Resumo
A liberdade de expressão é uma das principais previsões no texto constitucional brasileiro quanto à manifestação dos direitos fundamentais, possuindo repercussões nos mais diversos âmbitos, como na imprensa, publicações, acadêmica, entre outros. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o caso mais emblemático quanto aos limites da liberdade de expressão foi o julgamento do editor Siegfried Ellwanger Castan. Mesmo que o referido julgado tenha sido decidido pelo STF em 2003, denota-se que este ainda se trata do principal episódio quanto à liberdade de expressão e às repercussões do discurso do ódio, sobretudo quanto à ponderação e sopesamento de valores realizada pelo STF. Assim sendo, o objetivo principal do artigo é verificar o impacto do aludido precedente Ellwanger sobre a liberdade de expressão, nomeadamente quanto à ponderação de valores constitucionais e a proporcionalidade para casos mais recentes julgados pelo STF. O objetivo específico do texto é analisar a atualidade deste caso, nomeadamente a partir de precedentes mais recentes do STF, sobretudo se os critérios estabelecidos no HC nº 82.424/RS ao exercício da liberdade de expressão permanecem pertinentes.
Palavras-chaves:
Liberdade de expressão; Direitos fundamentais; Supremo Tribunal Federal
Abstract
Freedom of expression is one of the main provisions in the Brazilian constitutional text regarding the expression of fundamental rights, having effects in the most diverse domains, such as in the press, publications, academics, among others. The most emblematic case adjudicated by the Brazilian Supreme Court regarding the limits of freedom of expression was the judgment of editor Siegfried Ellwanger Castan. This case is still the main episode in terms of freedom of expression and the repercussions of hate speech. Consequently, the main objective of the paper is to verify the real impact of the Ellwanger precedent on freedom of expression. The specific objective of the text is to analyze the current status of this case, namely based on new cases decided by the Brazilian Supreme Court.
Keywords:
Freedom of expression; Fundamental rights; Brazilian Supreme Court
1. Introdução
O caso Ellwanger, julgado em 2003 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é considerado uma das mais importantes decisões proferidas em toda a sua história, especialmente para o tema de conflito de direitos fundamentais e os limites da liberdade de expressão.
No entanto, passados quase 20 (vinte) anos de seu julgamento pelo Plenário do STF, poucos estudos realizaram a análise da atualidade dos pressupostos do precedente em matéria de liberdade de expressão. Isso porque o exame do STF em Ellwanger trouxe critérios bastante diferenciados quanto à proteção de direitos fundamentais, de minorias e de ponderação de princípios.
O objetivo do presente artigo é verificar o impacto do caso Ellwanger para julgamentos mais recentes do STF que versem sobre o conteúdo e a restrições da liberdade de expressão. Para isso, o texto perpassa, primeiro, por algumas reflexões sobre o conteúdo desse direito fundamental, seus limites, para descrever e verificar a importância do caso Ellwanger, recapitulando os principais votos do STF no referido julgado.
Em um segundo momento, o escrito foca em julgamentos mais recentes do STF que mencionem o vocábulo “Ellwanger” ou mesmo o Habeas Corpus (HC) nº 82.424, a partir do sistema de busca jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. A finalidade principal do texto é aferir a atualidade dos pressupostos estabelecidos em Ellwanger, bem como se a Corte Superior segue as prescrições lá estabelecidas quando há conflito entre o conteúdo da liberdade de expressão e outros valores também protegidos pela Constituição.
Apresentados os casos mais recentes no que toca à liberdade de expressão no STF, é realizada uma análise das proximidades e dissonâncias entre os julgados mais recentes do STF em matéria de liberdade de expressão e o caso Ellwanger, de modo a conferir se existe uma uniformidade de tratamento entre o referido precedente e os demais casos relativos ao direito à livre manifestação.
Antes de realizar considerações sobre o caso Ellwanger propriamente dito, cumpre verificar as principais repercussões do direito à livre manifestação no tópico seguinte.
2. Liberdade de expressão
A liberdade de expressão constitui uma das principais expressões da individualidade humana, possuindo repercussão nas mais diversas esferas de manifestação humana, desde a publicação de suas opiniões, para manifestar sua crença, religião, entre outros.
No texto da Constituição Federal brasileira, há diversas previsões que retratam a liberdade de expressão, especialmente as preconizadas no arts. 5º, VI e IX, 206, II, 215 e 220, que estabelecem a esfera mínima de manifestação individual do cidadão. Todavia, as previsões da Lei Fundamental indicam que deve ser assegurada ao indivíduo a liberdade de manifestação do pensamento e a possibilidade de sua exteriorização, sob a perspectiva intelectual, artística e científica (SILVA, 2011SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.).
O conteúdo da liberdade de expressão abrange o direito de livre manifestação do pensamento das mais diversas formas, seja a partir de ideias, pensamentos, propagação de expressões não verbais (comportamentos, pensamentos e imagens) e a própria divulgação de escritos, como livros, jornais, revistas e, mais recentemente, as redes sociais (MENDES; BRANCO, 2013MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.).
A liberdade de expressão integra os chamados direitos de 1ª dimensão, característicos de uma imposição de dimensão negativa do Estado, típico direito integrante do liberalismo ou do laisser-faire (RIVERO; MOUTHOUH, 2006RIVERO, Jean; MOUTHOUH. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.; MENDES; BRANCO, 2013MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.; SILVA, 2021SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.). No entanto, os fundamentos, a dimensão, limites da liberdade de expressão serão detalhados com maior profundidade no próximo subitem.
