Acessibilidade / Reportar erro

“Se a gente tivesse direito, não teria necessidade de estar fazendo manifestação pra nada”: a luta das marisqueiras de Farol de São Thomé, RJ - Brasil contra estereótipos de gênero em políticas públicas

Resumo

O trabalho desenvolvido pelas mulheres presentes na cadeia produtiva da pesca artesanal é historicamente invisível, seja no prestígio interno das comunidades, na gestão pesqueira ou na identificação legal das trabalhadoras. A invisibilidade feminina incorre, inclusive, na restrição a direitos de seguridade social, como o denominado Defeso. Ao longo dos anos de 2018 a 2022, a pesquisa investigou a luta das marisqueiras de Farol de São Thomé, comunidade situada no Norte Fluminense, RJ - Brasil, contra estereótipos de gênero presentes na política pública intitulada Projeto Bolsa Cidadão (PBC), instituída no município de Campos dos Goytacazes/RJ de 2000 a 2021. A partir de técnicas metodológicas qualitativas, como a observação direta em trabalho de campo, entrevistas semiestruturadas e organização de grupo focal, bem como de uma epistemologia jurídico-antropológica crítica, o texto busca refletir sobre as dimensões da redistribuição, do reconhecimento e da participação feminina no âmbito da pesca artesanal e conclui que bloqueios discriminatórios restringem ou mesmo excluem as trabalhadoras do acesso a programas sociais. Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental (PEA) Pescarte, que é uma medida de mitigação exigida pelo Licenciamento Ambiental Federal, conduzido pelo IBAMA.

Palavras-chave:
Pesca artesanal; Invisibilidade feminina; Justiça social

Abstract

The work carried out by women in the artisanal fishing production chain is historically invisible, whether in the internal prestige of communities, in fishing management, or in the legal identification of workers. Women's invisibility even incurs the restriction of social security rights, such as the so-called Defeso. Over the years 2018 to 2022, the research investigated the struggle of shellfish gatherers from Farol de São Thomé, a community located in Norte Fluminense, RJ - Brazil, against gender stereotypes present in the public policy entitled Projeto Bolsa Cidadão (PBC), instituted in the municipality of Campos dos Goytacazes/RJ from 2000 to 2021. Based on qualitative methodological techniques, such as direct observation in fieldwork, semi-structured interviews, and organization of a focus group, as well as a critical legal-anthropological epistemology, the text seeks to reflect on the dimensions of redistribution, recognition, and female participation in artisanal fishing and concludes that discriminatory blocks restrict or even exclude female workers from accessing social programs. This article results from research funded by the Pescarte Environmental Education Project (PEA), a mitigation measure required by the Federal Environmental Licensing conducted by IBAMA.

Keywords:
Artisanal fishing; Female invisibility; Social justice

1. Apresentação

A presença feminina na cadeia produtiva da pesca artesanal é contumaz, porém historicamente invisível (MENDES, 2019MENDES, Beatriz Lourenço. Redes invisíveis da pesca artesanal em Rio Grande: obstáculos e barreiras impostos às mulheres pescadoras na busca dos direitos sociais previdenciários. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Rio Grande, FURG, 2019.). O trabalho das mulheres é considerado complementar e secundário (HELLEBRANDT, 2019HELLEBRANDT, Luceni. O que torna as mulheres invisíveis na pesca? Reflexões a partir da Colônia Z3 - Pelotas/RS. In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.), seja no prestígio interno das comunidades, nos espaços de gestão e representação pesqueira ou, externamente, pelas vias do Estado, quanto à identificação profissional e acesso às políticas públicas dirigidas ao setor (HUGUENIN; MARTINEZ, 2021HUGUENIN, Fernanda.; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres da pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Revista Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 97, 2021.). Em termos de justiça social, a invisibilidade das trabalhadoras da pesca artesanal engendra problemas de redistribuição, de reconhecimento e de participação (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. Cadernos de campo, São Paulo, 2006; 2007), que adensam o binômio discriminatório classe-gênero.

Nesta perspectiva, as marisqueiras de Farol de São Thomé, praia localizada no Norte Fluminense, na região da Bacia de Campos (BC), uma das principais produtoras de petróleo e gás do país, lutam há anos pela inserção em programas sociais de seguro desemprego, denominados Defeso. Tratam-se de importantes políticas de redistribuição de renda que, em paralelo, promovem algum reconhecimento profissional. No entanto, em sentido contrário, a participação política das marisqueiras revela a própria invisibilidade destas trabalhadoras, forjada em sua precariedade material, em seu desprestígio social e em suas reivindicações pelo espaço público. São mulheres cujas vidas têm sido marcadas pela humilhação (GONÇALVES FILHO, 1998GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicologia USP, São Paulo, v. 9, n. 2, 1998.) em episódios dramáticos de disputa com o Estado pela própria dignidade.

A situação das marisqueiras de Farol remete às reflexões abordadas em estudos seminais sobre a divisão sexual do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo na cadeia produtiva da pesca (WOORTMANN, 1992WOORTMANN, E. F. Da Complementaridade à Dependência: Espaço, tempo e gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais. ANPOCS, n.º 18, Ano 7, 1992.; ALENCAR, 1993ALENCAR, Edna. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO; LEITÃO; DE MELLO (orgs.). Povo das águas - realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: MPEG, 1993.), cujo “jogo das invisibilidades” (MOTTA-MAUÉS, 1999MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): repensando gênero na literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnográfica, v. 3, n. 2, 1999, pp. 377-399.) termina por separar, hierarquizar e desvalorizar o trabalho feminino. Em outros termos, não é que o trabalho das mulheres na pesca venha se precarizando como resultado da globalização (HIRATA, 2002HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu, Campinas, n.17-18, 2002.). A situação feminina no setor pesqueiro sempre encontrou barreiras internas e externas que obstaculizam sua legalização formal. De certo, tal problema não está em descompasso com os constrangimentos e as expectativas de ordem material e ideológica que a produção do gênero na divisão sexual do trabalho provoca em todas as mulheres.

Diferenças que definem o feminino e o masculino de modo dual, embora codificadas por compreensões biológicas do sexo, decorrem da atribuição distinta de habilidades, tarefas e alternativas na construção de padrões desejáveis (e aceitáveis) para mulheres e homens, modulando privilégios masculinos. Deste pressuposto, a divisão sexual do trabalho é ativada pelas instituições sociais, bem como pelas políticas públicas (ou mesmo pela ausência de certas políticas) como obstáculos para a igualdade de renda, o prestígio social e a atuação na esfera pública. Se tais bloqueios afetam todas as mulheres, à despeito das distinções de classe, raça, idade e demais variáveis que se possam elencar como elementos de interseccionalidade, encontra-se na cadeia produtiva da pesca artesanal um campo de reflexão bastante profícuo.

Assim, o texto objetiva refletir sobre a invisibilidade feminina a partir do Projeto Bolsa Cidadão (PBC), política pública de transferência de renda do município de Campos dos Goytacazes (RJ), Brasil, que alcançou as marisqueiras entre os anos de 2000 e 2021, sempre nos períodos anuais de proibição da pesca do camarão no estado do Rio de Janeiro. O trabalho problematiza as dimensões da justiça social - redistribuição, reconhecimento e participação - a partir dos relatos das trabalhadoras sobre sua histórica luta contra estereótipos de gênero instituídos no programa. Ademais, o texto busca posicionar o caso particular das marisqueiras com as demandas das mulheres presentes na cadeia produtiva da pesca artesanal no Brasil, considerando que o problema da invisibilidade repercute de modo mais amplo.

Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental (PEA) Pescarte, que é uma medida de mitigação exigida pelo Licenciamento Ambiental Federal, conduzido pelo IBAMA. O PEA Pescarte segue parâmetros e condicionantes da Nota Técnica CGPEG/DILC/IBAMA Nº 01/2010, Linha A e do Diagnóstico Participativo do PEA-BC (2012), e tem como objetivo a construção e articulação de uma rede social regional formada por pescadores e pescadoras artesanais, bem como seus familiares, promovendo processos formativos pautados na educação ambiental crítica, com foco no fortalecimento e na valorização da organização comunitária.

2. Apontamentos teórico-metodológicos

A pesquisa foi realizada ao longo do período de quase 05 anos e, inicialmente, resulta dos dados obtidos a partir de projeto já concluído1 1 O projeto Mulheres na Pesca: Mapa de Conflitos Socioambientais em Municípios do Norte Fluminense e das Baixadas Litorâneas visou elaborar e disponibilizar uma cartografia dos conflitos socioambientais que vivem no cotidiano as mulheres das comunidades pesqueiras de sete municípios que compõem as mesorregiões das baixadas litorâneas e do norte do Estado do Rio de Janeiro: São Francisco de Itabapoana, Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé, Quissamã, Cabo Frio e Arraial do Cabo. Os resultados alcançados contemplam o labor científico e técnico de levantamento, caracterização descritiva, representação cartográfica georreferenciada e disponibilização eletrônica dos dados e informações dos principais conflitos socioambientais que envolvem a participação das mulheres. Outras informações encontram-se disponíveis no endereço eletrônico https://mulheresnapesca.uenf.br/projeto.php , desenvolvido por equipe multidisciplinar com o objetivo de elaborar uma cartografia de conflitos socioambientais que afetam diretamente as mulheres presentes na pesca artesanal no Norte Fluminense e nas Baixadas Litorâneas. Entre 2018 e 2019, a equipe percorreu um total de 24 comunidades pesqueiras de 07 municípios do estado do Rio de Janeiro e entrevistou 141 trabalhadoras.

Em 2019, foi realizado intenso trabalho de campo diretamente em Farol de São Thomé, com visitas aos locais de trabalho das marisqueiras e às suas residências, quando o registro de 30 entrevistas semiestruturadas abordou, principalmente, os conflitos socioambientais presentes no contexto local, sem deixar de acolher os problemas relativos à infraestrutura da comunidade no contexto mais amplo do município de Campos.

Nestas ocasiões, as entrevistadas relataram o modo como exercem suas atividades profissionais, vivenciam a divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, bem como as relações sociais baseadas em estereótipos de gênero. Também descreveram o modo como estruturam e organizam os saberes e as práticas em torno do beneficiamento dos recursos pesqueiros, assim como enfrentam as dificuldades internas e externas em relação à constituição e à afirmação de seus direitos, sobretudo aqueles relacionados às políticas públicas de Defeso.

