RESUMO
Este artigo discute os negócios de impacto, aqueles baseados na premissa de que é possível (e desejável) resolver problemas sociais de forma lucrativa, por meio da geração de impacto social positivo. Analisando um de seus dispositivos privilegiados, a teoria de mudança, e a accountability social para a sua realização, discuto como eles buscam - e, em parte alcançam - efetividade social, moral, para sua existência e suas práticas. Argumento que eles são construídos como empreendimentos exemplares que, segundo os atores neles engajados, demonstram pragmaticamente o que pode e deve ser feito para resolver problemas sociais a partir dos negócios.
Palavras-chave:
negócios de impacto; finanças sociais; exemplaridade; moral; sociologia pragmática
ABSTRACT
The ‘Invisible Heart’ of the Market: The Moral Management of Impact Businesses as Exemplary Enterprises discusses the impact businesses, which are based on the premise that it is possible (and desirable) to solve social problems in a profitable way by generating positive social impact. Analyzing one of its privileged devices, the theory of change, and the social accountability for its achievement, I discuss how they seek - and, in part, how they achieve - social effectiveness, that is, moral effectiveness, for their existence and practices. I argue that they are built as exemplary enterprises, which, according to the actors engaged in them, pragmatically demonstrate what can and should be done to solve social problems from businesses.
Keywords:
impact businesses; social finance; exemplarity; morality; pragmatic sociology
Introdução
Em setembro de 2019, o Financial Times (FT), jornal britânico de economia e negócios, porta-voz do setor financeiro e baluarte do capitalismo de livre-iniciativa, lançou uma nova campanha editorial, a maior desde a crise de 2008:
“Capitalismo. É hora de um reinício” aparece em destaque na imagem de divulgação da nova agenda1 1 A agenda foi substituída em 2020 por conta da urgência de se tratar de assuntos relacionados à pandemia de Covid-19. , em letras garrafais, sobre um fundo amarelo. Estampado mais discretamente, lê-se: “Negócios devem gerar lucro, mas também devem servir a um propósito”. O lançamento da campanha foi escoltado por uma carta do então editor do FT, o jornalista econômico Lionel Barber, na qual ele dizia que o jornal acredita no capitalismo de livre-iniciativa, “o alicerce para a criação de riqueza que proporciona mais empregos, mais dinheiro e mais impostos” (FINANCIAL TIMES, 16/09/2019). Segundo Barber, nos últimos 50 anos, o sistema “tem proporcionado paz, prosperidade e progresso tecnológico (...), reduzindo drasticamente a pobreza e elevando o padrão de vida em todo o mundo”, mas hoje estaria “sob pressão, particularmente a ênfase na maximização dos lucros” (Ibid.). A premissa da agenda era então afirmar o FT como um “guia de confiança para um mundo incerto”. Seus jornalistas passaram a discutir os limites da busca por lucro e a necessidade de negócios e finanças incorporarem pautas politicamente engajadas (HILL, 23/09/2019; WOLF, 03/12/2019).
Se a ideia de que negócios devem lucrar com propósito poderia parecer absurda a um leitor entusiasta do FT (de sua agenda clássica) há 50 anos2 2 Em setembro de 1970, Milton Friedman (13/09/1970), economista liberal americano, publicou um artigo no The New York Times criticando os promotores de “fins ‘sociais’ desejáveis” a serem empreendidos pelas corporações, como a diminuição da discriminação e a prevenção da poluição ambiental. Notório representante paradigmático da chamada Escola de Chicago da economia, Friedman chamava pejorativamente essas pessoas de “reformadores” e argumentava que negócios, diferentemente de pessoas, não são obrigados a ter responsabilidades ou consciência social, no sentido de responder às demandas por resolução de problemas sociais e ambientais. Em sua visão, a ideia (ou “doutrina”) de responsabilidade social dos negócios implicava que esses executivos gastariam dinheiro privado de outras pessoas (empregadores, empregados e investidores) para perseguir interesses gerais de caráter cívico. , hoje ela é apontada por muitos como elemento-chave de uma reforma do modelo da livre-iniciativa, fundamental para sua sobrevivência, na visão reformista do jornal e de muitos outros defensores, no mercado (HART, 2005HART, Stuart. Capitalism at the Crossroads: The Unlimited Business Opportunities in Solving the World’s Most Difficult Problems. Philadelphia: Wharton School Publishing, 2005.; PRAHALAD e HART, 2002PRAHALAD, Coimbatore Krishnarao; HART, Stuart. “The Fortune at the Bottom of the Pyramid”. Strategy + Business, n. 26 (e-doc), 2002.; YUNUS, 2008YUNUS, Muhammad. Um mundo sem pobreza: A empresa social e o futuro do capitalismo. São Paulo: Ática, 2008., 2010; MACKEY e SISODIA, 2014MACKEY, John; SISODIA, Rajendra; George, Bill. Conscious Capitalism: Liberating the Heroic Spirit of Business. Massachusetts: HUP, 2014.; CASSIDY, 02/12/2015) e na academia (PORTER e KRAMER, 2006PORTER, Michael; KRAMER, Mark. “Strategy and Society: The Link Between Competitive Advantage and Corporate Social Responsibility”. Harvard Business Review, Social Enterprise, 2006.; BARKI et al., 2015BARKI, Edgard; COMINI, Graziella; CONLIFFE, Ann; HART, Stuart; RAI, Sudhanshu. “Social Entrepreneurship and Social Business: Retrospective and Prospective Research”. RAE: Revista de Administração de Empresas, vol. 55, n. 4, pp. 308-384, 2015.; COMINI, 2016COMINI, Graziella. Negócios sociais e inovação social: Um retrato de experiências brasileiras. Tese (Livre Docência) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.). O fato de esse jornal criticar a “ênfase na maximização dos lucros” (FINANCIAL TIMES, 16/09/2019) e defender que negócios devem lucrar, mas também contribuir para resolver problemas socioambientais, demonstra que a questão da responsabilidade social das empresas está no cerne da discussão sobre a possibilidade de manutenção da existência do próprio sistema capitalista (ver GRÜN, 2010GRÜN, Roberto. “A crise financeira, a guerra cultural e as transformações do espaço econômico brasileiro em 2009”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, n. 2, pp. 255-297, 2010.; SARTORE, 2012SARTORE, Marina. “Da filantropia ao investimento socialmente responsável: Novas distinções”. Caderno CRH, vol. 25, n. 66, pp. 451-464, 2012.).
Diante disso, o objetivo deste artigo é discutir os chamados negócios de impacto (NIs)3 3 O termo “negócio de impacto” é frequentemente usado como sinônimo de empresa: os agentes dizem que eles e suas empresas fazem NI, mas também que suas empresas são NIs. , uma modalidade de empreendimento econômico baseada na premissa de que é possível (e desejável) resolver problemas sociais de forma lucrativa, conciliando, como se diz nesse universo, “o melhor dos dois mundos” (LAZZARINI et al., 2014LAZZARINI, Sergio; CABRAL, Sandro; FERREIRA, Luciana; PONGELUPPE, Leandro; ROTONDARO, Angelica. “The Best of Both Worlds? Impact Investors and their Role in the Financial versus Social Performance Debate”. University of St. Gallen Law & Economics Working Paper, n. 6, pp. 1-36, 2014.), por meio da geração de impacto social positivo4 4 Impacto social positivo — daqui em diante referido simplesmente como impacto social, conforme o uso nativo, salvo quando for o caso de se falar em impacto social negativo — é um termo estabelecido nos domínios do planejamento e da avaliação de programas sociais e políticas públicas. Diz respeito a mudanças julgadas positivas por quem as promove, ocorridas e especificamente devidas a um investimento e/ou empreendimento sobre uma população, comunidade ou território, descontando-se causas externas que possam afetar os resultados almejados (BRANDÃO, CRUZ e ARIDA, 2015; COMINI, 2016). . O termo traduz o tipo de ideia promovida na agenda do FT. O propósito dos NIs é gerar impacto social por meio das atividades da empresa, e não como consequência não premeditada - isto é, um efeito colateral. Caso contrário, o impacto social consistiria naquilo que a teoria econômica chama de externalidades positivas, ou seja, consequências não levadas em consideração nos processos de decisão das atividades das empresas que geram benefícios para alguém que não paga por isso (PIGOU, 1920PIGOU, Arthur C. The Economics of Welfare. Londres: MacMillan and Co, 1920.; CALLON, 1998CALLON, Michel. The Laws of the Market. Malden: The Editorial Board of the Sociological Review, 1998.).
Em geral, esses negócios são caracterizados como empreendimentos inovadores (em sua proposta e estrutura) e criadores de soluções inovadoras para os problemas sociais. Exemplos são abundantes. Há empreendimentos que oferecem serviços de educação financeira para a população de baixa renda, com o objetivo declarado de diminuir as desigualdades sociais, ou serviços bancários para microempreendedores de periferias, favelas e zonas rurais. Há aqueles que reformam casas de favelas a preços populares, fazem serviço de regularização fundiária, desenvolvem tecnologias verdes ou produtos de baixo custo para populações de baixa renda, reciclam lixo, oferecem serviços de saúde com preços reduzidos, apresentando-se como alternativa ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos planos de saúde, entre outros.
