do Círculo de Bakhtin). Que é a linguagem. In: VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores , 2013. p.131-156.; VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.). Entendemos, fundamentados no Círculo de Bakhtin, que o ato discursivo não pode ser dimensionado como um fenômeno individual, original e sem precedentes. Longe disso, o ato discursivo se concebe pela e na voz de diferentes sujeitos; portanto, ele é um fenômeno social partilhado e vivido coletivamente, ainda que não tenhamos como precisar as suas raízes na memória social. Também fundamentada nos estudos do Círculo, Rohling (2014, p.45)ROHLING, N. A pesquisa qualitativa e análise dialógica do discurso: caminhos possíveis. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 15, n. 2, p.44-60, 2014. assegura que “o discurso é a própria língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da Linguística”. Alinhados a esse paradigma, partilhamos da ideia de que
o discurso designa o território conceitual inteiro no qual o conhecimento é produzido e reproduzido. Inclui não somente o que é, na verdade, pensado e articulado, mas também determina o que pode ser dito ou ouvido e o que é silenciado, o que é aceitável e o que é tabu. O discurso, nesse sentido, é um campo ou domínio dentro do qual a linguagem é usada de modos particulares. Esse campo ou domínio é produzido nas e por meio das práticas sociais, instituições e ações (KUMARAVADIVELU, 2006KUMARAVADIVELU, B. A linguística aplicada na era da globalização. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.129-148., p.140; grifo nosso).
Partindo das reflexões acima, entendemos que o discurso é, por natureza, dialógico, uma vez que se constitui no campo da vida, das vivências humanas, impregnado nas relações dialógicas. As vozes e o encontro delas promovem certos padrões do dizer e vão constituindo também as relações sociais, de certa forma monitoradas pelos sentidos tradicionalmente assumidos pelos sujeitos. Portanto, estudar o discurso e a linguagem é olhar para essas relações, pois “a linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam” (BAKHTIN, 2018BAKHTIN, M. O discurso em Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. p.207-234., p.209). Como efeito dessas relações, os discursos atravessam o tempo e a história, contaminados pelas vozes dos outros, que se precipitam sobre nós sem que, por vezes, tenhamos consciência da sua gênese. Dessa forma, é no discurso que as relações dialógicas se concretizam pela sua dupla orientação: voltada “para o objeto do discurso como palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um outro” (BAKHTIN, 2018, p.212; grifos do autor). Esse duplo sentido, como nomeia Bakhtin, dá-se no e pelo enunciado, dado que é nele e por ele que podemos ouvir a voz do outro e construir os sentidos que implicam as práticas sociais e que por elas são implicados. Esse movimento do sentido compartilhado apresenta pelo menos duas dimensões, visto que essa “orientação dialógica do discurso - dialogicidade interna que penetra os estratos semânticos e expressivos da língua - manifesta-se de duas formas: pela orientação para o já-dito e pela orientação para a resposta” (ROHLING, 2014ROHLING, N. A pesquisa qualitativa e análise dialógica do discurso: caminhos possíveis. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 15, n. 2, p.44-60, 2014., p.45; grifos da autora).
Segundo Souto Maior (2020)SOUTO MAIOR, R. Identidade e ação leitora na educação de jovens e adultos: o ethos especular da resistência e a interdição da compreensão. In: FREITAS, A.; FREITAS, M.; RIBEIRO, N. (orgs.). Leitura: história e provocações sob múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras , 2020. p.103-126., os discursos envolventes têm esse processo de retomada (reprodução de sentidos) e de resposta (de produção de sentidos) e nos trazem certo entendimento de verdade e de unanimidade, ou seja, além de ser verdade (falsamente constatada pela repetição), é uma verdade fácil de passar. Sendo assim, sua reapresentação sucessiva de verdade nas práticas sociais de linguagem vai solidificando a existência de tal discurso como algo natural, como um sentido dado, como algo posto como certo, adequado, bem colocado, fácil de passar (SOUTO MAIOR, 2009SOUTO MAIOR, R. As constituições de ethos e os discursos envolventes no ensino de língua portuguesa em contexto de pesquisa-ação. 2009. 200 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2009.; 2020SOUTO MAIOR, R. Identidade e ação leitora na educação de jovens e adultos: o ethos especular da resistência e a interdição da compreensão. In: FREITAS, A.; FREITAS, M.; RIBEIRO, N. (orgs.). Leitura: história e provocações sob múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras , 2020. p.103-126.).
Os discursos envolventes podem ainda ter uma perspectiva mais discursiva, ficando no campo do sentido apreendido pelo conjunto do texto, extraído como ideia geral do que foi explicitado concretamente; ou ter uma perspectiva, digamos assim, mais concreta e situada no texto, como um segmento linguístico (um provérbio, um adágio popular, uma frase de campanha midiática etc.). Em ambos os casos, há possibilidade de reversibilidade entre eles. Uma frase feita em um jingle pode ter como base um discurso machista que estaria no primeiro grupo que foi apresentado acima, aquele da perspectiva mais discursiva. Em geral, há a caracterização da reincidência discursiva, um eco linguístico, por assim dizer. Essa característica é expressa naquela sensação de falante de uma língua quando ouvimos algo que parece ser comum de ser escutado, em uma aparente concordância de sentido, em uma lembrança de já ter escutado tal sentido ou a percepção de já ter ouvido aquela frase, enfim, uma sensação de familiaridade. Essa sensação é imanentemente coercitiva, ela de certa forma doma qualquer olhar mais atento sobre algo dito, visto que, se é comum se falar, é porque deve ser verdade. É exatamente essa a estratégia da repetição do discurso, como na metáfora da água que tanto bate até que fura. Frases como mulher é frágil, só é rico quem trabalha, o pecador vai para o inferno ou mesmo suas negativas, são exemplos de discursos envolventes, que têm sentido de já-dito.