2.1 Dimensão e limites do direito fundamental à liberdade de expressão - A questão da ponderação
Pela inexistência de direitos fundamentais absolutos, é evidente que a liberdade de expressão não tem prevalência quando entra em conflito com os valores como a educação democrática, discurso de ódio, a proteção da dignidade da pessoa humana, proteção da criança do adolescente, tutela das minorias, entre outros objetivos constitucionalmente legítimos e protegidos (MENDES; BRANCO, 2013MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.). Todavia, quais seriam os limites da liberdade de expressão? Uma das possibilidades é a investigação das diferentes teorizações sobre os direitos fundamentais, os contornos e a possibilidade de seu exercício.
O principal problema quanto à dimensão e os limites da liberdade de expressão encontra-se na identificação dos limites imanentes ao exercício deste direito. Silva (2014_____. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.) apresenta a ideia de restrição aos direitos fundamentais, especialmente a partir da teoria dos limites imanentes. Essa postura expõe que os limites aos direitos fundamentais não são revelados por fatores externos aos direitos fundamentais.
A partir da teoria interna, os direitos fundamentais não poderiam ser objeto de sopesamento. Se o direito subjetivo existe, ele poder ser naturalmente exercido dentro de seus limites. E, nesse sentido, inserem-se a teoria dos limites imanentes. O STF - muito embora não tenha dito expressamente isso no caso Ellwanger - afirmou que a liberdade de expressão não seria incondicional, devendo ser exercida de acordo com os limites trazidos pela Constituição Federal (ponto que será aprofundado posteriormente) (SILVA, 2014_____. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.).
A teoria dos limites imanentes defende que os limites fazem parte da própria essência dos direitos fundamentais. Na visão de Silva (2014_____. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.), o grande problema da teoria dos direitos fundamentais imanentes pressupõe um suporte fático restrito a esses direitos.
No específico caso da liberdade de expressão, os limites imanentes ao exercício da liberdade de expressão estariam contidos no próprio texto constitucional, tal como a vedação ao anonimato (art. 5º, IV, da Constituição Federal), o acatamento à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (art. 5º, X, da Constituição Federal), a restrição à publicidade de bebidas alcoólicas e ao tabaco (art. 220, § 4º, da Constituição Federal) (MENDES; BRANCO, 2013MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.).
Na visão de Silva (2014_____. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014., p. 133), a decisão proferida no caso Ellwanger se vincularia à teoria dos limites imanentes, mas não é possível afirmar que o STF possua uma linha jurisprudencial clara nesse sentido, “até porque o STF recorre também, em um sem-número de casos, ao sopesamento entre princípios - o que, como se verá, não é compatível com a ideia de limites imanentes. Não obstante essa incompatibilidade, o recurso aos limites imanentes pode ser encontrado em não poucas decisões”. O grande problema quanto à teoria dos limites imanentes está no fato de que existiria um suporte fático restrito sobre direitos fundamentais.
Pela inexistência de direitos fundamentais absolutos, conectada à doutrina dos limites imanentes, um dos contornos estabelecidos pela doutrina quanto à liberdade de expressão é a impossibilidade de propagação de discurso do ódio. O discurso do ódio consiste na divulgação de ideias que façam com que haja a mancha de reputação aos indivíduos, associando atributos individuais como etnia, raça ou religião que sejam capazes de desqualificar alguém de ser tratado como membro de uma sociedade de boa reputação (WALDRON, 2012WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard University Press, 2012.).1 1 Por sua vez, Cavalcante Filho (2018, p. 53) define o discurso de ódio “como a expressão cujo conteúdo ofende a honra ou a imagem de grupos sociais, especialmente minorias, ou prega a discriminação contra os integrantes desses grupos”. Pinto (2013, p. 219) apresenta a seguinte definição do discurso do ódio: “Entende-se que o discurso comprometido exclusivamente com a ofensa de pessoas ou grupos, em razão de características pelas quais foram historicamente oprimidos, consiste muito mais em ataque que em opinião, em nada contribuindo para o debate público e democrático. Pelo contrário, esse ambiente é inviabilizado pelo hate speech, na medida em que provoca ou a vingança da vítima, na mesma proporção de violência, ou o seu afastamento da discussão. 124 Por isso, tais manifestações não estão protegidas pela liberdade de expressão”.
Independentemente da concepção compreendida, é possível haver um núcleo comum, cujos limites externos formam uma barreira intransponível. A característica supostamente absoluta do conteúdo essencial dos direitos fundamentais não significa, portanto, imutabilidade.
Silva (2014_____. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.) apresenta, ainda, duas situações distintas quanto ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais: (a) conteúdo absoluto-estático; e. (b) conteúdo absoluto-dinâmico. No primeiro caso, não há possibilidade de haver interferência quanto aos direitos fundamentais, enquanto que o conteúdo dinâmico pressupõe a movimentação, com a possibilidade de capacidade de conformação do legislador ordinário.
Involuntariamente das posturas que sejam adotadas no texto, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais é definido a partir de uma relação entre diversas variáveis. A constitucionalidade de uma restrição a um direito fundamental depende da fundamentação constitucional e ela é controlada a partir da regra de proporcionalidade. No específico caso da liberdade de expressão, uma das possibilidades de restrição e limitado ao pleno exercício desta liberdade consiste na utilização da técnica de ponderação.
De outro lado, como se examinará no próximo item, especialmente a partir do caso Ellwanger, o STF tem a tendência de considerar que a liberdade de expressão deve observar os próprios limites imanentes prescritos pelo próprio texto da Constituição Federal.
