Acessibilidade / Reportar erro

Sete presos desaparecidos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo: gestão do Judiciário das vidas “indignas”

Seven missing prisoners at the Monte Cristo Agricultural Penitentiary: Judiciary management of “unworthy” lives

Resumo

O presente texto tem como evento de análise o desaparecimento de sete detentos da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, unidade prisional localizada na zona rural de Boa Vista, em Roraima. Pretendemos compreender como a atuação do Poder Judiciário contribuiu com esse evento. Para isso, nos voltamos para os processos judiciais que os condenaram, para analisar em que medida os atores do judiciário têm responsabilidade nos procedimentos de “desumanização” dessas pessoas, processo esse que os coloca como “indignos” de terem seus corpos procurados e consolida uma prática de desaparecimento forçado.

Palavras-chave:
Desaparecimento forçado; Criminalização; Poder Judiciário

Abstract

The present text has as an event of analysis the disappearance of seven inmates from the Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a prison unit located in the rural area of Boa Vista, in Roraima. we intend to understand how the performance of the Judiciary contributed to this event. For this, we turn to the judicial processes that condemned them, to analyze the extent to which judicial actors are responsible for the procedures of “dehumanization” of these people, a process that places them as “unworthy” of having their bodies sought after. and opens the door for us to be faced with a situation of forced disappearance.

Keywords:
Enforced disappearance; Criminalization; Judiciary system

Introdução

Neste artigo, abordaremos processos judiciais de condenação de sete pessoas que desapareceram da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em meio a um contexto de massacre prisional, em abril de 2017. Apesar de familiares das pessoas presas insistirem que elas foram assassinadas por agentes penitenciários dentro da prisão, agentes do Estado, responsáveis pela investigação do episódio, narram o episódio como um caso de fuga de presos.

Partindo desta disputa de narrativas entre as mulheres familiares das pessoas desaparecidas e os agentes de Estado, nos voltaremos às análises dos processos de condenação dos sete presos, a fim de tomarmos como centro de análise a atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público. Com isto, pretendemos observar de que modo a construção de reputações (Ferreira, 2011FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.) sociais nos documentos de Estado, levada a cabo pelos atores do sistema de justiça, contribui para as condições do desaparecimento e da negativa de paradeiro de pessoas presas. Buscaremos responder, ao fim, de que forma tais atores contribuem com a produção de “vidas indignas” cujos corpos, por consequência, não merecem ser buscados, e cujos desaparecimentos não merecem ser investigados.

Para tanto, aplicamos a técnica de análise de conteúdo ao conjunto documental, organizada em três fases: pré-análise, exploração do material, e tratamento dos resultados (Bardin, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1977.). O método apresentado nos possibilitou identificar padrões nos discursos produzidos por atores do Poder Judiciário e do Ministério Público, seja pela linguagem escolhida para compor os textos, seja pela construção de narrativas que impactam a dinâmica processual, que, ao fim, promovem a construção das vidas indignas. Ao identificarmos tal produção, anterior ao cumprimento da pena e ao desaparecimento dos presos, lançamos a hipótese de que esta é uma das condições de possibilidade para a promoção do desaparecimento das pessoas sob custódia e a consequente negativa da busca pelos corpos.

Sete presos desaparecidos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo: o embate narrativo entre o Estado e as famílias

O “Relatório de Monitoramento de Recomendações: Massacres Prisionais dos Estados do Amazonas, do Rio Grande do Norte e de Roraima”, produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2018), registrou o desaparecimento de sete pessoas presas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, no ano de 2017. Nos levantamentos feitos na visita do MNPCT à penitenciária, os relatos foram unânimes no sentido de um aumento da tensão no local e de um estreitamento das relações entre os agentes penitenciários e os detentos após o acontecimento. Em um dos registros, foram atestados testemunhos consistentes da violência sofrida pelos presos quando estes eram retirados de dentro das alas para realizar atividades como “idas para a audiência e os raros atendimentos de saúde” (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2018). Alguns diziam que, ao serem chamados para audiências, preferiam não ir por temerem por suas vidas, usando como exemplo o dia em que “alguns de seus colegas foram retirados de uma mesma ala da prisão para supostamente fazer atendimento e nunca mais voltaram”.

Dos sete desaparecidos, cinco deles foram retirados de suas celas na madrugada do dia 24 de abril de 2017, enquanto os outros dois, segundo os relatos, foram levados à área de triagem no momento em que adentraram a prisão, tendo sido lá todos torturados até a morte. Repara-se que a “área de triagem”, aqui, assemelha-se ao que foi denominado por Fábio Mallart (2019MALLART, Fábio. Morrer antes da morte. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 144, junho, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/morrer-antes-da-morte/>.
https://diplomatique.org.br/morrer-antes...
) de espaços, no interior das instituições prisionais, “cuja sensação é a de que ‘tudo é possível’”. Segundo ele, tais espaços possuem “dinâmicas de funcionamento que destoam dos pavilhões onde se aglomera o grosso da massa encarcerada, não significando, logicamente, que não estejam interligados” (Mallart, 2019).

A partir desse evento foram frequentes, ao longo dos anos, a organização de protestos e reivindicações públicas por parte das mulheres familiares dos desaparecidos, em uma organização semelhante a outros coletivos de familiares de vítimas de violência de Estado. Elas produziram camisetas com os rostos estampados de todos os sete, e realizaram desde então vários protestos pela cidade, destacando-se um com carro de som em frente à casa da governadora à época em exercício Suely Campos1 1 CUNHA, Tamille. Familiares insistem no desaparecimento de sete presos e cobram informações. Em: <https://folhabv.com.br/noticia/POLICIA/Ocorrencias/Familiares-insistem-no-desaparecimento-de-sete-presos-e-cobram-informacoes/28259>. Acesso em 01 dezembro 2021. . Também realizaram denúncias à Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-RR e à Assembleia Legislativa. O que elas clamam, antes mesmo de terem recuperados os corpos de seus esposos, filhos e irmãos, é que seja reconhecido o desaparecimento de seus familiares, vítimas de violência carcerária, e estes não sejam visualizados como foragidos, como desde então defendeu a versão estatal.

A administração prisional da PAMC, após a constatação dos desaparecimentos pelos portais de notícias locais, se limitou a dizer que os sete homens, abrigados em uma mesma cela, arrombaram um buraco na parede do alojamento e de lá teriam fugido. Tal versão esbarra em algumas questões posteriormente levantadas. Em primeiro lugar, não se explica como esses homens teriam evadido do complexo prisional de Monte Cristo (que não se limita aos pavilhões), mas somente como teriam evadido de suas celas. Depois, esbarra não só com o que relataram ter presenciado seus colegas presos na madrugada do dia 24, mas também com apontamentos consistentes levantados por suas familiares: por que nenhum dos outros presos que ocupavam a cela os viu fugirem? Por que nenhum dos sete entrou em contato com elas após a fuga?