A fim de compreender as condições histórico-sociais com referência à relação extraconjugal da colaboradora desta pesquisa, é necessário entender o já-dito pelas vivências culturalmente experienciadas pelos sujeitos - a entrevistada e o entrevistador - conforme os seus papéis sociais para, então, perceber a teia de significações complexas das respostas deles nas posições sociais em que se encontram. Os sentidos potencializam uma responsabilidade pelo dito, visto que quem diz toma uma posição sobre algo e promove ações nas interações sociais que são resultantes dessa posição. Essa rede de significados tem amplo alcance na vida vivida do sujeito no mundo e está pautada em diferentes possibilidades de porvir. Uma reflexão sobre os discursos que tecem as relações sociais poderá proporcionar a desnaturalização discursiva de discursos envolventes, por exemplo, na busca de uma ética discursiva. A compreensão crítica sobre a responsabilidade do dizer poderá prover a humanidade da possibilidade real de convivência dissociada do ódio pelo outro, da incompreensão e da violência. Destarte, é necessário destacar que, conforme os estudos do Círculo de Bakhtin, a compreensão também tem caráter dialógico por sua natureza ativa e responsiva, pois, “em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas. Quanto maior for o seu número, quanto mais essenciais elas forem, tanto mais profunda e essencial será a compreensão” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.232).
Não se admite, portanto, uma compreensão passiva, pois esta estaria no nível da abstração, considerando que a palavra sempre procede de alguém que com ela se posiciona e a dirige a outro alguém, o que fundamenta o seu caráter dialógico. Afinal, Volóchinov (2018, p.205)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. é contundente quando enfatiza que “a palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor”. Dessa forma, todo falante ocupa uma ativa posição responsiva em relação ao discurso do outro desde o início do processo de audição e compreensão, uma vez que “toda compreensão é prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov . 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p.261-306., p.271). Seguindo essa perspectiva, todo falante é um respondente nas práticas discursivas que, por seu caráter dialógico, não admitem ou rejeitam uma compreensão passiva. Zozzoli (2012, p.259)ZOZZOLI, R. A noção de compreensão responsiva ativa no ensino e na aprendizagem. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 7, n. 1, p.253-269, 2012. entende que a compreensão ativa, em todo caso, pressupõe uma tomada de posição ativa perante ao dito e compreendido, “isso quer dizer, também, que, na vida social, há sempre compreensão ativa, da mesma forma que há sempre diálogo”.
A palavra, portanto, não é asséptica à vida, ao tempo, ao lugar de onde se enuncia e à ideologia, como já exposto. O falante, todavia, não é dono da palavra e ela tampouco é autônoma da historicidade que nela está impregnada, pois “tudo o que é dito, o que é expresso se encontra fora da ‘alma' do falante, não pertence apenas a ele” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov . 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p.261-306., p.327-328), apesar de que nele, no sujeito, é que a palavra se encontra atualizada. A palavra e, por consequência, o enunciado e o discurso são um conjunto de valores e sentidos (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p.307-335.), por isso “as relações dialógicas podem ser compreendidas como lugares/posições axiológicas dos sujeitos nos atos concretos da vida” (ROHLING, 2014ROHLING, N. A pesquisa qualitativa e análise dialógica do discurso: caminhos possíveis. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 15, n. 2, p.44-60, 2014., p.45).
As relações dialógicas só se materializam na língua, em sua integridade concreta e viva, quando se substancializam nas vozes de sujeitos reais que estão situados historicamente. Essas relações são irredutíveis às relações lógicas e concreto-semânticas, visto que as práticas sociais, que embasam seu acontecimento, são autorais e, por isso, ético-discursivas. As relações lógicas e concreto-semânticas são imprescindíveis para que as relações dialógicas se corporifiquem, no entanto elas “devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição el[e] expressa” (BAKHTIN, 2018BAKHTIN, M. O discurso em Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. p.207-234., p.210, grifo do autor). As relações dialógicas, portanto, não são desprovidas de sentidos, de ideologia, de voz, uma vez que “a língua no processo de sua realização prática não pode ser separada do seu conteúdo ideológico ou cotidiano” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.181).
Dando continuidade a esse aporte teórico, na seção seguinte, será apresentada a conjuntura das condições histórico-sociais das relações extraconjugais ao longo da história do Brasil, principalmente no tocante ao papel da mulher, na tentativa de, posteriormente, compreender as posições axiológicas do sujeito em análise, relacionando-as aos discursos que gravitam os seus dizeres. Discursos estes que viajaram o tempo e resistiram às reconfigurações sociais, uma vez que orbitam a atmosfera do já-dito e, concomitantemente, estão orientados para o discurso-resposta, pois “o discurso como que vive na fronteira do seu próprio contexto e daquele de outrem” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.71-210., p.92).
2 As condições histórico-sociais das relações extraconjugais
Ao retomar a discussão sobre as relações conjugais entre homens e mulheres, estreada na introdução deste texto, paralelamente, relacioná-la-emos ao adultério e à infidelidade, concentrando-nos nos comportamentos sociais do homem e da mulher frente a um relacionamento.
Diferentemente dos esposos, ao longo da história colonial e mais recente6 6 Referimo-nos à primeira metade do século XX. do Brasil, as esposas que fossem infiéis aos seus maridos eram muito criticadas e poderiam ser punidas com a própria vida, como abordamos anteriormente. As práticas burguesas que instituíram, por exemplo, o uso da sala de visitas como espaço público, dentro do espaço privado da casa familiar, acrescentaram mais uma instância de observação e fiscalização da conduta feminina em relação à expectativa de toda a sociedade (D'INCAO, 2017D'INCAO, M. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.223-240.).
O adultério feminino era símbolo de grande humilhação para os homens, como dito na introdução. Todavia, no caso da infidelidade dos seus maridos, as mulheres eram orientadas a lidarem com essa frustração e a fugirem de tentações que pusessem em risco a integridade da família, mantendo-se fiéis, cordiais e resignadas, mesmo que seus maridos não agissem com reciprocidade ou, pior, mesmo se as tratassem com todo tipo de violência. Alguns discursos envolventes como mulher que presta é mulher de família já são observados no seio das práticas sociais tecendo a rede de sentidos das interações.