3. O caso Ellwanger - HC nº 82.424/RS
Segundo parte da doutrina, como já referido, o caso Ellwanger integra o rol de decisões mais importantes da história do STF, porque marca a mudança de posição do STF em termos de proteção de direitos fundamentais e quanto ao protagonismo do Poder Judiciário no debate público.2 2 Na visão de Arguelhes (2021 p. 38), o grande diferencial do caso Ellwanger seria pelo fato de se marcar uma postura de atuação do STF mais compromissada com as garantias constitucionais expostas pelo texto da Constituição de 1988: “Ellwanger não é uma vitória total ou imediata desta nova maneira de encarar a tarefa do Supremo, nem mesmo no nível do discurso. É uma arena pública em que diferentes ‘novos’ Supremos, em contraste a um mesmo ‘velho’ Supremo, reconhecem-se como aliados no diagnóstico da insuficiência do tribunal antigo e na adoção de um discurso para o tribunal novo”. O Habeas Corpus nº 82.424/RS discutia o enquadramento do escritor gaúcho Siegfried Ellwanger Castan na tipificação prevista no art. 20, caput, da Lei nº 7.716/1989, que pune o crime de prática, indução a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.3 3 “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
Ellwanger publicou uma série de livros sobre a perspectiva negativista do Holocausto, que recusava a sua ocorrência e que os grandes prejudicados pela Segunda Guerra Mundial teriam sido os alemães. Todavia, o escrito de maior repercussão foi editorado em 1987, intitulado “Holocausto - judeu ou alemão - Nos bastidores da mentira do século” (VIOLANTE, 2010, p. 24-25), cujo lançamento se deu em 1989 na cidade litorânea de Capão da Canoa, conhecida por congregar grande número de praticantes do judaísmo no Estado do Rio Grande do Sul.
Em 1991, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul denunciou Siegfried Ellwanger Castan como incurso no crime do art. 20, da Lei nº 7.716/1989, pela publicação de livro que discriminaria os judeus, com o pedido de recolhimento de todas as obras publicadas.4 4 O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul assim se pronunciou sobre os fatos delituosos: “Segundo o incluso Inquérito Policial, o denunciado, Siegfried, na qualidade de escritor e sócio-dirigente da Revisão Editora Ltda., situada na Rua Voltaire Pires, nº 300, conjs. 02/11, nesta cidade, de forma reiterada e sistemática, edita e distribui, vendendo-as ao público, obras de autores brasileiros e estrangeiros que abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias e com isso procura incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica” (RIO GRANDE DO SUL, 2004b, p. 37).
Após a instrução processual, em junho de 1996, Ellwanger foi, inicialmente, inocentado pela 8ª Vara Criminal de Porto Alegre. Na sentença, a Juíza Bernadete Friedriech considerou que o denunciado estaria expressando o “exercício constitucional da liberdade”.5
5
Assim se manifestou, em 14 de junho de 1995, o Juízo da 8ª Vara Criminal de Porto Alegre: “Os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestação de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo. Lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram, e por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimento discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica. [...] As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são, senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão” (RIO GRANDE DO SUL, 2004c, p. 46).
A sentença mencionada gerou enorme repercussão no país, a ponto do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso declarar que “existe lei a respeito, que, no meu governo, será aplicada com todo rigor” (ABRAHAM, 1995ABRAHAM, Ben. Absolvição de neonazista do RS. Folha de S. Paulo, São Paulo. 09 de ago. de 1995. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/8/09/cotidiano/11.html>. Acesso em: 15 jan. 2022.
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). Assim sendo, o Ministério Público do Rio Grande do Sul e Federação Israelita do Rio Grande do Sul, na condição de assistente de acusação, apelaram dos termos da decisão judicial, por considerarem que Ellwanger cometeu o crime de racismo contra a comunidade judaica.
Em decisão unânime da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), exarada em 31/10/1996, houve a revisão da sentença absolutória, que, na visão dos Desembargadores do TJRS, Ellwanger agiu dolosamente em suas obras com caráter evidentemente discriminatório contra os judeus, motivo pelo qual foi condenado a 04 anos, 11 meses e 17dias.6 6 O Relator do caso, o Desembargador Fernando Mottola, apresentou a seguinte conclusão para fixar a condenação a Siegfried Ellwanger Castan: “Como se vê, quem distribui, vendendo-os ao público, livros que defendem ideias (próprias ou alheias, pouco importa) preconceituosas e discriminatórias, com a evidente intenção de gerar discriminação e preconceito, realiza os verbos nucleares do tipo penal do art. 20. E foi isso que o apelado fez, em plena vigência da Lei nº 8.081” (RIO GRANDE DO SUL, 2004a, p. 79).
Ellwanger, a partir da decisão condenatória do TJRS, impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O argumento de Ellwanger no STJ centrava-se na premissa de que o crime de racismo não poderia ser imprescritível pelo simples fato do povo judeu não pode ser considerado como uma raça, “pois a própria comunidade judaica repudia veementemente a definição de judeu como raça” (BRASIL, 2002, p. 277). O caso foi interrompido por 2 (dois) pedidos sucessivos de vistas, uma vez que o tema gerou muita discussão entre os Ministros do STJ sobre o evidente conflito entre a liberdade de expressão e o respeito à manifestação religiosa.
Prevaleceu o entendimento do Ministro Gilson Dipp, que considerou que haver o crime de racismo, pois
não há que se fazer diferenciação entre as figuras da prática, da incitação ou do induzimento, para fins de configuração do racismo, eis que todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatórias ou preconceituosas, é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no âmbito da tipicidade direta (BRASIL, 2002, p. 277).
