Open-access O que há de Saussure em Bakhtin? Um estudo a partir de um comentário sobre a tradução de Rabelais em russo

RESUMO

Este artigo propõe uma leitura de Ferdinand de Saussure e Mikhail Bakhtin que busca colocá-los em relação não por um viés epistemológico, mas a partir de uma ideia de Henri Meschonnic, segundo a qual um autor pode estar ligado a outro sem que esteja explicitada referência de filiação entre eles. Para tanto, parte-se de um comentário, feito por Bakhtin, a propósito da tradução da obra de François Rabelais em russo, que é citado por Meschonnic no contexto de sua leitura antiestruturalista de Saussure. Finalmente, reflete-se sobre a pertinência de abordar comentários metalinguísticos que tematizam a condição do falante, o que pode configurar o objeto de uma teorização enunciativo-antropológica.

PALAVRAS-CHAVE: Comentário; Tradução; Estruturalismo; Discurso; Antropologia da enunciação

ABSTRACT

This article proposes an interpretation of the ideas of Ferdinand de Saussure and Mikhail Bakhtin that seeks to relate them not through an epistemological point of view, but based on a concept proposed by Henri Meschonnic, according to which one author can be linked to another without an explicit reference to an affiliation between them. The starting point is a comment made by Bakhtin about the translation of François Rabelais’ work into Russian, which Meschonnic cites in his anti-structuralist interpretation of Saussure. Finally, a reflection is made on the relevance of addressing metalinguistic comments that discuss the condition of the speaker, which can be the object of an enunciative-anthropological theorization.

KEYWORDS: Commentary; Translation; Structuralism; Discourse; Anthropology of enunciation

Introdução

Em um livro que é uma espécie de sequência da monumental Poétique du traduire1 (1999) - Éthique et politique du traduire (2007) - Henri Meschonnic (1932-2009) reproduz, quase ao final, uma passagem, presente em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965)2, em que Mikhail Bakhtin comenta a tradução russa da obra de François Rabelais (1494-1553) feita pelo grande tradutor Nicolai Liubimov (1912-1992). Leiamos a passagem; ela é longa, mas necessária:

À guisa de conclusão, gostaríamos de dizer algumas palavras sobre a tradução de Liubimov. Sua publicação foi um acontecimento importante. Pode-se dizer que o leitor russo leu pela primeira vez Rabelais, pela primeira vez ouviu o seu riso. Embora desde o século XVIII se tenha começado a traduzi-lo, foram sempre excertos isolados, e nenhum tradutor chegara, nem mesmo de longe, a reconstituir a originalidade e a riqueza da língua e do estilo rabelaisianos. A tarefa parecia excepcionalmente difícil. Chegara-se mesmo a declarar que Rabelais era intraduzível (era a opinião que na Rússia defendia Vesselovski). Por essa razão, entre todos os clássicos da literatura mundial, Rabelais foi o único que não entrou na cultura russa, que não foi assimilado por ela (como o foram Shakespeare, Cervantes etc.). Tratava-se de uma lacuna importante, pois Rabelais dava acesso ao imenso universo da cultura cômica popular. Atualmente, graças à admirável tradução de Liubimov notavelmente fiel ao original, pode-se dizer que Rabelais pôs-se a falar russo, a falar com toda a sua familiaridade, sua inimitável desenvoltura, com toda a sua verve cômica inesgotável e profunda. A importância desse acontecimento é inestimável (Bakhtin, 1996, p. 122-123).

Meschonnic (2007, p. 176-177; tradução nossa) é claro em dizer: “eu amo citar essa passagem3”; e isso porque ela permite ao grande tradutor e linguista ilustrar, com o que chama de “uma parábola4”, “a guerra do poema contra o signo5”. Quer dizer, em Meschonnic, isso significa pensar a língua como algo que é da ordem do contínuo, do discurso (do poema), e não do signo, do descontínuo. Tendo Wilhelm von Humboldt, Ferdinand de Saussure e Émile Benveniste como inspiração, Meschonnic delineia uma teoria da linguagem que dá destaque ao ritmo, à historicidade e à alteridade. Uma teoria crítica em que o político tem lugar central.

Nesse sentido, a passagem de Bakhtin acima tem especial interesse para nós aqui, pois Meschonnic cita-a em um contexto em que ele está defendendo uma leitura antiestruturalista de Saussure, ou seja, em favor de um Saussure do discurso e não da língua como uma entidade abstrata, o que permite a Meschonnic (2007, p. 175; tradução nossa) defender uma concepção de tradução - e de tratamento da linguagem em geral - que leve em conta “um outro ponto de vista, aquele do contínuo, o contínuo corpo-linguagem, ritmo-sintaxe-prosódia, o contínuo de uma semântica serial que mostra que o signo é apenas uma representação, e uma representação que oculta e impede de pensar o contínuo6”.

Essas observações iniciais que fazemos são suficientes para dar lugar ao ponto que nos interessa aqui: o fato de Meschonnic apresentar o “comentário”7 de Bakhtin como ilustração de uma perspectiva de linguagem que tem ressonância com Saussure, para abordar a tradução, não é algo trivial. Admitindo-se que o gesto de Meschonnic esteja certo - e cremos que sim -, poderíamos dizer que a leitura que Meschonnic tem de Saussure permite-lhe supor que Bakhtin opera com uma visão de linguagem que, ao menos em parte, é condizente com a perspectiva saussuriana, e que isso se mostra, por exemplo, na passagem que citamos acima.

Ora, isso é no mínimo interessante, uma vez que abre a possibilidade de colocar os autores em relação menos pelo que textualmente aparece em seus escritos (por exemplo, alguma crítica a Saussure que compareça na obra bakhtiniana8) e mais pelo fato de que ambos tratam de questões de mesma ordem. Em outras palavras, queremos fazer funcionar aqui - no estudo da relação Saussure-Bakhtin - a ideia de Meschonnic segundo a qual um autor pode estar em continuidade com outro sem que isso implique, necessariamente, uma referência bibliográfica (Flores, 2023b).