Em alguns dos depoimentos em que se contesta a narrativa de evasão, algumas das mulheres enfatizaram que seus esposos iriam até elas se tivessem fugido: “meu marido não fugiu. Na única vez que ele fez isso, fui a primeira a saber. Tanto antes, como depois, logo que saiu, me ligou. Temos certeza que foram tirados de lá. Não tinha como fugir do lugar de onde tão dizendo que eles fugiram”. Em outro relato, a esposa de um deles alega que o marido receberia liberdade condicional pouco tempo depois da data do desaparecimento, e que, portanto, seria ilógico que ele cometesse tal infração: “ele já ia ser solto. Se tivesse a intenção de fugir, teria me falado, como uma outra vez, ele me avisou2 2 G1 RR. Mulheres de 7 presos protestam em frente à casa da governadora de RR: 'não houve fuga'. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mulheres-de-7-presos-protestam-em-frente-casa-da-governadora-de-rr-nao-houve-fuga.ghtml>. Acesso em 12 novembro 2021. .

A reação dos órgãos estatais frente a essa disputa de narrativas deixa transparecer qual das versões recebeu maior adesão. Em um primeiro momento, fruto da insistência desesperada dessas mães e esposas, foi aberto inquérito policial, que corre atualmente em sigilo, para investigar o desaparecimento desses sete homens. No entanto, em um segundo momento, o governo roraimense escolheu seu lado e emitiu nota confirmando o que foi alegado pela administração penitenciária, corroborando com a visão de meros fugitivos incidida sobre esses homens desaparecidos.

A imprensa local também optou por um dos lados: nos dias que se seguiram da constatação de suas ausências, as notícias publicadas nos veículos da mídia, além de os classificarem como foragidos, não deram espaço para cientificar o leitor de que o caso abria margem para a possibilidade do fenômeno de desaparecimento3 3 Governo divulga fotos dos 7 presos que fugiram de presídio em RR por buraco na parede. Em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/governo-divulga-fotos-dos-7-presos-que-fugiram-de-presidio-em-rr-por-buraco-na-parede.ghtml>. . Somente algumas semanas depois, quando o inquérito já estava em curso, é que esses mesmos portais passaram a notificar as ações dessas mulheres em busca de justiça, mas sem apresentar o enquadramento do desaparecimento com a mesma ênfase com que noticiaram anteriormente o caso como evadidos. Inclusive, mais de uma vez dedicaram parte da reportagem para fazer menção aos crimes a eles imputados sem que houvesse qualquer relevância para a cobrança que está sendo noticiada. Na ocasião, foi citado que dois deles teriam sido encaminhados à PAMC por suposta prática de homicídio a um agente carcerário.

Araújo (2016ARAÚJO, Fábio. “Não tem corpo, não tem crime”: notas socioantropológicas sobre o ato de fazer desaparecer corpos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, pp. 37-64, jul/dez 2016.) alerta que a atuação do jornalista e da política editorial nesse tipo de caso pode ser traduzida em um engajamento ao sofrimento do outro (já que dá visibilidade ao evento), mas também pode significar uma espetacularização desse sofrimento, além da criação de novos obstáculos para familiares. O pesquisador cita o exemplo do relato de um veículo midiático que, após entrevistar uma mãe cujo filho era vítima de desaparecimento forçado no Rio de Janeiro, acusou a vítima do desaparecimento de “miliciano, estuprador e que tinha poucos dias que ele estava fora da cadeia” (Araújo, 2016, p. 54).

Ensejou, além disso, preocupação por parte do MNPCT e do Comitê Nacional o fato de os promotores responsáveis pela execução penal no estado de Roraima não terem providenciado outras medidas para além do pedido de abertura de inquérito (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2018, p. 122). O Ministério Público, sempre engajado em vários processos por crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas, não demonstrou a mesma eficiência diante do caso do desaparecimento de presos. Somado a isso, a denúncia formalizada à Comissão de Direitos Humanos da OAB local e o fato de terem se reunido com parlamentares da Comissão da Assembleia Legislativa de Roraima4 4 Em CPI realizada por esta mesma assembleia para apuração do massacre prisional ocorrido na PAMC no início de 2017, no entanto, não há menção a estes desaparecidos em seu relatório final. Ainda, Neves (2020) percebeu que os deputados, no decorrer da comissão, direcionaram a causa da superlotação em Monte Cristo para o déficit de vagas, buscando-se a solução na construção de mais unidades prisionais, ignorando que a criação de mais presídios não resolve a mazela da superlotação. não foram suficientes para que obtivessem resposta, visto que o inquérito se encontra até hoje inconclusivo. Apesar de realizada oitiva com os agentes da PAMC, até os dias de hoje não há imputação a nenhum dos responsáveis e consequentemente nenhum foi levado a julgamento.

Às vezes acordo imaginando que vou receber uma ligação dele e não recebo nada, nenhuma resposta. Enquanto isso eu sofro.

Deus vai me dar uma resposta um dia para acabar com esse meu sofrimento. Durante esse tempo todo não mudou nada, nenhum deles deu notícias e até agora nada foi resolvido.5 5 G1 RR. Sumiço de 7 presos da penitenciária de RR completa um ano e investigação ainda não foi concluída. Disponível em <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/sumico-de-7-presos-da-penitenciaria-de-rr-completa-um-ano-e-investigacao-ainda-nao-foi-concluida.ghtml>. Acesso em 12 novembro 2021.

O estigma que carregam enquanto pessoas inseridas no sistema carcerário também determina o grau de importância que as autoridades dão a esse tipo de investigação. São vidas que, segundo Vianna (2019VIANNA, Adriana. Política da morte e seus fantasmas. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 140, março, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/politicas-da-morte-e-seus-fantasmas/>.
https://diplomatique.org.br/politicas-da...
), são consideradas de menor valor, passíveis de luto parcial e esporádico, capturadas por categorias como “traficante”, “suspeito” e “envolvido”, que são termos que fazem parte do processo de apagamento dessas vidas e mortes. A facilidade de aceitação dos portais da mídia à narrativa de que são meros evadidos (publicando a versão do governo como certa e trazendo às matérias os delitos de que são acusados), o comportamento passivo de órgãos que devem incentivar a investigação, a falta de interesse de se identificar culpados, tudo isso está inserido em uma lógica perversa de que, na dinâmica de desaparecimentos e gestão de mortes, esses são corpos não merecem ser buscados.

Acessando documentos de Estado

Para além da negativa de investigação do caso por parte dos agentes estatais, Araújo (2016ARAÚJO, Fábio. “Não tem corpo, não tem crime”: notas socioantropológicas sobre o ato de fazer desaparecer corpos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, pp. 37-64, jul/dez 2016., p. 43) destaca mais um obstáculo para empreender o enfrentamento dos casos de desaparecimento forçado de pessoas: a negativa para disponibilização de informações para pesquisadores, dificultando, assim, um entendimento ampliado e mais preciso do que se está sendo estudado, bem como a possibilidade de construção de políticas públicas.

Durante o processo desta pesquisa, além da disponibilização do inquérito policial sobre os desaparecidos correr sob sigilo, encontramos, no momento de coleta dos processos judiciais e de informações a eles concernentes, alguns obstáculos. O acesso aos processos eletrônicos no sistema do Tribunal de Justiça de Roraima não se deu sem algumas dificuldades. Em um primeiro acesso ao Projudi6 6 Sistema virtual de acompanhamento e consulta a processos físicos e eletrônicos, em primeira e segunda instâncias, que estão sob a competência do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (TJRR). , na primeira busca aos processos criminais desses homens, nos deparamos com três requisitos para se chegar aos autos: nome completo, obrigatoriamente, e o número de CPF ou a vara em que foi ajuizada. Ou seja, ao passo que o nosso intuito era acessar o máximo de processos possíveis, impõe-se o trabalho de ter que buscar incansavelmente por todas as varas do estado, já que nem todas as pessoas tinham CPF averbado ao sistema (não se sabe se porque não tinham registrado - o que é parte de uma vida indocumentada destas pessoas - ou se por negligência de quem era responsável pela inserção dessas informações no Projudi).