Com a manutenção da condenação, Siegfried Ellwanger Castan impetrou novo habeas corpus no STF, com a repetição do fundamento de que os judeus, na visão do impetrante, não constituíram raça, assim, não poderia haver crime de racismo, nem mesmo o delito poderia ser considerado imprescritível, conforme a previsão do art. 5º, XLII, da Constituição Federal.7 7 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Conforme destaca Cavalcante Filho (2018CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O discurso do ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira. São Paulo: Saraiva, 2018.), o argumento original da impetração não consistia na proteção constitucional do direito à liberdade de expressão; porém, o debate que ocorreu no STF ficou focado nos limites desse amparo constitucional.
Em 12/12/2002, o Relator, o Ministro Moreira Alves, considerou inexistir prática do crime de racismo, uma vez que na própria comunidade judaica há divergência se os judeus se consideram uma raça: “Não sendo, pois, os judeus uma raça, não se pode qualificar o crime como delito de racismo, e, assim, imprescritível a pretensão punitiva do Estado” (BRASIL, 2004, p. 544). Na mesma data, o Ministro Maurício Correa pediu vistas do processo. O julgamento ficou suspenso até o ano de 2003.
Após amplos debates e até mesmo a admissão de um amicus curiae no caso, o Prof. Dr. Celso Lafer, o julgamento foi retomado em 09/04/2003 (LAFER. 2004LAFER, Celso. Parecer - O caso Elwanger: anti-semitismo como crime da prática do racismo. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, n. 162, abr./jun. 2004.).
O voto divergente foi apresentado pelo Ministro Maurício Corrêa. Em apertada síntese, Corrêa considerou que: (i) existe somente uma raça, a humana, razão pela qual incide o crime de racismo contra a comunidade judaica; (ii) a divisão em raças consiste em um processo político-social, que é apta somente a gerar preconceito e segregação; (iii) a adesão ao Brasil de diversos Tratados Internacionais reforça o compromisso com o combate à discriminação racial, o que compreende as distinções entre homens a partir de raça, cor, credo ou origem étnico-racial; (iv) a exposição de visão antissemita denota cunho eminentemente racista, havendo inegável dolo na conduta de Siegfried Ellwanger Castan; (v) a liberdade de expressão não constitui uma garantia constitucional absoluta, de modo que o direito à livre expressão não pode albergar manifestações de cunho imoral ou ilícitas; e, (vi) a liberdade de manifestação não é incondicionada, já que um direito fundamental não pode dar guarida a uma conduta manifestamente ilícita (BRASIL, 2004b).
Na visão do Relator, o Min. Maurício Corrêa: “O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra” (BRASIL, 2004b, p. 586).
O voto do Ministro Mauricio Corrêa foi acompanhado pelos Ministros Nelson Jobim, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Celso de Mello, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. Acompanharam o Relator Moreira Alves os Ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio Mello.
Em relação à divergência, o voto do Ministro Marco Aurélio Mello no caso é considerado como um exemplo da defesa do liberalismo, por entender que a liberdade de expressão seria um dos direitos mais importante expostos no texto da Constituição Federal, a partir de um pressuposto geral de neutralidade em relação às condutas analisadas: “O balanço, portanto, que se pode fazer do voto do Ministro Marco Aurélio é de que se trata de um voto com diversos indicadores de influência direta das ideias liberais sobre a conclusão jurídica que se chega” (CAVALCANTE FILHO, 2018CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O discurso do ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira. São Paulo: Saraiva, 2018., p. 175). Sublinha-se que a postura do Ministro Marco Aurélio Mello, concretizada no HC nº 82.424, irá se manifestar de maneira expressa em outros casos envolvendo a liberdade de expressão - conforme se detalhará no item 4, do artigo.
3.1 Proporcionalidade e ponderação da liberdade de expressão no caso Ellwanger
Muito embora o Relator originário, o Ministro Moreira Alves, tenha se aposentado em 2003, um dos votos mais importante no caso é do Ministro Gilmar Mendes, considerado como um dos principais marcos para o estudo da proporcionalidade no exercício da liberdade de expressão.
O voto do Ministro Gilmar Mendes fez longas digressões sobre o limite da liberdade de expressão. O direito à liberdade de manifestação possua um caráter aberto, é preciso verificar a incidência da proporcionalidade, com o objetivo de delimitar o dano existente às minorias. Na ocorrência de colisão de direitos fundamentais deverá haver a resolução por meio da utilização do princípio da proporcionalidade, tendo em vista o evidente confronto entre a liberdade de expressão e a proibição do abuso de direito. Na visão de Mendes, o princípio da proporcionalidade é um método de avaliação da constitucionalidade da restrição a direitos fundamentais, devendo-se passar pelos testes de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (BRASIL, 2004a).
Após ter determinado a aplicabilidade da proporcionalidade ao caso concreto, o ponto a ser avaliado a partir do exame de proporcionalidade é a decisão condenatória ao enquadro o racismo como uma conduta considerada como imprescritível (HERCK, 2014HERCK, Gil Pierre de Toledo. O princípio da proporcionalidade e argumentação: estudo dos votos do Ministro Gilmar Mendes nos casos de liberdade de expressão. São Paulo: ABDP, 2014, p. 35. Monografia apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Disponível em: <https://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/04/254_Gil-Pierre-Herck.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2022.
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). Mendes considerou que a penalidade criminal de Ellwanger seria adequada para o fim de vedação ao racismo, bem como necessária - pela inexistência de meio menos gravoso de punição, atendendo ao fim de proporcionalidade de proporcionalidade em sentido estrito (BRASIL, 2004a).