Até a década de 50, a infidelidade masculina era amparada e naturalizada socialmente, “justificava-se pelo temperamento poligâmico dos homens - um fator natural que, mesmo quando considerado uma fraqueza, merecia a condescendência social e a compreensão das mulheres” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.635; grifos da autora). A linguagem como constituinte de todo processo social também institui, ao mesmo tempo, uma ética discursiva a respeito dos sentidos que compõem essas práticas sociais. Ou seja, temos no discurso toda a base de sustentação dessas verdades compartilhadas ou de discursos envolventes da sociedade da época, que nos remete até hoje a alguns sentidos, como: é normal o homem trair, a mulher tem que continuar casada, a mulher é a sustentação emocional do lar.
A traição masculina não era posta em discussão, pois as suas aventuras eram tidas como irrelevantes e passageiras, as quais não deveriam abalar a paz conjugal, uma vez que a volta do marido ao lar era um consolo para as esposas traídas (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639.). Ainda hoje, como reflexo desses discursos, não é incomum encontrar famílias modernas que se formaram a partir de um parceiro bígamo, ainda que fosse e continue sendo um crime na legislação brasileira. Em contrapartida, toda a culpabilização pelas relações extraconjugais parecem incidir socialmente sobre a parceira, pois “toda a revolta, se houvesse, deveria recair sobre a outra, a rival, a amante do marido” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.635, grifo da autora). Em resumo, observam-se dois papéis opostos - o da mulher resignada e o da mulher traiçoeira - que também sustentam discursos envolventes como: mulher para casar e mulher da vida, respectivamente. Os dois extremos provocam perdições para o homem: a mulher casada, se não é resignada, destrói o lar; a mulher da vida é culpada pela destruição de lares.
A autoria e responsabilidade pelo sucedimento dessas relações precipitavam e ainda parecem se precipitar sobre as mulheres. À esposa, por não cuidar de seu marido, por não lhe dedicar o suficiente tendo em vista a plena felicidade do seu amado e, consequentemente, por não atender aos requisitos de esposa ideal. E à outra por ser uma “destruidora de lares, aproveitadora sem escrúpulos, leviana ou uma moça ingênua seduzida por um homem mais experiente” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.636; grifo da autora). Afinal, entendia-se que o homem possuía necessidades sexuais diferentes, o que, na prática, dava-lhe o direito de ter aventuras eróticas extraconjugais por ser-lhe uma característica natural (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639.). Por essa razão, “os maridos não deveriam ser incomodados com suspeitas, interrogatórios ou ciúme das esposas” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.632). A ousadia e a coragem da mulher seriam um veneno para a estabilidade familiar e social, que poderia comprometer a sua própria vida.
No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a vida da mulher estava à disposição do homem, pois, como a infidelidade feminina poderia ser punida com a morte, o seu facínora era amparado legalmente “com o argumento de que se achava ‘em estado de completa privação de sentidos e inteligência' no ato de cometer o crime, ou seja, acometido de loucura ou desvario momentâneo” (SOIHET, 2017SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.362-400., p.381). Por outro lado, a infidelidade masculina era considerada um assunto do domínio privado, não tendo o homem que tratar dele a nenhuma instituição pública, incluindo a polícia, afinal, os homens da época “eram julgados muito mais pela adequação de seu comportamento às regras de conduta moral, consideradas legítimas, do que propriamente pelo ato criminoso em si” (SOIHET, 2017SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.362-400., p.382).
O modelo de homem ideal se perfilava na sua dedicação ao trabalho e na subsistência da família, a qual era a sua obrigação fundamental. Sua subjetividade se constituía nesse molde de ser na sociedade. Distinguia-se a mulher que era mãe, dócil, submissa, fiel e dedicada ao marido. O ideal de mulher se alinhava à moralidade masculina, “segundo a qual qualquer mulher que não correspondia à norma ideal era uma ‘rameira' em potencial” (FONSECA, 2017FONSECA, C. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto , 2017. p.510-553., p.532). Discursos envolventes como: roupas de mulher decente, jeito de falar de mulher correta ou ainda prática de mulher de bem são alguns dos discursos que forjam essa subjetividade feminina. Afinal, “a mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo algum amante” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.45-77., p.73), uma vez que a mentalidade vigente em relação ao adultério era de que “a fidelidade obrigatória era impossível de ser mantida pelo homem cuja sexualidade era excessivamente exigente, resvalando a qualquer ‘sedução'. Julgava-se dever da esposa a compreensão de tais ‘fraquezas'” (SOIHET, 2017SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.362-400., p.384).
Essa diferença descompassada na relação entre homem e mulher, totalmente assimétrica e de submissão, era marcada linguisticamente no tratamento às mulheres. À época, utilizava-se o termo senhora para referir-se à esposa, aquela que tinha o papel de mãe e ordeira; de certa maneira, este tratamento coibia a prática de escândalos, uma vez que o termo lhe brindava um posto de superioridade com relação às outras mulheres, o qual não deveria ser combalido perante os infortúnios conjugais. Por outro lado, à amante era atribuído o termo a outra. A ela caberia satisfazer o homem nos prazeres: o coito, os jantares, o contentamento dele em presenteá-la etc.
Pinsky (2017, p.613)PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639. esclarece que as “relações sexuais dos homens com várias mulheres não só eram permitidas, como frequentemente incentivadas”. A esse temperamento poligâmico masculino era atribuído o sinal de virilidade. A visão de mulher como desvirtuante do bem e da ordem provém dos ensinamentos cristãos, nos quais ela “estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.45-77., p.46), o que justificava a intensa vigilância da família, da Igreja e do Estado sobre a mulher.