A luta pelos recursos dos programas sociais foi destaque em todas as narrativas, que apontaram tensões com agentes públicos em torno dos padrões constituídos para categorizar as marisqueiras como profissionais da pesca. Sem dúvida, para além de problemas como a escassez do pescado ou a exclusão de zonas de pesca em função das atividades petrolíferas na BC2 2 Até o ano de 2016 a Bacia de Campos era a maior produtora de petróleo e gás natural do Brasil, sendo superada pela Bacia de Santos a partir do ano de 2017 (Agencia Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis [ANP], 2017). Neste novo cenário, mudam os valores dos repasses de royalties e participações especiais aos municípios envolvidos, com destaque para Campos dos Goytacazes, afetando drasticamente suas finanças públicas. , o principal conflito vivido pelas trabalhadoras era (e ainda é) o modo como determinados estereótipos de gênero são naturalizados pelo Estado, agravando a invisibilidade das mulheres e denegando seus direitos.

As reflexões aqui apresentadas resultam de uma pesquisa qualitativa, voltada para o estudo de interações cotidianas (ALONSO, 2016ALONSO, Angela. Métodos qualitativos de pesquisa: uma introdução. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. São Paulo: Sesc São Paulo/CEBRAP, 2016.) entre as marisqueiras e o poder público municipal, mediante observação direta e coleta de relatos. O trabalho buscou registrar a perspectiva das mulheres, considerando que “[...] a fala do entrevistado representa uma autodescrição e uma apresentação de si mesmo” (LIMA, 2016LIMA, Márcia. O uso da entrevista na pesquisa empírica. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. Sesc São Paulo/CEBRAP São Paulo, 2016., p. 27). Além do mais, a pesquisa analisou diários oficiais disponíveis no Portal da Transparência de Campos dos Goytacazes, bem como a legislação municipal em torno do tema, sem deixar de observar também os dispositivos federais que regulamentam a pesca artesanal.

Entre os anos de 2020 e 2021, a pesquisa presencial foi suspensa em razão da grave pandemia da Covid 19, de modo que o contato com as marisqueiras ocorreu, em alguns momentos, por meio de ligações telefônicas, tendo em vista os elos constituídos com as entrevistadas. Já em 2022, foi realizado um grupo focal com 04 mulheres no formato remoto e, após o relaxamento das restrições relativas à pandemia impostas pelo poder público, houve um encontro com 01 interlocutora.

Por fim, é fundamental observar que, ainda que tenha havido autorização das entrevistadas para divulgação dos relatos (inclusive com a produção e edição de um pequeno vídeo-documentário3 3 Disponível no endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=ysS7YRumEYw&t=10s em 2019, no contexto de realização de uma reunião das marisqueiras com agentes municipais), foi preservado seu anonimato nas citações diretas de trechos de suas entrevistas presentes no texto, havendo apenas a indicação de suas iniciais.

Já em termos teóricos, a análise perpassa uma epistemologia jurídico-antropológica crítica, tendo por eixo argumentativo a abordagem de gênero. Trata-se, pois, de uma pesquisa comprometida com os valores da justiça social que, a partir das dimensões da redistribuição, do reconhecimento e da participação, busca enfrentar as regulamentações de estereótipos de gênero que ainda edificam, direta ou indiretamente, bloqueios discriminatórios em relação às mulheres.

Os estereótipos de gênero são definidos como uma crença coletivamente compartilhada de algum atributo, característica ou traço físico, psicológico ou moral atribuído extensivamente a determinados grupos pela combinação de um ou mais critérios de corte (KRÜGER, 2004KRÜGER, Helmut. Cognição, estereótipos e preconceitos sociais. LIMA, Marcus; PEREIRA, Marcos (Orgs.). Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas. Salvador: EDUFBA, 2004.). Tratam-se da visão abrangente ou preconceituosa de atributos e características que alguns grupos ou indivíduos possuem ou mesmo que a sociedade espera que possuam. “No campo de gênero, estereotipar é uma ação política de controle sobre os corpos das mulheres” (DINIZ, 2011DINIZ, Debora. Estereótipos de gênero nas cortes internacionais - um desafio à igualdade: entrevista com Rebecca Cook. Revista Estudos Feministas [online]. 2011, v. 19, n. 2 pp. 451-462., p. 452). Nos termos do relatório do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos - EACDH (2013), os estereótipos de gênero combinados com outros estereótipos têm um impacto negativo desproporcional em certos grupos de mulheres e ocasionam a violação de uma vasta gama de direitos, tais como o direito à saúde, à educação, ao trabalho e à liberdade de expressão, incluindo a representação e a participação política.

Quanto à epistemologia jurídico-antropológica crítica, o ponto de partida é a compreensão de que o mundo das leis (do dever ser) anda em descompasso com a realidade fática e que os efeitos inesperados (ou perversos) de determinadas políticas públicas merecem reflexões para que sejam corrigidas. Neste sentido, bloqueios discriminatórios com base em estereótipos constituídos na divisão sexual do trabalho ocorrem tanto internamente (nas relações intersubjetivas), quanto externamente (na relação com o Estado) e dificultam ou mesmo excluem as mulheres do acesso e garantia a determinados direitos fundamentais.

Desde uma perspectiva interna, julgamentos e pressões sociais, restrições concretas no acesso ao tempo livre, à renda e às redes de contato compõem alguns dos obstáculos morais e materiais que discriminam as mulheres (BIROLI, 2016BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados [online]. 2016, v. 59, n. 3 pp. 719-754..). Em contrapartida, há bloqueios institucionais constituídos nas próprias normas legais, tais como na saúde e segurança do trabalho, na proteção à maternidade e nos regimes previdenciários (MARQUES, 2019MARQUES, Marina. A proteção do trabalho da mulher e a perpetuação do estereótipo de gênero: os dispositivos legais que diferenciam homens e mulheres e seu sentido na atualidade. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. São Paulo, USP, 2019.), que perpetuam estereótipos de gênero nos quais o cuidado é visto como feminino enquanto a provisão é projetada como masculina. Além de tudo, no que se refere às trabalhadoras da pesca artesanal, tais bloqueios envolvem classificações normativas que as discriminam diretamente e indiretamente na regulamentação da pesca artesanal.

Desta perspectiva, as mulheres presentes na cadeia produtiva pesqueira enfrentam restrições de acesso ao Programa Seguro Defeso (SD), vinculado à Previdência Social. Trata-se de uma política que surgiu em decorrência da redemocratização do País e das conquistas sociais presentes na Constituição Federal (CF/1988). Define-se pela confluência de políticas sociais e ambientais, já que ampara o(a) profissional que exerce seu trabalho de modo artesanal e que, em determinados períodos do ano, fica impedido(a) de praticá-lo com o objetivo de proteger e preservar espécies marinhas, fluviais e lacustres na fase de reprodução (CAMPOS; CHAVES, 2014CAMPOS, André; CHAVES, José. Seguro Defeso: diagnóstico dos problemas enfrentados pelo programa. Texto para discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2014.). O Defeso estipula o recebimento de um salário mínimo para cada mês em que as atividades pesqueiras ou as de extrativismo forem interrompidas.

Como o texto indicará, as marisqueiras de Farol de São Thomé lutam há anos contra estereótipos de gênero que as discriminam, restringindo ou mesmo excluindo seu acesso em políticas sociais de Defeso. Tais restrições e exclusões aprofundam a invisibilidade de seu trabalho e de sua identidade profissional e, sem dúvida, requerem uma discussão mais profunda sobre questões de redistribuição, reconhecimento e participação que, de certo, não será esgotada nos limites deste artigo, senão como um aceno aos problemas enfrentados não apenas pelas marisqueiras, mas em diferentes contextos e situações, por todas as mulheres presentes na cadeia produtiva da pesca artesanal.

3. As marisqueiras de Farol de São Thomé

Sempre que os barcos chegam do alto mar com o pescado capturado pelos homens nas águas marítimas é sinal de que as mulheres vão ter trabalho em terra na comunidade de Farol de São Thomé.4 4 De acordo com Huguenin (2019), Farol de São Thomé é um bairro dividido pelos distritos da baixada campista de Santo Amaro e de Mussurepe através da Rodovia RJ 216, sendo a única praia do município de Campos dos Goytacazes, com uma extensão de 28 km entre o limite Sul, que faz fronteira com o município de Quissamã, e o limite Norte, fronteiriço ao município de São João da Barra. Na orla, encontra-se o Farol de mesmo nome, concebido pelo engenheiro francês Gustavo Eiffel e inaugurado em 1882, com o objetivo de orientar a navegação. Embarcações do tipo traineira são as mais utilizadas na costa marítima da região para a pesca artesanal que, no ano de 2018, produziu cerca de 996,1 toneladas de pescado. Camarões representam a maior parte da produção feita pelos pescadores locais e são também a principal matéria-prima para o trabalho das mulheres envolvidas na cadeia produtiva da pesca, que realizam o descasque dos estoques capturados, sobretudo das espécies “barba-ruça” e “sete-barbas”, além da limpeza e filetamento de peixes. A Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ) registrou, entre julho e dezembro de 2017, a captura de 694.735,5 kg de pescado em Farol pela atividade de pesca artesanal. A principal categoria descarregada foi o camarão “sete-barbas”, representando 34,6% da produção total do período. Em sequência, o camarão “barba-ruça” e o camarão (camarões de diversas espécies comercializados misturados) foram responsáveis por 24,0% e 13,8%, respectivamente. Em bancadas de madeira, entre equipamentos como caixas, facas, isopores e gelo, elas descascam camarões e evisceram peixes. Um quilo dos recursos pesqueiros beneficiados rende em torno de 2 a 4 reais. Cada marisqueira consegue limpar, em média, cerca de 10 kg a 20kg dos recursos num único dia, o que depende também do tempo, isto é, da organização das outras jornadas diárias das tarefas domésticas.

De certo, são mulheres cujas vidas têm sido marcadas por histórias repletas de semelhanças, sobretudo o trabalho iniciado durante a infância ou na juventude, bem como a baixa escolaridade (LOPES; AMARAL; HUGUENIN; BELO; SOUZA, 2019LOPES, Mariana.; AMARAL, Naiara.; HUGUENIN, Fernanda.; BELO, Diego.; SOUZA, Suellen. DESCAMINHOS DA ESCOLA. Mares: Revista de Geografia e Etnociências, v. 1, n. 1, 6 out. 2019.). Ainda muito jovens, vivenciam a união conjugal e a maternidade. Já na vida adulta, enfrentam constantes problemas de saúde, tais como alergias, micoses, e lesões por esforço repetitivo. A repetição se dá na atividade com os recursos pesqueiros, considerada uma oportunidade de contribuir com as despesas da casa, embora em alguns casos seja a única renda do lar.

A partir das categorias nativas, é importante destacar que o trabalho é desenvolvido, principalmente, nos chamados “fundos de quintal”, que podem ser pensados literalmente como quintais de casas ou, ainda, calçadas e áreas da rua contíguas a estas. Ademais, o “fundo de quintal” tem sempre uma “dona”, que é proprietária ou residente do espaço, responsável por convocar as trabalhadoras, distribuir os recursos pesqueiros, contabilizar a produção e acondicionar o produto limpo.