Meschonnic explicita essa ideia afirmando, a propósito da relação Humboldt-Saussure-Benveniste, o seguinte: “um pensamento de Humboldt pode ser reconhecido onde uma filiação não é expressamente reivindicada. Assim, parece-me que tal pensamento passa por Saussure e Benveniste. Pensar Humboldt não é necessariamente se referir a Humboldt9” (Meschonnic, 1995, p. 16-17; itálico nosso, tradução nossa). Ou ainda, especificamente sobre Humboldt-Saussure: “contrariamente a esta representação situada pelo estruturalismo, eu diria que existe uma continuidade entre Humboldt e Saussure10” (Meschonnic, 1995, p. 20; tradução nossa). Por fim, na Poética do traduzir, ele diz: “Saussure está em continuidade com Humboldt por um pensamento do valor, do funcionamento (que passa pelo sujeito falante) e da historicidade radical” (Meschonnic, 2010, p. 209).

Bem entendido, o que queremos fazer neste artigo é exatamente usar essa ideia de que um pensamento pode ser reconhecido onde uma filiação não é expressamente reivindicada para defender que há uma relação Saussure-Bakhtin que vai além de alguma menção explícita, o que diz respeito ao pensar a linguagem e a língua de um ponto de vista que implica questões de mesma ordem. Esse objetivo determina a sequência do que expomos a seguir: em primeiro lugar, trazemos, em linhas gerais, a perspectiva de leitura antiestruturalista de Saussure, feita por Meschonnic; em seguida, voltamos ao “comentário” de Bakhtin para, nele, situar esse pensamento de mesma ordem que vemos em Saussure-Bakhtin; por fim, trazemos algumas consequências do percurso aqui feito.

1 Um Saussure antiestruturalista

Muitos foram os autores - na história da linguística - que se insurgiram contra a ideia de um Saussure estruturalista11; não foram poucos também os que viram nas teses saussurianas presentes no Curso de linguística geral (CLG) a origem do movimento que determinou boa parte dos estudos em ciências humanas no século XX. A complexidade do que está em jogo aqui pode ser ilustrada pelas palavras de Benveniste (1988, p. 98, itálico do autor):

O princípio da “estrutura” como objeto de estudo foi afirmado, um pouco antes de 1930, por um pequeno grupo de linguistas que se propunham reagir assim contra a concepção exclusivamente histórica da língua, contra uma linguística que dissociava a língua em elementos isolados e se ocupava em seguir-lhes as transformações. Todos concordam em que esse movimento tem a sua origem no ensinamento de Ferdinand de Saussure em Genebra, tal como foi recolhido pelos seus alunos e publicado sob o título de Cours de linguistique générale.

Benveniste, em um primeiro momento, reconhece o lugar fundador de Saussure para o estruturalismo em linguística; no entanto, ele não subscreve integralmente essa perspectiva:

Chamou-se a Saussure, com razão, o precursor do estruturalismo moderno. Ele o é, seguramente, exceto num ponto. É importante notar, para uma descrição exata desse movimento de ideias que não se deve simplificar, que Saussure jamais empregou, em qualquer sentido, a palavra estrutura. Aos seus olhos a noção essencial é a de sistema. A novidade da sua doutrina está aí, nessa ideia - rica de implicações e que se levou muito tempo para discernir e desenvolver - de que a língua forma um sistema (Benveniste, 1988, p. 98; itálicos do autor).

Ora, a agudeza do espírito de Benveniste é determinante para estabelecer uma leitura correta da situação: Saussure até pode figurar como um precursor do estruturalismo, quer dizer, suas ideias podem ter influenciado, de algum modo, o movimento, porém, é importante salvaguardar que a “novidade da doutrina” de Saussure não é a estrutura e sim o sistema. Estamos em 1962 e Benveniste já, lucidamente, balizava, nesses termos, a suposta origem saussuriana do estruturalismo.

Décadas após a análise de Benveniste, outro linguista de grande envergadura, Jean-Claude Milner12, anuncia: “o estruturalismo não estava errado em acreditar que veio do Curso, mas ele não está no Curso13” (Milner, 2002, p. 19; itálicos do autor, tradução nossa).

A questão que interessa aqui não é saber se Saussure é, ou não, estruturalista; ou se sua teoria foi, ou não, a base do estruturalismo. De certa forma, no contexto da especializada filologia saussuriana, essa problemática já foi debatida com profundidade e em diferentes perspectivas14. As respostas parecem endossar tanto as palavras de Benveniste quanto as de Milner. Entre nós, no Brasil, no entanto, o assunto ainda pode ser aprofundado. Prova disso é a vasta bibliografia didática que, de maneira não raras vezes pouco crítica, contenta-se em afirmar que Saussure é estruturalista.

O que, no entanto, realmente nos interessa é pensar sobre os efeitos que podem ser produzidos por uma leitura radicalmente antiestruturalista de Saussure. São esses efeitos que permitem colocar Saussure-Bakhtin em relação. E, nesse sentido, é preciso reconhecer que Meschonnic foi uma das primeiras e mais consistentes vozes. Entre as décadas que separam as afirmações de Benveniste daquelas de Milner, há Meschonnic15, que, já em 1975, numa obra cujo título é emblemático - Le signe et le poème -, afirmava peremptoriamente:

O estruturalismo é um dos papéis que Saussure desempenha na teoria da linguagem. Mas Saussure não se reduz a isso. Não apenas porque voltamos à sua teoria como a um trabalho em andamento, o que poderia ser apenas um retrocesso, mas porque ele não se reduz a um efeito de sua história. Sua pertinência se renova; é o que comprovam certas polêmicas16 (Meschonnic, 1975, p. 208; tradução nossa).