Já o cenário da subjetividade das mulheres dos Anos 50 é construído pelas seguintes características da época: o fortalecimento da democracia; o aumento de possibilidades educacionais e profissionais para homens e mulheres; a ascensão da classe média; a ampliação do acesso à informação, lazer e consumo; a participação feminina no desenvolvimento econômico e as consideráveis modificações nas práticas sociais do namoro à intimidade familiar (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639.), que se aproximam, em parte, das condições atuais.
Todavia, nesse período, os papéis sociais femininos e masculinos ainda eram marcados de preconceito, para os quais a mulher ideal ainda respondia à autoridade masculina, sobretudo nas relações conjugais. Pinsky (2017, p.609)PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639. assevera que “na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional”.
3 Constituição do corpus e análise
Na pesquisa em tela, analisamos 10 (dez) sequências enunciativo-discursivas de uma entrevista realizada com uma mulher a respeito da sua relação extraconjugal, buscando examinar essa condição de amante por dois vieses: como ela vê a sua condição de parceira extraconjugal e como ela acredita que a sociedade percebe essa condição, observando as implicações dessas visões em seu discurso.
Para classificarmos e constituirmos o material de interpretação, partimos da relação do discurso da colaboradora da pesquisa com os sentidos ético-discursivos perpetuados sobre o papel afetivo da mulher, no que concerne à vida extraconjugal, desde o Brasil Colônia até o início do século passado, sobretudo nos Anos Dourados, que corresponde ao período logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.
A entrevista semiestruturada, gravada em áudio e transcrita posteriormente, foi realizada em outubro de 2016, em Maceió-AL, na residência e companhia de um amigo da colaboradora. Vale destacar que a entrevistada estava ciente do objetivo da entrevista para a qual havia aceitado o convite semanas antes de sua realização e que as sequências de fala são apresentadas conforme produzidas.
À época, a colaboradora da pesquisa tinha 32 anos de idade, era professora licenciada e residia e trabalhava em uma cidade interiorana do estado de Alagoas, onde nasceu, a aproximadamente 80km de distância de Maceió, capital do estado. Sua relação extraconjugal já durava dois anos. Além da relação que mantinha com esse homem, a entrevistada afirmou não possuir nenhum outro tipo de relação amorosa. A respeito do seu parceiro, a colaboradora preferiu não dar nenhuma informação. Esse silenciamento sobre o seu parceiro já seria um indício de ações esperadas do papel de amante, visto que a discrição é um elemento fundante na relação e um critério desse acordo prévio para a infidelidade do homem.
Mais adiante e dando continuidade à nossa proposta de análise, apresentamos três subseções: 1) A importância da nomeação para o controle dos sentidos, 2) A tensão dialógica na construção do dizer e 3) Os riscos e as consequências dos outros sentidos.
3.1 A importância da nomeação para o controle dos sentidos
Ao nos debruçarmos sobre os dados gerados na pesquisa, observamos com regularidade a naturalização da condição de amante no discurso da entrevistada, o qual parece se ancorar nas ideias e argumentos que remetem ao cenário das mulheres do Brasil colonial ao início do século passado, períodos em que se nutriam o poder do homem em ter e prover uma relação extraconjugal bem como a passividade feminina em adequar-se a essa situação, dispondo ainda de fidelidade e respeito à relação conjugal do homem.
No início da conversa, o entrevistador pergunta à entrevistada qual seria o melhor termo para designar essa condição de pessoa que vive em um relacionamento extraconjugal para, assim, designá-lo a ela. O entrevistador sugere algumas nomenclaturas, mas a entrevistada propõe um termo que não se encontrava entre as opções propostas, conforme reproduzimos na sequência enunciativa 1.
Sequência 1
ENTREVISTADOR: Antes de começar a entrevista, qual você acha que seria o melhor termo para designar essa condição? Ou seja, você acha melhor o termo “mulher amante”, “parceira não oficial”... ou “concubina”? Não sei, qual você acha o melhor termo para designar essa condição?
ENTREVISTADA: Acho que uma namorada.
ENTREVISTADOR: Namorada?
ENTREVISTADA: É.
Segundo Borges e Rocha-Coutinho (2015, p.179)BORGES, C.; ROCHA-COUTINHO, M. Sentidos para a homossexualidade. In: LARA, G.; LIMBERTI, R. (orgs.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015. p.179-199., “o ato da nomeação, quando dirigido a uma pessoa, estabelece uma relação entre identidade pessoal e sociedade”. Volóchinov (2018, p.223)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. apresenta uma estrutura sociológica da linguagem e assevera que é necessário reconhecer cada um dos enunciados como um fenômeno puramente sociológico. E afirma, ainda, que “a expressão realizada exerce uma potente influência inversa sobre a vivência: ela começa a penetrar na vida interior, dando-lhe uma expressão mais estável e definida” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.212).
Compreendemos, nesse sentido, que os nomes relacionados a mulheres que vivem a condição de amantes, sugeridos pelo entrevistador, a saber, mulher amante, parceira não oficial e concubina, talvez acentuassem uma determinada construção de sentido que não correspondesse àquela com a qual a colaboradora se identificasse e que quisesse construir ético-discursivamente. O nomear institui sentidos ético-discursivos e, por conseguinte, institui uma identidade (BORGES; ROCHA-COUTINHO, 2015BORGES, C.; ROCHA-COUTINHO, M. Sentidos para a homossexualidade. In: LARA, G.; LIMBERTI, R. (orgs.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015. p.179-199.). A denominação da entrevistada, que opta pela palavra namorada, busca ressignificar, para ela e já para o entrevistador, a sua condição diferente e romantizada, estabelecendo uma ética discursiva quanto ao sentido, isto é, sugere a negociação de uma imagem.
A escolha da palavra namorada pode ser justificada pelo suposto entendimento de que este signo poderia estar socialmente desvinculado do arquétipo de amante. Conforme Volóchinov (2018, p.205; grifos do autor)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., “a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte”.