Não só isso, mas também depois de já se ter chegado a esses documentos algumas barreiras foram aparecendo no caminho: além de processos sob a categoria de “segredo de justiça”, estavam ausentes do sistema muitos documentos essenciais à compreensão dos processos, desde elementos de inquérito até manifestações das partes. Além disso, algumas prisões, sejam elas preventivas ou de execução da pena, não chegaram a ser registradas na plataforma do Projudi, na aba existente para esse fim.

Para agravar as limitações e o segredo imposto pelo Estado, o processo de um desses sete homens não foi encontrado em nenhuma das varas do estado, como se não tivesse sido processado e tampouco estivesse preso no dia em que desapareceu, o que amplia os casos de desaparecimento de registros de pessoas presas, já apontado por Prando (2021PRANDO, Camila Cardoso de Mello. A gestão de documentos no desaparecimento dos presos: a prática burocrática como violência. Canoas: Revista Eletrônica Direito e Sociedade (REDES), Vol. 9, n. 3, out. 2021.). Por fim, outro acontecimento que nos chamou bastante atenção foi a ocasião em que, ao buscar um dos processos no sistema, este aparecia como disponível, e decorridas algumas semanas, no entanto, este foi classificado como “segredo de justiça” sem qualquer explicação visível e sem que obtivesse quaisquer dos requisitos previstos em lei para que sua categoria fosse alterada.

Para Eva Muzzopappa e Carla Villalta (2011MUZZOPAPPA, Eva. VILLALTA, Carla. Los documentos como campo. Reflexiones teórico-metodológicas sobre um enfoque etnográfico de archivos y documentos estatales. Revista Colombiana de Antropología, v. 47, n. 1, pp. 13-42. Bogotá, 2011.), se por um lado o não acesso a alguns dos documentos que se procura encontrar se mostra um obstáculo para a pesquisa, por outro constitui um indício para compreender os sentidos com que foram dotados alguns destes processos da esfera criminal. Os segredos, vistos da perspectiva daquele que vai em busca de documentos para constituição de sua pesquisa, ratificam a ideia de que o Estado é uma entidade especial realmente poderosa, e que um aspecto de seu poder consiste justamente na sua capacidade de evitar o seu próprio estudo. Assim, os bloqueios aos acessos aos documentos nos permitem indagar como são geradas as assimetrias entre quem produz e quem tem acesso a essas informações classificadas (Muzzopappa; Villalta, 2011).

Conhecendo os processos criminais

Ao longo do nosso processo de pesquisa, tivemos suporte na dissertação de mestrado da defensora pública Isabella Miranda, que aborda a atuação do Poder Judiciário e suas práticas penal-eficientistas no caso dos 15 mortos no massacre do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, que se deu em 2013, no Maranhão. Na construção de sua pesquisa, a autora trouxe a campo os processos criminais que envolveram a condenação desses sujeitos para entender o que os levou a estarem em Pedrinhas no dia em que morreram. E apesar de diferenciarem os métodos de pesquisa7 7 Enquanto aqui recorremos à Análise de Conteúdo em nossa abordagem, a autora se utiliza da Análise de Discurso Crítica (ADC). , tem-se que as formas de coleta do corpus empírico, assim como os resultados encontrados, convergem entre si. No decorrer deste artigo, isto se tornará visível.

Contornados os obstáculos, e levando-os em conta como práticas de Estado, chegamos aos processos criminais de seis dos homens desaparecidos8 8 Como dito anteriormente, apesar de serem sete os desaparecidos, tem-se que em um desses casos inexiste no Projudi qualquer registro processual em seu nome, fazendo com que o nosso corpus empírico seja composto pelos autos de processos de apenas seis deles. , que aqui levam nomes fictícios. A constituição do corpus empírico se dá, de tal forma, por:

a. Tomé, réu nos processos nº 00833607-66.2016.8.23.0010, nº 0010.14.002522-1, e nº 0010.14.002344-0: ao todo, duas denúncias, duas decisões interlocutórias de conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva, resposta à acusação, duas alegações finais por do Ministério Público, uma alegação final da Defesa, duas sentenças, uma apelação por do Ministério Público, contrarrazões de apelação em um universo de três processos judiciais em que figura como réu;

Tomé Silva foi condenado em 2014, acusado da prática de tráfico de drogas. Segundo consta de portais midiáticos locais, ele estava foragido da PAMC, onde cumpria regime semiaberto, e estava sendo investigado pela suposta participação em quadrilha que comanda o tráfico de drogas de dentro dos presídios em Roraima quando foi descoberto residindo no interior do estado do Maranhão.

Descartando outros processos que chegaram a ser iniciados mas não chegaram a um decreto condenatório, todos estes envolvendo condutas criminalizadas pela Lei de Entorpecentes, foi condenado novamente pelos delitos de tráfico de drogas e posse de arma de uso permitido. Na ocasião, policiais que o monitoravam adentraram sua residência e lá apreenderam seis quilos de cocaína, uma balança de precisão, um revólver calibre 38 e uma bereta calibre 22, tudo isso somado a um valor em dinheiro que foi denominado como “resultante da contabilidade do tráfico”.

Enquanto cumpria pena, figurou novamente como réu em processo judicial criminal, desta vez pela suposta prática do crime de organização criminosa, no qual foi acusado de integrar o PCC junto a outros dois dos homens desaparecidos em 24 de abril de 2017. Seu envolvimento no caso se deu pelo fato de ter seu apelido, “Grilo”, envolvido em anotações encontradas em cadernos encontrados junto aos relatórios e cópias do estatuto e do registro de batismo de membros do PCC, sem que sua conduta fosse identificada de forma detalhada dentro da movimentação processual. Mesmo assim, constituiu-se motivo suficiente para que fosse novamente condenado, desta vez por auxílio na prática de crimes de cunho patrimonial e associação com o fim de praticar outros de traficância de entorpecentes.

b. Pedro, réu no processo nº 0030.15.000538-7: ao todo, documentos do inquérito policial, duas denúncias, uma decisão interlocutória de revogação de prisão, uma peça de alegações finais por parte do Ministério Público, uma peça de alegações finais por parte da Defesa, e uma sentença, dentro de um universo de dois processos judiciais em que figura como réu;

Pedro Rodrigues foi, junto a João Santos, preso sob a acusação de ter assassinado um agente penitenciário. Eles teriam invadido uma festa na casa da vítima, e lá lhe desferido um tiro na cabeça antes de fugirem.

Somado a alguns inquéritos abertos e um processo em andamento, Pedro possuía uma condenação transitada em julgado, sendo todos estes por delitos contra a propriedade. A partir da natureza de condenações anteriores, além da forma com que a prisão de ambos se deu, deduz-se que Pedro e João estavam presos preventivamente.

c. João, réu no processo nº 010.13.006060-0 e na apelação criminal nº 0817358-06.2017.8.23.0010: ao todo, documentos do inquérito policial, uma denúncia, uma decisão interlocutória de conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva, alegações finais do Ministério Público, sentença, e um acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Roraima;

Além do caso acima citado, João Santos possuía condenação pela suposta prática de tráfico de drogas na forma de associação para o tráfico.