É fundamental considerar que ambientes pesqueiros extrapolam os locais de captura, tais como águas marítimas, rios, lagos e lagoas, incluindo não só embarcações, portos, entrepostos e mercados, mas também redes sociais de organização do trabalho, como a camaradagem. Assim, o “fundo de quintal” não deve ser projetado apenas como o espaço físico onde as marisqueiras desenvolvem suas atividades, mas diz respeito igualmente à sua gestão, bem como uma rede geracional de sociabilidade constituída por membros da família nuclear e extensa, além de mulheres da vizinhança que compõe a comunidade.

O trabalho de descascar os crustáceos ou eviscerar, limpar e filetar as demais espécies é realizado sempre em conjunto. Além do mais, o prenome ou o apelido da “dona” do “fundo de quintal” identificam o próprio lugar físico e qualifica os laços intersubjetivos constitutivos da organização do trabalho. Portanto, trabalhar em determinado “fundo de quintal” indica, para além da materialidade espacial, vínculos socioafetivos de parentesco, afinidade ou amizade.

Assim, acondicionados em caixas de gelo, a espicha ou o cardume são distribuídos entre as marisqueiras pelo proprietário da mercadoria, que pode ser um atravessador ou, ainda, um representante de frigoríficos5 5 Alguns frigoríficos funcionam sem legalização, isto é, sem registro nos serviços oficiais de inspeção sanitária (SIF/SIE/SIM), o que torna o pescado considerado “clandestino”, pois a manipulação e o beneficiamento são realizados sem fiscalização, em locais inadequados e sem a devida higiene. presentes na região de Farol. Cada trabalhadora é responsável pelo beneficiamento da caixa acolhida, de onde será contabilizado, ao final, o valor total do trabalho a ser recebido. O rendimento é obtido a partir da agregação de valor do produto “sujo” para o produto “limpo”. A renda é extremamente baixa, a jornada pode ser bastante extensa e as condições de execução do trabalho não se enquadram às mínimas exigências de segurança.

Em geral, as marisqueiras ficam diante de bancadas, sentadas em pequenos bancos improvisados ou mesmo em pé. Não há condições ergonômicas. Tanto as trabalhadoras, quanto os produtos ficam expostos às condições climáticas. Há riscos constantes de acidentes como cortes e perfurações do corpo, sobretudo nas mãos e nos braços. Além de tudo, é muito comum que elas tenham infecções fúngicas nas unhas, em razão do contato prolongado com a umidade. Ademais, são as próprias marisqueiras que fornecem todo o material necessário para a execução das atividades, tais como tesouras e facas, além de eventuais luvas, toucas e aventais.

O tempo de duração da jornada é elástico, dependendo sempre da quantidade de pescado e da disponibilidade em relação às demais atividades domésticas. É habitual a presença de crianças no “fundo de quintal”, de modo que trabalho produtivo e reprodutivo imiscuem-se. É frequente também a breve interrupção das atividades para a realização do trabalho doméstico (FOUGEROLLAS-SCHWEBEL, 2009), tais como a preparação de refeições.

É preciso, portanto, posicionar as marisqueiras a partir da divisão sexual do trabalho e das relações sociais de sexo (KERGOAT, 2009KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.), considerando que não apenas há uma separação do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo, como também uma hierarquia valorativa entre atividades consideradas masculinas e femininas.

As ações desenvolvidas no fundo de quintal estão pautadas numa espécie de associativismo e ajuda mútua (principalmente no caso de necessidade de cuidado dos filhos) em que o tempo do trabalho não segue somente o tempo capitalista, mas está contingenciado também pela sazonalidade e alternância oscilante de atividades ligadas às respectivas famílias das marisqueiras e à própria especificidade da pesca artesanal. A dicotomia entre espaço público e privado transcodificada pela ação da divisão sexual do trabalho está na base da classificação bipolar dos espaços sociais de domínio de cada gênero. Assim, socialmente mulheres são responsabilizadas pelo domínio do privado, o que lhes confere o reconhecimento de cuidadoras, e os homens, por agirem no espaço público, são tidos como provedores (CEZAR; THEIS, 2020CEZAR, Lilian. S.; THEIS, Rafaella. Ser ou não ser pescadora artesanal? Trabalho feminino, reconhecimento e representação social entre marisqueiras da Bacia de Campos, RJ. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 63, n. 3, 2020., p. 8)

Neste contexto, o valor social aplicado à separação entre os tipos de trabalho, bem como seu prestígio, imprime invisibilidade ao trabalho das mulheres, de modo que a renda obtida no “fundo de quintal” é muitas vezes considerada importante, mas quase sempre complementar à renda dos maridos e companheiros. A invisibilidade é, portanto, uma espécie de marcador social, uma vez que pressupõe “[...] a indiferença na esfera pública ou privada proveniente do preconceito de natureza diversa que desprovê de status, remuneração adequada ou mesmo garantia legal, profissionais de atividades consideradas secundárias ou subalternas” (HUGUENIN; MARTINEZ, 2021HUGUENIN, Fernanda.; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres da pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Revista Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 97, 2021., p. 651). No caso do trabalho das marisqueiras, a invisibilidade traveste-se nominalmente em simples “ajuda”, expressão extremamente habitual.

Nada obstante, não há de se falar em quaisquer tipos formais de vínculos empregatícios com o “fundo de quintal”, nem em hierarquias funcionais na organização da produção, tais como divisão das tarefas ou dos cargos para sua execução. Trata-se de um trabalho precário, pois é informal, já que desprovido de regulamentação trabalhista; intermitente, pois depende da oferta não contínua dos recursos pesqueiros; e inseguro, à medida que, sendo a atividade desregulamentada e incerta, riscos como acidentes de trabalho ou mesmo a imprevisibilidade de renda são assumidos pelas próprias marisqueiras.

O “fundo de quintal”, portanto, é representativo das concepções acerca da separação e hierarquização do trabalho segundo estereótipos de gênero, nas quais o espaço público é determinado pelo masculino, enquanto o espaço privado engloba o feminino. Tais estereótipos, que podem ser definidos como “[...] o conjunto de crenças acerca dos atributos pessoais adequados a homens e mulheres, sejam estas crenças individuais ou partilhadas” (D'AMORIM, 1997D'AMORIM, Maria Alice. Estereótipos de gênero e atitudes acerca da sexualidade em estudos sobre jovens brasileiros. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 5, n. 3, dez. 1997 ., p. 122), entronizam papéis e padrões não apenas de diferenciação como também de discriminação direta e indireta.

É possível afirmar que o trabalho feminino na pesca é marcado pela precarização tanto quanto pela invisibilidade e que, como será abordado adiante, a naturalização de estereótipos de gênero pelo Estado se reverte em problemas de redistribuição, de reconhecimento e de participação. Aliás, as omissões relativas à percepção de que as mulheres, “[...] de modos distintos, desempenham papéis imprescindíveis para manutenção de suas comunidades” (MARTINS; ALVIM, 2016MARTINS, Mary Lourdes Santana; ALVIM, Ronaldo Gomes. Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.11, n.2, 2016., p. 382) ao atuarem principalmente (e não exclusivamente) como trabalhadoras em etapas anteriores e posteriores à captura, reforçam desigualdades de gênero pelo desprestígio às atividades consideradas menos heroicas que aquelas vividas no mar pelos homens.

Entretanto, a perspectiva que inscreve o trabalho das mulheres presentes na cadeia produtiva da pesca como complementar e auxiliar extrapola os limites da própria percepção nativa e se encontra também presente na literatura acadêmica. Por exemplo, no estudo sobre a pesca marinha artesanal, Ditty (2013DITTY, John Marr. Sustentabilidade justa e a pesca marinha artesanal no município de Campos dos Goytacazes (RJ) frente à implantação de um mega empreendimento portuário e industrial. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem. Campos dos Goytacazes/RJ, 2013., p. 27) afirma, sem qualquer análise crítica, que “[...] não há relatos da presença de mulheres entre os pescadores marinhos do Farol de São Thomé atualmente”, o que reforça a compreensão da pesca limitada à captura, inclusive em contextos acadêmicos de pesquisa e produção intelectual.

Assim, conforme a argumentação de Alencar (1993ALENCAR, Edna. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO; LEITÃO; DE MELLO (orgs.). Povo das águas - realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: MPEG, 1993.), muito da invisibilidade da mulher em atividades de pesca decorre da cegueira epistemológica das pesquisas. Ademais, segundo os relatórios de 2012 e 2018 da Fisheries and Aquaculture Department (FAO), há subnotificação em dados oficiais acerca da presença de mulheres na pesca, o que torna invisíveis cerca de 90% das pessoas que trabalham com as atividades denominadas secundárias, tais como o beneficiamento e o processamento do pescado.

Para além do preconceito interno às comunidades, da cegueira epistemológica das pesquisas e da subnotificação em dados oficiais, a invisibilidade do trabalho feminino é assimilada nas políticas públicas, como destaca a análise de Huguenin e Martinez (2021HUGUENIN, Fernanda.; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres da pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Revista Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 97, 2021.) acerca do acesso das trabalhadoras ao Defeso. O referido estudo argumenta que embora a regulamentação da Lei da Pesca6 6 Instituída pela Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca. tenha apresentado, pela primeira vez, a referência ao gênero a partir das categorias “pescadora” e “trabalhadora de apoio à pesca”,7 7 Definida no já revogado art. 2º, VIII, do Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, como “pessoa física que, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, exerce trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, de reparos em embarcações de pesca de pequeno porte ou atua no processamento do produto da pesca artesanal”. Já na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 6314), trabalhadores de apoio à pesca “preparam equipamentos de pesca, conservam pescado e controlam urnas e câmaras de resfriamento; confeccionam material de pesca; auxiliam tripulação em serviços gerais e carregam e descarregam embarcação; realizam serviços de manutenção de embarcações de pesca em estaleiros”. não deixou de incorrer no problema da discriminação indireta das mulheres. Isto porque o trabalho considerado “apoio”, desenvolvido pela maioria das mulheres presentes na cadeia da pesca, não foi e ainda não é segurado pela política social de Defeso.

Apesar de haver homens envolvidos nas etapas anteriores e posteriores à captura, as atividade de beneficiamento e processamento, bem como as de artesanato e reparos de petrechos são desempenhadas principalmente pelas mulheres. Neste sentido, ao naturalizar a ideia de “ajuda”, desde então denominada “apoio”, tal legislação discrimina indiretamente as próprias trabalhadoras. A discriminação consiste na exclusão de quem exerce o “apoio” do direito à identificação profissional mediante o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP)8 8 Na legislação federal que regulamenta a atividade pesqueira, o RGP é o principal documento vigente de licença para o exercício da pesca. O referido registro é também o documento que identifica a(o) profissional para fins de requerimento dos benefícios previdenciários. O Decreto nº 8.967, de 23 de janeiro de 2017, revogou o art. 2º, VIII, do Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, que considerava o “trabalhador e trabalhadora de apoio à pesca” como categorias de inscrição no RGP. , bem como no seu acesso ao Seguro Defeso.9 9 A regula mentação da Lei do Seguro Defeso (Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003), instituída pelo Decreto nº 8.424, de 31 de março de 2015, excluiu a concessão do benefício “aos trabalhadores de apoio à pesca artesanal” (art. 1º, § 6º).