Meschonnic distancia-se de qualquer conexão entre Saussure e o estruturalismo. Ele reitera incansavelmente que sua poética é saussuriana, porém, antagônica ao estruturalismo. A exemplo do que diz Benveniste, Meschonnic privilegia a ideia de sistema, “um conjunto de diferenciais internos, radicalmente históricos, à diferença da estrutura estruturalista e semiótica, que trata como pares de exclusão mútua os pares de implicação recíproca, em Saussure” (Meschonnic, 2010, p. XXXI; itálico do autor). Para ele, o estruturalismo linguístico e, especialmente, o literário representaram uma prolongada interpretação equivocada de Saussure; confundindo sistema com estrutura: “a indiferenciação entre sistema e estrutura continua a ser a opinião reinante” (Meschonnic, 2010, p. 59). Por isso, sua teoria poética da linguagem “é saussuriana, mas antiestruturalista. O estruturalismo linguístico e sobretudo literário terá sido um longo contrassenso a respeito de Saussure” (Meschonnic, 2010, p. XXXII).

A isso, acrescenta-se um elemento fundamental: o Saussure de Meschonnic é fundador do pensamento sobre o discurso (Flores, 2019a e 2023a). Tem razão Meschonnic, pois a teoria do valor linguístico elaborada por Saussure é um ponto de vista que possibilita ampla visão da organização de sentido das línguas e de sua existência no discurso. Pode-se dizer que há em Saussure um ponto de vista do sentido que impõe que se considere o discurso, isto é, a língua que é significante só, e somente só, para os locutores. É assim que se pode interpretar a indagação de Saussure na célebre “Nota sobre o discurso”, incluída nos Escritos de linguística geral17: “o que, em um dado momento, permite dizer que a língua entra em ação como discurso18?” (Saussure, 2002, p. 277; itálico do autor, tradução nossa)19. Vale repetir: o discurso é a língua em ação: “Sistema, valor, funcionamento, e o radicalmente arbitrário, radicalmente histórico, são pensáveis na sua relação da língua ao discurso” (Meschonnic, 2010, p. XXXII).

Tal visada deixa à mostra o que o olhar estruturalista sobre Saussure ocultou: sua teoria é uma semântica que não dissocia forma e sentido, que recusa a separação dos níveis da análise linguística em níveis estanques, que vai contra a compartimentação da língua léxico, sintaxe e morfologia. A teoria linguística de Saussure é uma teoria de conjunto, em que o sentido é real apenas quando locutores estão implicados.

A teoria de Saussure caracteriza-se, assim, por ser uma abordagem integral, que dá destaque à inseparabilidade entre léxico, gramática e discurso. Essa perspectiva se estende a uma compreensão semântica de cada elemento linguístico, fundamentada na teoria do valor linguístico. A teoria do valor delineia uma linguística que centraliza o sentido, resultando na formação de um objeto semântico.

Nesse contexto, não há fonologia, morfologia e sintaxe desprovidas de significado. Cada nível de análise linguística, cada unidade, cada elemento de uma língua está imbuído de sentido, que permeia cada componente da língua, conferindo-lhe uma distinção enquanto simultaneamente o conecta ao todo do qual faz parte. Em Saussure, essa interconexão só é plenamente percebida no contexto do discurso. E esse Saussure não é estruturalista.

Nesse ponto, a crítica de Meschonnic é potente e vale retomá-la longamente:

a história recente do pensamento da linguagem foi escrita de tal maneira que Saussure não passa por difícil. Exemplo limite, já que está no limite do visível ideológico, que ilustra o quanto a grade estruturalista fabricou uma falsa facilidade de Saussure. Com seus efeitos escolares. Ela mascara a dificuldade do valor por um primado não saussuriano do sentido. Mascara o arbitrário pela convenção. Um a um recobre os inacabamentos fecundos de Saussure sob a permanência de um signo e de uma natureza que são em relação a ele uma dupla regressão (Meschonnic, 2010, p. 176).

Nos últimos tempos de sua produção, Meschonnic (2005) explicita sua preferência pelo “Saussure dos Escritos” em detrimento do “Saussure do Curso”:

os Escritos de linguística geral, recentemente descobertos, permitem ler um outro Saussure que aquele do Curso de Bally e Sechehaye (1916), um outro que aquele das Fontes de Godel (1957), e um outro que aquele da edição crítica de Engler (1967-1974). É um pensador do primado do discurso que descobrimos, antes de Benveniste e de outra maneira20 (Meschonnic, 2005, p, 10; itálicos do autor, tradução nossa).

Nesse Saussure, Meschonnic vê um melhor delineamento de um pensamento saussuriano absolutamente dependente das noções de ponto de vista, discurso e sistemático (o sistema). Há, nos Escritos, aos olhos de Meschonnic, um Saussure livre das amarras do estruturalismo.

Por fim, em Éthique et politique du traduire (2007) - obra da qual partimos acima - Meschonnic estabelece uma espécie de testamento de sua leitura antiestruturalista de Saussure, o que o faz ver um Saussure do contínuo, que não esquarteja a língua (a divisão tradicional entre léxico, morfologia e sintaxe); um Saussure do discurso e não do signo; um Saussure afastado das noções de língua e de signo, que são os conceitos-chave do estruturalismo. Ele faz isso listando nove contrassensos que opõem Saussure ao estruturalismo21:

  1. ali onde Saussure diz sistema (noção dinâmica), o estruturalismo diz estrutura (noção formal e ahistórica);

  2. ali onde ele diz que tudo é ponto de vista, o estruturalismo se apresenta como descrevendo a natureza da linguagem;

  3. ali onde Saussure tem uma sistematicidade toda dedutiva da teoria da linguagem, o estruturalismo faz ciências descritivas da linguagem;

  4. Saussure pensa a unidade língua-fala, como discurso, e o estruturalismo praticou uma dicotomia entre a língua e a fala;

  5. também, em Saussure, a teoria da linguagem postula uma poética, enquanto o estruturalismo vê somente a oposição entre o racionalismo do Curso e a loucura dos Anagramas;

  6. em Saussure, o associativo múltiplo é oposto ao sintagma e o estruturalismo fez a oposição binária do paradigmático e do sintagmático;

  7. para Saussure, o signo radicalmente arbitrário é uma historicidade radical, mas o estruturalismo compreendeu o arbitrário como um convencionalismo;

  8. para Saussure, a diacronia-sincronia é uma única história em movimento, uma solidariedade, e o estruturalismo viu uma oposição exclusiva da diacronia, entendida como a história, o movimento, à sincronia, o estado de língua;

  9. E, enfim, no lugar da crítica às divisões tradicionais (léxico, morfologia, sintaxe) em Saussure, o estruturalismo foi o pensamento das dicotomias do signo, o descontínuo22 (Meschonnic, 2007, p. 51-52; itálicos do autor, tradução nossa).