Na visão de Silva (2021SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.), a decisão do STF no caso Ellwanger destoa dos demais casos envolvendo a liberdade de expressão. O autor compreende que, na maioria das vezes, o STF tende a decidir em favor desta última; todavia, o caso Ellwanger não segue essa lógica de prevalência da liberdade de expressão.
A partir da teoria interna, apresentada no item 2.1 do texto, os direitos fundamentais não poderiam ser objeto de sopesamento. Se o direito subjetivo existe, ele poder ser naturalmente exercido dentro de seus limites. E, nesse sentido, inserem-se os limites imanentes. O STF, muito embora não tenha dito expressamente isso, no caso Ellwanger, a liberdade de expressão não seria incondicional, com os contornos trazidos pela própria Constituição.
Portanto, o caso Ellwanger trouxe critérios considerados como bastante inovadores para a jurisprudência do STF para a resolução de conflitos de direitos fundamentais, especialmente a proposição contida no voto do Ministro Gilmar Mendes.
3.2 A importância do caso Ellwanger para a afirmação do Supremo Tribunal Federal no contexto pós-Constituição de 1988
Arguelhes (2021ARGUELHES, Diego Werneck. Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo? Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021.) considera que o caso Ellwanger demonstra o confronto entre dois Supremos, um integrado pelos Ministros indicados pelos Presidentes da Ditadura Militar (em que pese terem tido um papel determinante na construção do Supremo Tribunal Federal após a Constituição Federal) e aqueles que tiveram suas carreiras já construídas sob a égide do texto constitucional pós-1988.
Todavia, o caso Ellwanger marca uma nova era do STF, porque foi um dos primeiros julgamentos integralmente televisionados pela recém criada TV Justiça, na qual se conheceu a fundo as divergências entre os Ministros, especialmente o duro embate entre o Ministro Maurício Corrêa e o Ministro Moreira Alves.8 8 O Relator do caso, o Ministro Moreira Alves acusou o Ministro Maurício Correa, Relator para o Acórdão do caso, de mimetizar o Parecer juntado aos autos de lavra do Prof. Dr. Celso Lafer: “Moreira Alves afirmou que o voto de Maurício Corrêa praticamente repetia as palavras de Lafer. [...] As similitudes, na visão de Moreira Alves, e sua menção a essas semelhanças geraram uma áspera discussão entre ambos. Corrêa interpretou que o colega o acusava de apenas reproduzir os argumentos do parecerista, como se em seu voto não houvesse nada de novo, mera reprodução do parecer” (RECONDO; WEBER, 2019, p. 221-222). Na visão dos autores o caso Ellwanger marca uma nova era do STF, visão que é compartilhada por Arguelhes (2021).
As críticas que são feitas ao caso Ellwanger consistem: (1) na utilização na técnica da ponderação para a resolução de um caso concreto em matéria penal, o que é controvertido; (2) a adoção de pressupostos de criminalização do Nazismo próprios do contexto da Alemanha, onde há legislação penal específica para a punição de tal conduta; (3) a influência política adotada em alguns votos, especialmente dos Ministros Maurício Corrêa e Nelson Jobim; e, (4) a divergência e a ausência de unanimidade nos votos evidencia a inexistência de uma uniformidade de tratamento à liberdade de expressão (CAVALCANTE FILHO, 2018CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O discurso do ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira. São Paulo: Saraiva, 2018.).
Mesmo que o padrão decisório do STF não seja um dos objetivos principais do artigo, é possível notar que os acórdãos do Supremo não são estruturados de forma a apresentar uma opinião consensual de todo o colegiado, o que permite declarações individuais de voto (KLAFKE; PRETZEL, 2014KLAFKE, Guilherme Forma; PRETZEL, Bruna Romano. Processo decisório no Supremo Tribunal Federal: aprofundando o diagnóstico das onze ilhas. Revista de Estudos Empíricos em Direito. São Paulo, vol. 1, n.1., jan., 2014., p. 92). No caso específico de Ellwanger, as diferentes posições manifestadas por diversos ministros a respeito do conteúdo da liberdade de expressão não permitem uma compreensão uníssona sobre sua dimensão.
No mesmo sentido, João Paulo Capelotti (2016CAPELOTTI, João Paulo. Ridendo castigat mores: tutelas reparatórias e inibitórias de manifestações humorísticas no direito civil brasileiro. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Xavier Leonardo, Curitiba, 2016., p.159) compreende, no caso Ellwanger, a maioria do STF permitiu que se faça uma avaliação quanto ao conteúdo, e não apenas à forma de como é manifestada a liberdade de expressão. Barcellos (2005BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.) compreende que o julgamento do caso Ellwanger denota a utilização dos pressupostos da ponderação de dispositivos constitucionais que parecem, de certo modo, fornecer subsídios ao intérprete para que ele possa afastar a aplicação de dispositivos válidos e até mesmo relativizar regras constitucionais.
Feitos os esclarecimentos sobre a importância do caso Ellwanger para fins de compreensão da própria estrutura do STF no contexto pós-Constituição Federal de 1988, apresentam-se a seguir os casos mais recentes em matéria de liberdade de expressão, nos quais o precedente Ellwanger tenha sido utilizado como um dos fundamentos decisórios do Supremo.
4. Casos mais recentes em que houve a citação do precedente Ellwanger
A partir do importante precedente estabelecido no caso Ellwanger, o artigo busca analisar a atualidade (ou não) do caso do HC nº 82.424/RS para outros casos mais recentes envolvendo conflitos de liberdade de expressão. Para isso, a pesquisa valeu-se de pesquisa dos vocábulos “Ellwanger”, “discurso de ódio” e “HC 82.424” no sistema de pesquisa de jurisprudência do STF.9 9 As pesquisas no sistema de jurisprudência do STF foram realizadas entre 10 de julho de 2021 e 10 de agosto de 2021, disponível no link: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search>.