Em síntese, na sua dimensão fática, a legislação pesqueira fere o prin cípio da igualdade pela discriminação indireta. O estabelecimento da cate goria “apoio à pesca” promove uma espécie de reconhecimento às avessas do trabalho feminino, pois, ao invés da ampliação de direitos, há a supres são do Seguro Defeso para quem atua em etapas da cadeia diferentes da captura. Por outras palavras, a partir de um dispositivo classificatório aparentemente imparcial - o “apoio” -, o Estado naturaliza a “ajuda”, discrimi nando indiretamente as mulheres (HUGUENIN; MARTINEZ, 2021HUGUENIN, Fernanda.; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres da pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Revista Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 97, 2021., p. 654-655).

Neste contexto, as marisqueiras de Farol são exatamente consideradas “trabalhadoras de apoio à pesca” pela União, já que realizam o beneficiamento do pescado e não sua captura. E, conforme a legislação federal, elas não se enquadram nas categorias de inscrição no RGP, bem como não são elegíveis ao recebimento do Defeso. No “jogo das invisibilidades”10 10 Segundo Motta-Maués (1999, p. 382), o jogo das invisibilidades, no caso dos homens, “existe desde dentro, no nível interno da hierarquia entre os gêneros, mas se dá também de fora pra dentro, atingindo as mulheres em consonância, ou numa relação de homologia com a distinção hierárquica interna que sobrepõe os homens às mulheres.” , a identidade profissional da mulher é englobada pela do homem e demais membros da família, inclusive sob o crivo normativo do “regime de economia familiar” no âmbito previdenciário.11 11 Segundo Kravetz e Wurster (2020), no referido regime, cabe à trabalhadora o ônus de provar o tempo trabalhado em circunstâncias sociais de amplo desvalor do trabalho feminino. Na Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, § 1º, “entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.” Pescadores artesanais ou a estes assemelhados são considerados segurados especiais da Previ dência Social. De acordo com a Instrução Normativa INSS/PRES nº 85, de 18 de fevereiro de 2016, são assemelhados ao pescador artesanal aqueles que realizam atividades de apoio à pesca artesanal, exercendo trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca e de reparos em embarcações de pequeno porte ou atuando no processamento do produto da pesca artesanal.

Assim, refletir sobre a situação das marisqueiras ou mesmo, de modo geral, sobre as discriminações que cerceiam os direitos das mulheres presentes na cadeia produtiva da pesca artesanal, implica considerar a redistribuição e o reconhecimento como duas lentes sobrepostas (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. Cadernos de campo, São Paulo, 2006) crivadas por estereótipos de gênero que limitam as opções, as ambições e, sobretudo, os direitos previstos para as profissionais, como será abordado a seguir.

3. O Projeto Bolsa Cidadão ou o “Defeso Municipal”

O Projeto Bolsa Cidadão (PBC), criado pela Lei nº 7.021, em 28 de dezembro de 2000, propunha alcançar “famílias de baixa renda em situação de vulnerabilidade de risco social devido à pobreza em que vivem” (art. 1). Tinha por objetivo “[...] atender os pescadores durante o período de defeso do pescado e moradores das vilas da prefeitura do município” (art. 3) com a entrega de “[...] cestas básicas e bolsas-auxílio no valor de um salário mínimo” (art.4), devendo ser executado pela Secretaria de Promoção Social (art. 2), doravante denominada Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social.

A referida Lei Municipal, cuja redação era manifestamente imprecisa, tinha como públicos-alvo moradores de vilas e pescadores, proposição que evidenciava o não direcionamento específico da política social para os trabalhadores da pesca, não distinguindo também se estes últimos seriam pescadores de águas interiores, continentais ou do mar territorial; cadastrados ou não em colônias de pesca; além do tipo de atividade desenvolvida, tais como captura, beneficiamento ou processamento do pescado. Ademais, não havia qualquer referência ao gênero, enquanto política dirigida às mulheres marisqueiras do município. Do mesmo modo, a Lei não especificava o período de vigência do benefício, sequer determinando as espécies protegidas pela proibição da pesca.

Todavia, na execução do PBC, foram principalmente beneficiários exatamente os profissionais do setor pesqueiro que não se enquadravam nos critérios estipulados pela legislação federal para inclusão no Defeso. Tratava-se de um programa que atendia quem não possuía (e permanece sem possuir) o RGP e, portanto, não recebia (e ainda não recebe) da União o benefício. Portanto, o PBC tornou-se popularmente conhecido como “Defeso Municipal” e tinha como principal público-alvo as marisqueiras do Farol.12 12 O PBC enquadrava-se no período designado para espécies de camarão, que ocorre anualmente nos meses de março, abril e maio. A instrução normativa nº 189, de 23 de setembro de 2008, estabelecida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA), proíbe o “exercício da pesca de arrasto com tração motorizada para a captura de camarão rosa, camarão sete barbas, camarão branco, santana ou vermelho e barba-ruça, anualmente, nas seguintes áreas e períodos: I - na área marinha compreendida entre os paralelos 21º18'04,00"S (divisa dos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro) e 33º40'33,00"S (Foz do Arroio Chuí, estado do Rio Grande do Sul), de 1º de março a 31 de maio”. Publicada no Diário Oficial da União em 24 de setembro de 2008.

No trabalho de campo realizado em 2019, os relatos informaram que, ainda na sua implantação, o PBC foi executado a partir da criação de frentes de trabalho, quando as marisqueiras eram convocadas a limpar ruas, escolas e demais locais públicos, embora a Lei não previsse tal contrapartida. Além do mais, muitos registros narraram episódios constantes de descontinuidade do recebimento do benefício ao longo de seus 21 anos de vigência. Segundo as entrevistadas, as interrupções do pagamento estavam relacionadas, principalmente, a dois fatores, sendo: i) diferentes critérios instituídos para enquadramento como seguradas pela política; e ii) problemas relacionados ao (re)cadastramento das beneficiárias.

Quanto aos critérios, categorias nativas como “novata” e “mulher de pescador” apareceram nas entrevistas como registros da retórica utilizada pelos agentes da prefeitura para negar o benefício às marisqueiras que, respectivamente, eram consideradas principiantes na atividade ou eram esposas e companheiras de pescadores. No caso do termo “novata”, o tempo de trabalho era acionado para pôr em dúvida a identidade profissional da trabalhadora. Já o termo “mulher de pescador” tornava o trabalho feminino englobado pelo trabalho dos homens.

Todos os depoimentos colhidos manifestaram a discordância com os critérios estabelecidos ao longo do tempo, como nos excertos a seguir:

[...] Todo ano que eu vou receber é novata! Agora, esse ano eu já podia entrar pra receber, [mas] eles engataram que o marido que recebe o defeso, a mulher não pode. [...] O defeso federal não tem nada a ver com a prefeitura. A assistente social botou um critério lá, dizendo que a mulher de pescador que o marido recebe federal não pode receber. [...] Então, todo ano eles inventam um critério, pra quê? Pra só ir acabando - R.A.M.

[...] eu acho que as trabalhadoras da pesca merecia ser mais reconhecida, que não há esse reconhecimento no Farol, entendeu? Então, eu acho que elas deveria ter mais credibilidade. Eu acho que elas deveriam ser mais valorizadas e esse valor não tem, sabendo que todos os frigoríficos e fundo de quintal aqui depende delas. [...]. No caso, eles acrescentaram na lei, que existe desde 2000, que pescador federal é federal, que mulher de pescador municipal é municipal. Não tem nada a ver uma coisa com a outra! - J.N.E.S.

[...] mulher de pescador não pode receber e isso não existe, [pois] cada um é por si. Você tem que trabalhar por você, cada um tem que fazer o seu e se meu marido recebe é o direito dele. Eu tenho o meu direito! [...] Não pode receber mais de 04 anos, novata não pode receber todo ano. A gente tem que vir pra cá [prefeitura] ou então botar fogo, fazer manifestação, [porque] só assim a gente tem a resposta de alguma coisa - K.F.C.

De acordo com Dias Neto (2019DIAS NETO, José Colaço. “Pesca é coisa de mulher, sim senhor”: algumas reflexões sobre o papel da mulher na atividade pesqueira no Brasil e em Portugal. In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.), a ambiguidade de papéis exercidos e o modo como são denominadas - “pescadora, pescadeira, marisqueira, caranguejeira ou mulher de pescador” - deixam as mulheres mais vulneráveis ao reconhecimento formal da profissão, bem como as possibilidades de aquisição de direitos.

Neste contexto, a política social do município pode ser problematizada, ao longo do período de sua vigência, em diversos aspectos, como no modo de execução via frentes de trabalho. Entretanto, alguns critérios que foram estabelecidos entre os anos de 2018 e 2019 apontam gravemente para a regulamentação de estereótipos de gênero e, consequentemente, para a discriminação das mulheres.

Na vigência de 2018, foram estipulados como critérios para recebimento do “Defeso de água salgada”: ser residente do município há pelo menos 02 anos; ter mais de 18 anos; não possuir o RGP; ter a pesca ou atividade de apoio à pesca como ocupação principal nos 12 meses anteriores ao pagamento do Defeso; não possuir outras fontes de renda, assim como não estar em gozo de qualquer benefício previdenciário ou assistencial de natureza continuada. Além do mais, os critérios previam o não recebimento em caso de desrespeito ao período de proibição da pesca e estabeleciam prazo máximo de 04 anos para inclusão no programa.13 13 Campos dos Goytacazes. Diário Oficial - Edição 032, de 05 de janeiro de 2018.

Já na vigência de 2019, os critérios supracitados foram mantidos, porém houve o acréscimo de novas exigências, a saber: passar por uma entrevista e avaliação técnica; e apresentar relatório atualizado no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS). Ademais, a prefeitura passou a considerar inaptos ao benefício “aquele que tiver em sua composição familiar algum membro beneficiário do Defeso Federal, como também o Defeso Municipal”, passando a atender apenas “um pescador artesanal ou trabalhador(a) de apoio à pesca” da mesma família.14 14 Campos dos Goytacazes. Diário Oficial - Edição 338, de 29 de abril de 2019.

À luz de uma perspectiva crítica, é preciso problematizar os seguintes pontos: Como era possível estabelecer o prazo máximo de 04 anos para inclusão no PBC se as atividades desenvolvidas pelas marisqueiras são contínuas? Além do mais, se as mulheres exercem de modo remunerado seu próprio trabalho, ainda que a renda seja baixa e incerta, como era possível vincular o ganho por elas obtido aos ganhos de outros componentes da família eventualmente beneficiários do Defeso da União ou mesmo do PBC?