Segundo consta do processo, João e um companheiro foram presos em flagrante armazenando drogas e outros objetos que indicavam a comercialização das substâncias entorpecentes. O trânsito em julgado do processo em questão somente aconteceu em agosto de 2018, quando a Câmara Criminal do TJRR negou provimento à apelação defensiva que pleiteava absolvição pelo delito de associação para o tráfico e manteve a dosimetria penal da forma com que estava.

d. Mateus: ao todo, documentos do inquérito policial, denúncia e decisão interlocutória de conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva;

Mateus Pereira estava preso na modalidade preventiva por um processo aberto pela suposta prática de roubo majorado culminado com o crime de organização criminosa, tráfico de drogas e porte de arma e uso permitido. Apesar de possuir outro inquérito aberto um ano antes por posse de entorpecentes e porte de arma de uso não permitido, este não havia se convertido em processo até o momento.

e. Tiago, réu no processo nº 0010.14.002344-0: ao todo, uma denúncia, uma decisão interlocutória de designação de audiência por meio de videoconferência, e sentença;

Tiago Oliveira era, assim como Tadeu Souza, corréu no mesmo processo acima mencionado em que Tomé foi condenado por organização criminosa. Este primeiro, além do processo citado, possuía outras três condenações definitivas anteriores, das quais duas não foram encontradas pela internet, e outra que se encontra no sistema sob segredo de justiça.

f. Tadeu, réu no processo nº 0010.14.002344-0: o processo continha denúncia, uma decisão interlocutória de designação de audiência por meio de videoconferência, e sentença;

Somado ao caso já citado, Tadeu Souza era primário e de bons antecedentes.

g. Simão.

Apesar de constar nos quadros da PAMC até o dia em que desapareceu, Simão Almeida parece, no entanto, inexistir nos dados do Projudi, ao passo que, pesquisado seu nome em todas as varas criminais de todo o estado de Roraima, este não apareceu uma sequer vez.

Ao reunirmos os documentos, organizamos os destaques de narrativas que surgiam de modo repetidos. Esta primeira organização se deu em função dos gêneros processuais de cada documento e não dos processos por acusados.

À medida em que trabalhamos com os destaques de trechos dos documentos, encontramos pontos de saturação em padrões narrativos que impactavam tanto a própria construção narrativa como os desdobramentos das dinâmicas processuais. E a partir da organização de planilhas para cada categoria processual, inserindo nelas as informações coletadas da análise de conteúdo cada uma das peças, tornou-se mais fácil identificar características em comum entre elas, mesmo que não tivessem sido proferidas pelo mesmo julgador ou acusador. Dos padrões narrativos constituímos duas categorias analíticas, comuns tanto aos documentos produzidos pelo Ministério Público quanto pelos documentos produzidos pelo Poder Judiciário: a) o apagamento da defesa; b) a construção da reputação das vidas indignas.

Ao adentrar os documentos em análise, o principal desafio está na tentativa de enxergar o processo para além da forma com que se aprende no cotidiano do funcionalismo público, dos estágios, e das faculdades de direito. Para se ir além do que está disposto nas sentenças, denúncias, alegações finais, faz-se necessário impor um exercício de questionamento ao que está sendo ali colocado: agir como quem está tendo contato com aquele tipo de documento pela primeira vez, para conseguir compreender dinâmicas que geralmente passam despercebidas por quem lida com o arquivo todos os dias.

E o passo mais importante para se lograr êxito nessa atividade de estranhamento é compreender que o processo traz a verdade que aqueles que detêm o poder de escrevê-lo querem definir por verdade. Todas as histórias contadas, que se originam de um entrelaço entre a ação de autoridades policiais, Ministério Público e magistrados, são organizadas de modo a se alcançar mais facilmente o resultado desejável. Como já colocava Arlette Farge (1989) é preciso ordenar pacientemente as situações trazidas pelo arquivo, assim como demarcar as descontinuidades e distâncias, já que ele, além de manter infinitas relações com o real, é também ordenação das figuras da realidade.

A seguir, traremos tais documentos com o fim de compreender como as reputações sociais das pessoas presas são construídas ao longo das narrativas do Poder Judiciário e do Ministério Público, e como os mecanismos de apagamento da defesa legitimam condenações. E ainda, de que modo estes atores, ao constituírem e assim "ordenarem a realidade” (Farge, 1989), promovem a legitimação dos desaparecimentos e a negativa da busca pelos corpos.

Construção da versão única: unicidade entre Ministério Público e Poder Judiciário e o apagamento da defesa

Observamos, na análise dos documentos, que há duas construções em curso: a) a construção discursiva de um ato de condenação, que se inicia na produção do inquérito policial e chega à sentença condenatória. A estratégia aqui observada para a produção deste ato de condenação se dá pela via do alinhamento narrativo do Ministério Público e do Poder Judiciário, de um lado, e o apagamento das versões da defesa, por outro; e b) a construção de reputações sociais produtoras de “vidas indignas”, semelhante ao que vimos descrito por Ferreira (2011FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.) na sua análise de casos de desaparecimento civil no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) do Rio de Janeiro. Nesta estratégia, os magistrados e promotores desqualificam os réus de modo a justificar a exclusão do convívio social, e negação do acesso a direitos e garantias básicas.

Na primeira construção, observamos que em todas as sentenças condenatórias há o apagamento dos argumentos e estratégias defensivas. Não conhecemos a outra versão contrária ao veredicto pois quem escreve a decisão deliberadamente a omite, fazendo com que quem leia enxergue como óbvia a condenação. Nos autos que condenaram Pedro, por exemplo, ao abrirmos a peça de alegações finais da Defensoria Pública constatamos um depoimento da vítima afirmando que o réu não possuía relações com aquele que confessou ter cometido o furto, algo que pela simples leitura da pela sentença não descobriríamos.

Da mesma forma, em sentença de 229 páginas que condenou Tomé, Tiago e Tadeu às penas do delito de organização criminosa, a juíza sentenciante mencionou a Defesa apenas uma vez, para fazer menção a um pedido de inépcia da denúncia por parte da Defensoria Pública, que foi prontamente negado. Cabe destacar que o processo possuía mais de trinta réus, com mais de uma dezena de constituições advocatícias diferentes, mas a magistrada não considerou pertinente colocar nenhuma das alegações defensivas referentes ao mérito na peça, mesmo que ela tenha despendido espaço considerável para expor as alegações do Ministério Público. Em outra sentença referente somente a Tomé, depois de passar todo o tópico de motivação relatando o que foi dito pelas testemunhas de acusação o juiz abre um pequeno parágrafo para referir-se ao interrogatório judicial do acusado. Indica rapidamente que o réu, apesar de ter confirmado a materialidade do delito, se esquiva de sua autoria, mas não esclarece quem lê sobre a integralidade do que consta em seu depoimento, ou o que foi alegado pela Defensoria na audiência de instrução e julgamento de forma oral.