Nos Anos Dourados, o namoro era entendido como uma fase de preparação para uma relação mais séria: o noivado e, posteriormente, o casamento. Era de tamanha importância social que “o namoro adquiria características de uma fase de estudos mútuos daqueles que poderiam ser os futuros cônjuges e suas famílias, servia como um tempo de adaptação do casal” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.616). É interessante percebermos que namorar é um ato que nomeia esse estágio prévio ao casamento. Quem namora não está casada, mas, pela ética do discurso, é uma pretendente a esse fim. O termo institui, nas redes de sentido, um momento de preparação ao casamento, como parece indicar a sequência 2.
Sequência 2
ENTREVISTADA: [...] Ele [o homem] vai ter aquela responsabilidade também com a namorada. E, às vezes, chega até ser futuramente uma coisa oficial, entendeu?
ENTREVISTADOR: Então você vê com uma perspectiva de vir, de ser uma oficial, por exemplo?
ENTREVISTADA: Sim, se realmente ele gostar dela e ela gostar dele, se haver [sic] realmente o respeito, sim (grifos nossos).
Entendemos, portanto, que, a partir do momento em que a entrevistada recusa todas as denominações - negativamente marcadas - concernentes ao seu vínculo em uma relação extraconjugal e adota o termo namorada, ela ressignifica essa condição para ela e para o outro, atenuando a carga social de que os termos já conhecidos estão impregnados, pois “não existe um enunciado sem avaliação. Todo enunciado é antes de tudo uma orientação avaliativa. Por isso, em um enunciado vivo, cada elemento não só significa mas também avalia” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.236; grifo do autor). A axiologia do signo namorada só é elucidada com a ajuda dos outros signos.
Para Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., não há compreensão que não seja dialógica, e essa compreensão busca uma antipalavra. Seria, então, namorada a antipalavra escolhida pela entrevistada, a qual se reveste de uma nova intenção discursiva, uma vez que “sem uma ênfase valorativa não há palavra” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.233). O termo namorada carrega um sentido tão singular no discurso da entrevistada que ele aponta não ser passível de adjetivações que busquem definir o caráter jurídico dessa condição, isto é, como legítima ou não. Essa qualificação se torna impraticável, dado que, assim como os termos análogos, o novo termo herdaria a compreensão negativa sobre essa condição. Essa interpretação provém do diálogo apresentado na sequência enunciativa 3.
Sequência 3
ENTREVISTADOR: Você falou em relação ao respeito. Então, o que você pensa em relação à namorada dele oficial?
A entrevistada faz um breve silêncio.
ENTREVISTADA: À esposa dele.
ENTREVISTADOR: Sim, isso.
ENTREVISTADA: Mas, assim, quem tá faltando com respeito não é nem tanto a namorada e, sim, ele. Entendeu?
Compreendemos que, na sequência 3, assim como na sequência 1, houve um novo posicionamento ativamente responsivo da namorada de enfrentamento aos valores socialmente partilhados sobre a sua condição, em um movimento de especulação de sentidos ou de uma ética discursiva própria, os quais nos levam a classificar a condição da mulher, nesse tipo de relação, em oficial e não oficial. Essa qualificação sempre põe esta última, a não oficial, em uma circunstância condenável e vexatória socialmente.
Ainda na sequência 3, a namorada indica refletir acerca da responsabilidade e compromisso do seu parceiro na construção dessa condição, uma vez que apenas ele e a esposa estão em uma relação oficial. Ela, em contrapartida, apesar da sua condição de namorada, está solteira juridicamente, não se caracterizando, talvez, como uma adúltera. Considerando o diálogo sucedido na sequência 1, a partir de então, adotaremos o mesmo termo escolhido pela entrevistada para tratar da sua condição de mulher em uma relação extraconjugal: namorada.
3.2 A tensão dialógica na construção do dizer
Os valores negativos presentes nas palavras apresentadas pelo entrevistador na sequência 1, entre outras utilizadas ordinariamente, são trazidos à baila no discurso da namorada, como indicam as sequências 4 e 5.
Sequência 4
ENTREVISTADOR: Então, o que você acha das mulheres que vivem como namoradas de homens comprometidos?
ENTREVISTADA: Bom, sabemos que não é certo... porém [ar de riso] há suas vantagens... é... exemplo, o homem comprometido, ele tem um compromisso maior quando ele arruma alguém fora. Então, acho que seja isso. Essa diferença. E os jovens de hoje não têm esse compromisso (grifos nossos).
Sequência 5
ENTREVISTADOR: E você não acha que, por um momento, ele tá faltando com respeito com você, por ter uma pessoa?
ENTREVISTADA: Sim, porque se gostasse não estava com as duas, escolheria uma. Só que existe o homem que já se acostuma com essa situação... duas... então, mesmo que ele chegue a ficar só com você, se ele estiver acostumado nesse mundo, ele vai arrumar mais uma, a gente sabe que é a realidade, é RARO realmente um homem deixar sua esposa por aquela que destruiu a sua família. É raro (grifos nossos).
Ao julgar a sua circunstância amorosa como errada (sequência 4) e, mais adiante, ao associar a imagem de destruição a essa circunstância (sequência 5), a namorada “se vê numa arena de argumentos e discussões detalhados referente ao que deveria pensar de si mesm[a]” (BORGES; COUTINHO, 2015BORGES, C.; ROCHA-COUTINHO, M. Sentidos para a homossexualidade. In: LARA, G.; LIMBERTI, R. (orgs.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015. p.179-199., p.184) ao entender a condição de namorada como destruidora de lares. A entrevistada traz essa compreensão como algo naturalizado e amplamente socializado quando inclui o entrevistador no seu discurso, ao fazer referência, linguisticamente, à primeira pessoa do plural (sabemos, na sequência 4; a gente sabe, na sequência 5) - nestas e em outras sequências quando trata dessa condição amorosa - e quando declara a quase impossibilidade de o homem ter a namorada como futura esposa, como discurso envolvente, em decorrência da sua suposta natureza destruidora.