Os NIs constituem, então, o que tem sido chamado por esse próprio universo de “setor 2,5”, intermediário, segundo seus promotores, entre o segundo setor, das organizações privadas, e o terceiro setor, das organizações sem fins lucrativos (PIPE SOCIAL, 2017). Se até poucos anos atrás eram praticamente restritos ao universo das startups, isto é, pequenas empresas em fase inicial de desenvolvimento, eles vêm chamando atenção de cada vez mais empresários, investidores e corporações (PNUD, 2015).
Há negócios variados e com objetivos e estruturas diversos, como mostrei detalhadamente em outro trabalho (SALES, 2018SALES, Samantha. Negócios exemplares: Um estudo sobre a construção moral dos negócios de impacto. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.; ver COMINI, 2016COMINI, Graziella. Negócios sociais e inovação social: Um retrato de experiências brasileiras. Tese (Livre Docência) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.). A diversidade se manifesta já na nomenclatura: “negócio de impacto”, “negócio social” e “negócio com propósito social” costumam ser usados como sinônimos (COMINI, 2016). Em minha pesquisa, deparei-me principalmente com o primeiro termo, e por isso o escolhi. Enquanto muitos empreendedores aceitam essa denominação, nem todos se identificam com aquela de negócios sociais, uma vez que é fortemente identificada com a vertente ligada ao economista e banqueiro bengalês Muhammad Yunus (2010YUNUS, Muhammad. Building Social Business: The New Kind of Capitalism That Serves Humanity’s Most Pressing Needs. Nova York: Public Affairs, 2010.), que defende que todo o lucro líquido deve ser reinvestido, e não distribuído entre sócios e investidores, de modo que o negócio possa gerar mais benefícios sociais. Quem decide pelo contrário costuma se basear na ideia de que a distribuição de dividendos atrai mais investidores, viabilizando a geração de maior impacto social (CHU, 20/12/2007).
Neste artigo, adoto uma postura pragmática (PEIRCE, 1992PEIRCE, Charles. “How to Make our Ideas Clear”. In: The Essential Peirce, Volume 1: Selected Philosophical Writings‚ (1867-1893). Bloomington: Indiana University Press, 1992[1878], pp. 124-141.[1878]; JAMES, 1907JAMES, William. Pragmatism: A New Name for Some Old Ways of Thinking. Cambridge: Harvard University Press, 1907.; DEWEY, 1938DEWEY, John. Logic: The Theory of Inquiry. Nova York: Henry Holt and Company, 1938.; BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991]) e compreensiva5 5 Este é um trabalho sobre as representações dos atores. Busco apreender os motivos e os valores dos agentes que pesquiso a fim de entender como acham que o mundo é e deveria ser, e o que deve ser feito para mudá-lo. Meu objetivo não é, portanto, defender os NIs como solução para os problemas aqui discutidos, mas entender como os promotores desse tipo de empreendimento econômico pensam esses problemas — por mais que eu não pense como eles — e analisar as questões que suas propostas trazem para as discussões sobre os temas aqui apresentados. O que importa aqui, então, é uma discussão não dos valores em si, mas das maneiras situadas como os atores se relacionam com o mundo por meio deles (os seus, partilhados e/ou em disputa). (WEBER, 2001WEBER, Max. “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política (1904)”. In: Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2001[1904], pp. 107-154.[1904]) que privilegia as representações dos atores para analisar as operações de accountability social (SCOTT e LYMAN, 2008SCOTT, Marvin; LYMANN, Stanford. “Accounts”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 2, n. 2, pp. 139-172, 2008[1968].[1968]), isto é, de prestação de contas em termos morais mobilizadas em relação a esses negócios - ou, em sentido mais amplo, como estes buscam - e, em parte, alcançam -efetividade (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) para sua existência e suas práticas. Assim, busco mostrar que os NIs são construídos como empreendimentos exemplares6 6 Müller (2006) usa o termo “exemplar” em seu trabalho, ao argumentar que a bolsa de valores é um “mercado exemplar”. Mas o sentido por ela atribuído à exemplaridade é diferente do que proponho aqui. Para ela, a bolsa de valores é a instituição na qual o simbolismo econômico se realiza da forma mais completa e exemplar — isto é, de forma representativa —, e por isso constitui um mercado exemplar. Aqui, o sentido adotado do termo está relacionado ao processo de exemplificação, de dar exemplo em termos morais. , ou seja, exemplos que, segundo os atores neles engajados, demonstram pragmaticamente o que pode e deve ser feito para resolver algum problema social a partir das empresas capitalistas - e que os negócios são um plano ideal a partir do qual as mudanças sociais possam ser desenvolvidas, podendo ser mecanismos eficientes para contribuir para a resolução de problemas que costumam ser considerados responsabilidade do Estado, do terceiro setor e da filantropia.
O artigo é baseado em uma pesquisa de dois anos (SALES, 2018SALES, Samantha. Negócios exemplares: Um estudo sobre a construção moral dos negócios de impacto. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.)7 7 A pesquisa foi realizada com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). , realizada por meio da análise densa de alguns empreendimentos, da observação direta em eventos promovidos por organizações interessadas e de entrevistas realizadas com profissionais envolvidos com NIs no Brasil, além de documentos que circulam entre os atores (relatórios, atas de reuniões, guias etc.).
Além desta introdução, o texto está organizado da seguinte maneira: na próxima seção, apresento o enquadramento teórico que fundamenta meu argumento sobre a construção de exemplaridades dos NIs. Em seguida, faço uma breve contextualização desses negócios e das finanças sociais, das quais eles são os empreendimentos privilegiados. Na seção seguinte, analiso a teoria de mudança, seu principal dispositivo de conformação, que estabelece o compromisso com a mudança social pretendida. Na penúltima seção, discuto como a inovação social, a conexão e a transformação subjetiva dos atores engajados nos NIs comparecem como elementos centrais para a construção da exemplaridade desses empreendimentos. Por fim, faço as considerações finais.
Enquadramento teórico
Com o material empírico analisado na pesquisa, foi possível notar a ênfase depositada, no mundo dos negócios de impacto, no diálogo e nas tensões entre quadros de valor (metafísicas) e ações (pragmática), notadamente por meio das justificativas adotadas pelos atores - e de críticas habituais circulantes sobre suas atividades. Assim, me concentrei em uma sociologia pragmática, notadamente a partir do modelo das economias da grandeza proposto por Boltanski e Thévenot (2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991]). Segundo esse modelo, a ocorrência de fenômenos sociais se dá com a participação de uma matriz avaliativa na qual os atores justificam - isto é, dão conta em termos de justiça - aos outros seus passos por causa de uma demanda mútua de justiça incorporada aos sensos morais perenemente operantes na vida social. Minha questão é como os NIs são justificados como empreendimentos eficientes para resolver problemas sociais de maneira lucrativa.
Pois bem, essa justificação se dá por valores - chamados pelos autores de grandezas, pois passíveis de comparação valorativa -, isto é, por um modo de avaliação para definir o que é mais valoroso de acordo com um princípio de determinada ordem valorativa, correspondente a diferentes formas de construir provas de realidade e possibilitar o acordo, a ação em comum. O modelo compreende seis ordens valorativas (ou ordens de grandeza), chamadas de cités. São ordens de relações baseadas em princípios de coordenação convencionados com base na ideia de justiça que, por isso, estabelecem a equivalência entre os seres e a alocação de seus estados valorados, seus valores relativos, em algum tipo de bem comum - a forma modelar do justo. As cités (doméstica, da opinião, inspirada, cívica, mercantil e industrial)8 8 O modelo é aberto à proposição de novas cités. Por exemplo, já foram propostas cités ecológica (LAFAYE e THÉVENOT, 1993), por projetos (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009[1999]), hedonista (WERNECK, 2017) e altruísta (MOURA, 2017). foram pensadas a partir de textos canônicos da filosofia política9 9 Essa modelização é analógica, isto é, os textos clássicos da filosofia política são adotados como obras sintéticas, formalizações, de utopias pragmaticamente operadas pelas pessoas em suas vidas sociais e empiricamente observadas nas pesquisas de campo dos dois autores. Assim, o enquadramento com base nessas obras não quer dizer (como deixam claro Boltanski e Thévenot) que as pessoas leram nenhuma dessas obras (como A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, texto-base da cité inspirada; A riqueza das nações, de Adam Smith, fundamento da cité mercantil; ou o Système industriel, de Saint-Simon, obra modelar da cité industrial). Significa, em vez disso, que essas obras dão conta de sintetizar princípios valorativos operados pelos atores na vida social. e suportam modos de justificação, isto é, de accountability de justiça, específicos. Assim, delineiam os modelos de competência necessários nos momentos de disputa10 10 Competências, nesse modelo e na tradição pragmatista em geral, são os traços de ações que, quando percebidos, legitimam essas mesmas ações, tornando-as efetivas (WERNECK, 2012). Um exemplo é a justiça, que, se reconhecida em uma ação, possibilita efetivá-la como justa (BOLTANSKI, 2000). .
Cada cité se atualiza na forma de um mundo correspondente (doméstico, da opinião, inspirado etc.), uma ordem pragmática habitada por seres e coisas que podem ser mobilizados como dispositivos na construção das provas das grandezas, das competências. Assim, as grandezas atribuídas precisam ser provadas pelos/para os agentes, e isso é feito por meio de comprovações de realidade (épreuves), do modo de expressão do julgamento e da forma de evidência adequada a cada cité. Afinal, toda ação que busque se justificar com referência a uma cité pode ser colocada à prova, por meio de críticas referenciadas a certo tipo de bem comum.