Admitimos que a citação anterior é extensa, porém, sua inclusão aqui é crucial. É fundamental que o leitor tenha acesso à dimensão do pensamento de Meschonnic sobre Saussure para perceber que, para ele, Saussure é, acima de tudo, o pioneiro de uma teoria linguística que estabelece uma perspectiva cuja abrangência ainda não foi plenamente compreendida. A obra de Meschonnic oferece diversas razões para revisitar Saussure, e isso a partir de perspectivas e interesses distintos. A especializada filologia saussuriana desempenhou um papel significativo ao “reavivar” as ideias de Saussure, sendo que uma extensa variedade de fontes manuscritas já foi minuciosamente examinada. Esse contexto deveria ser suficiente para questionar qualquer visão preconcebida de Saussure. E é esse Saussure antiestruturalista que é ilustrado com a passagem de Bakhtin acerca da tradução de Rabelais em Éthique et politique du traduire (Meschonnic, 2007).

2 Saussure-Bakhtin - um pensamento da mesma ordem

Comecemos este item fazendo uma observação: Meschonnic conhece em detalhe a obra de Bakhtin. Ele dedica um estudo ao filósofo russo, por exemplo, em Pour la poétique II (1973), no qual dá destaque a cinco pontos da obra bakhtiniana: as relações entre a poética e a história; o carnaval e a ambivalência; o dialogismo; a translinguística; a noção de gênero (Meschonnic, 1973, p. 191). Ou na volumosa Critique du rythme (1982), numa retomada da crítica ao monologismo na literatura (Meschonnic, 1982, p. 447-457). A passagem de Bakhtin que citamos no início deste trabalho é, mais de uma vez, evocada por Meschonnic, como na Poética do traduzir (p. LXI). Mas como dissemos, é em Éthique et politique du traduire que Meschonnic a menciona na sequência da interpretação antiestruturalista que faz de Saussure.

Antes, porém, de retomar a passagem de Bakhtin à luz de Saussure, é importante precisar os termos epistemológicos pelos quais pensamos fazer isso. A seguir, nem fazemos uma genealogia dos conceitos, nem buscamos determinar uma historiografia Saussure-Bakhtin, nem mesmo queremos propor qualquer herança ou semelhança de raciocínio. O propósito é mais modesto: trata-se de ver que tanto um como outro, como grandes pensadores que são, mobilizaram questões de mesma ordem a respeito de língua(s)/linguagem. É assim que entendemos: há uma filiação não expressamente reivindicada que se articula em torno da mesma ordem de problemas. E de qual problema Saussure e Bakhtin tratam que se explicita na passagem citada de Bakhtin sobre a tradução de Rabelais? Ora, trata-se da “noção” de linguagem que é mobilizada para falar dela; quer dizer, sempre que falamos sobre a linguagem (ou sobre as línguas), o fazemos a partir de uma concepção - consciente ou não - do que sejam linguagem e língua(s). No caso da passagem citada de Bakhtin, é o fenômeno da tradução que é enfocado e, por ele, é a linguagem toda (e as línguas) que é convocada a comparecer. Explicamo-nos.

“Traduzir supõe uma representação da linguagem23” diz Meschonnic (2007, p. 175; tradução nossa). Essa representação pode ser a do signo fechado, do descontínuo, ou a do discurso, do contínuo (do poema) por exemplo.

Voltemos à passagem de Bakhtin: lá, lemos que a tradução de Liubimov “foi um acontecimento importante”; que, com a tradução de Liubimov, “o leitor russo leu pela primeira vez Rabelais” e “pela primeira vez ouviu o seu riso”; que antes disso “nenhum tradutor chegara, nem mesmo de longe, a reconstituir a originalidade e a riqueza da língua e do estilo rabelaisianos”; que chegou-se mesmo a pensar que “Rabelais era intraduzível”; que, pela primeira vez, “Rabelais pôs-se a falar russo”; que o leitor russo teve acesso a “toda a sua familiaridade, sua inimitável desenvoltura, com toda a sua verve cômica inesgotável e profunda”; por tudo isso, a tradução de Liubimov foi um “acontecimento [...] inestimável” (Bakhtin, 1996, p. 122-123).

Em primeiro lugar, o comentário de Bakhtin ilustra o entendimento de que há uma “representação”, um ponto de partida, uma noção, a partir da qual examina-se a linguagem (e as línguas). Em segundo lugar, Bakhtin percebe que a obra de Rabelais impõe ao tradutor que reconheça o que há de “inventivo” na obra de Rabelais, e é essa percepção que permitiu que Rabelais “falasse”, em tradução, ao leitor russo. Em terceiro lugar, Bakhtin supõe que, para Rabelais ser traduzido, é preciso que “fale” aos russos, quer dizer, deve-se reconhecê-los como falantes efetivos de sua língua.

Opera, nessas afirmações de Bakhtin, o Saussure antiestruturalista de Meschonnic. A língua que “só é criada em vista do discurso24” (Saussure, 2002, p. 277; tradução nossa) - afirmação explícita de Saussure na “Nota sobre o discurso” - implica decisivamente uma noção de conjunto da linguagem. Essa abordagem não permite mais que a linguagem seja concebida, de acordo com os princípios estruturalistas, a partir da dicotomia entre língua e fala, nem mesmo com a suposição de que a língua pode ser isolada da atividade do sujeito falante. Os sistemas da(s) língua(s) só podem ser vistos em seu conjunto, como “língua discursiva”: “embora seja necessária uma análise para fixar os elementos da palavra, a palavra em si mesma não resulta da análise da frase. Porque a frase só existe na fala, na língua discursiva, enquanto a palavra é uma unidade que vive fora de todo o discurso, no tesouro mental” (Saussure, 2004, p. 105). É a ideia de que a língua é o próprio sujeito falante - “a primeira expressão da realidade seria dizer que a língua (ou seja, o sujeito falante) [...]” (Saussure, 2004, p. 39) - que conduz Saussure a pensar em língua como atividade e não como produto acabado.