Para Miranda (2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018.), ao passo que contraditório e ampla defesa são violados de forma naturalizada, o que se percebe é um verdadeiro apagamento discursivo do polo passivo em processos criminais, mostrando que nem sempre as condenações são baseadas no acervo probatório:

Esses mecanismos de supressão de vozes de determinados locutores são caracterizados pela análise de discurso crítica como ‘exclusão’ e estão ligados às maneiras de ‘representação de atores sociais’, ou seja, ao modo como as visões de mundo de quem enuncia estão presentes na forma como enunciam discursos em relação a outros atores sociais. (Miranda, 2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018., p. 261)

Evidência que caminha nesse sentido é a supervalorização que se dá a elementos derivados do inquérito policial, como se a sua existência como prova não estivesse afetada pela parcialidade de quem o constrói e por não se dar em sede de contraditório. Miranda (2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018., p. 238) coloca que é impossível que pela simples leitura desse instrumento se saiba efetivamente o que aconteceu na delegacia ou na colheita de indícios na realização da investigação, mas promotores e juízes tomam como verdade o que lá consta para todo o processo. Desde a sua validação a partir da cadeia discursiva observada (onde a flexão dos verbos e a seleção de palavras indica certeza absoluta ao que está sendo colocado ali), até a sua utilização probatória para embasar a condenação, tudo indica o status conferido a ele de detentor da verdade sobre os fatos, ignorando a limitação constante na legislação processual penal que visa evitar esse tipo de ocorrido a fim de preservar as garantias do réu.

Nunca se questiona a respeito da forma com que foi redigido, se respeitou as individualidades do acusado, se o depoimento deste foi feito sob chantagem ou tortura, mas somente valida-se de forma automática tudo o que está lá. Iniciam a sentença, inclusive, com a expressão “consta dos autos que”, onde os autos, neste caso, não é o processo como um todo, mas o próprio inquérito. O que se narra depois disso é o que foi coletado na investigação policial, e não em juízo, mas que aqui é tratado como se tivesse sido.

Nessa esteira, é comum que durante o inquérito observemos situações em que há violação a direitos dos acusados (que em tese serviriam para invalidar qualquer prova) que aqui são naturalizados ou corroborados pelo magistrado. Em duas ocasiões, no caso de João e no de Tomé, ambos onde havia a imputação pelo delito de tráfico de drogas, constatamos que a realização da prisão em flagrante se deu após os entorpecentes terem sido descobertos em cenário de invasão ao domicílio dos réus, já que o caso demandava mandado de busca e apreensão para adentramento em suas residências e este inexistia. Nessas hipóteses, o juiz em nada pronunciou-se a respeito e acolheu as provas daí derivadas, mostrando que, assim como no trabalho de Miranda (2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018.), para convencer quem lê de que um crime é praticado, o magistrado sufoca os direitos dos acusados a partir da normalização de condutas notoriamente ilegais, descrevendo-as como se se estivessem dentro da legalidade.

A autora coloca que em locais onde predominam ocupações, “a casa está longe de ser um ‘asilo inviolável’ nos moldes da Constituição” (Miranda, 2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018., p. 223), de forma que a casa e a intimidade de parte da população são constantemente devassadas pelo Estado. Mesmo que não haja aqui referência a “ocupação”, tais residências se assemelham ao tipo de propriedade que pode ser violada: localizadas em bairros periféricos e ocupadas por pessoas pobres e racializadas. E, assim, o que se constitui como invasão é tratado nos autos como mero “adentramento”.

Da mesma forma, quando a juíza deste mesmo processo afirma que “restou demonstrado, pois, de maneira indubitável”, que existia vínculo associativo estável criminoso entre esses três e os demais corréus, ela coloca como se não houvesse em lugar algum nos autos teses em sentido contrário (o que é uma inverdade). Como se a versão apresentada pelo Ministério Público não tivesse sido em nenhum momento questionada. Assim, a narrativa de que essas pessoas se reuniram para cometer crimes é definida como verdade absoluta, já que aquela que está na posição de dizer o que é “verdade” está dando total certeza ao que está sendo relatado.

O próprio ato de referir-se ao réu por meio de sua alcunha de criminoso se mostra uma forma de constituição da “verdade”, já que estigmatiza sobre ele a figura do delinquente. Deixa-se de fazer menção ao acusado na peça processual por seu nome civil, e passa-se a chamá-lo de “Grilo”, “Pé de Chumbo”, “Peitão”, para estar sempre relembrando quem lê de que aquele homem se trata de um criminoso, e dessa forma é conhecido. Na condenação de Tomé, Tiago e Tadeu, ao lado do nome completo dos oitenta e oito réus mencionados, encontra-se, entre parênteses, ao lado de todos eles, seus apelidos criminosos. E também no decorrer da peça, na descrição da suposta dinâmica criminosa, o apelido sempre vem citado ao lado do nome formal, estando por vezes citado sozinho.

Dizer também que “dúvida não há quanto à responsabilidade do réu no que diz respeito ao ato ilícito que lhe é imputado” é eliminar qualquer contestação a respeito da versão acusatória existente nos autos que condenaram Tomé pelo suposto cometimento do delito de tráfico de drogas. Igualmente, no caso de João registra-se que as provas colacionadas aos autos “não deixam dúvida da efetiva prática, por parte dos réus, dos crimes descritos na denúncia”. E, na sentença que condenou Pedro, o sentenciante coloca que a materialidade dos crimes em que este estava incurso “é inconteste”, assim como “não há controvérsia” quanto à sua autoria, mesmo que os corréus no mesmo processo tenham alegado não ter ele qualquer relação com o crime ocorrido.

A supervalorização do inquérito policial, anteriormente citado, também é prova disso. É comum validar-se o testemunho desses agentes por se encontrar em total harmonia ao que consta no inquérito policial (que, como já levantado, não passa pelo crivo dos vícios processuais, e já é validado de forma automática), que por sua vez construído pela mesma corporação, indicando que “a intertextualidade inaugura o processo e se encadeia como pressuposição” (Miranda, 2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018., p. 247). A imparcialidade do processo é mais uma vez colocada em xeque, já que o juiz usa como parâmetro para decidir se o que foi colocado por eles é verídico algo que é produzido por esses mesmos funcionários, conseguindo fazer com que isso passe despercebido por quem lê. Se estão em sintonia (que é o comum se estamos analisando dois meios de prova produzidos pelo mesmo ator), interpreta-se que é verdadeiro.

Em outro momento, no processo de Tomé, Tiago e Tadeu, identificamos interceptação telefônica que, apesar de precedida de ordem judicial, não cumpria o requisito previsto em lei que demanda que seja utilizada somente como medida última. Aqui, o deferimento da medida foi acompanhado de justificativas genéricas como “a complexidade da atividade criminosa organizada gera a necessidade de utilização de métodos especiais de investigação”, e “é o preço a se pagar caso se pretenda efetividade da Justiça criminal em relação a esse tipo de crime”.

Por último, o contato com tais documentos nos diz bastante sobre como o comportamento daquele que sentencia se reflete na de quem acusa no processo penal. Muito por conta da base de ensino da maioria das faculdades de direito no Brasil, que trabalham no sentido de alienar e despolitizar culturalmente, o que se vê nos cargos de magistratura é uma “estratégia de distanciamento das questões sensíveis que afetam o paradigma de sociabilidade moderno” (Leal, 2014LEAL, Jackson Silva. A funcional crise do ensino jurídico de matriz liberal: do escolasticismo ao eficientismo - o doutrinamento da Criminologia. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 6, n. 1, jun. 2014.), de forma que isso se reflete na existência de um sistema penal inquisitório mascarado em âmbito criminal, já que as atuações de juiz e promotor muito se confundem nessa dinâmica. Observamos que a seleção de narrativas, a escolha de palavras, termos e expressões, as teses defendidas, são as mesmas quando se compara à peça redigida pelo juízo e àquela redigida pelo Ministério Público, convergindo ambas para a condenação.