As respostas possíveis para as perguntas lançadas pressupõem que estereótipos de gênero podem ser instrumentalizados pelo poder público para discriminar, (in)direta e negativamente as trabalhadoras. Assim, ao estabelecer o limite temporal de 04 anos para inclusão no PBC, a invisibilidade feminina era reforçada a partir da instabilidade do reconhecimento profissional e, portanto, do acesso apenas provisório ao programa. Além do mais, ao restringir o benefício a um único ente da família, ou limitá-lo, a política municipal operacionalizava a invisibilidade das mulheres, naturalizando a categorização do trabalho feminino como secundário e complementar.

Em outras palavras, a justificativa temporal presente na categoria “novata” era usada para desestabilizar e desvincular a identidade profissional de parte das trabalhadoras beneficiárias do PBC. Além do mais, a essencialização do homem como provedor da família era formalmente instituída, tomando os benefícios recebidos pelos maridos e companheiros como constitutivos da “mulher de pescador”.

Em adição aos problemas relativos aos critérios, as marisqueiras se queixaram do processo de execução do PBC através dos (re)cadastramentos anuais. Seus relatos apontaram que agentes da prefeitura distribuíam “senhas” diretamente nos “fundos de quintais” para que as trabalhadoras pudessem prestar informações aos profissionais da Assistência Social do município. De acordo com as entrevistadas, as perguntas dos assistentes geralmente se referiam ao tipo de trabalho realizado, ao local onde era exercido, ao tempo de profissão, bem como às informações de natureza socioeconômica.

Pelo exposto nas narrativas, as “senhas” cumpriam menos a função de ordenar o atendimento que a de produzir tensões internas e externas ao grupo. Por um lado, as marisqueiras reclamaram que a distribuição do instrumento não era contínua e, dado o caráter intermitente do trabalho, ocorria dos agentes municipais comparecerem aos “fundos de quintais” em dias em que não havia produção. Por outro, alguns relatos mencionaram o uso das “senhas” para favorecimentos, quando a invisibilidade passava a ser manipulada também internamente, de modo que a categorização profissional das marisqueiras podia ser relativizada dentro do próprio grupo e utilizada em denúncias de fraudes.15 15 Embora não seja o tema proposto neste trabalho, é preciso ressaltar que as políticas sociais do município passaram a ser investigadas pela Polícia Federal em 2016, pelo aumento substancial do número de beneficiários. As investigações da “Operação Chequinho” apuraram o uso dos benefícios para um esquema de compra de votos que envolveu vereadores.

Neste sentido, os depoimentos identificaram a inadequação dos (re)cadastramentos em termos operacionais, de modo que as imperfeições na implementação do “Defeso Municipal” comprometeram a coerência da ação.16 16 As inconsistências do PBC podem ser verificadas na descontinuidade numérica das/os beneficiárias/os. Em 2017, das 446 pessoas aptas ao recebimento, 52 eram homens e 394 eram mulheres. Já em 2018 houve uma queda para 133 aptos, sendo 99 homens e apenas 34 mulheres. E em 2019, do total de 257 aptos, 61 eram homens e 196 eram mulheres [https://transparencia.campos.rj.gov.br/ - acesso 23 abr 2020]. Assim, além da crítica aos critérios de seleção das beneficiárias, as marisqueiras de Farol apontaram que a deficiência do processo para o alcance do objetivo definido na política ocorria também em termos de execução, conforme o relato:

A gente recebe o defeso pela prefeitura. Mas tem a muvuca! Faz a visita, aí tem aqueles que eles escolhem as pessoas pra dar a senha pra poder receber o defeso. Tem a máfia na prefeitura. Aí, se ela achar trabalhando... às vezes quem não acha ele vai e coloca, dá a senha, faz o cadastro e aquelas pessoas que não trabalha acabam recebendo e aquelas pessoas que trabalham acabam de fora. Ano passado aconteceu isso comigo! Você só faz o cadastro se tiver a senha. Mas tem a máfia, né! Quem dá a senha é o rapaz da prefeitura de Campos. Aí depois que dá a senha ele que é o responsável pelas marisqueiras. Aí depois que todo mundo recebe, que vão ver que teve enrolo da prefeitura - R.S.A.

É possível afirmar que os (re)cadastramentos eram operados a partir de uma rede que tornava os proprietários ou gestores dos recursos pesqueiros e dos ambientes de pesca os principais intermediários entre os agentes da prefeitura e as marisqueiras. Deste modo, a administração pública não estabelecia o atendimento direto com o público-alvo da política social. Frigoríficos, “fundos de quintais” e peixarias funcionavam como portas de entrada para acessar o PBC, cujas “senhas” distribuídas eram os passaportes para sua obtenção.

Assim, ser ou não ser integrante de uma determinada família que tradicionalmente exerce a atividade, bem como participar das atividades de um determinado “fundo de quintal” constituíam (e ainda constituem) exemplos de referência ao escrutínio moral que compõe importantes (e excludentes) classificações: “novata” ou “mulher de pescador”. Neste sentido, a invisibilidade das marisqueiras era atualizada na estrutura operacional administrativa constituída, uma vez que, para acessar o PBC, elas deveriam estar inseridas numa rede, o que envolve alianças e tensões, além de conflitos endógenos acerca da própria constituição da identidade profissional.

O “jogo das invisibilidades” passava a ser jogado, então, pela própria administração pública que, ao operacionalizar as regras do PBC de modo inconsistente e descontínuo, acabava precarizando o seu próprio alcance, a exemplo dos trechos em destaque:

Os moradores todo do Farol praticamente são tudo marisqueira. As mulheres foram muito prejudicadas. [...] Então, é precário. A fase da pesca aqui é precária. Aí passa pra prefeitura, vem o Defeso: qual seu nome? Trabalha no fundo de quintal de quem? De fulano! Ah, mas eu tive lá tal dia e você não estava lá. Não tinha ninguém trabalhando. Mas tem dia que eu trabalho, tem dia que não! Tem dia que tem o pescado e tem dia que não tem! - I.R.B.R.

Porque a gente tem pra trabalhar é o peixe e o camarão na área da pesca. Além de ser criada pela área da pesca, minha mãe criou a gente e ensinou a gente a profissão, porque eu tenho isso como uma profissão. Eu tenho orgulho de ser limpadeira de peixe e camarão. Pra mim não é vergonha. Porque eles falaram que sou novata e eu criei os meus filhos aqui. As minhas irmãs criou os dela também. A gente trabalha junto, né! Fiz meu cadastro, encaminharam pra lá, me ligaram pra fazer uma entrevista. Chega lá, não tem direito não, você é novata. Eu sempre sobrevivi disso aqui. [...] Trata o ser humano muito mal, principalmente se souber que é marisqueira. Acha que marisqueira é pior. Não é gente! Não é ser humano. Entendeu? Nós fomos maltratadas pela assistente social. Chamou a gente de bicho [...] A maioria do pessoal daqui do Farol foram tudo maltratado. Eu fui muito humilhada. Eu não quero passar isso mais não. Estou velha pra ser humilhada. E infelizmente, eles botam as pessoas despreparadas pra trabalhar. Já desisti de virar marisqueira - D. S. R.

A desistência de “virar marisqueira”, conforme o último relato supracitado, denuncia o esgarçamento da própria dignidade. Segundo Domingues e Rosa (2014DOMINGUES, Eliane; ROSA, Miriam Debieux. Violência, humilhação social e a luta por reconhecimento: a experiência do MST. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 14, n. 1, 2014.), o humilhado vive uma situação traumática de rebaixamento que gera sofrimento e angústia pela negação da própria condição de sujeito. Além do mais, de acordo com Gonçalves Filho (1998GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicologia USP, São Paulo, v. 9, n. 2, 1998.), a humilhação social desumaniza porque é um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político. O humilhado encontra uma situação de impedimento de sua humanidade, o que lhe desperta uma modalidade de angústia.

No caso das marisqueiras, a humilhação pela falta de reconhecimento profissional e de redistribuição dos recursos por meio da política social era e ainda é duplamente vivida: no âmbito federal, pela exclusão legal das “trabalhadoras de apoio à pesca” do acesso ao RGP e ao Defeso; e no âmbito municipal, pelos problemas apontados referentes aos critérios e aos (re)cadastramentos em relação ao PBC, doravante agravado pela revogação da Lei nº 7.021 com a publicação da Lei nº 9.109, de 18 de novembro de 2021,17 17 A nova Lei regulamenta a concessão de benefícios eventuais, suplementares e provisórios, prestados aos cidadãos e às famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública (art. 2º). Estabelece que os benefícios podem ser concedidos em forma de pecúnia, bens ou serviços (art. 2, § 1º), com vistas ao atendimento das necessidades humanas básicas das famílias em situação de vulnerabilidade social (art. 2º, § 2º), tendo por critério a renda per capita ser igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo (art. 5º), sendo obrigatório o parecer técnico do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS ou Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS (art. 5º, § 3º). A Lei Municipal nº 9.109/21, lançada com o slogan Programa Mãe Coruja (PMC), por distribuir enxovais para bebês cujas mães estejam em situação de vulnerabilidade, não faz qualquer menção às marisqueiras e, sob a justificativa de compilar e regulamentar a concessão de benefícios eventuais da política pública de assistência social do município, extinguiu o PBC. Assim, para acessar um dos benefícios disponíveis no novo programa, as marisqueiras ou qualquer outro munícipe deve estar em situação de vulnerabilidade social “decorrentes ou agravadas por contingências que causam danos, perdas e riscos, desprotegendo e fragilizando a manutenção e o convívio entre as pessoas” (art. 2º, §1º). que extinguiu o “Defeso Municipal.”

4. A luta das marisqueiras por redistribuição, reconhecimento e participação

O caso das marisqueiras de Farol de São Thomé é emblemático para fins de problematização da presença de mulheres na cadeia produtiva da pesca artesanal. De acordo com Brito (2019BRITO, Carmem Imaculada de. Uma análise sócio-histórica da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP). In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.) em sua análise da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), as trabalhadoras da pesca são, em sua maioria, negras ou pardas, pobres, residentes de áreas rurais, possuem baixa escolaridade, estão sujeitas à insegurança alimentar, à violência de gênero e ao alcoolismo. Embora desempenhem papéis fundamentais no processo produtivo e no cuidado com suas famílias, não recebem proteção social do Estado e nem o reconhecimento de seus direitos como trabalhadoras do setor.