Somente os resultados mais relevantes em termos de representatividade para litígios envolvendo a liberdade de expressão e o caso Ellwanger foram escolhidos, a partir de julgamento do autor do artigo, sendo descartados acórdãos com meras citações/remissões ao HC nº 82.424 que não possuíam direta ligação com o direito à livre manifestação. Assim sendo, apresentam-se os resultados obtidos.
4.1 Publicação de biografias não autorizadas - ADI 4.815
A ADI 4815 foi julgada procedente pelo Plenário do STF, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), que sustentava que os arts. 20 e 21, do Código Civil,10 10 Os dispositivos do Código Civil considerados como inconstitucionais assim dispõem sobre a publicação de bibliografias: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. seriam incompatíveis com a ordem constitucional por ferirem, justamente, a liberdade de expressão. Por esse motivo, a ANEL pediu que os dispositivos fossem interpretados conforme a Constituição, no sentido de que os dispositivos do Código Civil permitissem o livre exercício da atividade intelectual, artística e de comunicação, independente de censura ou licença da pessoa biografada.
A Relatora do caso, a Ministra Carmen Lúcia, considerou que a liberdade de expressão não pode ser limitada pelas previsões do Código Civil. A razão estaria no fato de que o texto da Constituição proíbe qualquer tipo de censura e o exercício do direito à liberdade de expressão, não podendo ser cerceada pelo Estado ou pelo particular.
Pelo fato de as biografias serem parte integrante história, a exigência de autorização prévia para a sua publicação constitui uma forma de censura particular, sendo que o recolhimento de livros por meio de decisão judicial é uma maneira de censura, havendo, para isso, a indenização em danos morais e o direito de resposta, que são exercidos nos termos da Lei para que se possa concretizar a plenitude do direito à liberdade de expressão (BRASIL, 2015).
A Ministra ponderou ainda que a liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular a norma constitucional por meio de uma previsão infraconstitucional como a do Código Civil, no sentido de resguardar a privacidade, a honra e imagem dos indivíduos.
Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio Mello fez questão de mencionar o seu voto no caso Ellwanger (HC nº 82.424) para demonstrar que, em sua visão, a liberdade de expressão não comporta nenhum tipo de limitação, devendo ser um direito pleno, sem qualquer espécie de limitação (posição que será repetida em diversos votos).
O caso não teve divergências maiores entre os Ministros, com a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto dos arts. 20 e 21, do Código Civil, bem como para conferir interpretação conforme a Constituição dos dispositivos mencionados, nos termos do pedido inicial da ANEL.
4.2 Recurso Ordinário em Habeas Corpus do Padre Jonas Abib - RHC nº 134.682/BA
Em 2016, a Primeira Turma do STF julgou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus, cujo o paciente era o Monsenhor Jonas Abib, religioso integrante da Igreja Católica Apostólica Romana. O recurso buscava atacar decisão do STJ, que manteve o prosseguimento de ação penal ajuizada pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) contra o sacerdote Jonas Abib.
O religioso Jonas Abib escreveu o livro “Sim, Sim, Não, Não Reflexões de cura e liberação”, que professaria diversas palavras ofensivas às religiões de matiz africana e espírita.11 11 Para o MP-BA, um problema relevante é que o livro teve mais de 400 mil exemplares vendidos e chegou à 85ª edição em 2007. A obra chegou a ser recolhida em 2008 por ordem da Justiça da Bahia. Por esse motivo, até mesmo baseado no que decidiu o STF no caso Ellwanger, o Ministério Público entendeu pela existência de crime de racismo contra a comunidade espírita, conforme a disposição do art. 20, da Lei nº 7.716/1989.12 12 O Parecer da Procuradoria-Geral da República é pelo desprovimento do recurso, por se entender que a liberdade de expressão não seria um direito fundamental absoluto.
A tese central do recurso do religioso encontrava-se no fato de que os acontecimentos que lhe foram imputados estariam acobertados pela liberdade de expressão e religião, de modo que o proselitismo religioso seria uma repercussão direta do direito ao livre exercício da religião. Assim sendo, não restaria configurado crime de racismo, mesmo que dirigido a uma comunidade religiosa específica.
Ou seja, a questão trazida pelo recurso de Jonas Abib seria de que haveria uma verdadeira atipicidade da conduta, motivo pelo qual não restaria configurado a imprescritibilidade do crime de racismo. O caso foi julgado em 29/11/2016 pela Primeira Turma do STF, integrada, à época dos fatos, pelo Ministro Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux.
O voto do Relator do caso, Ministro Luiz Edson Fachin, reconheceu que o STF, assim como decidiu no caso Ellwanger, compreende que o crime de racismo é imprescritível, distinguindo a importância daquele caso para a solução deste. No entanto, a divergência da resolução do caso Ellwanger para o presente foi a compreensão sobre a limitação da liberdade de expressão x liberdade religiosa. Essa foi a única menção ao caso Ellwanger em todo o acórdão.
O Ministro Luiz Edson Fachin, em seu voto, entendeu que a liberdade religiosa atua de maneira análoga à liberdade de expressão, de forma negativa, mas adiciona ao seu espectro a “escolha de convicções, de optar, ou não, por determinada religião, de empreender proselitismo e de explicitação de atos próprios de religiosidade” (BRASIL, 2016, p. 12). Muito embora a liberdade religiosa possua limites e não se configure como um direito absoluto, ela precisa ser limitada e informada pelo próprio texto da Constituição.