Com o modelo das economias da grandeza, e em diálogo com outras abordagens pragmáticas (THÉVENOT, 2016THÉVENOT, Laurent. La acción en plural: Una introducción a la sociologia pragmática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2016[2006].[2006]; CALLON, 1998CALLON, Michel. The Laws of the Market. Malden: The Editorial Board of the Sociological Review, 1998.; STARK, 2009STARK, David. The Sense of Dissonance: Accounts of Worth in Economic Life. Princeton: Princeton University Press, 2009.; CHIAPELLO, 2017CHIAPELLO, Ève; GODEFROY, Gaëtan. “The Dual Function of Judgment Devices. Why Does the Plurality of Market Classifications Matter?”. Historical Social Research, vol. 42, pp. 152-188, 2017.), busquei apreender em minha pesquisa as metafísicas das quais os agentes lançam mão para efetivar um conjunto de ações moralmente orientadas (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.). Assim, pude analisar como as entidades organizadas para a realização dos NIs se apoiam em uma composição de algumas ordens de valor.
Parti da constatação de que as atividades econômicas se baseiam em pelo menos duas formas principais de coordenação:
Uma pelo mercado [na qual o princípio de avaliação é a ponderação das coisas diante de trocas, com a ideia de justo substancializada especialmente nos preços], outra por uma ordem industrial [na qual a avaliação é baseada na eficiência], cada uma permitindo estabelecer uma diferente comprovação de realidade (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991], p. 316).
Mas a pesquisa mostrou que os empreendimentos econômicos, isto é, as entidades organizadas para a realização de negócios, se apoiam em uma composição mais complexa, acrescendo-se às lógicas mercantil e industrial a lógica inspirada, relacionada com a inovação, a criatividade, própria do empreendedorismo, e cuja avaliação passa pela percepção da graça - como a inspiração artística ou científica, mas que se tornou também um traço do grande aventureiro nos mares revoltos do mercado. Esta é constantemente mobilizada pelos empreendedores pesquisados como uma variável-chave.
A articulação das ordens mercantil, industrial e inspirada me permitiu pensar, então, em uma “cité de compromisso” (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991], p. 423), isto é, um compósito entre distintas ordens de valor. A essa cité, que, diferentemente das demais, seria um tipo de “cité contextual” (WERNECK, 2018), “cuja utilização acaba por ser circunscrita a certos contextos, certos tipos de comprovação, mas podendo ser reconhecida como universal situadamente” (Ibid., p. 10), chamei cité empresarial. A composição da cité empresarial e de suas lógicas compromissadas é uma gramática moral, uma metafísica atualizada no mundo pelas práticas - que, por sua vez, performam os próprios valores que as fundamentam.
Neste artigo, busco mostrar que os NIs dependem, em sua fundamentação moral, de um compromisso da cité empresarial com a ordem de valor cívica, que está relacionada com o ideal de solidariedade e cuja avaliação passa pela percepção do interesse coletivo. É esse compromisso que permite aos atores justificarem seus esforços para construir um modelo de negócios voltado para a resolução de problemas sociais que seja, em suas visões, justo. Afinal, o fim social a ser perseguido pelas empresas não é evidente, tampouco ponto pacífico entre os atores. Muito pelo contrário, trata-se de uma questão complexa e controversa. Sustentar esse compósito moral, diferenciando esse modelo de negócios daqueles característicos do capitalismo dito tradicional e o defendendo de críticas e acusações, é trabalhoso, e grande parte da accountability social dos NIs é feita para comprovar sua possibilidade e sua efetividade.
As finanças sociais e o ‘coração invisível’ do mercado
Os negócios de impacto são os empreendimentos privilegiados das chamadas finanças sociais, caracterizadas, conforme o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), pelo direcionamento de capital privado ou público a negócios ou ações que mobilizem mecanismos financeiros para gerar impacto social positivo11 11 Disponível (on-line) em: https://ice.org.br/financas-sociais/ , prometendo ao mesmo tempo retorno financeiro para investidores e retorno social de interesse público. Essas finanças são um desdobramento da criação e adaptação de métodos, práticas e dispositivos financeiros para empresas e organizações com propósito social (CHIAPELLO e GODEFROY, 2017CHIAPELLO, Ève; GODEFROY, Gaëtan. “The Dual Function of Judgment Devices. Why Does the Plurality of Market Classifications Matter?”. Historical Social Research, vol. 42, pp. 152-188, 2017., p. 153).
Um marco da organização institucional das finanças sociais foi o lançamento, em 2000, pelo governo britânico, de uma força-tarefa de investimento social, a Social Investment Taskforce. O ponto de partida era que a oferta de capital privado por investidores, associada ao empreendedorismo social, contribuiria para desenvolver um setor que atuasse juntamente com o governo na resolução de problemas, particularmente a redução da pobreza. A partir disso, outros países, como os EUA e o Canadá, criaram suas próprias forças-tarefas. E, em 2007, a Rockfeller Foundation cunhou o termo “investimento de impacto” (KARNANI, 23/08/2010). Desde então, esforços têm sido feitos para construir um mercado global de impacto social. No início dos anos 2010, a discussão envolveu atores e iniciativas nacionais e transnacionais, como o Banco Mundial e a União Europeia (ver CHIAPELLO e GODEFROY, 2017CHIAPELLO, Ève; GODEFROY, Gaëtan. “The Dual Function of Judgment Devices. Why Does the Plurality of Market Classifications Matter?”. Historical Social Research, vol. 42, pp. 152-188, 2017.). Em 2013, quando o Reino Unido ocupava a presidência do G8, foi fundada a Social Impact Investment Taskforce (SIITF), que inspirou a criação de organizações do tipo em vários países.
Um ano depois, a SIITF publicou um relatório que estabeleceu os princípios das finanças sociais, contendo uma carta direcionada aos líderes dos governos componentes da força-tarefa. Escrita pelo presidente da força-tarefa, Sir Richard Cohen, conhecido ao mesmo tempo como o pai do capital de risco britânico e notório filantropo, a carta dizia que os investimentos de impacto, e consequentemente os NIs, trazem “um coração invisível dos mercados para guiar sua mão invisível” (SIITF, 2014, s/p). A expressão remete à conhecida metáfora de Adam Smith (2003[1776]), usada em sua filosofia política e moral para denominar o mecanismo de autorregulação dos mercados segundo o princípio geral da livre-concorrência, que guiaria a distribuição justa de bem entre as pessoas de acordo com o equilíbrio dinâmico entre apetites egoístas e simpatia - esta entendida como a capacidade moral de imaginar o que se passa com as outras pessoas que sofrem (seja um mendigo na rua ou uma pessoa desejosa de um bem escasso no mercado), refletindo sobre como seria estar em uma situação idêntica àquela do sofredor. A carta convidava governos, fundações, empresas, filantropos, investidores e empreendedores a se unirem na tarefa de mobilizar mecanismos financeiros para “melhorar as vidas daqueles que, de outro modo, seriam deixados para trás” (SIITF, 2014, p. 42).
A proposta apresenta uma crítica implícita (bastante similar àquela do FT) ao funcionamento dos mercados e, por extensão, do próprio sistema capitalista: a livre-concorrência, representada pela mão invisível de Smith, teria se provado, segundo os próprios agentes, insuficiente para garantir a distribuição de bem na sociedade, uma vez que há “excluídos”, como aponta o próprio relatório, e “problemas sociais sistêmicos” que impossibilitariam a autonomização e a emancipação dessas pessoas. Seria necessário, ainda conforme eles, introduzir um “coração invisível” para orientar as atividades econômicas até então guiadas pela mão invisível, isto é, uma dimensão que possibilitasse “fazer o bem” (Ibid., p. 1), ajustando o pertencimento dos excluídos ao grupo dos incluídos (CASTEL, 1998CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.) - as pessoas com acesso a bens e serviços que lhes garantem qualidade de vida e direitos básicos. As finanças sociais, e particularmente os NIs, são apresentados então como a força capaz de fazer esse ajuste e promover uma reforma no capitalismo, ao mudarem “o paradigma do pensamento do mercado de capital” (SIITF, 2014, p. 42), adicionando às dimensões de risco e retorno (fundamentais nas transações e investimentos) uma terceira, o impacto social.
No Brasil, um movimento importante no sentido de desenvolver as finanças sociais foi uma iniciativa do ICE, em 201312 12 O desenvolvimento das finanças sociais no Brasil pode ser mais bem compreendido a partir do trabalho de Sartore (2012) sobre o espaço das práticas sociais dos empresários brasileiros. . Com apoio do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getúlio Vargas (FGVcenn), representantes de 20 organizações públicas e privadas criaram um grupo de trabalho que se institucionalizou na Força Tarefa de Finanças Sociais (FTFS). Sua missão declarada era articular uma rede de relações para atrair capital para os NIs, de modo a promover “uma nova mentalidade sobre como gerenciar recursos e necessidades da sociedade” (FTFS, 2015, p. 2). Mais tarde, a força-tarefa foi renomeada como Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto13 13 Disponível (on-line) em: https://aliancapeloimpacto.org.br/ .