Em certa medida, uma perspectiva saussuriana do discurso enfatiza que cada ato de fala representa uma ação que mobiliza um sistema potencial cujo funcionamento se desvela a cada expressão verbal. A língua, anteriormente concebida como um sistema abstrato pelo estruturalismo, é agora compreendida como a utilização pelos indivíduos, pelos falantes, dos mecanismos que constituem as línguas. A(s) língua(s) são o próprio discurso do falante. Esse sistema, presente na atividade de cada indivíduo, implementa uma rede de conceitos constituídos por valores, construídos através de relações de oposição e diferença, sintagmática e associativamente, na sincronia. O discurso emerge como a expressão que encapsula essa complexidade.

Levando-se em consideração a concepção de que a língua é criada em vista do discurso, é imperativo reconhecer que, no ato de tradução, parte-se do discurso para alcançar outro discurso. O tradutor delineia um discurso em uma dada língua distinta, partindo de um discurso. Desse processo emerge uma conclusão de notável importância: o tradutor, como sujeito falante que é, identifica no discurso a presença de um outro que como ele, é falante.

É isso que Meschonnic vê na passagem de Bakhtin: um Saussure do discurso. Quer dizer, “traduzimos apenas discursos25” (Meschonnic, 2007, p. 177, tradução nossa) e não línguas. Passamos de uma alteridade a outra. Como vemos, o entendimento do que seja uma tradução depende do entendimento que temos a respeito da linguagem.

Conclusão

Retomando o que fizemos, esperamos ter mostrado em que sentido é possível ver que há, entre dois autores, um tratamento de questões de mesma ordem sem que isso implique necessariamente a reivindicação de uma “filiação explícita”. Ora, é conhecida da literatura especializada a discussão em torno de diferenças e semelhanças que se podem verificar, em um nível epistemológico explicitamente colocado, entre Saussure e Bakhtin26. No entanto, quisemos deslocar nossa reflexão para outro âmbito e, com base em Meschonnic, fundamentamos uma possibilidade de exame da relação Saussure-Bakhtin que coloca em relevo a concepção que têm de linguagem. É nesse âmbito que vemos ambos operarem com princípios muito semelhantes, desde que se considere um Saussure não estruturalista.

Por fim, gostaríamos de falar algo a respeito do “comentário em si”, aqui representado pela passagem de Bakhtin a propósito da tradução russa de Rabelais.

Ao longo dos últimos anos, temos progressivamente desenvolvido a concepção de uma Antropologia da Enunciação (Flores, 2019a), um construto teórico-metodológico que se dedica à análise de fenômenos linguísticos, tais como tradução, aprendizado de línguas e aquisição da linguagem etc. Este enfoque considera a experiência do falante expressa em comentários, relatos e narrativas, com o intuito de abordar a vivência que o falante tem de sua condição de falante. Isso implica uma abordagem de natureza enunciativa, buscando compreender a natureza humana como falante que emerge dessa experiência, caracterizando-se como uma abordagem antropológica.

O material central dessa abordagem linguística como reflexão antropológica reside na hermenêutica natural (comentário) que cada indivíduo produz em relação à sua condição de falante, ao experienciar fenômenos nos quais está envolvido como tal. Tomando como exemplo o comentário de Bakhtin sobre sua experiência acerca da tradução de Rabelais, observamos que ele delineia um contorno de sentido - uma interpretação - que se concentra em sua relação com essa tradução. Em outras palavras, o comentário (de natureza metalinguística) que delineia um contorno de sentido é a categoria que proporciona acesso ao estudo antropológico-enunciativo, ao situar um saber sobre o falante em relação à sua condição de falante, como é o caso de Bakhtin, um falante russo, ao afirmar que Rabelais, com a tradução de Liubimov, passou a falar russo.

A expressão “a língua no homem”, uma inversão do título da quinta parte do livro Problemas de linguística geral de Émile Benveniste (1988; 1989), sintetiza, segundo pensamos, essa experiência do falante em relação à sua condição de falante. Consideramos que a abordagem de grandes fenômenos linguísticos, como a tradução, a partir da consideração da experiência do falante, evidencia a presença constitutiva da língua nele.

Dessa forma, o princípio da “língua no homem” conduz a uma antropologia implícita, acessível por meio da experiência que o falante tem de sua condição, levando-nos a conceber o falante como uma espécie de etnógrafo (Flores, 2015) de sua própria vivência linguística. Constantemente, por meio dessa “etnografia natural”, o falante tematiza sua posição em relação ao fato de que a língua é constitutiva de sua identidade de falante.

Como se pode ver, nosso interesse nesses “comentários metalinguísticos” tem possibilitado um campo de reflexão que abre para uma investigação que coloca o falante no centro da discussão, o que não tem sido corrente no âmbito dos estudos linguísticos. E o comentário de Bakhtin aqui analisado permite destacar algo nem sempre lembrado: aquele que estuda a linguagem - o linguista - também é um falante. Condensam-se na observação de Bakhtin uma análise técnica, sem dúvida, mas também uma percepção de falante. Este é o nosso paradoxo: é sempre da relação do falante com a língua que se trata, independentemente do fato de esse falante, em algumas circunstâncias, ser um linguista, um estudioso da linguagem, um filósofo. Essa ideia, a ser desenvolvida, pode ter um considerável alcance heurístico.