A resolução do caso Jonas Abib perpassou pela colisão entre a liberdade de expressão x liberdade religiosa x repúdio ao racismo. Diferentemente de outras publicações, o Relator interpretou que o discurso religioso não é coincidente com aquilo que a sociedade pensa ou reflete, pois “tolher o proselitismo indispensável à consecução das finalidades de religiões que se pretendem universais configuraria, ao fim e ao cabo, o ataque ao núcleo essencial da liberdade de expressão religiosa” (BRASIL, 2016, p. 16).
Assim, o Relator abrangeu que, mesmo que o discurso religioso possa incidir em comparações incômodas ou até mesmo preconceituosas, não estaria configurado o delito de racismo ou de intolerância religiosa. Para a verificação dos limites do discurso religioso, é preciso analisar a legitimidade dos métodos de persuasão; ou seja, o convencimento por meio da utilização da fé, sem a realização da violência e com o respeito à dignidade da pessoa humana (BRASIL, 2016).
Na análise específica do caso, o Relator abrangeu que o religioso Jonas Abib deixa claro em sua obra que seu objetivo não seria de ofender ninguém, mas a orientação dirigida à população católica a respeito da incompatibilidade entre o catolicismo e o espiritismo.13 13 Para que fique claro sobre os trechos controversos da publicação do padre Jonas Abib, extrai-se do Voto do Ministro Relator: “O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". Ele continua usando o mesmo disfarce. Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde nos rituais e nas práticas do espiritismo, da umbanda, do candomblé e de outras formas de espiritismo. Todas essas formas de espiritismo têm em comum a consulta aos espíritos e a reencarnação”. "Os próprios pais e mães-de-santo e todos os que trabalham em centros e terreiros são as primeiras vítimas: são instrumentalizados por Satanás. (...) A doutrina espírita é maligna, vem do maligno. (...)”. "O espiritismo não é uma coisa qualquer como alguns pensam. Em vez de viver no Espírito santo, de depender dele e ser conduzida por Ele, a pessoa acaba sendo conduzida por espíritos malignos. (...) O espiritismo é como uma epidemia e como tal deve ser combatido: é um foco de morte. O espiritismo precisa ser desterrado da nossa vida. Não é preciso ser cristão e ser espírita, (...) Limpe-se totalmente!". "Há pessoas que já leram muitos livros do chamado "espiritismo de mesa branca", de um kardecista muito intelectual que realmente fascina - as coisas do inimigo fascinam. Desfaça-se de tudo. Queime tudo. Não fique com nenhum desses livros. (...)” (BRASIL, 2016, p. 16-18, 29-30, 43). Mesmo que o livro tenha tecido diversas críticas fortes contra o espiritismo, por integrar a liberdade religiosa, “apesar de indiscutivelmente preconceituosa, intolerante, pedante e prepotente, encontra guarida na liberdade de expressão religiosa e, em tal dimensão, não preenche o âmbito proibitivo da norma penal incriminadora” (BRASIL, 2016, p. 24). O voto do Relator foi para se declarar o trancamento da ação penal pela atipicidade da conduta, mas sem desconhecer da imprescritibilidade do delito, exatamente como decidiu o STF no caso Ellwanger.
Após a leitura do voto pelo Ministro Luiz Edson Fachin, a Ministra Rosa Weber acompanhou a proposição do Relator, assentando que, em sua visão, a manifestação do padre Jonas Abib estaria abrangida pela liberdade religiosa (BRASIL, 2016).
O Ministro Marco Aurélio Mello também acompanhou o Relator, adicionando que não existiria discurso de ódio por parte de Jonas Abib, levando em consideração que a concessão da ordem em favor do sacerdote se dava, também, por conta de seu entendimento no caso Ellwanger, ocasião na qual concedeu a ordem em favor do escritor gaúcho, por entender que se estaria diante da incidência plena da liberdade de expressão (BRASIL, 2016).
O Ministro Luís Roberto Barroso acompanhou o Relator pelo trancamento da ação penal. As observações de Barroso são interessantes, pois, em sua visão, mesmo que o sacerdote Jonas Abib tenha sido evidentemente intolerante, a liberdade de expressão visa proteger, justamente, quem pensa de forma diferente. Na visão de Barroso, a única limitação à liberdade de expressão seria o discurso do ódio, quando dirigida a grupos minoritários.
Todavia, Barroso assentou que a diferença essencial entre o caso Jonas Abib e o Ellwanger é o de que os judeus devem ser compreendidos como um grupo minoritário, historicamente vulnerável. Por esse motivo, não estaria evidenciado o discurso de ódio: “não acho que os espíritas sejam um grupo historicamente vulnerável para invocar o tipo de proteção que a exceção do hate speech admitiria” (BRASIL, 2016, p. 34).
Por sua vez, o Ministro Luiz Fux divergiu do entendimento esposado pelo Ministro Fachin para não acolher o trancamento da ação. Ainda que não tenha preparado um voto divergente, Fux considerou que Abib teria passado dos limites da liberdade de expressão, quando o sacerdote expõe que os espíritas estão possuídos por um demônio maligno. Além disso, compreendeu que as pessoas professam a religião espírita a partir da perspectiva do bem, fundamento pelo qual a intolerância contra qualquer vertente religiosa deve ser devidamente sancionada pelo direito penal.