Em minha pesquisa, pude observar que, para os atores engajados nas finanças sociais e nos NIs, ambos surgem como uma novidade, um movimento de vanguarda no mundo empresarial e financeiro, marcado pela insatisfação declarada de empresários e investidores com a responsabilidade social corporativa (RSC) - entendida por muitos como insuficiente para dar conta dos problemas socioambientais - e pelo desejo de criação e estabelecimento de ferramentas financeiras e de gestão que, mais que socialmente “responsáveis”, se dediquem exclusivamente à gestão do social14 14 Parte da agenda de atores engajados nas finanças sociais no Brasil é desenvolver parcerias com governos, visando participar do desenvolvimento de políticas públicas e estimular a compra governamental de produtos e serviços de impacto, pressionando para a formalização e regulação desses novos mecanismos e demandando a incorporação do tema dos investimentos e negócios de impacto em fundos de investimento públicos (FTFS, 2016). . Isso fica claro em um trecho de uma entrevista realizada para a pesquisa. O entrevistado, um especialista em planejamento e avaliação de impacto social, conta que nos anos 2000 algumas empresas brasileiras começaram a apoiar organizações da sociedade civil, “já muito preocupadas com a sustentabilidade dessas organizações e entendendo que a lógica filantrópica de sustentação das ONGs não perduraria”. Segundo ele, naquela época “a sociedade expandia sua demanda por direitos e o Estado nitidamente não dava conta de dialogar e de alcançar outros níveis de demanda”, enquanto “o mercado brasileiro se desenvolvia fortemente”. Desse modo, teria se configurado uma situação que permitiu o crescimento da força do conceito de empreendedor social, que, ainda conforme o entrevistado, “há uma década atrás era um cara de ONG”.
- Então tinha vários movimentos que pressionavam pra uma inovação do conceito de filantropia, e isso fez com que inúmeras organizações da sociedade civil começassem a desenhar alternativas de captação de recursos, vendendo produtos e serviços tanto pra governos como para o cidadão, como pra outras ONGs, pra fazer a sua sustentação. Esse movimento, ele meio que ganhou força em toda a irradiação do trabalho de [Muhammad] Yunus, lá a partir de Bangladesh, e de toda uma lógica que vem se montando, também a partir dos anos 1990, a partir de um reconhecimento que é até anterior, mas que nos anos 1990 ganha muita força midiática, que é toda essa história climática, uma economia de baixo carbono, aquecimento global. (...) Isso vai se somar a várias outras questões, que também têm a ver com as novas gerações, com tecnologia digital, com transparência de informações e cuidados, com uma ideia de pulverização de organizações menores pra combater um pouco o grande movimento de concentração de capital e de estruturação das grandes corporações transnacionais, né, que também se deu dos anos 1980 pra [os] 1990. (...) Ou seja, você tem um monte de vetores que vão atuando numa perspectiva de amenizar o capitalismo e sustentando o seguinte discurso: entre ganhar dinheiro e fazer uma contribuição positiva pro bem-estar da sociedade, escolha as duas. O que é uma crítica ao modelo hegemônico, que é: ganha-se muito dinheiro à custa de muita desigualdade e sofrimento e de uma prática insustentável de uso de recursos do planeta.
Como se pode observar, as finanças sociais dizem respeito a esforços de resolver problemas sociais apoiados na linguagem, nos métodos e nas formas de raciocínio típicas do mundo financeiro, que podem ser qualificadas como “financeirizadas”, conforme Chiapello (2017CHIAPELLO, Ève; GODEFROY, Gaëtan. “The Dual Function of Judgment Devices. Why Does the Plurality of Market Classifications Matter?”. Historical Social Research, vol. 42, pp. 152-188, 2017., p. 24). Trata-se de pensar esses problemas em termos de risco e retorno, isto é, de determinar “o valor de todas as coisas desde um ponto de vista do investidor, que é também um ponto de vista capitalista” (Ibid., p. 26). A própria noção de impacto social, como aponta ainda Chiapello (2015), tal como é mobilizada nesse universo, é produto de um trabalho de financeirização: redefine-se os problemas sociais por meio da mensuração, precificação e qualificação como retorno sobre investimentos. Ademais, observa-se a redefinição daquilo que se deseja evitar e os problemas encontrados - por exemplo, a reincidência criminal ou a poluição de um rio - como riscos que pesam sobre rendimentos futuros e são apresentados como futuros gastos desnecessários e onerosos para a sociedade. Nesse sentido, creio que os NIs são um objeto privilegiado para entender o que acontece quando agentes econômicos tomam para si a responsabilidade pela gestão do social e passam a, como diz Chiapello (Ibid.), colonizar as políticas sociais.
A conformação dos negócios de impacto
Para que um negócio de impacto tenha sua mecânica validada, isto é, seja considerado eficaz e se prove capaz de produzir as mudanças sociais pretendidas - e com isso obtenha a aprovação dos envolvidos para se efetivar -, ele precisa dar conta de um protocolo, estabelecido por esse mesmo mercado. Os atores precisam se esforçar para convencer as demais partes interessadas no negócio de que ele é bom para a sociedade, ou seja, que atende a demandas que justifiquem os investimentos e que provem que as empresas não estão apenas interessadas em lucro econômico e/ou renome, mas em gerar benefícios de interesse público.
Em primeiro lugar, é necessário um planejamento capaz de mostrar como o negócio funcionará, produzirá resultados e gerará o impacto social pretendido - e que sirva de comprovação para investidores de que o investimento valerá a pena, do ponto de vista tanto econômico como da geração de impacto social. Enquanto está em operação, esses resultados devem ser monitorados por meio de indicadores e, em algum momento, seu impacto social deve ser mensurado e avaliado e, finalmente, traduzido como retorno sobre os investimentos. A avaliação pode ser feita pelos próprios empreendedores e gestores, seguindo certos critérios, ou então por organizações especializadas em avaliação de impacto social. Há metodologias específicas para a construção da equivalência entre o benefício gerado pela intervenção e o investimento necessário para obtê-lo (ver BARMAN, 2015BARMAN, Emily. “Of Principle and Principal: Value Plurality in the Market of Impact Investing”. Valuation Studies, vol. 3, n. 1, pp. 9-44, 2015.).
Nesta seção, tratarei do principal dispositivo de conformação dos NIs, a teoria de mudança, também chamada de hipótese de mudança ou tese de impacto. Ela consiste em um dispositivo disciplinar, de enquadramento em um modelo tecno-orientado (CALLON, 1998CALLON, Michel. The Laws of the Market. Malden: The Editorial Board of the Sociological Review, 1998.), segundo o qual os projetos de geração de impacto social se conformam a uma lógica de projeto competente. Originária do campo da avaliação de programas sociais, desenvolvido na década de 1960 (VOGEL, 2012VOGEL, Isabel. Review of the Use of ‘Theory of Change’ in International Development. UK Department for International Development. Draft Review Report and Practical Resource. Londres: DFID, 2012.), a teoria de mudança, no caso dos NIs, consiste em uma ferramenta que apresenta a cadeia de causalidades entre os recursos necessários para o funcionamento do negócio, as atividades a serem realizadas, os produtos e/ou serviços a serem comercializados, as mudanças mais imediatas a serem alcançadas pelo negócio e o impacto social prometido, estabelecendo assim o compromisso do empreendimento com a mudança social.
A sistemática nela inscrita é a seguinte: primeiramente, uma situação é apresentada como problemática e urgente, mas passível de ser resolvida (DOGANOVA e GIRAUDEAU, 2014DOGANOVA, Liliana; GIRAUDEAU, Martin. “Entrepreneurial Formulas: Business Plan and the Formation of New Ventures”. i3 Working Papers Series, 14-CSI-02, 2014, pp. 1-48.). Muitas vezes, a “razão estatística” (DESROSIÈRES, 2010DESROSIÈRES, Alain. The Politics of Large Numbers: A History of Statistical Reasoning. Cambridge/Londres: Harvard University Press, 2010[1998].[1998]) é mobilizada por meio da apresentação de dados que justifiquem a necessidade de se fazer alguma coisa para resolver o problema. Por exemplo, apresentam-se dados referentes à população carcerária no Brasil e às taxas de reincidência criminal, de modo a comprovar a necessidade de inserir ex-detentos no mercado de trabalho e contribuir para sua ressocialização, evitando que reingressem no sistema prisional. Esses dados são mobilizados como provas de que a situação é verdadeiramente problemática, e a construção dessas provas serve para o segundo passo da narrativa: a apresentação da solução para o problema (ou parte dele) oferecida pela empresa, baseada na identificação de uma oportunidade de negócio.
Logo, representada em um diagrama, a teoria de mudança registra a seguinte lógica: a ocorrência do impacto social é possível, mas incerta e condicionada à cadeia de consequências. Apenas se certos recursos forem usados para oferecer certos produtos ou serviços, serão produzidos os resultados capazes de gerar o impacto social almejado.
Quando os negócios são mais diversificados, ofertando mais serviços e produtos, a teoria de mudança pode ser representada mais complexamente. É o caso, por exemplo, de empresas que pretendem gerar impacto social e ambiental, articulados em um só projeto. De todo modo, essa ferramenta é o dispositivo privilegiado para a elaboração e apresentação daquilo que fazem os projetos de impacto dos negócios, e seu uso é recomendado pelas organizações-chave das finanças sociais.