Diferentemente do dito pela colaboradora na sequência 3, observamos, na sequência 5, duas dimensões discursivas de isenção da responsabilidade do homem, como discurso envolvente: 1) Como ela destaca uma determinada realidade que todos sabem, ou seja, uma prática que é natural e, por isso, previsível, pois existe o homem que já se acostuma com essa situação e 2) Como a namorada, por um momento, passa a ser aquela que destruiu a sua [do homem] família. Na primeira dimensão, trair é uma questão de costume e, na segunda dimensão, o homem é vítima. Em nenhum dos casos, ele é ativo e, em ambos os casos, os discursos funcionam como mecanismos de coerção de um establishment, ou ordem ideológica, social, política e cultural desejadas.
O conceito de destruidora é retomado em outros momentos, como na sequência 6.
Sequência 6
ENTREVISTADOR: Você acredita que essa visão da sociedade, que a sociedade tem hoje das mulheres que são namoradas, você acredita que possa mudar?
ENTREVISTADA: Eu acho que não.
ENTREVISTADOR: Por que você acha que não?
ENTREVISTADA: Porque isso vem de... bem antes, antigamente o pessoal... é... aquela coisa, né? Os nossos pais casou pra viver, então só quem separa é a morte. Então, até hoje mesmo... é por isso que hoje a sociedade não aceita. Porque a mulher [a namorada] quando entra em um casamento, ela está entrando pra de-destruir aquela família. Então jamais ela vai ser bem vista diante da sociedade (grifos nossos).
Para Lima e Souto Maior (2012, p.399)LIMA, A.; SOUTO MAIOR, R. Responsividade e discursos envolventes: observando o ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Eutomia, v. 2, p.94-413, 2012., “no processo de compreensão ativa surge uma gama de conceitos históricos e socialmente construídos que são ativados para emitir uma resposta a determinado discurso”. Sendo assim, na escolha do termo namorada, a entrevistada tenta modificar os discursos histórica e socialmente construídos para o seu interlocutor, “o que significa dizer que todo discurso produzido leva em conta outros já anteriormente produzidos e já se voltando para outros a serem produzidos posteriormente” (LIMA; SOUTO MAIOR, 2012LIMA, A.; SOUTO MAIOR, R. Responsividade e discursos envolventes: observando o ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Eutomia, v. 2, p.94-413, 2012., p.399).
Seu interlocutor, isto é, o entrevistador, seria o representante médio de um grupo social predominante (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.). Nesse caso, ele seria representante de uma parte da sociedade que não está - ou dissimula não estar - em um relacionamento extraconjugal. Ao mesmo tempo em que o entrevistador configura esse segmento, a entrevistada também conforma outro grupo categorizado pela sociedade de amantes. Segundo Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., esse representante médio seria a projeção ideológica que fazemos desse outro com quem interagimos/dialogamos e a quem estamos respondendo por meio do que entendemos de sua cultura, ideologia, posição social etc. Por isso, ao renomear a sua condição, a namorada demarca uma fronteira entre o aceitável e o não aceitável, o tolerável e o não tolerável, entre o que quer ser dito e o que não pode ser ouvido, em sua “defesa”.
Ainda na sequência enunciativa 6, verifica-se a ligação de sentidos que a entrevistada faz entre as noções ético-discursivas de casar-viver e separar-morrer, valores esses partilhados pela sociedade ocidental, religiosamente orientada, e reproduzidos pela namorada.
Tais sentidos são realçados quando ela utiliza o termo destruir ao referir-se à presença da namorada no seio familiar. Os sentidos de separação, morte e destruição se aproximam nesse discurso, simbolizando o que seria o fim de um relacionamento considerado oficial pela sociedade. Na perspectiva do Círculo de Bakhtin, o contexto social imediato dialoga com o contexto social mais amplo, isto é, quando a namorada interage, ela responde não só ao interlocutor mas também às ideologias dela e do outro, às instituições das quais ambos fazem parte e à sociedade em geral, em uma ação ético-discursiva. Para isso, a entrevistada fundamenta o seu discurso em um período muito anterior ao que vive, utilizando o termo antigamente, por meio do qual indica partilhar das ideologias que seus pais viveram e que parecem estar ainda muito vivas, ela diz: até hoje mesmo, em seu modo de compreender a organicidade de uma relação conjugal e as condições de uma extraconjugal.
No decorrer da entrevista, a namorada recorre, em distintos momentos, à noção de respeito para designar a diferença entre a sua relação e a de outras mulheres nessa mesma condição. Quando solicitada para explicar um pouco mais acerca disso, ela responde:
Sequência 7
ENTREVISTADA: Porque, assim, existe o caso em que o homem trata a namorada como aquela que não pode sair, não pode se divertir, é só... “eu vou...” só pra namorar realmente. E a gente não, a gente, quando pode, a gente sai, a gente faz uma viagem, uma coisa ou outra, então há essa diferença. Porque existe aquela aman... a namorada que não pode ser vista em lugar nenhum com o cara e existe aquele que tem coragem e sai com ela para outro local, outra cidade (grifo nosso).
Podemos indicar, na sequência 7, que a entrevistada se cerceia ao pronunciar, com certo deslize, a palavra amante. No momento da produção, ela rapidamente modifica o termo para namorada. Sabendo que “a palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.205), a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre interlocutores, isto é, “ela se realiza apenas no processo de uma compreensão ativa e responsiva” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo . 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018., p.232). Sendo assim, entendemos que a correção da palavra amante para namorada alivia uma carga de sentidos hostis, na tensão ético-discursiva que se estabeleceu.
Diante disso, a entrevistada retoma a palavra inicialmente escolhida por ela, carregada de uma carga afetiva positiva, como um discurso envolvente, no intento de silenciar ou apagar as significações que a palavra amante poderia implementar. A questão da categorização de tipos de namoradas também é um ponto importante para nos debruçarmos. Segundo a entrevistada, há dois tipos de namoradas, indicados na sequência 7: a namorada de outro tipo e ela, conforme organizamos no quadro comparativo a seguir.
A namorada de outro tipo e ela7 7 Os enunciados que estão entre os colchetes são inferências, pressupostos e acarretamentos dos discursos concretos produzidos pela entrevistada.