Construção de reputações: vidas “indignas”

Em sua pesquisa realizada no Setor de Descoberta de Paradeiros da antiga Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, Letícia Ferreira (2011FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.) analisou a gestão dos atores da Delegacia Especializada sobre os casos de desaparecimento civil de pessoas. Apesar de estarmos lidando aqui com outra modalidade de desaparecimento9 9 Desaparecimento forçado, nos termos do Decreto nº. 8.767/16, consiste na “privação de liberdade perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com sua autorização, sendo indispensável para sua configuração a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”, enquanto o desaparecimento civil se configura quando a pessoa se ausenta do convívio social regular sem que haja a interferência de outrem. , e de serem diversas e distintas as causas que podem levar tanto a um quanto a outro, algumas questões e mazelas trazidas por ela refletem em nossa abordagem.

A autora concluiu que, em parte, a gestão do desaparecimento é compreendida como uma atividade de pouca importância dentro da hierarquia das ocorrências policiais. E, somado a este fenômeno, identificou no trabalho policial uma inferioridade na forma com que se vê a favela e seus moradores, acabando por solidificar um artefato a que ela denomina de “construção de reputações”.

A inferioridade do desaparecimento, da favela e de seus moradores anunciam um segundo artefato do trabalho policial em torno de casos de desaparecimento, que destaco a seguir: a construção de reputações. No cenário de desconfiança em que os casos são registrados, “só de olhar” policiais levantam parcos conjuntos de hipóteses sobre o que pode ter passado a certos desaparecidos. Como a situação acima narrada deixa claro, casos de homens jovens registrados como tendo ocorrido em favelas são frequentemente encarados a partir de um leque de hipóteses ainda mais restrito que o característico da rotina burocrática percorrida por desaparecimentos. Se, como vimos no capítulo anterior, de modo geral policiais trabalham com as hipóteses de morte, prisão e internação, diante de muitos casos esses mesmos agentes afirmam ter certeza do que se passou: os jovens estariam envolvidos com uso ou tráfico de drogas e teriam sido mortos em consequência disso. Já diante de casos protagonizados por mulheres jovens e meninas, muitas vezes policiais expressam suspeitas de que as desaparecidas estariam se prostituindo ou teriam sumido com seus namorados. (Ferreira, 2011FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011., pp. 148-149)

No caso aqui tratado, essa construção das reputações é atravessada tanto pela racialização e pela pobreza quanto pelo lugar da prisão. Fábio Mallart (2019MALLART, Fábio. Morrer antes da morte. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 144, junho, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/morrer-antes-da-morte/>.
https://diplomatique.org.br/morrer-antes...
) estuda a circulação da população pobre, negra e periférica entre espaços da cidade e instituições como o cárcere e o manicômio. Na pesquisa, o autor aponta para a estreita correlação entre as políticas de extermínio e as de encarceramento, de modo que tal relação pode ser compreendida a partir do processo de construção de reputações que, em correlação com outros fatores, produz condições de possibilidade para a gestão de morte das populações periféricas.

Compilando estudos antropológicos sobre as formas com que o poder estatal se exerce em locais caracterizados hoje como “novas nações”, Estados “fracassados” ou “patriais”, Veena Das e Deborah Poole (2004DAS, Veena. POOLE, Deborah. Anthropology in the Margins of the State. State and Its Margins: Comparative Etnographies. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.) procuram superar o pensamento de que aqueles lugares situados nas margens da sociedade, assim como os corpos neles situados, estão excluídos das práticas e espaços que a lei construiu como parte do que se entende por Estado, e que o uso da força somente seria considerado legítimo se estivesse prescritos nos ritos legais. Elas se ancoram na tese de Fitzpatrick (2001FITZPATRICK, Peter. Bare Sovereignty: Homo Sacer and the Insistence of Law. Theory and Event. In: NORRIS, Andrew (Ed.). Politics, Metaphysics, and Death: Essays on Giorgio Agamben’s Homo Sacer. Duke University Press: 2001.) de que o Estado define certos corpos como “matáveis”, por meio da utilização de práticas que, embasadas pela lei, se utilizam de meios de violência e autoridade. Segundo as autoras, esses corpos são oriundos de populações às quais novas formas de regulamentação podem ser exercidas (Das; Poole, 2004).

As “margens” trazidas por Das e Poole, cumpre dizer, não são definidas unicamente pelo indicador social dessas populações. A racialização também cumpre papel importante na constituição do que se entende por “vidas matáveis”, à medida que a definição daquele que é alvo das formas de regulamentação desenhadas para esses locais se dá, muitas vezes, pela observação de fenótipos. Ao lermos Ferreira (2011FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011., p. 148), vimos que somada à inferioridade que se dava ao desaparecimento de pessoas moradoras de favelas (que eram automaticamente associadas ao uso ou ao tráfico de entorpecentes), havia uma diferença de tratamento entre os casos de desaparecimentos a partir do “olhar” das autoridades policiais, que a partir da foto que era trazida pela família da pessoa desaparecida já levantavam variadas hipóteses ao que poderia ter-lhe acontecido.

É possível dizer que a produção de reputações sociais negativas pode levar à construção de vidas indignas de serem protegidas pelo Estado. O ato de fazer pessoas desaparecerem dentro de uma penitenciária, assim como o descaso que se tem com o fato em momento posterior, é o procedimento padrão previsto para esses homens, já que decorre da noção de que: em primeiro lugar, eles são indivíduos a serem abatidos, retirados do seio social. Em segundo, decorrência da afirmação anterior, não são dignos de terem seus corpos encontrados ou seus agressores punidos.

Ao tratar da legitimação da morte enquanto constituição do ordenamento do espaço político em que vivemos, Mbembe (2016MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dez. 2016.) aponta que um dos imaginários de soberania na modernidade está na “percepção da existência do outro como um atentado contra a minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto”, de forma que sua eliminação biofísica é requisito para minhas vida e segurança (Mbembe, 2016, p. 128). Para criação e manutenção dessa percepção do outro como alguém cuja existência coloca a minha vida em risco, solidifica-se o discurso social dominante da repressão penal nos âmbitos legislativo, acadêmico, administrativo, e, principalmente, judiciário, tudo isso explorado através de todos os tipos de mídia e meios de comunicação, unindo táticas de consolidação do medo e de insegurança quanto à preservação de bens da vida comuns a todos. O sistema de justiça criminal, em especial por meio da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público (além da polícia) cumpre função essencial nesse cenário.

Ao observarmos tanto Poder Judiciário quanto Ministério na produção das reputações sociais de “vidas indignas”, constatamos que ambos os atores sustentaram narrativas maniqueístas, em que “bem” e “mal” estão em disputa, a partir da seleção de palavras e pontos de vista. O “bem”, consolidado na figura daqueles que realizam a prisão e posteriormente figuram como testemunhas de acusação, e o “mal” naquele que ocupa o banco dos réus. E cabe dizer que essa narrativa se compreende não como mero detalhe nos autos, mas sim como elemento constitutivo da razão de existir do processo, presente desde a denúncia até o seu trânsito em julgado.