Assim, as marisqueiras de Farol têm assumido o protagonismo na luta pela permanência do PBC, bem como na sua crítica. Anualmente, promovem protestos com atos que vão desde o fechamento da RJ 216, principal via de acesso à comunidade, até a ocupação da sede da prefeitura. Nas manifestações, queimam pneus, produzem cartazes, gritam palavras de ordem, acionam a imprensa local, pedem reuniões com autoridades, enfim, performatizam o direito de reivindicar e confirmam que “[...] os níveis de empoderamento assumidos pelas mulheres da pesca podem ser contabilizados em muitas frentes” (MANESCHY; SIQUEIRA; ÁlVARES, 2012MANESCHY, Maria; SIQUEIRA, Deis; ALVARES, Maria. Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, 2012., p. 731), como na defesa de territórios, na representatividade em organizações de classe e de gestão pesqueira e também na luta por direitos trabalhistas.

Do ângulo mais teórico-abstrato dos dilemas referentes à redistribuição e ao reconhecimento, a luta das marisqueiras pode ser pensada como um caso concreto de necessária superação das contradições e dos possíveis antagonismos entre o direito à igualdade contraposto ao direito à diferença. Como grupo social, as marisqueiras são tipos híbridos que combinam características de classe explorada com características de sexualidade desprezada. Neste sentido, elas demandam tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, como faces ambivalentes, embora não contraditórias.

O gênero é, em suma, um modo bivalente de coletividade. Ele contém uma face de economia política, que o insere no âmbito da redistribuição. Mas também uma face cultural-valorativa, que simultaneamente o insere no âmbito do reconhecimento. Naturalmente, as duas faces não são claramente separadas uma da outra. Elas se entrelaçam para se reforçarem entre si dialeticamente porque as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas no Estado e na economia e a desvantagem econômica das mulheres restringe a “voz” das mulheres, impedindo a participação igualitária na formação da cultura, nas esferas públicas e na vida cotidiana. O resultado é um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. Cadernos de campo, São Paulo, 2006, p. 234)

Assim, tanto a falta de reconhecimento profissional, seja no panorama interno às comunidades, como resultado do desprestígio social do trabalho feminino, seja nas proposições externas, isto é, nos estudos acadêmicos e, sobretudo, os problemas de redistribuição presentes nas políticas públicas que ensejam estereótipos de gênero em sua construção e operacionalidade, constituem um cenário perverso no qual a invisibilidade das marisqueiras é por elas vivenciada como um processo de desumanização.

Fomos pra frente da prefeitura. Fomos aqui perto do heliporto, fechamos o portão do heliporto, mas nada disso ajudou. Ficou bastante gente sem receber. [...] Eles demoraram pra me atender. As meninas entraram, conversaram, e saiu de lá sem resposta! Falou que não adianta mais, porque era só aquelas pessoas que vivem na miséria. Falou que talvez, se fosse possível, incluiria a gente na renda mínima. Mas na renda mínima você não pode ter uma televisão melhor. Se você não pode ter, então a gente trabalha pra quê? Pra viver na miséria? Você não pode adquirir nada? A gente trabalha pra adquirir as coisas que a gente tem sonho. A gente vai trabalhar aqui só pra comer? A gente não é porco pra viver só de comida. A gente tem sonhos, quer ter uma vida diferente, uma coisinha boa dentro de casa - C.S.L.

Os relatos colhidos em 2019 apontam para graves situações de humilhação social, nas quais o “jogo das invisibilidades” a um só tempo reporta não apenas ao próprio trabalho, mas se projeta em relação à dignidade dos sujeitos. Portanto, não basta apenas a comida - a (sub)existência. Há sonhos que performam a existência e que podem ser materializados em “ter coisas boas em casa” ou em se “ter uma vida diferente”.

A luta das marisqueiras no passado nada distante pela inclusão no PBC, bem como pela manutenção da política no presente, demonstra que reconhecimento e redistribuição são demandas convergentes. Pela via do Estado, a concessão do benefício implica o reconhecimento profissional das mulheres que, apesar de não capturarem os recursos pesqueiros, deles dependem para realizar suas atividades produtivas. Nada obstante, a própria redistribuição de renda, pela via dos programas sociais, pode ou não promover o reconhecimento. Afinal, conforme o relato citado em outro lugar, é possível desistir de “virar marisqueira”, a depender das situações de humilhação social na luta pelos recursos.

Por este caminho interpretativo, redistribuição e reconhecimento são sinais complementares do acidentado percurso com destino à justiça social. De acordo com Fraser (2007FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova. São Paulo, 2007.), a redistribuição, relacionada à estrutura econômica da sociedade e às diferenciações de classes economicamente definidas, compõe a condição objetiva para a superação de arranjos sociais estruturantes da privação, da exploração, da precariedade e das grandes disparidades de riqueza, renda e tempo livre. Já o reconhecimento constitui a condição intersubjetiva para o rompimento com os padrões institucionalizados de valoração cultural que sistematicamente depreciam algumas categorias de pessoas e as características a elas associadas.

Ambas dimensões - redistribuição e reconhecimento - podem promover a participação, isto é, a possibilidade de que todos os membros (adultos) da sociedade interajam uns com os outros como parceiros. Então, um aspecto que mereceu atenção na pesquisa diz respeito exatamente à falta de participação das marisqueiras na Colônia de Pesca Z-19. O órgão de classe não foi mencionado pelas entrevistadas e, mesmo quando perguntadas sobre o papel da entidade numa possível mediação com a prefeitura ou com outras instituições do Estado, as respostas foram sempre indiferentes.

Uma explicação possível para a falta de participação na Colônia foi revelada na entrevista realizada em 2019 com o então presidente, Rodolfo Ribeiro.18 18 A identificação do presidente da Colônia Z-19 justifica-se por sua ocupação em cargo de representação. Embora ele tenha reconhecido a presença de mulheres na pesca, sua fala atualizou a invisibilidade do trabalho feminino pela utilização do termo “ajuda”. Além de tudo, na sua gestão, não havia a possibilidade de associação de trabalhadoras e trabalhadores que não possuem o RGP:

[...] só afilio a pessoa após registrado no órgão competente, como a lei diz. Está lá na Lei de Pesca. O interessado após registrado no órgão competente deverá procurar a entidade que o representa na sua base federal. Então, quando vem, se tem a carteirinha eu afilio, de acordo com os critérios do nosso estatuto. Se ele é [pescador] ou não, é um problema dele e de quem deu a carteirinha pra ele. Só afilio depois de registrado.

Embora o presidente da Z-19 tenha se reportado à legislação, não há previsão expressa da exigência do RGP como condicionante à filiação em Colônias na já referida Lei da Pesca, nem na Lei nº 11.699/08, que “dispõe sobre as Colônias, Confederações e Federação Nacional dos Pescadores”, cujo artigo 4º define que “é livre a associação dos trabalhadores no setor artesanal da pesca no seu órgão de classe, comprovando os interessados sua condição no ato da admissão”. Tal comprovação não aparece no dispositivo nominalmente relacionada ao RGP, de modo que a interpretação de que o documento é um requisito para a prática associativa parece ter sido uma diretriz pessoal do presidente e mais um exemplo de como estereótipos de gênero são institucionalizadas na gestão pesqueira.

A luta das marisqueiras de Farol por redistribuição, reconhecimento e por participação é, portanto, um caso particular de problemas e demandas que historicamente afetam a maioria dos grupos de mulheres na pesca artesanal. De certo, os bloqueios jurídico-legais e institucionais com relação a direitos como o Defeso e demais políticas sociais estão relacionados à invisibilidade, pensada como resultante de discriminações, ainda que indiretas, reificadas pelo Estado, que incorrem em processos de desumanização e adensamento das desigualdades.

Afinal, as características dos trabalhos envolvidos tendem a alijá-las de benefícios previdenciários, especialmente em países onde a titularidade para essas benfeitorias requer contribuições financeiras regulares, limites mínimos de tempo de contribuição ou exercício contínuo da profissão. É o que ocorre quando a cidadania social, isto é, o usufruto de direitos sociais, é dependente da condição de trabalhador definida de maneira restrita ou universal. Universalidade que nega as diferenças de gênero. Por conseguinte, não abriga facilmente mulheres em ramos como a pesca e a agricultura, sem nos referirmos aos trabalhos não remunerados (MANESCHY; SIQUEIRA; ÁLVARES, 2012MANESCHY, Maria; SIQUEIRA, Deis; ALVARES, Maria. Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, 2012., p. 725).

A superação da discriminação das mulheres requer uma interpretação normativa extensiva, abrangente e inclusiva do conceito de pesca,19 19 Na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultu ra e da Pesca (Lei nº 11.959/09), a pesca é definida, conforme o art. 2º, como o exercício de extração, coleta e captura dos recursos pesqueiros. na qual o trabalho feminino seja pensado como atividade fundamental da cadeia produtiva, dos laços sociais das comunidades e da segurança alimentar das famílias. De acordo com Cezar e Theis (2020CEZAR, Lilian. S.; THEIS, Rafaella. Ser ou não ser pescadora artesanal? Trabalho feminino, reconhecimento e representação social entre marisqueiras da Bacia de Campos, RJ. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 63, n. 3, 2020.), a identidade profissional de marisqueira e a categoria nativa “fundo de quintal” têm sido usadas como escudo semântico de defesa diante das pressões e contingências sofridas quanto ao desenvolvimento de seu trabalho, assegurando algum grau de autonomia e circulação, ainda que as atividades femininas estejam associadas ao âmbito doméstico e aos padrões hegemônicos da divisão sexual do trabalho e das relações sociais de sexo.

Por este viés político, é preciso fazer valer os princípios constitucionais de igualdade, de modo que não haja separação ou hierarquia discriminatória baseado no gênero, nem que direitos fundamentais sejam suprimidos pela falta de redistribuição, pelo não reconhecimento ou por limitações à participação das mulheres na gestão da pesca artesanal. Neste contexto, a luta das marisqueiras contra a invisibilidade tem sido persistente, conforme relatos mais recentes, colhidos em 2022, durante a constituição de um grupo focal.

O atual [prefeito] que entrou, ele fez promessa que iria, se ele eleito fosse, ele iria pagar as marisqueiras em 2020. E aí estamos até hoje e está as mulheres tudo parada sem poder trabalhar, passando dificuldade, e se ainda pegar um camarão para descascar ou limpar, corre o risco de ser presa, sabe? E como uma pessoa que sobrevive da pesca em um período desse sem trabalhar, como vai sobreviver se tem muitas delas que pagam aluguel, nem casa própria tem? É muito triste, muito doloroso e as mulheres não serem reconhecidas como mulheres trabalhadores da pesca, já tem mais de 50 anos, desde o tempo da minha mãe. Não ter um documento para ser reconhecida como mulher trabalhadora - M.C.

Não é fácil! É sempre assim, todo ano tem que fazer manifestação porque senão, não consegue receber. Como se nós estivéssemos pedindo alguma coisa... não recebemos o que é nosso de direito. Nós não estávamos pedindo favor a ninguém. Era o nosso direito de receber, mas para receber todos os anos nós tínhamos que ir lá botar fogo nos pneus para poder chamar a atenção, porque se não, não recebia. Infelizmente é assim que a gente se sente, humilhada muitas das vezes. Porque se a gente tivesse direito não teria necessidade de estar fazendo manifestação pra nada - R.R.