É interessante analisarmos a série de atividades que ela indica realizar com seu namorado e que a diferencia do outro tipo de namorada, à luz das restrições e deslocamentos de sentidos. Eles saem, mas quando podem. Ela pode ser vista com ele, mas não na cidade em que ambos vivem. De qualquer forma, são essas concessões espaciais que lhe possibilitam enquadrar-se em uma subjetividade próxima à da namorada para passeio, não só a da que vai namorar realmente, fazendo referência, provavelmente, ao ato sexual.
3.3 Os riscos e as consequências dos outros sentidos
Quando perguntada sobre as dificuldades ou perigos de estar em uma relação como namorada, a entrevistada responde:
Sequência 8
ENTREVISTADA: Há seus perigos sim [ar de riso], porque, assim, você tá entrando num relacionamento de outra pessoa e sabendo que você tá exposto a qualquer tipo de problema, qualquer perigo que venha a acontecer... uma... como posso dizer?... uma briga... né? No meio da rua... até mesmo, como a gente sabe... chegar até à morte. A gente sabe que a mulher não aceita que o marido arrume uma namorada fora do casamento. Então a esposa, ela vai ter... como posso dizer? ... ela vai agir como ela achar melhor. Entendeu? Se ela achar que realmente ela tá sendo prejudicada, ela vai tomar as providências... então infelizmente pode ocorrer o escândalo (grifos nossos).
Em seu discurso, a entrevistada expõe um sentimento de risco em relação à exposição dela e da esposa a toda sociedade no que se refere à sua condição amorosa, pelo qual acaba por naturalizar, como discurso envolvente, a possibilidade de ter que ser punida com a própria vida, chegar até à morte, estando a sua vida à disposição da esposa, de como ela achar melhor para tomar as providências que julgar cabíveis a favor da integridade da sua família. Há deslocamentos de valores e de julgamentos éticos que deixam os discursos impregnados de relações dialógicas profundamente voltadas para a desvalorização da mulher e naturalização do papel isento de culpas do homem, em toda a situação. Em nenhum momento, há uma terceira pessoa nessa projeção de briga, só há as duas mulheres.
A entrevistada, desde o início da conversa, afirmava que não é certo (cf. sequência 4) encontrar-se na condição de namorada diante da sociedade (cf. sequência 6), o que, em seu discurso, parece ser uma justificativa plausível para tal martírio. Contudo, a namorada também diz que há vantagens em estar nessa relação, quando perguntada sobre o que acha das mulheres que vivem como namoradas. Segundo ela, o homem tem mais compromisso, talvez se referindo ao auxílio financeiro que o homem pode proporcionar: O homem comprometido, ele tem um compromisso maior quando ele arruma alguém fora. Então acho que seja isso. Essa diferença. E os jovens de hoje não tem esse compromisso (cf. sequência 4). A entrevistada sugere o possível auxílio financeiro, na condição de namorada, como um dos benefícios por estar em uma relação desse tipo.
Sequência 9
ENTREVISTADOR: E você acha, somente acha que há perigos e dificuldades ou você também acha que há benefícios?
ENTREVISTADA: Sim, benefícios, porque hoje você não vai arrumar... cê não vai entrar num relacionamento de alguém, aquele alguém que não tenha NADA para lhe oferecer. Entendeu? Quando você entra num relacionamento... é... no caso, você vai ser a namorada, ele vai ter, você vai ter as suas vantagens. Porque do mesmo jeito que ele ajuda em casa, ele vai começar a lhe ajudar também.
ENTREVISTADOR: Sim. Há uma coisa interessante que você falou... Esses benefícios que você fala... é... você fala de benefícios sentimentais ou benefícios de coisas físicas?
ENTREVISTADA: O físico e o sentimental também... Depende muito um do outro. Se o homem realmente gostar da namorada, o que ela quiser, ele vai dar. Então, tudo depende também do sentimental. Entendeu?
ENTREVISTADOR: Hum... Então você acha que é mais pelo sentimental ou mais pelo material na relação assim?
ENTREVISTADA: No meu caso, sentimento; no meu caso, sentimento. Mas nós sabemos que vários casos é mais por bens materiais [palavra final inaudível].
Na sequência 9, a namorada ratifica a subjetividade do homem ideal profuso nos Anos Dourados a partir de alguns discursos envolventes como: aquele que se dedica à subsistência da família e aos prazeres da namorada, pois, ainda segundo ela, se o homem realmente gostar da namorada, o que ela quiser, ele vai dar.
A entrevistada ainda reforça essa ideia atribuindo um valor social maior ao homem que tem esse compromisso extraconjugal, sendo o auxílio fornecido pelo homem um ato de sua responsabilidade, ao passo que ela parece fazer uma crítica às relações que assim não se configuram (cf. sequência 4). Isso parece significar que as relações estabelecidas com homens mais jovens podem não se caracterizar pela subsistência da companheira, o que seria, para ela, um aspecto negativo.
Considerações finais
Respeitando os limites de qualquer reflexão, cabem agora, à guisa de considerações finais, algumas ponderações sobre as questões lançadas inicialmente neste trabalho, a saber, os discursos valorativos que a namorada tem da sua condição amorosa e como ela percebe a visão da sociedade sobre as mulheres que vivem nessa condição. É notório nas sequências analisadas um discurso que resgata a noção de mulher amante subserviente, culpada, dependente e destruidora de lares, em que não é posta à discussão a responsabilidade do homem adúltero para a manutenção dessa noção.
Essa noção se sintetiza na ideia de respeito, reiteradamente trazida pela namorada. De acordo com as análises, dar-se ao respeito - expressão profusa no início do século passado, em que, na educação para o autocontrole das moças, “as jovens deveriam aprender a controlar-se a si mesmas, distinguir o certo do errado de forma a conservar suas virtudes e a conter sua sexualidade em limites bem estreitos” (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639., p.610; grifo da autora) - a qual foi utilizada pela namorada durante a entrevista, está relacionada à passividade feminina em aceitar as circunstâncias dessa relação, isto é, conformar-se com a condição de namorada, estar com o parceiro apenas em lugares que sejam seguros para ele, dar satisfações da sua vida a ele (cf. sequência 10 adiante), honrar a discrição que o homem necessita para manter essa relação, e estar a ponto de pôr em risco a sua vida como penalidade.