Segundo o entrevistado especialista em avaliação de impacto social - já apresentado neste texto -, ter uma teoria “de fato muito boa, muito comprometida, muito consistente, e comprovar isso com uma avaliação, é crucial”. E mais: “Se isso não for profundamente cuidado, não me venha falar que o seu negócio é de impacto”. Dessa maneira, se no momento da avaliação uma teoria de mudança não se provar consistente com as atividades realizadas pelo NI, ou se seus resultados não conferirem com aqueles esperados, a intenção de gerar impacto social fica comprometida, fragilizada e exposta a críticas. Vejamos o exemplo, trazido por esse mesmo entrevistado, de um NI cuja teoria de mudança se mostrou inválida.
Ele conta que conduziu uma avaliação externa de uma organização “que tinha uma teoria de mudança muito interessante, a respeito do quanto que a atividade de confecção de artesanatos era transformadora”. Os empreendedores formaram cooperativas e arrumaram canais de venda para os produtos dos artesãos, captando recursos junto a investidores para financiar a produção. Formulado como um negócio, a intenção declarada era lucrar com a venda dos produtos, viabilizando a sustentabilidade financeira do negócio, e gerar um impacto social naquela comunidade. A “aposta estratégica” dos empreendedores, conforme sua teoria de mudança, era que essa atividade impactaria o plano de projeto de vida de artesãos, proporcionando a descoberta de um talento ou a possibilidade de empreender um negócio de artesanato. Contudo, a avaliação mostrou que o impacto social prometido não era gerado: “na prática, a renda [gerada pela venda dos produtos] era insuficiente, intermitente, e a atividade de artesanato era considerada provisória, [isto é,] não se constituía como um projeto de vida [para os artesãos participantes do projeto]”.
O ajustamento entre a proposta inscrita na teoria de mudança e seus efeitos no mundo é, portanto, considerado pelos agentes fundamental para garantir a legitimidade e a eficiência dos NIs: trata-se de uma aposta sobre como funciona o mundo para nele poder intervir. A própria interpretação nativa da ideia de “teoria” parece corresponder a um encadeamento lógico explicativo de ideias baseado na investigação - entendida aqui no sentido de Dewey (1938DEWEY, John. Logic: The Theory of Inquiry. Nova York: Henry Holt and Company, 1938.), isto é, feita pelos atores quando se deparam com uma situação indeterminada e precisam entendê-la e a definir - dos problemas sociais e dos contextos nos quais os atores estão inseridos.
De qualquer forma, como os especialistas em teorias de mudança dizem que há uma teoria diferente para cada empreendimento, ela envolve sempre uma afirmação arraigada ao contexto da intervenção que apresenta justificações e explicações singulares e adaptadas singularmente. Corresponde, assim, à ideia de teoria em Kant, isto é, uma abstração ideal e geral capaz de dar conta dos fenômenos específicos. Ao mesmo tempo, no entanto, todo um esforço de generalizações situadas de algumas dessas teorias é feito pelos mesmos atores, por meio da ideia de case de negócio (ver ABEND, 2014ABEND, Gabriel. The Moral Background: An Inquiry into the History of Business Ethics. Princeton: Princeton University Press, 2014., p. 276; SALES, 2018SALES, Samantha. Negócios exemplares: Um estudo sobre a construção moral dos negócios de impacto. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.), como se diz quando um negócio bem-sucedido é usado como modelo a ser seguido.
A teoria de mudança é então resultado de investimentos de forma (THÉVENOT, 2016THÉVENOT, Laurent. La acción en plural: Una introducción a la sociologia pragmática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2016[2006].[2006]), servindo como referência convencional para facilitar a coordenação dos agentes e evitando custos com novas formatações e renegociações do sentido comum no futuro. Assim, ela é fundamental para que os agentes possam se engajar em um plano de ação típico (Ibid.) e exercitar suas capacidades como empreendedores de impacto. Entendendo-se que dispositivos são saturados de moralidades que ajustam pragmaticamente a ação coletiva (LATOUR e WOOLGAR, 1979LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. Laboratory Life: The Social Construction of Scientific Facts. Nova York: Saze, 1979.; DODIER e BARBOT, 2017DODIER, Nicolas; BARBOT, Janine. A força dos dispositivos. Sociedade e Estado, vol. 32, n. 2, pp. 487-518, 2017.; BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991]), a ferramenta incorpora modelos de julgamento e de avaliação, bem como as ordens de valor que os sustentam - em nosso caso, o compromisso da cité empresarial (mercantil, industrial e inspirada) com a cité cívica. Esses modelos são usados para avaliar o sucesso ou o fracasso de um empreendimento, ou seja, como indicador de competência dos agentes e como dispositivo de prova da capacidade de as empresas resolverem problemas sociais de formas inovadoras e eficientes.
Vê-se, portanto, que a construção das teorias de mudança representa um projeto capaz de selar o compromisso dos atores com a mudança, e não uma prova da própria mudança efetivamente - esta somente pode ser verificada por um outro tipo de comprovação, feito na avaliação dos efeitos dos empreendimentos. Com a sua elaboração, a ênfase recai sobre o esforço implicado na passagem entre a “missão” das empresas e suas ações concretas. Trata-se de um compromisso técnico, mas também moral, que ajusta os propósitos dos NIs com o esforço demandado dos empreendedores para que eles sejam validados como empreendimentos econômicos ancorados em um bom projeto de mudança.
Dessa forma, a avaliação do impacto social não passa somente pela avaliação dos resultados dos NIs, mas também pela conformação ao modelo de negócios de impacto e pela avaliação da proposta deles como empreendimentos privilegiados para solucionar problemas sociais; ou seja, passa pela avaliação da compatibilidade entre a pragmática dos negócios e a ordem valorativa que os sustenta. É por meio da teoria de mudança que se dá, portanto, a operação de especificação e detalhamento do bem pretendido pela empresa. Trata-se de uma passagem do bem abstrato, indicado na ideia ressoante nesse universo de que NIs “fazem o bem”, para um bem concreto: fazer um bem a partir das empresas, de forma lucrativa, por meio da resolução de um problema específico que afeta determinadas pessoas em um dado contexto.
Empreendimentos exemplares
A partir do que foi exposto até aqui, é possível observar que os negócios de impacto são apresentados como empreendimento exemplares. Segundo os atores neles engajados, demonstram pragmaticamente o que pode e deve ser feito para resolver um problema social, para melhorar o mundo, a partir das empresas, sem abrir mão da geração de lucro - lembrando a fala de um dos entrevistados para a pesquisa, sem ter que optar “entre ganhar dinheiro e fazer uma contribuição positiva pro bem-estar da sociedade”. Nesta seção, discutirei alguns elementos centrais para a construção dessa exemplaridade: a inovação, a conexão e a transformação subjetiva dos atores engajados nos NIs, analisando algumas justificativas para a existência e as práticas desses negócios.
Inovação social
Segundo Comini (2016COMINI, Graziella. Negócios sociais e inovação social: Um retrato de experiências brasileiras. Tese (Livre Docência) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.), há duas formas de se compreender a “inovação social” característica dos NIs. Uma delas a conceitua como “uma solução para um problema social que seja mais efetiva, eficiente e sustentável do que as alternativas existentes” (Ibid., p. 57), qualificando a inovação de um ponto de vista normativo e a associando a um imperativo de originalidade, ao tipo de demanda social não atendida e à intencionalidade do executor. A outra forma diz respeito aos processos, isto é, a como a inovação emerge, é adotada e difundida. Aqui, é importante salientar que “inovação” pode aparecer na linguagem empresarial com duas dimensões distintas: como novidade de fato ou como otimização. Seja qual for a concepção, ela é comumente mobilizada pelos atores na justificação dos NIs e apontada como meio de tornar esses negócios efetivos. Uma de minhas entrevistadas, coordenadora de um programa de incubação de NIs, isto é, de suporte a empreendedores iniciantes, ao ser perguntada sobre o que considera ser inovação social, disse o seguinte:
- Acho que inovação principalmente não é invenção. Inovação é uma coisa funcional, é uma coisa que especialmente vai resolver um problema de uma forma inteligente (...). E em questão social, eu acho que inovar é você conseguir pensar em como atingir mais gente com o que você tá fazendo, como escalar isso de uma forma que vai ser acessível, que vai ser efetivo. (...) Em termos de negócio, você inovar não é você criar algo novo, é você melhorar, principalmente, processos do que já existe. Se a coleta de lixo não é satisfatória, como você faz pra reduzir ou pra melhorar isso? Se casas na favela não recebem cartas, como você faz pra resolver isso? [Dizem:] “Mas existem os Correios”. Existem. E qual é sua solução melhor que os Correios, né? E aí, é pensar muito por aí.
Essa ideia de melhorar os Correios se verifica em um NI criado pelo Grupo Carteiro Amigo (GCA). Trata-se de um negócio fundado por empreendedores nascidos e criados na Rocinha, favela na Zona Sul do Rio de Janeiro, com o objetivo declarado de “devolver aos moradores um dos direitos básicos, que é o de receber a sua correspondência”15 15 Disponível (on-line) em: http://www.carteiroamigo.com.br/empresa.html . Seus fundadores contam que, trabalhando para agentes recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), perceberam que era difícil acessar algumas localidades da favela, muitas sem nomes de rua e número nas casas e que isso era complicado inclusive para os moradores. Decidiram então “sanar essa falha”, montando um centro de distribuição na favela: “Assim, ao mesmo tempo que prestamos um serviço público, conseguíamos gerar emprego e renda na nossa comunidade”16 16 Idem. . A ideia de “devolver” um direito básico implica uma crítica à incapacidade dos governos de garantir esse direito - visto que os Correios são uma empresa pública federal -, de oferecer soluções para o problema de entrega ineficaz de correspondências nas favelas.