REFERÊNCIAS

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  • FLORES, Valdir do Nascimento. Saussure e a tradução. Brasília: Editora da UnB, 2021.
  • FLORES, Valdir do Nascimento. A linguística geral de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Contexto, 2023a.
  • FLORES, Valdir do Nascimento. Continuar a pensar Henri Meschonnic. Criação & Crítica, São Paulo, n. 37, p. 4-18, 2023b. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.i37p4-18 Acesso 20 jun. 2024.
    » https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.i37p4-18
  • GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): projeto, contexto, desfecho. Alfa: Revista de Linguística, v. 66, p. 1-29, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167 Acesso 20 jun. 2024.
    » https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167
  • MESCHONNIC, Henri. Pour la poétique II. Épistémologie de l’écriture poétique de la traduction. Paris: Gallimard, 1973.
  • MESCHONNIC, Henri. Le signe et le poème. Essai. Paris: Gallimard, 1975.
  • MESCHONNIC, Henri. Critique du rythme: antropologie historique du language. Lagrasse: Éditions Verdier, 1982.
  • MESCHONNIC, Henri. Penser Humboldt aujourd’hui. In: MESCHONNIC, Henri (org.). La pensée dans la langue: Humboldt et aprés. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 1995. p. 13-50.
  • MESCHONNIC, Henri. Saussure ou la poétique interrompue. Langages, Paris, v. 159, n. 3, p. 10-18, 2005. DOI: https://doi.org/10.3917/lang.159.0010 Acesso 20 jun. 2024.
    » https://doi.org/10.3917/lang.159.0010
  • MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire. Lagrasse: Éditions Verdier, 2007.
  • MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • MILNER, Jean-Claude. Le périple structural: figures et paradigme. Paris: Verdier, 2002.
  • PUECH, Christian. L'émergence de la notion de “discours” en France et les destins du saussurisme. Langages, Paris, 39e année, n. 159, p. 93-110, 2005. DOI: https://doi.org/10.3406/lgge.2005.2654 Acesso 20 jun. 2024.
    » https://doi.org/10.3406/lgge.2005.2654
  • SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Isidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1975.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. Écrits de linguistique générale. Edição estabelecida e editada por Simon Bouquet e Rudolf Engler com a colaboração de Antoinette Weil. Paris: Gallimard, 2002.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos de linguística geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler com a colaboração de Antoinette Weil. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lúcia Franco. São Paulo: Cultrix, 2004.
  • TOUTAIN, Anne-Gaëlle. “Montrer au linguiste ce qu’il fait”: une analyse épistémologique du structuralisme européen (Hjelmslev, Jakobson, Martinet, Benveniste) dans sa filiation saussurienne. 2012. 6135 f. Thèse (Doctorat en Linguistique) - Université Paris-Sorbonne, Paris, 2012.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo
    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres
    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Lembramos a publicação original no corpo do artigo; no entanto, é justo lembrar, há uma tradução brasileira da obra, feita por Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich (cf. Referências). Em reconhecimento ao excelente trabalho feito pelas tradutoras, usamos a versão brasileira. Consultamos também a edição original.
  • 2
    Usamos aqui a tradução brasileira, conforme Referências. Para saber mais sobre aspectos históricos relativos a essa obra de Bakhtin, consultar Grillo (2022).
  • 3
    No original: “J’aime citer ce passage”
  • 4
    No original: “une parabole”
  • 5
    No original: “la guerre du poème contre le signe”
  • 6
    No original: “Un autre point de vue, le continu corps-langage, rythme-syntax-prosodie, le continu d’une sémantique sérielle montre que le signe n’est qu’une représentation, et une représentation qui cache et empêche de penser le continu”.
  • 7
    A noção de “comentário” será objeto de reflexão mais adiante; por ora, as aspas que utilizamos são suficientes para destacar que utilizamos a palavra aqui com um sentido distante do usual.
  • 8
    Sobre a presença de Saussure no pensamento de Bakhtin, vale ler o estudo de Brait (2016, p. 95), que busca focar “alguns dos momentos em que M. Bakhtin evoca Saussure e suas ideias para avançar seus argumentos sobre uma teoria/análise dialógica da linguagem”. A autora mostra, de maneira muito perspicaz, que Saussure não comparece em Bakhtin “como mero objeto de rejeição, mas como contraponto epistemológico necessário à constituição da argumentação bakhtiniana” (Brait, 2016, p. 96). Essa ideia de “contraponto epistemológico” parece-nos muito produtiva como um operador de leitura de teorias e, acreditamos, coaduna-se com a forma como aqui encaminhamos a relação Saussure-Bakhtin.
  • 9
    No original: “une pensée Humboldt peut se reconnaître là où une filiation n’est pas expressément revendiquée. Ainsi il me semble qu’une telle pensée passe par Saussure et par Benveniste. Penser Humboldt n’est pas nécessairement se référer à Humboldt.”
  • 10
    No original: “Au contraire de cette représentation située par le structuralisme, je dirais qu’il y a une continuité entre Humboldt et Saussure.”
  • 11