Pode-se observar que há reacomodações éticas nos sentidos, consolidadas através de escolhas lexicais, de reelaborações de dizeres e de redimensionamentos dos sentidos das práticas sociais, sempre na busca de um diálogo com os discursos envolventes, ou seja, com os discursos que estão lá. Essas ações da interlocutora deixam os discursos latentes de tensões dialógicas profundamente voltadas para o resgate ético de um deslocamento de sentidos da mulher amante. Há camadas de sentidos do papel da mulher na busca de um acordo ético na produção e na reprodução do que é ser amante, como na sequência discursiva a seguir:
Sequência 10
ENTREVISTADA: Acho que hoje nós nos respeitamos, entendeu? E a gente sabe que tem casais que não respeitam... entre homem... a mulher também, às vezes, por saber que o homem é casado, [ela] não dá tanta satisfação, então se ela ficar com outro, besteira. Entendeu? Não quer dizer que todas as namoradas irão fazer isso, mas algumas que eu conheço fazem, não tão nem aí.
Como foi possível acompanhar na análise deste trabalho, segundo a entrevistada, a namorada, caracterizada como destruidora de lares, vincula-se a uma relação extraconjugal não apenas por questões sentimentais, mas também pelas regalias que o homem, provedor, pode oferecê-lhe (cf. sequência 4). Outro ponto da análise, o do controle masculino sobre a namorada, é tido como algo naturalizado, quando, por exemplo, a entrevistada diz que há homens que trata[m] a namorada como aquela que não pode sair, não pode se divertir [...] só pra namorar realmente (cf. sequência 7), apesar de não ser o seu caso, de acordo com a namorada. A entrevistada também naturaliza o temperamento poligâmico do homem ao indicar que existe o homem que já se acostuma com essa situação (cf. sequência 5).
A ideologia de mulher destruidora de lares e aproveitadora sem escrúpulos (PINSKY, 2017PINSKY, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.607-639.) atribuída às mulheres amantes orbita a todo momento no diálogo entre a entrevistada e o entrevistador. Buscando dispersar esses valores, a entrevistada renomeou e ressignificou ético-discursivamente, desde o início, a sua condição para a de namorada, distanciando-se da avaliação “condenatória” que assomaria caso ela se autodenominasse amante, visto que, nas sequências analisadas, a namorada traz a voz do seu interlocutor quando expõe os traços negativos socialmente difundidos sobre essa relação: que não é certo, que a namorada pode passar por situação vexatória, que raramente a namorada poderá ascender ao posto de esposa etc. Entendemos, assim, que “o discurso é ação social: as pessoas estão constantemente criando o mundo em volta delas tão bem como elas mesmas e os outros nas práticas sociais onde atuam” (MOITA LOPES, 2002MOITA LOPES, L. P. Discurso como ação: construindo a identidade social de sexualidade. In: MOITA LOPES, L. P. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002. p.89-127., p.93).
Neste estudo, visamos entender o discurso de um sujeito socialmente marginalizado por sua condição amorosa e os artifícios linguístico-discursivos utilizados por ele para a (des-re)construção de significados que já estão em órbita há muito tempo, os quais reprimem e/ou diminuem a possibilidade de um novo olhar, pois, “quando construímos o nosso discurso, sempre trazemos de antemão o todo da nossa enunciação [...]. Não enfiamos as palavras, não vamos de uma palavra a outra mas é como se completássemos com as devidas palavras a totalidade” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov . 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p.261-306., p.291-292). Assim, é possível compreender a fluidez da palavra nas relações dialógicas na tentativa de redesenhar a prática social do outro e a sua própria prática. Nesse sentido, pudemos observar como
o nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 2018BAKHTIN, M. O discurso em Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. p.207-234., p.223).
Fora do diálogo, seria impossível reconhecê-las.
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Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicadoDeclaramos que ambos os autores tiveram acesso ao corpus de pesquisa, participaram ativamente da discussão dos resultados e revisaram e aprovaram o processo de preparação da versão final do artigo.
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1
Dentre as transformações, essa autora cita a consolidação do capitalismo, o incremento da vida urbana com novos formatos de convivências sociais e ascensão da burguesia.
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2
Termos, em português arcaico, que significam tida e mantida financeiramente.
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3
A relação entre práticas sociais, discursos e sentidos será tratada mais adiante.
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4
A título de exemplo, letras de canções muito conhecidas no nordeste brasileiro, e ainda hoje bastante reproduzidas em festas urbanas populares, ratificam certos sentidos ou crenças, como Amor de rapariga e Rapariga é você, ambas lançadas na primeira década dos anos 2000. As duas músicas relatam o conflito entre duas mulheres, a parceira oficial de um homem e a suposta amante dele, sobre quem seria a melhor companheira, sem pôr em discussão a responsabilidade e compromisso do homem adúltero para com elas. Ao contrário disso, nas músicas supracitadas, há uma disputa sobre quem permanecerá com ele e a culpabilização integral da mulher amante pelo relacionamento extraconjugal, o que parece incumbir ao homem adúltero o status de vítima das circunstâncias ou, mais bem, uma característica natural ao comportamento masculino. É sobre essa condição, de mulher amante, que nos debruçamos neste estudo para lançar algumas reflexões historicamente situadas.
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5
Optamos por assumir essa referência por ser um termo conhecido e socialmente compartilhado.
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Referimo-nos à primeira metade do século XX.
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7
Os enunciados que estão entre os colchetes são inferências, pressupostos e acarretamentos dos discursos concretos produzidos pela entrevistada.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Dez 2020 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
29 Jun 2020 -
Aceito
27 Set 2020