Outro exemplo é uma rede de clínicas particulares e populares criada em 2011 e apresentada como uma alternativa tanto ao SUS como a convênios. A rede oferece consultas e procedimentos em geral mais baratos do que na rede privada tradicional e parceláveis em várias vezes. Em 2017, quando fazia a pesquisa, era possível agendar uma consulta com um clínico geral por R$90,00 ou três parcelas mensais de R$30,00. Nos primeiros três anos do empreendimento, havia apenas uma clínica na favela de Heliópolis, em São Paulo. Em março de 2020, a rede contava com 55 unidades, localizadas na Grande São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (SANTOS, 25/03/2020). A empresa, autodeclarada como um negócio de impacto, justifica sua existência da seguinte maneira:
Em um país onde o acesso à saúde pode ser caro, difícil ou demorado para parte da população, o Dr. Consulta veio para ajudar a salvar vidas com um novo jeito de cuidar da saúde. Nós levamos consultas e exames fáceis de agendar, de fazer e de pagar para quem precisa e merece: a sua família. Sem fila, sem demora, sem burocracia. (...) Somos rápidos, eficientes, inteligentes. (...) Quem não tinha a opção de atendimento médico que queria e precisava, agora pode escolher o Dr. Consulta.17 17 Disponível (on-line) em: https://drconsulta.com/
Os exemplos vão todos nesse sentido: resolver falhas habituais de outros agentes já envolvidos naquela área/questão, notadamente o Estado e a filantropia - esta, por exemplo, costuma ser apontada como limitada em sua capacidade de obtenção de recursos. E, a partir disso, criar demandas oferecendo serviços e produtos anunciados como mais eficientes, o que, simbolicamente, significaria eficientes e ponto. Essa sobreposição entre inovação e eficiência explicita o compromisso entre as lógicas inspirada e industrial, constituintes, junto com a lógica mercantil, do que chamei de cité empresarial. Em se tratando de inovação social, o compromisso com a lógica cívica se faz evidente. É por isso que a intenção de produzir exemplaridade dos atores do universo dos NIs passa pela compreensão de como os próprios atores demandam e produzem transformação.
Isso fica explicitado na fala de um de meus entrevistados, gestor de negócios sociais e de impacto, que critica a incompetência do Estado para resolver o problema da reincidência criminal:
- Ah, por exemplo: você pega a própria empresa A. (...) Então, eles fazem um trabalho de ressocialização de egressos do sistema prisional, ex-detentos. Bom, pra isso virar uma política pública, né, de o governo poder apoiar qualquer empresa que empregue ex-detentos e que não só empreguem, mas tenham um trabalho de desenvolvimento pessoal... (...) [O projeto] tem um super apelo, né, que o governo não faz [um bom trabalho de ressocialização de ex-detentos], né? Então, é como que a partir de uma ação dessa pode ter uma ação do governo. Maravilhoso, é isso que a gente quer: a gente quer dar exemplo de como o governo devia fazer coisas que dão resultado de uma outra forma, né? Então, impactar e virar uma política pública, puta, isso é um sonho. Ter uma ação direta com o governo, nesse momento não é o nosso foco. (Entrevistado)
Essa questão da relação entre NIs e políticas públicas é ressaltada pela FTFS (2015, p. 24) em uma de suas recomendações, voltada para os governos. A força-tarefa diz que as finanças sociais podem ser uma alavanca para as políticas públicas por motivos como: investimento em inovações e tecnologia para a resolução de problemas sociais complexos; articulação e aumento de investidores e empreendedores que podem atuar junto ao governo; monitoramento do custo dos serviços públicos, visando à melhoria do atendimento à população a melhor custo; novas formas de mensurar impacto social, seja gerado pelos negócios ou pelos governos; estímulo a agendas de coinvestimento público-privado em soluções de prevenção; e novos formatos para políticas públicas em termos de economia de gastos ou novas práticas de atuação. Trata-se, dessa maneira, tanto de se aproveitar as estruturas do Estado quanto de sempre frisar a capacidade das finanças sociais em contribuir para seu melhor aproveitamento.
Conexão
Outro elemento fundamental para a construção da exemplaridade desses empreendimentos é o imperativo de conexão. Os NIs são construídos em um “mundo conexionista” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.[1999]), no qual os elos são úteis e enriquecedores - possibilitam a criação de empresas, a organização em torno de projetos, viabilizam as transformações coletivas - e têm “o poder de modificar os seres com que entram em contato” (Ibid., p. 165). A inspiração, aqui, não diz respeito a indivíduos isolados que recebem uma graça, como na cité inspirada pura. Ela se manifesta a partir das conexões e das “recombinações de recursos”, que Stark e Vedres (2010STARK, David; VEDRES. “Dobras estruturais: ruptura generativa em grupos sobrepostos”. Revista de Administração de Empresas, vol. 50, n. 2, pp. 215-240, 2010., p. 215) identificam como a principal maneira de gerar novos conhecimentos e produtos no empreendedorismo, viabilizados em parte pelos encontros entre os agentes.
Na abertura do Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, realizado em agosto de 2016, em São Paulo, um dos organizadores fez o seguinte convite aos espectadores:
- Fortalecer os negócios que resolvem problemas sociais é um dos impulsos mais potentes que a gente pode fazer pela sociedade brasileira atualmente. (...) A gente [organizadores do fórum] precisa que muitas conexões sejam feitas dentro de vocês. E depois, de vocês pra todo esse teatro, e desse teatro pra suas organizações, e das suas organizações pra organizações que não puderem estar aqui. O movimento que a gente quer fazer de mudanças e conscientização do ecossistema [de finanças sociais] é grande, então a gente vai precisar de todos. (Caderno de campo)
O termo “conexão” aparece nessa fala com dois sentidos: um, de conexão interna, como se as pessoas precisassem “despertar”, ativar algo dentro de si para se engajarem pessoalmente e afetivamente nas finanças sociais e nos negócios de impacto, ao se conectarem com seu verdadeiro propósito; e outro, no sentido analisado por Boltanski e Chiapello (2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.[1999]), de uma ordem conexionista característica daquilo que eles chamam de cité por projetos, uma ordem de grandeza baseada na criação e na ampliação de redes: “criar elos”, “fazer conexões”, “tecer redes”, “estabelecer relações” - tudo isso define a grandeza nessa cité.
O convite do organizador do Fórum para as pessoas fazerem conexões indica, portanto, uma passagem de um regime de conexão a outro, a saber, da conversão interna à difusão das ideias das finanças sociais e dos NIs, da conexão entre si e uma questão - engajamento subjetivo, cognitivo - à divulgação de uma boa doutrina a outras pessoas por meio de conexões e da coordenação, no que ele chamou de ecossistema de finanças sociais.
Transformação subjetiva
Vejamos esta fala de um entrevistado, sócio fundador de uma empresa de investimento e gestão de NIs. Nela, ele valoriza as transformações que acredita serem produzidas pelos NIs - em si mesmo, nos outros e na realidade social.
- Quando a gente pensa em causar impacto social, a primeira coisa que vem na cabeça é o beneficiário, né? Mas, na verdade, eu acho que todo mundo que tá participando de um processo desse, a gente vê como alguém a ser transformado e realmente [capaz de] mudar paradigmas. (...) No lado dos investidores, a gente acha que é uma transformação. (...) Mas vamos falar de pessoas que vêm do mundo corporativo, que eventualmente, né, já têm um recurso [financeiro] razoável acumulado. Então isso [o retorno social sobre o investimento] não faz diferença, mas [eles] querem participar de uma mudança social. Às vezes nunca fizeram, nunca souberam. [Dizem:] “Ah, quero ajudar”, mas não se envolvem profundamente com uma ONG, então ficam inseguros. (...) Então, você vai ter pessoas do mundo corporativo, executivos, ou pessoas que saíram do mundo executivo, e que podem não só ajudar com recursos financeiros, como podem ajudar com o recurso do conhecimento que eles têm, da experiência, da rede, network, que eles têm. (...) Tem juízes, tem pessoas do mundo corporativo, tem pessoas até que não têm nenhuma função clara específica, mas que querem ajudar. Então, é também promover, trazer um capital novo. Mas não é só o dinheiro, né? Também essas pessoas que, ao participarem de um projeto, elas se transformaram, né? Isso é fato. E aí são multiplicadores, né, vão transformar sua própria empresa, ou a rede de amigos, ou a empresa [em] que trabalham. (...) O empreendedor é um cara que torna o projeto viável e vai viver disso e vai colocar a sua plena capacidade de gerar um negócio. As pessoas que ele vai estar contratando, que vão receber salário de mercado, são principalmente esses jovens que tão saindo da faculdade e que não querem mais trabalhar numa big empresa só porque têm altos salários e bônus. Se os caras não têm um propósito claro, eles tão pulando fora. Então, tem um negócio que seja uma opção de ele falar: “Bom, vou ganhar o salário, vou criar minha família com isso aqui e tô trabalhando no que eu acredito”. Também é uma transformação.