Para que isso aconteça, é necessário, por óbvio, delinear muito bem os personagens daquele embate que é colocado no papel, como forma de sustentar a narrativa posta. No caso do “bem”, entre outras coisas, normaliza-se condutas que vão de encontro com a lei e procura-se, na medida do possível, omitir detalhes da conduta desses personagens durante todo o inquérito. Com isso, não sabemos se foi marcada por abusos físicos e/ou psicológicos àqueles acusados.

Atribui-se ao que por eles é dito como verdade por serem eles “agentes do Estado contratados para exercerem a função de repressão ao crime e garantir a segurança pública, como no processo de Tomé, ignorando qualquer parcialidade que possa decorrer do fato de terem realizado a prisão dessas pessoas e depositando a aura de agente público incorruptível e inabalável que serve à função de proteger a ordem e a segurança pública. Associa-se essa veracidade, na maioria das vezes, ao fato de seus testemunhos estarem em harmonia com o que consta no inquérito, como se a pessoa que ali fala não fosse a mesma que colaborou para sua construção e como se essa harmonia não tivesse resquícios de parcialidade.

No caso do “mal”, e é principalmente aqui onde se operam as construções de vidas indignas, vemos o inverso, ao passo que se modela aqui a figura do “bandido” a ser contido e retirado do meio social. Um exemplo é a própria referência a esses indivíduos no decorrer processual a partir de suas alcunhas criminosas. A menção dessas alcunhas, que em princípio serve para auxiliar o juiz no momento de análise de provas escritas, mensagens, gravações, é vista na peça como forma de reduzir a referência aos acusados à figura do criminoso, sem identidade para além dos crimes que lhe estão sendo imputados.

Igualmente, a seleção precisa das expressões incluídas no texto das decisões está ancorada em táticas de convencimento por parte daquele que condena. Tais táticas, que consistem em colocar medidas mais severas como imprescindíveis para lidar com os casos expostos, são reflexo do poder (este derivado dos mecanismos de desigualdade que separam os personagens que constituem cada polo no processo) que este ator judicial tem sobre os corpos condenados. E, na condição de poder, este demonstra uma necessidade imperativa de produzir o que é “verdade”.

Para Miranda (2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018.), relações de poder se estabelecem justamente por meio de regras jurídicas e por essa produção de discursos de verdade. A partir do momento em que quem dá a sentença utiliza da sintaxe para conferir absoluta certeza ao que está sendo relatado, tal como alguém que verdadeiramente presenciou os fatos descritos, ele está nada mais do que produzindo tais discursos como vias de legitimar a sua aptidão para determinar o destino dessas pessoas acusadas.

Quando temos uma sentença como a que condenou João, em que o juiz dedica apenas duas pequenas frases para se referir à defesa do réu, seguidas dos dizeres de que não possuem “nenhuma credibilidade”, em meio a páginas de material fático e probatório advogando em sentido contrário, o que se quer é suprimir qualquer possibilidade de que aquele sujeito seja visto como outra coisa que não um delinquente, que efetivamente cometeu tudo o que lhe está sendo acusado.

Outra evidência de construção da reputação social do réu pode ser exemplificada no processo em que Tomé foi condenado por tráfico, onde o promotor do caso enfatizou em sua narrativa que a esposa do acusado (que, vale dizer, não estava envolvida de nenhuma forma nas condutas narradas) tinha, à época, 17 anos de idade. O que não se caracteriza como ilícito de qualquer natureza e também não interferia na prática criminosa em si, mas servia para atribuir uma conduta moralmente suspeita ao réu.

Ainda, a linguagem utilizada por juiz e promotor tende a atribuir maior gravidade ao que se busca relatar. Para justificar um recrudescimento da pena a partir das circunstâncias judiciais concernentes à primeira fase, ou a aplicação de um regime mais gravoso, fala-se muito de uma “personalidade deturpada”, em uma “pessoa de péssima índole”, de uma “personalidade voltada para o crime”, ou que “não demonstra sentidos com o próximo”, já que “procurava o lucro fácil” e “em detrimento da desgraça alheia”. Expressões presentes inclusive quando se trata de réu primário, sem maus antecedentes. Em alguns casos, os réus receberam penas em regime fechado sob a alegação de que “o tráfico de substância entorpecente tem o condão de tornar pessoas inocentes em dependentes”, onde “consumidor passa a ser novo traficante”, e acaba “gerando outros crimes, quase que em cascata”, ou que a organização criminosa “aterroriza a sociedade e desestabiliza órgãos de segurança”, como se tais elementos já não embasassem a própria tipificação. Isso indica, mais do que nunca, que “os processos estão cheios de páginas e escritos que parecem não falar da realidade do caso concreto que se está julgando” (Miranda, 2018MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018., p. 212).

Esses desaparecimentos, considerando não apenas o episódio em si como o que veio também depois dele (a condução do inquérito, o embate de narrativas, a construção da CPI prisional na Assembleia Legislativa), são fruto dessa produção discursiva que regula a distribuição da morte. Tais pessoas estarão submetidas a uma cela apertada, alimentação escassa, adoecimento e exposição à morte, porque tudo isso é compatível com vidas que “indignas”. Se vierem a ser vítimas de tortura e desaparecimento forçado nesses espaços, à inferioridade de suas humanidades está associada a impunidade daqueles que essas ações praticaram.

Considerações finais

Zaffaroni (2007ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007., p. 115) acredita que a ciência empírica que alimenta a doutrina jurídico-penal, assim como o discurso derivado de seu saber jurídico, preocupa-se em legitimar amplamente uma “discriminação operativa”, cuja maneira de agir se baseia em uma individualização de certas pessoas como “inimigos”, em função da necessidade criada por uma emergência invocada. Essa individualização a que o autor se refere, pelo que observamos na leitura processual, é atravessada pela construção de reputações sociais que tornam estas vidas indignas, já que são elas que, nas palavras de seus sentenciantes, são os responsáveis pela desordem, por “aterrorizar a sociedade e desestabilizar os órgãos de segurança”, e até mesmo de “gerar outros crimes, quase que em cascata”10 10 O primeiro trecho, aqui, retirado da sentença do processo de nº 0010.14.002344-0, que condenou Tomé, Tiago e Tadeu, e o segundo da sentença do processo de nº 010.13.006060-0, que condenou João. .

A supressão de vozes, no ato de omitir testemunhos e argumentos da Defesa e na ultra valorização das versões narrativas daqueles que efetivaram as prisões, a normalização das violências realizadas ao longo do processo - seja pela via do apagamento documental seja pela via do bloqueio da disputa narrativa -, são modos de construir reputações que justificam a existência de um cenário emergencial que exige a exclusão social dessas pessoas para que haja um bom funcionamento dos órgãos de segurança. O que, por sua vez, produz reflexos muito depois do momento em que eles chegam para cumprir pena em Monte Cristo.

O comportamento das autoridades investigativas, que se fecham para o suplício constante de mães, esposas e filhas na luta para reencontrar seus familiares, é um desses reflexos. Ele demonstra a forma como agentes estatais lidam com a existência e o desaparecimento dos presos. Os testemunhos de seus colegas encarcerados são, assim como nos exercícios de supressão de vozes identificados nas sentenças condenatórias, apagados, até porque as próprias testemunhas, nesse caso, se encaixam no estereótipo de vidas “indignas”.