Afastar as desigualdades de gênero no âmbito da pesca ainda é um desafio que, sem organização de movimentos, mobilizações políticas e manifestações por visibilidade, dificilmente será vencido. Na análise de Hellebrandt (2017HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres da Z3 - o camarão que “come” as mãos e outras lutas: contribuições para o campo de estudos sobre gênero e pesca. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, UFSC, 2017.), a estruturação vertical das colônias de pesca, os tabus socioculturais presentes nas comunidades e as múltiplas jornadas de trabalho produtivo e reprodutivo são apresentados como justificativas para ausência de mulheres em espaços de decisão. Ademais, como diversas vezes reiterado, a gestão e a legislação pesqueira privilegiam a captura em detrimento de outras etapas da cadeia produtiva, potencializando a invisibilidade feminina nas políticas públicas.

Assim, embora a Constituição brasileira de 1988 declare a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, uma análise crítica tanto da legislação quanto das políticas dirigidas à pesca artesanal indica que há bloqueios erguidos por estereótipos de gênero contra as trabalhadoras a serem ultrapassados. A justiça social, nos termos do que dispõe a Carta Magna no artigo 17020 20 “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]” (CF, 1988). e, sobretudo, o parágrafo único do artigo 193,21 21 “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Parágrafo único. O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas” (CF, 1988). impõe que a agenda pública seja capaz de operar a partir de uma perspectiva plural e que não antagonize as dimensões da existência digna das mulheres, isto é, o direito à redistribuição dos recursos, ao reconhecimento profissional e à participação política nos mecanismos de gestão.

5. Considerações finais

O artigo buscou analisar a invisibilidade social das marisqueiras de Farol de São Thomé a partir da naturalização de estereótipos de gênero na política pública de Defeso instituída pelo município de Campos dos Goytacazes. Não há dúvidas de que o referido programa social gerava tensões a partir da discriminação das mulheres pela manipulação das categorias nativas “novata” e “mulher de pescador”. Além de tudo, a execução de (re)cadastramentos mediante o uso de “senhas” era um fator de conflitos que abalavam as relações internas das trabalhadoras a partir do escrutínio moral das marisqueiras, bem como as antagonizava com os agentes municipais.

No entanto, ao invés de ser aperfeiçoado, o PBC foi simplesmente extinto após 21 de execução, sendo certo que o problema da (in)justiça social persiste e mais agrava a situação de precariedade das trabalhadoras. Neste contexto, desde a legislação federal, que tem negado às mulheres o direito ao RGP, incluindo o Seguro Desemprego pago pela União, até o caso das marisqueiras de Farol em torno dos problemas de acesso ao “Defeso Municipal”, o Estado brasileiro tem invisibilizado as atividades femininas na pesca, tendo em vista que a instrumentalização dos estereótipos - o trabalho como “ajuda” ou “apoio” - são operacionalizados como política (in)direta de discriminação.

Assim, a luta pelos recursos materiais, pelo prestígio profissional e pela representação no espaço público atravessa percursos convergentes, de modo que redistribuição, reconhecimento e participação podem ser pensadas como dimensões complementares, nas quais o direito de igualdade material não antagoniza o direito à diferença. Em outras palavras, se o recebimento do Defeso da União requer a identificação legal das marisqueiras como trabalhadoras, a inscrição no RGP, documento que as reconhece em suas particularidades, é também o critério de acesso ao próprio benefício.

Neste sentido, é importante lembrar que as identidades profissionais das mulheres na pesca têm sido historicamente fraturadas, de modo que os homens são pensados como contumazes desbravadores das águas em atividades tão perigosas quanto heroicas, a partir das quais, por certo, constroem sua imagem de pescadores, mestre das artes e provedores da família. Já as mulheres têm que conciliar o trabalho produtivo exercido na pesca com o trabalho doméstico e reprodutivo. A separação e a hierarquização das atividades ditas masculinas das atividades ditas femininas conferem desvalor, precarização, invisibilidade e, sobretudo, restrições aos direitos das trabalhadoras.

Entretanto, é fundamental compreender que categorias como marisqueira, pescadeira, limpadeira e, com efeito, “novata” e “mulher de pescador” têm ganhado novos significados, que demostram não apenas distinções sociolinguísticas para os termos, como sua característica polissêmica e, sobretudo, seu deslocamento semântico para o engajamento social e o empoderamento feminino. Neste contexto, o PEA Pescarte parte da promoção de mobilização social e estímulo à participação nos processos educativos voltados ao envolvimento das comunidades de pesca artesanal na construção e implementação democrática de Projetos de Geração de Trabalho e Renda (GTR), articulando saberes e fazeres para a economia solidária, de modo que, espera-se, haja algum impacto também na ressignificação dos estereótipos de gênero e na contribuição para a luta contra bloqueios discriminatórios.