A transformação subjetiva é, como se pode observar, um elemento fundamental nesse universo. As pessoas que entrevistei durante a pesquisa, ao contarem a história de como se envolveram com os NIs, geralmente apresentavam um momento de virada (ABBOTT, 2001ABBOTT, Andrew. “On the Concept of Turning Point”. In: ABBOTT, Andrew. Time Matters: On Theory and Method. Chicago: University of Chicago Press, 2001, pp. 240-260.) em suas biografias que justificava, para elas, o engajamento. Como busquei mostrar em outro trabalho (SALES, 2019SALES, Samantha. “A dádiva pelo dom como vocação: Uma análise das moralidades dos negócios de impacto a partir da sociologia pragmática”. In: CANTU, Rodrigo; LEAL, Sayonara; CORRÊA, Diogo; CHARTAIN, Laura (orgs). Sociologia, crítica e pragmatismo: Diálogos entre França e Brasil. Campinas: Pontes, 2019, pp. 169-201.), grande parte das histórias de empreendedores nesse universo conta que eles trabalhavam no setor privado e decidiram “mudar de vida” após alguma experiência transformadora e buscar um propósito, algo que lhes permitisse fazer o bem, em vez de simplesmente enriquecer ou gerar lucro para outrem. A estrutura narrativa costuma ser: pessoas que trabalhavam em instituições financeiras, grandes empresas e/ou com projetos de carreira considerados “convencionais” encontraram-se insatisfeitas com o que faziam e tiveram contato com algum projeto social ou com alguma problemática social com a qual se identificaram, ou então conheceram os NIs e resolveram se engajar nesses negócios, passando a ter uma vida considerada, por eles mesmos, melhor, mais satisfatória, “com propósito”.
Vejamos a fala do mesmo gestor de negócios do trecho anterior, que ilustra a passagem de um momento anterior para o envolvimento com impacto social:
- Eu me formei em economia, sempre trabalhei em empresas do mundo corporativo na parte de gestão, planejamento, parte financeira, controladorias. (...) Tive também empresas minhas. (...) Foi um período bem estressante. Então resolvi dar uma pausa pra entender o que que eu queria, porque não tava muito feliz com as relações [de trabalho]. E aí eu acabei indo parar num projeto, apoiando um projeto (...). É uma organização que apoia empreendedores sociais. E aí conheci esse mundo de impacto social (...). Eu já tenho uma experiência de ter trabalhado numa ONG (...) e era uma ONG bem tradicional - vamos falar assim, né? -, que dependia então de recursos de filantropia. Eu saí puto, né? [Pensei] “vou dar um ano sabático”. Eu tava bem estressado. Falei: “Eu quero dedicar parte do meu tempo pra uma ação social e parte do meu tempo [para] achar meu novo projeto, o que que eu quero fazer da vida, o que eu gosto, né, no meu projeto”. (...) Então, tinha aquela coisa muito clara separada [entre empresas e ONGs]. E ao (...) conhecer empresas sociais (...) eu tive muitas portas abertas nesse mundo. (...) Então eu comecei a conhecer uma coisa que é factível de juntar as duas coisas, né? De ter a questão de trabalho e de impacto social. Não tem aquela visão bipolar de que ou é um ou é outro, e sim de conseguir congregar. E, dada a minha experiência de gestão, [tem a questão de] como conseguir fazer com que esse lado de gestão e eficiência das empresas seja utilizado com um propósito claro de impacto social.
Pode-se dizer, então, que os empreendedores de impacto costumam mudar seus cursos de ação a partir de um “momento crítico” (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991]) que interrompe o fluxo da vida cotidiana, a partir do qual se dão conta de que não poderiam mais continuar fazendo as coisas como antes. Estes trechos de uma publicação com histórias de empreendedores de impacto explicitam como o dispositivo da conversão é mobilizado pelos atores:
Depois de cansar do mundo dos investimentos...
[C]ansei de tornar os ricos mais ricos.
O que eu queria mesmo era resolver um problema de baixa renda.
Minha vida mudou completamente, encontrei meu propósito.
Se as organizações não se adaptam, criamos nossas próprias.
É uma outra motivação quando você acorda para trabalhar.
Essa liberdade de você vir, se vestir como quiser, envolver sua família e seus amigos no seu trabalho, ser quem você é lá fora e aqui dentro [da empresa] também, de fazer algo em que você acredita (NA PRÁTICA, 2016, s/p).
Esses discursos devem ser analisados sociologicamente, porque explicitam as concepções de mundo e os valores mobilizados pelos atores engajados nos NIs para justificarem as práticas com as quais se envolvem e a própria existência desse tipo de negócio e de sua proposta. A apresentação de uma versão de si, por parte dos empreendedores de impacto e demais atores, que faça sentido em relação a esses negócios apareceu como uma questão central na pesquisa. Suas justificações são feitas então, em grande parte, por meio da elaboração de apologias dos negócios, das finanças sociais e dos modos de vida atrelados a eles, relacionando a elas a restauração das imagens dos personagens associados ao capitalismo (investidor, empreendedor, empresário etc.).
Há, então, uma forte relação entre a demonstração de vontade filantrópica e a conformação a um paradigma de eficiência no universo dos negócios de impacto que é garantida justamente graças à organização da dissonância das situações vivenciadas pelos agentes. Se se trata de um “setor 2,5”, como dizem os próprios atores, intermediário entre o segundo e o terceiro setor, é preciso recombinar recursos (STARK e VEDRES, 2012) e explorar as fricções criativas (STARK, 2009) entre diferentes ordens de valor, expertises e habilidades acumuladas, de modo a criar um mercado que pretende incorporar práticas antes restritas a outros tipos de organizações, não orientadas pela lógica mercantil.
Como busquei mostrar, a exemplaridade dos NIs é relacionada com uma dimensão pedagógica, e o principal conteúdo a ser ensinado é baseado no compromisso da cité empresarial com a lógica cívica. É preciso, segundo os próprios atores, que uma intervenção no social visando resolver algum problema seja eficiente, e os negócios seriam o plano ideal a partir do qual as mudanças sociais possam ser desenvolvidas, graças à sua capacidade de inovar - em termos de criar novidades e de otimizar o que já existe -, de conectar - e tirar proveito das conexões - e de transformar subjetividades - ou aproveitar transformações prévias no sentido do engajamento nesse mundo.
Por fim, a exemplaridade diz respeito também ao processo dos negócios de impacto: a demonstração do trabalho da conformação dos negócios ao modelo formal NIs, por meio da teoria de mudança, é mobilizada como prova da sua efetividade. O investimento na demonstração da eficiência como parte central da autorrepresentação dos NIs, feito graças à interrelação entre a metafísica - as abstrações de como um NI deve funcionar, isto é, seu fundamento valorativo e normativo - e a praxeologia - como ele é realizado pragmaticamente - e ao esforço de “cientifização” da construção de projetos de impacto e das provas de eficácia dos resultados dos negócios, constitui um “paradigma da intervenção social eficaz” (cf. NORMAND, 2006), apresentado pelos atores engajados como uma solução para as dificuldades de resolução de problemas sociais complexos.
Considerações finais
Neste artigo, busquei mostrar que os agentes engajados nos negócios de impacto justificam esses empreendimentos econômicos por meio de uma busca por demonstrar pragmaticamente o que pode e deve ser feito para resolver algum problema social, melhorar o mundo, a partir das empresas capitalistas. Analisei a conformação desses negócios a um modelo de intervenção no social por meio da teoria de mudança e sua accountability social, a fim de compreender como eles são justificados e apresentados como empreendimentos exemplares - isto é, que dão exemplos propositivos de como resolver problemas sociais para quem trabalha com negócios e também, como se vê nas falas desses atores, para quem trabalha com o poder público e com a filantropia. Foi possível observar que o trabalho de diferenciação desses negócios, ao mesmo tempo em relação a outros tipos de intervenção social e a outras formas de atividade econômica, passa por uma ênfase em uma gramática construída a partir do compromisso entre diferentes ordens de valor para resolver problemas sociais de maneira eficiente, notadamente entre o que chamei de cité empresarial (um compósito das ordens mercantil, industrial e inspirada) com a cité cívica.
Em suma, os NIs são justificados como empreendimentos que apresentam e experimentam soluções para problemas sociais qualificadas pelos próprios empreendedores desse universo como inovadoras e eficazes, manifestando suas insatisfações tanto com o Estado (qualificado pelos entrevistados como moroso, burocrático, corrupto, ineficiente) quanto com a lógica capitalista (que seria baseada nas dimensões de risco e retorno, sem a ideia de impacto social), e ainda com a filantropia (qualificada pelos entrevistados como emocional, pontual e inexpressiva do ponto de vista da solução dos problemas). Para isso, constroem, no decorrer desse processo, provas para essas críticas, oferecidas por meio da teoria de mudança e do processo de avaliação do empreendimento.
Os negócios aqui analisados lidam pragmaticamente com críticas referentes àquilo que Boltanski e Chiapello (2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.[1999]) chamaram de “incorporação da crítica” ao capitalismo por ele próprio: a ideia de que, para se manter ao longo do tempo, o capitalismo habitualmente toma as críticas que recebe e as inclui como elemento de sua própria agenda, transformando-se de problema em “solução”18 18 Um exemplo clássico está na crítica de que o capitalismo produz desigualdade ao dar recursos aos ricos para seu bem-estar social à custa dos pobres. Tal crítica foi incorporada pelo capitalismo na forma da devolução de recursos por meio de políticas de bem-estar financiadas por impostos das companhias capitalistas, como a previdenciária, a de saúde e a de educação. Nesse caso, o capitalismo passa a performar a própria crítica contrária à ausência dessas políticas e a se apresentar como responsável por sua resolução. . Essa questão é em grande parte o que faz com que suas justificações precisem convencer as pessoas de que os NIs estão realmente interessados em resolver problemas sociais para causar mudanças positivas na sociedade. Para responderem a essas críticas ao capitalismo, operam uma separação (em conflito) entre o “mundo dos negócios e dos empreendedores” e o “mundo do social”. A partir dessa separação, buscam comprovar como eles não precisam estar em conflito, mobilizando os resultados dos empreendimentos de impacto social como provas dessa possibilidade.