Como Araújo (2019ARAÚJO, Fábio. Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 142, abril, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/fazer-sumir-o-desaparecimento-como-tecnologia-de-poder/>.
https://diplomatique.org.br/fazer-sumir-...
) pontua, a relação entre corpo e crueldade, em que o excesso de poder se exerce e se realiza por meio de uma política punitiva do corpo, é umas das dimensões das formas de operacionalização da violência. As tecnologias de “terror colonial”, como o autor descreve, perduram e se reatualizam historicamente nos desejos das elites brasileiras e na combinação entre o capitalismo neoliberal e as técnicas e práticas coloniais. E assim, “a existência de uma série de variáveis e marcadores sociais tais como raça, sexualidade, local de moradia, status social, e algum tipo de proximidade com práticas ilícitas e ilegais, tem representado uma fatalidade para certos corpos e populações em determinadas condições de vulnerabilidade” (Araújo, 2019).

Desde as práticas de violência prisional até a construção das reputações nos documentos do Poder Judiciário, o poder punitivo produz as condições de possibilidades para o desaparecimento de pessoas presas.

Referências bibliográficas

  • ARAÚJO, Fábio. “Não tem corpo, não tem crime”: notas socioantropológicas sobre o ato de fazer desaparecer corpos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, pp. 37-64, jul/dez 2016.
  • ARAÚJO, Fábio. Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 142, abril, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/fazer-sumir-o-desaparecimento-como-tecnologia-de-poder/>.
    » https://diplomatique.org.br/fazer-sumir-o-desaparecimento-como-tecnologia-de-poder
  • BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1977.
  • DAS, Veena. POOLE, Deborah. Anthropology in the Margins of the State. State and Its Margins: Comparative Etnographies. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.
  • FERREIRA, Letícia. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como uma ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
  • FITZPATRICK, Peter. Bare Sovereignty: Homo Sacer and the Insistence of Law. Theory and Event. In: NORRIS, Andrew (Ed.). Politics, Metaphysics, and Death: Essays on Giorgio Agamben’s Homo Sacer. Duke University Press: 2001.
  • LEAL, Jackson Silva. A funcional crise do ensino jurídico de matriz liberal: do escolasticismo ao eficientismo - o doutrinamento da Criminologia. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 6, n. 1, jun. 2014.
  • MALLART, Fábio. Morrer antes da morte. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 144, junho, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/morrer-antes-da-morte/>.
    » https://diplomatique.org.br/morrer-antes-da-morte
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dez. 2016.
  • MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório de Monitoramento de Recomendações: Massacres Prisionais dos Estados do Amazonas, do Rio Grande do Norte e de Roraima. Brasília, 2018.
  • MIRANDA, Isabella. Racismo Institucional e Racionalidade do Poder Punitivo nos Discursos e Práticas Criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2018.
  • MUZZOPAPPA, Eva. VILLALTA, Carla. Los documentos como campo. Reflexiones teórico-metodológicas sobre um enfoque etnográfico de archivos y documentos estatales. Revista Colombiana de Antropología, v. 47, n. 1, pp. 13-42. Bogotá, 2011.
  • PRANDO, Camila Cardoso de Mello. A gestão de documentos no desaparecimento dos presos: a prática burocrática como violência. Canoas: Revista Eletrônica Direito e Sociedade (REDES), Vol. 9, n. 3, out. 2021.
  • RORAIMA. Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (Câmara Criminal). Apelação criminal nº. 0817358-06.2017.8.23.0010.
  • RORAIMA. 2ª Vara Criminal da Comarca de Boa Vista. Ação penal nº. 0010.13.006060-0.
  • RORAIMA. Vara do Tráfico de Drogas, “Lavagem” de Capitais, Crime Organizado e Habeas-Corpus da Comarca de Boa Vista. Ação penal nº. 0010.14.002344-0.
  • RORAIMA. Vara do Tráfico de Drogas, “Lavagem” de Capitais, Crime Organizado e Habeas-Corpus da Comarca de Boa Vista. Ação penal nº. 0010.14.002522-1.
  • RORAIMA. Vara do Tráfico de Drogas, “Lavagem” de Capitais, Crime Organizado e Habeas-Corpus da Comarca de Boa Vista. Ação penal nº. 0833607-66.2016.8.23.0010.
  • RORAIMA. Vara Única da Comarca de Mucajaí. Ação penal nº. 0030.15.000538-7.
  • VIANNA, Adriana. Política da morte e seus fantasmas. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Edição 140, março, 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/politicas-da-morte-e-seus-fantasmas/>.
    » https://diplomatique.org.br/politicas-da-morte-e-seus-fantasmas
  • ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
  • 1
    CUNHA, Tamille. Familiares insistem no desaparecimento de sete presos e cobram informações. Em: <https://folhabv.com.br/noticia/POLICIA/Ocorrencias/Familiares-insistem-no-desaparecimento-de-sete-presos-e-cobram-informacoes/28259>. Acesso em 01 dezembro 2021.
  • 2
    G1 RR. Mulheres de 7 presos protestam em frente à casa da governadora de RR: 'não houve fuga'. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mulheres-de-7-presos-protestam-em-frente-casa-da-governadora-de-rr-nao-houve-fuga.ghtml>. Acesso em 12 novembro 2021.
  • 3
    Governo divulga fotos dos 7 presos que fugiram de presídio em RR por buraco na parede. Em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/governo-divulga-fotos-dos-7-presos-que-fugiram-de-presidio-em-rr-por-buraco-na-parede.ghtml>.
  • 4
    Em CPI realizada por esta mesma assembleia para apuração do massacre prisional ocorrido na PAMC no início de 2017, no entanto, não há menção a estes desaparecidos em seu relatório final. Ainda, Neves (2020) percebeu que os deputados, no decorrer da comissão, direcionaram a causa da superlotação em Monte Cristo para o déficit de vagas, buscando-se a solução na construção de mais unidades prisionais, ignorando que a criação de mais presídios não resolve a mazela da superlotação.
  • 5
    G1 RR. Sumiço de 7 presos da penitenciária de RR completa um ano e investigação ainda não foi concluída. Disponível em <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/sumico-de-7-presos-da-penitenciaria-de-rr-completa-um-ano-e-investigacao-ainda-nao-foi-concluida.ghtml>. Acesso em 12 novembro 2021.
  • 6
    Sistema virtual de acompanhamento e consulta a processos físicos e eletrônicos, em primeira e segunda instâncias, que estão sob a competência do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (TJRR).
  • 7
    Enquanto aqui recorremos à Análise de Conteúdo em nossa abordagem, a autora se utiliza da Análise de Discurso Crítica (ADC).
  • 8
    Como dito anteriormente, apesar de serem sete os desaparecidos, tem-se que em um desses casos inexiste no Projudi qualquer registro processual em seu nome, fazendo com que o nosso corpus empírico seja composto pelos autos de processos de apenas seis deles.
  • 9
    Desaparecimento forçado, nos termos do Decreto nº. 8.767/16, consiste na “privação de liberdade perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com sua autorização, sendo indispensável para sua configuração a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”, enquanto o desaparecimento civil se configura quando a pessoa se ausenta do convívio social regular sem que haja a interferência de outrem.
  • 10
    O primeiro trecho, aqui, retirado da sentença do processo de nº 0010.14.002344-0, que condenou Tomé, Tiago e Tadeu, e o segundo da sentença do processo de nº 010.13.006060-0, que condenou João.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2022
  • Aceito
    15 Jan 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com