6. Referências

  • ALENCAR, Edna. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO; LEITÃO; DE MELLO (orgs.). Povo das águas - realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: MPEG, 1993.
  • ALONSO, Angela. Métodos qualitativos de pesquisa: uma introdução. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. São Paulo: Sesc São Paulo/CEBRAP, 2016.
  • BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados [online]. 2016, v. 59, n. 3 pp. 719-754..
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988.
  • BRASIL. Lei nº 11.699, de 13 de junho de 2008. Dispõe sobre as Colônias, Federações e Confederação Nacional dos Pescadores, regulamentando o parágrafo único do art. 8o Constituição Federal e revoga dispositivo do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967.
  • BRASIL. Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei no 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências.
  • BRASIL. Decreto nº 8.424, de 31 de março de 2015. Regulamenta a Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003, para dispor sobre a concessão do benefício de seguro desemprego, durante o período de defeso, ao pescador profissional artesanal que exerce sua atividade exclusiva e ininterruptamente.
  • BRASIL. Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015. Regulamenta o parágrafo único do art. 24 e o art. 25 da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, para dispor sobre os critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira e para a concessão de autorização, permissão ou licença para o exercício da atividade pesqueira.
  • BRASIL. Decreto nº 8.967, de 23 de janeiro de 2017. Altera o Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, que dispõe sobre os critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira, e o Decreto nº 8.424, de 31 de março de 2015, que dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego, durante o período de defeso, ao pescador profissional artesanal que exerce sua atividade exclusiva e ininterruptamente.
  • BRITO, Carmem Imaculada de. Uma análise sócio-histórica da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP). In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.
  • CAMPOS, André; CHAVES, José. Seguro Defeso: diagnóstico dos problemas enfrentados pelo programa. Texto para discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2014.
  • CAMPOS DOS GOYTACAZES. Lei nº 7.021, de 28 de dezembro de 2000. Autoriza o Executivo Municipal através da Secretaria de promoção Social, a implantar e desenvolver o projeto Bolsa Cidadão, com efeito a partir de 01 de novembro de 2000.
  • CAMPOS DOS GOYTACAZES. Lei nº 9.109, de 18 de novembro de 2021. Compila e regulamenta a concessão dos benefícios eventuais da política pública da assistência social previstos no art. 22 da Lei Orgânica da Assistência Social, Lei Federal nº 8.742/1993, alterada pela Lei Federal nº 12.435/2011 e dá outras providências.
  • CEZAR, Lilian. S.; THEIS, Rafaella. Ser ou não ser pescadora artesanal? Trabalho feminino, reconhecimento e representação social entre marisqueiras da Bacia de Campos, RJ. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 63, n. 3, 2020.
  • D'AMORIM, Maria Alice. Estereótipos de gênero e atitudes acerca da sexualidade em estudos sobre jovens brasileiros. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 5, n. 3, dez. 1997 .
  • DIAS NETO, José Colaço. “Pesca é coisa de mulher, sim senhor”: algumas reflexões sobre o papel da mulher na atividade pesqueira no Brasil e em Portugal. In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.
  • DINIZ, Debora. Estereótipos de gênero nas cortes internacionais - um desafio à igualdade: entrevista com Rebecca Cook. Revista Estudos Feministas [online]. 2011, v. 19, n. 2 pp. 451-462.
  • DITTY, John Marr. Sustentabilidade justa e a pesca marinha artesanal no município de Campos dos Goytacazes (RJ) frente à implantação de um mega empreendimento portuário e industrial. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem. Campos dos Goytacazes/RJ, 2013.
  • DOMINGUES, Eliane; ROSA, Miriam Debieux. Violência, humilhação social e a luta por reconhecimento: a experiência do MST. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 14, n. 1, 2014.
  • ESCRITÓRIO DO ALTO COMISSÁRIO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS - EACDH. Gender stereotyping as a human rights violation. Outubro, 2013. Disponível em https://www.ohchr.org/en/women/gender-stereotyping Acesso em 06/01/2023.
    » https://www.ohchr.org/en/women/gender-stereotyping
  • FISHERIES AND AQUACULTURE DEPARTMENT. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The State of World Fisheries and Aquaculture 2012. Roma, 2012.
  • FISHERIES AND AQUACULTURE DEPARTMENT. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The State of World Fisheries and Aquaculture 2018. Roma, 2018.
  • FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. Trabalho doméstico. In: HIRATA, Helena [et al.] (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 256-262.
  • FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. Cadernos de campo, São Paulo, 2006
  • FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova. São Paulo, 2007.
  • GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicologia USP, São Paulo, v. 9, n. 2, 1998.
  • HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres da Z3 - o camarão que “come” as mãos e outras lutas: contribuições para o campo de estudos sobre gênero e pesca. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, UFSC, 2017.
  • HELLEBRANDT, Luceni. O que torna as mulheres invisíveis na pesca? Reflexões a partir da Colônia Z3 - Pelotas/RS. In: MARTÍNEZ, Silvia Alicia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019.
  • HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu, Campinas, n.17-18, 2002.
  • HUGUENIN, Fernanda. Identidade e reconhecimento profissional das marisqueiras de Farol de São Thomé. In: MARTÍNEZ, S. A. (Coord.). Projeto Mulheres na Pesca: mapa de conflitos socioambientais dos municípios do Norte Fluminense e das Baixadas Litorâneas, 2019. Disponível em: https://www.mulheresnapesca.uenf.br/mapa.php
    » https://www.mulheresnapesca.uenf.br/mapa.php
  • HUGUENIN, Fernanda.; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres da pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Revista Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 97, 2021.
  • KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
  • KRAVETZ, Luciane; WURSTER, Tani. O (des)valor do trabalho da mulher rural e o reconhecimento de direitos previdenciários no Brasil. In: PIMENTA, C.; SUXBERGER, R.; VELOSO, R.; SILVA, F. [Orgs.]. Magistratura e equidade - Estudos sobre gênero e raça no Poder Judiciário. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p.105-116.
  • KRÜGER, Helmut. Cognição, estereótipos e preconceitos sociais. LIMA, Marcus; PEREIRA, Marcos (Orgs.). Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas. Salvador: EDUFBA, 2004.
  • LIMA, Márcia. O uso da entrevista na pesquisa empírica. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. Sesc São Paulo/CEBRAP São Paulo, 2016.
  • LOPES, Mariana.; AMARAL, Naiara.; HUGUENIN, Fernanda.; BELO, Diego.; SOUZA, Suellen. DESCAMINHOS DA ESCOLA. Mares: Revista de Geografia e Etnociências, v. 1, n. 1, 6 out. 2019.
  • MANESCHY, Maria; SIQUEIRA, Deis; ALVARES, Maria. Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, 2012.
  • MARQUES, Marina. A proteção do trabalho da mulher e a perpetuação do estereótipo de gênero: os dispositivos legais que diferenciam homens e mulheres e seu sentido na atualidade. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. São Paulo, USP, 2019.
  • MARTINS, Mary Lourdes Santana; ALVIM, Ronaldo Gomes. Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.11, n.2, 2016.
  • MENDES, Beatriz Lourenço. Redes invisíveis da pesca artesanal em Rio Grande: obstáculos e barreiras impostos às mulheres pescadoras na busca dos direitos sociais previdenciários. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Rio Grande, FURG, 2019.
  • MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): repensando gênero na literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnográfica, v. 3, n. 2, 1999, pp. 377-399.
  • WOORTMANN, E. F. Da Complementaridade à Dependência: Espaço, tempo e gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais. ANPOCS, n.º 18, Ano 7, 1992.
  • 1
    O projeto Mulheres na Pesca: Mapa de Conflitos Socioambientais em Municípios do Norte Fluminense e das Baixadas Litorâneas visou elaborar e disponibilizar uma cartografia dos conflitos socioambientais que vivem no cotidiano as mulheres das comunidades pesqueiras de sete municípios que compõem as mesorregiões das baixadas litorâneas e do norte do Estado do Rio de Janeiro: São Francisco de Itabapoana, Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé, Quissamã, Cabo Frio e Arraial do Cabo. Os resultados alcançados contemplam o labor científico e técnico de levantamento, caracterização descritiva, representação cartográfica georreferenciada e disponibilização eletrônica dos dados e informações dos principais conflitos socioambientais que envolvem a participação das mulheres. Outras informações encontram-se disponíveis no endereço eletrônico https://mulheresnapesca.uenf.br/projeto.php
  • 2
    Até o ano de 2016 a Bacia de Campos era a maior produtora de petróleo e gás natural do Brasil, sendo superada pela Bacia de Santos a partir do ano de 2017 (Agencia Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis [ANP], 2017). Neste novo cenário, mudam os valores dos repasses de royalties e participações especiais aos municípios envolvidos, com destaque para Campos dos Goytacazes, afetando drasticamente suas finanças públicas.
  • 3
    Disponível no endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=ysS7YRumEYw&t=10s
  • 4
    De acordo com Huguenin (2019HUGUENIN, Fernanda. Identidade e reconhecimento profissional das marisqueiras de Farol de São Thomé. In: MARTÍNEZ, S. A. (Coord.). Projeto Mulheres na Pesca: mapa de conflitos socioambientais dos municípios do Norte Fluminense e das Baixadas Litorâneas, 2019. Disponível em: https://www.mulheresnapesca.uenf.br/mapa.php.
    https://www.mulheresnapesca.uenf.br/mapa...
    ), Farol de São Thomé é um bairro dividido pelos distritos da baixada campista de Santo Amaro e de Mussurepe através da Rodovia RJ 216, sendo a única praia do município de Campos dos Goytacazes, com uma extensão de 28 km entre o limite Sul, que faz fronteira com o município de Quissamã, e o limite Norte, fronteiriço ao município de São João da Barra. Na orla, encontra-se o Farol de mesmo nome, concebido pelo engenheiro francês Gustavo Eiffel e inaugurado em 1882, com o objetivo de orientar a navegação. Embarcações do tipo traineira são as mais utilizadas na costa marítima da região para a pesca artesanal que, no ano de 2018, produziu cerca de 996,1 toneladas de pescado. Camarões representam a maior parte da produção feita pelos pescadores locais e são também a principal matéria-prima para o trabalho das mulheres envolvidas na cadeia produtiva da pesca, que realizam o descasque dos estoques capturados, sobretudo das espécies “barba-ruça” e “sete-barbas”, além da limpeza e filetamento de peixes. A Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ) registrou, entre julho e dezembro de 2017, a captura de 694.735,5 kg de pescado em Farol pela atividade de pesca artesanal. A principal categoria descarregada foi o camarão “sete-barbas”, representando 34,6% da produção total do período. Em sequência, o camarão “barba-ruça” e o camarão (camarões de diversas espécies comercializados misturados) foram responsáveis por 24,0% e 13,8%, respectivamente.
  • 5
    Alguns frigoríficos funcionam sem legalização, isto é, sem registro nos serviços oficiais de inspeção sanitária (SIF/SIE/SIM), o que torna o pescado considerado “clandestino”, pois a manipulação e o beneficiamento são realizados sem fiscalização, em locais inadequados e sem a devida higiene.
  • 6
    Instituída pela Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca.
  • 7
    Definida no já revogado art. 2º, VIII, do Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, como “pessoa física que, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, exerce trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, de reparos em embarcações de pesca de pequeno porte ou atua no processamento do produto da pesca artesanal”. Já na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 6314), trabalhadores de apoio à pesca “preparam equipamentos de pesca, conservam pescado e controlam urnas e câmaras de resfriamento; confeccionam material de pesca; auxiliam tripulação em serviços gerais e carregam e descarregam embarcação; realizam serviços de manutenção de embarcações de pesca em estaleiros”.
  • 8
    Na legislação federal que regulamenta a atividade pesqueira, o RGP é o principal documento vigente de licença para o exercício da pesca. O referido registro é também o documento que identifica a(o) profissional para fins de requerimento dos benefícios previdenciários. O Decreto nº 8.967, de 23 de janeiro de 2017, revogou o art. 2º, VIII, do Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, que considerava o “trabalhador e trabalhadora de apoio à pesca” como categorias de inscrição no RGP.
  • 9
    A regula mentação da Lei do Seguro Defeso (Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003), instituída pelo Decreto nº 8.424, de 31 de março de 2015, excluiu a concessão do benefício “aos trabalhadores de apoio à pesca artesanal” (art. 1º, § 6º).
  • 10
    Segundo Motta-Maués (1999, p. 382), o jogo das invisibilidades, no caso dos homens, “existe desde dentro, no nível interno da hierarquia entre os gêneros, mas se dá também de fora pra dentro, atingindo as mulheres em consonância, ou numa relação de homologia com a distinção hierárquica interna que sobrepõe os homens às mulheres.”
  • 11
    Segundo Kravetz e Wurster (2020), no referido regime, cabe à trabalhadora o ônus de provar o tempo trabalhado em circunstâncias sociais de amplo desvalor do trabalho feminino. Na Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, § 1º, “entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.” Pescadores artesanais ou a estes assemelhados são considerados segurados especiais da Previ dência Social. De acordo com a Instrução Normativa INSS/PRES nº 85, de 18 de fevereiro de 2016, são assemelhados ao pescador artesanal aqueles que realizam atividades de apoio à pesca artesanal, exercendo trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca e de reparos em embarcações de pequeno porte ou atuando no processamento do produto da pesca artesanal.
  • 12
    O PBC enquadrava-se no período designado para espécies de camarão, que ocorre anualmente nos meses de março, abril e maio. A instrução normativa nº 189, de 23 de setembro de 2008, estabelecida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA), proíbe o “exercício da pesca de arrasto com tração motorizada para a captura de camarão rosa, camarão sete barbas, camarão branco, santana ou vermelho e barba-ruça, anualmente, nas seguintes áreas e períodos: I - na área marinha compreendida entre os paralelos 21º18'04,00"S (divisa dos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro) e 33º40'33,00"S (Foz do Arroio Chuí, estado do Rio Grande do Sul), de 1º de março a 31 de maio”. Publicada no Diário Oficial da União em 24 de setembro de 2008.
  • 13
    Campos dos Goytacazes. Diário Oficial - Edição 032, de 05 de janeiro de 2018.
  • 14
    Campos dos Goytacazes. Diário Oficial - Edição 338, de 29 de abril de 2019.
  • 15
    Embora não seja o tema proposto neste trabalho, é preciso ressaltar que as políticas sociais do município passaram a ser investigadas pela Polícia Federal em 2016, pelo aumento substancial do número de beneficiários. As investigações da “Operação Chequinho” apuraram o uso dos benefícios para um esquema de compra de votos que envolveu vereadores.
  • 16
    As inconsistências do PBC podem ser verificadas na descontinuidade numérica das/os beneficiárias/os. Em 2017, das 446 pessoas aptas ao recebimento, 52 eram homens e 394 eram mulheres. Já em 2018 houve uma queda para 133 aptos, sendo 99 homens e apenas 34 mulheres. E em 2019, do total de 257 aptos, 61 eram homens e 196 eram mulheres [https://transparencia.campos.rj.gov.br/ - acesso 23 abr 2020].
  • 17
    A nova Lei regulamenta a concessão de benefícios eventuais, suplementares e provisórios, prestados aos cidadãos e às famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública (art. 2º). Estabelece que os benefícios podem ser concedidos em forma de pecúnia, bens ou serviços (art. 2, § 1º), com vistas ao atendimento das necessidades humanas básicas das famílias em situação de vulnerabilidade social (art. 2º, § 2º), tendo por critério a renda per capita ser igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo (art. 5º), sendo obrigatório o parecer técnico do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS ou Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS (art. 5º, § 3º). A Lei Municipal nº 9.109/21, lançada com o slogan Programa Mãe Coruja (PMC), por distribuir enxovais para bebês cujas mães estejam em situação de vulnerabilidade, não faz qualquer menção às marisqueiras e, sob a justificativa de compilar e regulamentar a concessão de benefícios eventuais da política pública de assistência social do município, extinguiu o PBC. Assim, para acessar um dos benefícios disponíveis no novo programa, as marisqueiras ou qualquer outro munícipe deve estar em situação de vulnerabilidade social “decorrentes ou agravadas por contingências que causam danos, perdas e riscos, desprotegendo e fragilizando a manutenção e o convívio entre as pessoas” (art. 2º, §1º).
  • 18
    A identificação do presidente da Colônia Z-19 justifica-se por sua ocupação em cargo de representação.
  • 19
    Na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultu ra e da Pesca (Lei nº 11.959/09), a pesca é definida, conforme o art. 2º, como o exercício de extração, coleta e captura dos recursos pesqueiros.
  • 20
    “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]” (CF, 1988).
  • 21
    “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Parágrafo único. O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas” (CF, 1988).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    15 Jan 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com