    Eu remeto ao meu livro A linguística geral de Ferdinand de Saussure (Flores, 2023a), em especial ao “Apêndice”: “Breve nota sobre Saussure e o estruturalismo”.
  • 12
    O texto de Milner que lembramos aqui foi, originalmente, publicado, com circulação restrita, em 1994, no número 12 de Lettres sur tous les sujets, e republicado, com revisões, em Le périple structural, em 2002.
  • 13
    No original: “le structuralisme n’avait pas tort de se croire issu du Cours, mais il n’est pas dans le Cours
  • 14
    Para uma análise do pensamento de Saussure tal como ele comparece em autores como Andrè Martinet, Louis Hjelmslev, Émile Benveniste e Roman Jakobson, ver Toutain (2012).
  • 15
    Evidentemente, não se trata aqui de defender que Meschonnic é o primeiro a sustentar uma leitura antiestruturalista de Saussure. Como bem lembra Puech (2005, p. 105), “certamente seria necessário restituir os elementos de "discordância" que surgiram nas margens do estruturalismo francês de forma independente, mas convergentes, seja da parte dos historiadores da linguística (como Normand, por exemplo, em 1970, ed. 1978), seja da parte de um poeta como H. Meschonnic, ou de outros horizontes ainda (descoberta das anagramas por Starobinski, dos manuscritos por Godel, Engler...): de diferentes pontos de vista, eles sempre voltam a relativizar - até mesmo a opor - o peso do saussurianismo na formação de um estruturalismo redutor, deslocando o centro de gravidade do C. L. G da teoria do signo (e de sua arbitrariedade) para a teoria do valor”. Nosso interesse em Meschonnic diz respeito ao que nele encontra-se da relação Saussure-Bakhtin, o que passa pela sua rejeição da pecha estruturalista atribuída a Saussure.
  • 16
    No original: “Le structuralisme est l’un des rôles que joue Saussure dans la théorie du langage. Saussure ne s’y ramène pas. Non seulement parce que l’on revient à sa théorie comme à une théorie en cours, ce qui pourrait n’être qu’un recul, mais parce qu’il ne se réduit pas à un effet qui a eu son histoire. Sa pertinence se renouvelle, c'est que prouvent certaines polémiques”.
  • 17
    Utilizamos o original francês para referir a “Nota sobre o discurso”; as demais referências aos Escritos de linguística geral, de Ferdinand de Saussure, são feitas a partir da tradução brasileira (cf. Referências). Sobre a tradução da “Nota”, no Brasil, ver Flores (2019b).
  • 18
    No original: “qu’est-ce qui, à un certain moment, permet de dire que la langue entre en action comme discours?”
  • 19
    Eu remeto ao meu livro Saussure e a tradução (Flores, 2021), em especial ao “Apêndice - Pequena nota a respeito da ‘Nota sobre o discurso’”.
  • 20
    No original: “Les Écrits de linguistique générale récemment découverts permettent de lire un autre Saussure que celui du Cours de Bally et Séchehaye (1916), un autre que celui des Sources de Godel (1957), et que celui de l’édition critique d’Engler (1967-1974). C’est un penseur du primat du discours qu’on découvre, avant Benveniste et autrement.”
  • 21
    Os contrassensos são assim emoldurados por Meschonnic (2007, p. 51, itálicos do autor): “na linguagem, é a língua oposta ao discurso. O paradoxo da noção de língua é que ela impede pensar o discurso. Portanto, a noção de língua e a noção de sentido impedem pensar a linguagem. O signo impede pensar a linguagem! O que confirma todo o estruturalismo do século XX, que acrescenta seu cientificismo à herança cultural de mais de dois mil anos, desde Platão, com a confusão mantida e ainda ensinada entre Saussure e o estruturalismo, enquanto eu enumero nove contrassensos que opõem radicalmente o estruturalismo a Saussure e eu os enumero”.
  • 22
    No original: “1. là où Saussure dit système (notion dynamique), le structuralisme dit structure (notion formelle et ahistorique); 2. là où il dit tout est point de vue, le structuralisme se présente comme décrivant la nature du langage; 3. là où Saussure a une systématicité toute déductive de la théorie du langage, le structuralisme fait des sciences du langage descriptives; 4. Saussure pense l’unité langue-parole, comme discours, et le structuralisme a pratiqué une dichotomie entre la langue et la parole; 5. aussi, chez Saussure, la théorie du langage postule une poétique, alors que le structuralisme n’a vu que l’opposition entre le rationalisme du Cours et la folie des Anagrammes; 6. chez Saussure, l’associatif multiple est opposé au syntagme et le structuralisme a fait l’opposition binaire du paradigmatique au syntagmatique; 7. pour Saussure, le signe radicalement arbitraire est une historicité radicale, mais le structuralisme a compris l’arbitraire comme un conventionnalisme; 8. pour Saussure, la diachronie-synchronie est une seule histoire en mouvemente, une solidarité, et le structuralisme a vu une opposition exclusive de la diachronie, comprise comme l’histoire, le mouvement, à la synchronie, l’état de langue; 9. et enfin au lieu de la critique des divisions traditionnelles (lexique, morphologie, syntaxe) chez Saussure, le structuralisme a été la pensée des dichotomies du signe, le discontinu.”
  • 23
    No original: “traduire suppose une représentation du langage”
  • 24
    No original: “La langue n'est créée qu'en vue du discours”
  • 25
    No original: “on ne traduit que des discours”
  • 26
    Em algum momento, também nós fizemos uma incursão nas ideias de ambos os autores com vistas a essa discussão (cf. Flores, 2002).