A controvérsia acerca do papel social e da ética dos negócios, isto é, da definição de suas responsabilidades e operacionalidades em termos morais, apesar de não ser novidade e remontar pelo menos aos primeiros anos do século XX (ABEND, 2014ABEND, Gabriel. The Moral Background: An Inquiry into the History of Business Ethics. Princeton: Princeton University Press, 2014.), vem ganhando centralidade nos últimos anos nos mundos corporativo e financeiro (GRÜN, 2005GRÜN, Roberto. “Convergência das elites e inovações financeiras: A governança corporativa no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, n. 58, pp. 67-90, 2005.; MACKENZIE, 2009MACKENZIE, Donald. “Making Things the Same: Gases, Emission Rights and the Politics of Carbon Markets”. Accounting, Organizations and Society, vol. 34, n. 3-4, pp. 440-455, 2009.; SARTORE, 2012SARTORE, Marina. “Da filantropia ao investimento socialmente responsável: Novas distinções”. Caderno CRH, vol. 25, n. 66, pp. 451-464, 2012.; BARMAN, 2015BARMAN, Emily. “Of Principle and Principal: Value Plurality in the Market of Impact Investing”. Valuation Studies, vol. 3, n. 1, pp. 9-44, 2015., 2016; KARNANI, 23/08/2010; CHIAPELLO e GODEFROY, 2017CHIAPELLO, Ève; GODEFROY, Gaëtan. “The Dual Function of Judgment Devices. Why Does the Plurality of Market Classifications Matter?”. Historical Social Research, vol. 42, pp. 152-188, 2017.). A premissa de que lucro, impacto social e desenvolvimento sustentável devem ser objetivos inextricáveis dos empreendimentos econômicos vem se estendendo e reconfigurando práticas capitalistas, inclusive no Brasil. Assim, é preciso considerar que a análise compreensiva dos negócios de impacto, apresentados pelos agentes como elementos centrais de um “mercado do futuro” (PIPE SOCIAL, 2017) centrado na geração de impacto social pelo mercado, deve ser articulada em uma investigação mais ampla sobre como outros atores, além dos empreendedores e investidores (clientes, beneficiários, movimentos sociais, governos etc.) afetam e são afetados pela atuação do setor empresarial e financeiro na realização desse tipo de negócio.
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A agenda foi substituída em 2020 por conta da urgência de se tratar de assuntos relacionados à pandemia de Covid-19.
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Em setembro de 1970, Milton Friedman (13/09/1970), economista liberal americano, publicou um artigo no The New York Times criticando os promotores de “fins ‘sociais’ desejáveis” a serem empreendidos pelas corporações, como a diminuição da discriminação e a prevenção da poluição ambiental. Notório representante paradigmático da chamada Escola de Chicago da economia, Friedman chamava pejorativamente essas pessoas de “reformadores” e argumentava que negócios, diferentemente de pessoas, não são obrigados a ter responsabilidades ou consciência social, no sentido de responder às demandas por resolução de problemas sociais e ambientais. Em sua visão, a ideia (ou “doutrina”) de responsabilidade social dos negócios implicava que esses executivos gastariam dinheiro privado de outras pessoas (empregadores, empregados e investidores) para perseguir interesses gerais de caráter cívico.
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O termo “negócio de impacto” é frequentemente usado como sinônimo de empresa: os agentes dizem que eles e suas empresas fazem NI, mas também que suas empresas são NIs.
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4
Impacto social positivo — daqui em diante referido simplesmente como impacto social, conforme o uso nativo, salvo quando for o caso de se falar em impacto social negativo — é um termo estabelecido nos domínios do planejamento e da avaliação de programas sociais e políticas públicas. Diz respeito a mudanças julgadas positivas por quem as promove, ocorridas e especificamente devidas a um investimento e/ou empreendimento sobre uma população, comunidade ou território, descontando-se causas externas que possam afetar os resultados almejados (BRANDÃO, CRUZ e ARIDA, 2015BRANDÃO, Daniel; CRUZ, Célia; ARIDA, Anna Livia. Métricas em negócios de impacto social: Fundamentos. São Paulo: Move; ICE, 2015.; COMINI, 2016COMINI, Graziella. Negócios sociais e inovação social: Um retrato de experiências brasileiras. Tese (Livre Docência) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.).
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5
Este é um trabalho sobre as representações dos atores. Busco apreender os motivos e os valores dos agentes que pesquiso a fim de entender como acham que o mundo é e deveria ser, e o que deve ser feito para mudá-lo. Meu objetivo não é, portanto, defender os NIs como solução para os problemas aqui discutidos, mas entender como os promotores desse tipo de empreendimento econômico pensam esses problemas — por mais que eu não pense como eles — e analisar as questões que suas propostas trazem para as discussões sobre os temas aqui apresentados. O que importa aqui, então, é uma discussão não dos valores em si, mas das maneiras situadas como os atores se relacionam com o mundo por meio deles (os seus, partilhados e/ou em disputa).
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6
Müller (2006MÜLLER, Lúcia Helena. Mercado exemplar: Um estudo antropológico sobre a bolsa de valores. Porto Alegre: Zouk, 2006.) usa o termo “exemplar” em seu trabalho, ao argumentar que a bolsa de valores é um “mercado exemplar”. Mas o sentido por ela atribuído à exemplaridade é diferente do que proponho aqui. Para ela, a bolsa de valores é a instituição na qual o simbolismo econômico se realiza da forma mais completa e exemplar — isto é, de forma representativa —, e por isso constitui um mercado exemplar. Aqui, o sentido adotado do termo está relacionado ao processo de exemplificação, de dar exemplo em termos morais.
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A pesquisa foi realizada com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
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O modelo é aberto à proposição de novas cités. Por exemplo, já foram propostas cités ecológica (LAFAYE e THÉVENOT, 1993LAFAYE, Claudette; THÉVENOT, Laurent. “Une justification écologique? Conflit dans l’aménagement de la nature”. RFS, n. 34, pp. 495-594, 1993.), por projetos (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.[1999]), hedonista (WERNECK, 2017WERNECK, Alexandre. “Sobre a ‘cité’ hedonista: Uma ordem de grandeza baseada no prazer e na alegria”. Trabalho apresentado no 41º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2017.) e altruísta (MOURA, 2017).
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Essa modelização é analógica, isto é, os textos clássicos da filosofia política são adotados como obras sintéticas, formalizações, de utopias pragmaticamente operadas pelas pessoas em suas vidas sociais e empiricamente observadas nas pesquisas de campo dos dois autores. Assim, o enquadramento com base nessas obras não quer dizer (como deixam claro Boltanski e Thévenot) que as pessoas leram nenhuma dessas obras (como A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, texto-base da cité inspirada; A riqueza das nações, de Adam Smith, fundamento da cité mercantil; ou o Système industriel, de Saint-Simon, obra modelar da cité industrial). Significa, em vez disso, que essas obras dão conta de sintetizar princípios valorativos operados pelos atores na vida social.
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Competências, nesse modelo e na tradição pragmatista em geral, são os traços de ações que, quando percebidos, legitimam essas mesmas ações, tornando-as efetivas (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.). Um exemplo é a justiça, que, se reconhecida em uma ação, possibilita efetivá-la como justa (BOLTANSKI, 2000).
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11
Disponível (on-line) em: https://ice.org.br/financas-sociais/
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12
O desenvolvimento das finanças sociais no Brasil pode ser mais bem compreendido a partir do trabalho de Sartore (2012SARTORE, Marina. “Da filantropia ao investimento socialmente responsável: Novas distinções”. Caderno CRH, vol. 25, n. 66, pp. 451-464, 2012.) sobre o espaço das práticas sociais dos empresários brasileiros.
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Disponível (on-line) em: https://aliancapeloimpacto.org.br/
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Parte da agenda de atores engajados nas finanças sociais no Brasil é desenvolver parcerias com governos, visando participar do desenvolvimento de políticas públicas e estimular a compra governamental de produtos e serviços de impacto, pressionando para a formalização e regulação desses novos mecanismos e demandando a incorporação do tema dos investimentos e negócios de impacto em fundos de investimento públicos (FTFS, 2016).
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15
Disponível (on-line) em: http://www.carteiroamigo.com.br/empresa.html
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Idem.
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17
Disponível (on-line) em: https://drconsulta.com/
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Um exemplo clássico está na crítica de que o capitalismo produz desigualdade ao dar recursos aos ricos para seu bem-estar social à custa dos pobres. Tal crítica foi incorporada pelo capitalismo na forma da devolução de recursos por meio de políticas de bem-estar financiadas por impostos das companhias capitalistas, como a previdenciária, a de saúde e a de educação. Nesse caso, o capitalismo passa a performar a própria crítica contrária à ausência dessas políticas e a se apresentar como responsável por sua resolução.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
30 Out 2020 -
Aceito
05 Jul 2021