Parecer I

Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O título do artigo sintetiza a proposta de analisar a teoria de Bakhtin a respeito da teoria linguística de Saussure, a partir do comentário de Henri Meschonnic, segundo a qual um autor pode estar ligado a outro sem que esteja explicitada referência de filiação entre eles. Para fundamentar seu trabalho, a teoria de Saussure é retomada, a fim de destacar os pressupostos do linguista a respeito do caráter social da língua como meio de interação entre os seres humanos no convívio social. Este é o ponto de partida que é destacado para demonstrar um aspecto relacional entre as duas perspectivas cujos objetivos teóricos se distanciam. Os argumentos destacados para demonstração estão bem alicerçados e coerentes com a proposta sugerida no título. A redação explicita de modo claro o ponto de vista adotado no artigo, servindo-se de autores que fundamentam o ponto de vista defendido. O interesse e a originalidade do artigo devem-se à discussão referente à oposição radical entre os dois teóricos em função do posicionamento defendido por Bakhtin e o Círculo a respeito dos limites que a linguística descritiva apresenta em relação ao contexto social de produção e recepção enunciativa. Os objetivos de cada vertente teórica são diferentes, embora tenham em comum o princípio social do funcionamento da língua como meio de comunicação. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    01 Abr 2024

Parecer II

Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo, a partir de uma citação de M. Bakhtin feita por H. Meschonnic, o final do capítulo primeiro de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, busca “[...] defender que há uma relação Saussure-Bakhtin que vai além de alguma menção explícita, o que diz respeito ao pensar a linguagem e a língua de um ponto de vista que implica questões de mesma ordem” (f. 4). Na primeira seção, Um Saussure antiestruturalista, mostra-se, com o apoio de artigo de B. Brait, como Meschonnic vê o “antiestruturalismo” em Saussure, a partir da edição dos manuscritos publicados em 2002 nos Écrits de linguistique générale (utilizando também a tradução em língua portuguesa). Conclui-se afirmando: “[...] esse Saussure antiestruturalista [...] é ilustrado com a passagem de Bakhtin acerca da tradução de Rabelais em Éthique et politique du traduire (Meschonnic, 2007)”. A segunda seção, Saussure-Bakhtin - um pensamento na mesma ordem, traz à discussão o objetivo do artigo, fazendo-se uma análise do que se propõe: “O propósito é mais modesto: trata-se de ver que tanto um como outro, como grandes pensadores que são, mobilizaram questões de mesma ordem a respeito de língua(s)/linguagem.” (f. 10), afirmando-se por fim que “[...] Meschonnic vê na passagem de Bakhtin: um Saussure do discurso” (f. 12). Finalmente, na Conclusão, afirma-se “[...]esperamos ter mostrado em que sentido é possível ver que há, entre dois autores, um tratamento de questões de mesma ordem sem que isso implique necessariamente a reivindicação de uma ‘filiação explícita’.” (f. 13), dizendo-se, mais adiante: “É nesse âmbito que vemos ambos operarem com princípios muito semelhantes, desde que se considere um Saussure não estruturalista.” (f. 13). Lembra-se, então, “[...] o “comentário em si”, aqui representado pela passagem de Bakhtin a propósito da tradução russa de Rabelais” (f. 13), remetendo-se para “a concepção de uma Antropologia da enunciação”, enfoque que “considera a experiência do falante expressa em comentários, relatos e narrativas, com o intuito de abordar a vivência que o falante tem de sua condição de falante” (f. 13). Ao final, conclui-se: “Condensam-se na observação de Bakhtin uma análise técnica, sem dúvida, mas também uma percepção de falante. Este é o nosso paradoxo: é sempre da relação do falante com a língua que se trata [i. e. “a língua no homem”, com inversão da expressão de Benveniste “O homem na língua” que não tem o mesmo sentido], independentemente do fato de esse falante, em algumas circunstâncias, ser um linguista, um estudioso da linguagem, um filósofo.” (f. 14).

Do exposto, nota-se: 1) que existe uma adequação do título ao artigo; 2) que o objetivo do trabalho está claro e que há coerência com a argumentação do texto; 3) que, em conformidade com a teoria proposta, acha-se demonstrado o conhecimento do referencial teórico citado; 4) que há originalidade na reflexão, ainda que não traga nova contribuição para o campo de conhecimento; 5) que há clareza na narrativa e que o uso da linguagem apresenta-se compatível a um trabalho científico, entretanto, passaram na última revisão alguns problemas na escrita.

O artigo apresenta alguns problemas, certamente decorrentes de uma revisão.

  • 1) Logo no início, sente-se necessidade do esclarecimento sobre exata localização da passagem de Bakhtin utilizada por Meschonnic, o ponto de partida da argumentação. Trata-se da “conclusão” ao “Capítulo Primeiro - Rabelais e a história do Riso”, que não fica suficientemente clara no texto.

  • 2) À f. 4, quanto ao título da seção, val lembrar que Saussure não é estruturalista, mas também não é “contra o estruturalismo” (i. e. antiestruturalista, como indica o prefixo anti-, termo usado por Meschonnic). Uma pergunta modesta: não seria melhor dizer não estruturalista, como se escreve à f. 13, mais abaixo?

  • 3) À f. 5, o excerto citado de Benveniste traz uma nota, de n. 39, onde se lê: “ ‘Precursor da fonologia de Praga e do estruturalismo moderno’ [remetendo-se ao artigo de Bertil Malmberg. “Saussure et la phonétique moderne”, Cahiers F. de Saussure, 12, 1954, p. 17.”]. Remete-se, ainda, na mesma nota, a Greimas: “A. J. Greimas. “L’actualité du saussurianisme”, Le français moderne, 1956, p. 191 ss.”. E. Benveniste toma diretamente a afirmativa de B. Malmberg.

  • 4) À f. 6, escreve-se a propósito da crença difundida de F. Saussure ser estruturalista: “Entre nós, no Brasil, no entanto, o assunto ainda pode ser aprofundado. Prova disso é a vasta bibliografia didática que, de maneira não raras vezes pouco crítica, contenta-se em afirmar que Saussure é estruturalista”. Parece-nos fora de propósito esta afirmativa no contexto do artigo. Faz-se, então, a pergunta: O que essa afirmativa tem a ver com a objetivo do artigo?

  • 5) Ainda à f. 6, na n. 15, o trabalho de C. Normand (?) citado não consta das Referências.

  • 6) A propósito da Nota sobre o discurso (Note sur le discours, p. 275-277) vale registrar que na Note sur le discours, esta é, na realidade, a segunda pergunta que faz F. de Saussure, após ter afirmado: “La langue n’est crée qu’en vue du discours [...]” (2002, p. 277), i. e: “A língua só e criada em vista do discurso [...]” (2004, p. 237). No terceiro parágrafo ele define discurso (2002, p. 277; 2004, p. 237).

  • 7) À f. 9, à n. 21, diferentemente de outros pontos, não se coloca o texto original, apenas a tradução.

  • 8) À f. 10, L. 20, não consta a data (cf. NBR 10520).

  • 9) Além de falhas de pontuação e de colocação obrigatória de ênclise do pronome. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    13 Maio 2024

Parecer III

Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

O texto é uma discussão bastante produtiva de uma relação (em tese, improvável) entre Saussure e Bakhtin. Seguindo os passos de Meschonnic, lê-se um Saussure não estruturalista, um Saussure do discurso, um Saussure dos Escritos, e desse modo a aproximação com o pensador russo é feita. A base teórica é consistente ao apresentar a linha de raciocínio. Em alguns momentos, Benveniste é buscado para auxiliar nos encadeamentos conceptuais, e são feitos com propriedade pelo/a autor/a. O título é significativo por adiantar a discussão de forma clara. O leitor já sabe o que vai encontrar adiante. A linguagem é clara, acessível, mas nem por isso superficial. Ao contrário, levanta questões, argumentos e conclusões de formas aprofundadas. Trata-se de um valoroso texto para o leitor que quer desconstruir a imagem estática do Saussure do CLG e estabelecer diálogos dinâmicos com Bakhtin. Dessa discussão, quem ganha é o estudo da linguagem.

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    09 Maio 2024

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2025

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2024
  • Aceito
    18 Out 2024
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LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 , Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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