4.3 Ministério Público Federal x Jair Messias Bolsonaro - Inquérito nº 4.694/DF
O terceiro caso analisado é o Inquérito nº 4.694/DF. A Procuradoria-Geral da República denunciou o então Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro pela suposta prática do crime de racismo, decorrente do art. 20, da Lei nº 7.716/1989, em decorrência de palestra proferida em 03 de abril de 2017, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, no qual teria se manifestado de maneira depreciativa sobre quilombolas, indígenas, refugiados, estrangeiros e LGBTs, em diversos trechos que foram destacados pelo Ministério Público Federal.
A defesa de Jair Messias Bolsonaro alegou que a conduta seria atípica, uma vez que não houve qualquer hipótese de incitação ao racismo, uma vez que o denunciado estaria no pleno exercício de seu mandato parlamentar, de modo que as suas manifestações devem ser interpretadas dentro de tal contexto da imunidade. Porém, o principal argumento versado por Bolsonaro seria de que haveria a incidência da imunidade material prevista no art. 53, caput, da Constituição Federal.14 14 “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
O caso foi distribuído à Primeira Turma do STF e teve o seu julgamento iniciado e finalizado em 28/08/2018. O Relator, o Ministro Marco Aurélio Mello, logo no início de seu voto, fez questão de mencionar que o caso Ellwanger possui direta repercussão para a denúncia proposta contra Jair Messias Bolsonaro, uma vez que o pressuposto estabelecido para o crime de racismo não tornaria a conduta como atípica:
observem haver o Pleno, por ocasião do exame do habeas corpus nº 82.424, relator ministro Moreira Alves, redator do acórdão ministro Maurício Corrêa, agasalhado, no tocante à abrangência do conceito de racismo, a necessidade de proceder-se à interpretação teleológica e sistemática da Constituição Federal (BRASIL, 2018, p. 9).
No entendimento do Ministro Marco Aurélio Mello, o discurso de Jair Bolsonaro contra a comunidade quilombola não objetivaria a dominação, repressão ou mesmo eliminação desta, o que não caracterizaria o ilícito do art. 20, caput, da Lei nº 7.716/1989. Em relação ao discurso depreciativo aos estrangeiros, Mello entendeu que a fala do acusado estaria dentro do âmbito de crítica à política de imigração adotada pelo Governo Federal, não havendo razão para se considerar como xenofobia (BRASIL, 2018).
Para fundamentar sua premissa, Marco Aurélio Mello utiliza trecho do voto do Ministro Moreira Alves no caso Ellwanger - voto vencido no HC nº 82.424 - e afirma que a liberdade de expressão integraria a possibilidade de serem ouvidas mesmo as opiniões mais extremadas, de maneira aberta, sem que o Estado a contrarie, auxiliando a construção de uma sociedade plural.
Mesmo assim, Mello considerou que deveria prevalecer, também, a previsão do art. 53, caput, da Constituição Federal, que versa sobre a imunidade parlamentar.
A divergência foi aberta pelo Ministro Luís Roberto Barroso, que considerou que a denúncia deveria ser recebida somente quanto à acusação de racismo contra a comunidade quilombola, rejeitando a denúncia quanto à acusação de xenofobia. O argumento principal de Barroso foi de que esta comunidade seria historicamente vulnerável, configurando-se como um caso de hate speech.
No específico caso, para fundamentar sua posição, Barroso mencionou aquilo que decidiu o STF no caso Ellwanger: “[...] o Supremo já o fez no caso ‘Ellwanger’, em que a Corte entendeu - e fez muito bem - que a liberdade de expressão não protege o hate speech contra os judeus, de modo que manifestações antissemitas podem constituir prática do crime de racismo” (BRASIL, 2018, p. 21). A Ministra Rosa Weber acompanhou a divergência aberta pelo Ministro Luís Roberto Barroso.
Por sua vez, o Ministro Luiz Fux acompanhou o Relator Marco Aurélio Mello, para considerar a inexistência de conduta típica por parte de Jair Messias Bolsonaro. Interessante notar que, em seu voto, o Ministro Fux faz referência expressa ao caso Jonas Abib (RHC nº 134.682/BA), especialmente o voto do Ministro Fachin, que entendeu que a liberdade de expressão não se trata de mera discordância com a visão dominante, mas que se averigue o especial fim de agir do agente.15 15 Aqui é interessante observar que o Ministro Luiz Fux votou de modo divergente no RHC nº 134.682/BA, caso Jonas Abib, por considerar que existiria nítido discurso de ódio de Abib contra a comunidade espírita. Além disso, naquela ocasião, manifestou muita preocupação com a legitimação do STF a uma situação de discurso de ódio. Todavia, afirmou de maneira expressa que se curvaria àquilo que foi decidido no RHC nº 134.682/BA em outras situações parecidas que viessem a ser julgadas pela Primeira Turma do STF. Efetivamente, o Ministro Luiz Fux fez aquilo que disse que seguiria doravante a partir do RHC nº 134.682/BA, mas não se perde de vista que o seu voto proferido no Inq. 4.694/DF (Ministério Público Federal x Jair Messias Bolsonaro) destoa totalmente daquilo que ele mesmo decidiu no caso Jonas Abib.
O Ministro Alexandre de Moraes acompanhou o Relator, apenas tecendo considerações sobre a importância da imunidade parlamentar, considerando inexistir discurso de ódio, com a rejeição integral da denúncia. Ou seja, a Primeira Turma do STF rejeitou, por a maioria, a denúncia contra o parlamentar.
4.4 Luiz Carlos Mendonça de Barros x Carlos Francisco Ribeiro Jereissati - RE 685.493/SP
O quarto e último caso é o Recurso Extraordinário (RE) nº 685.493/SP, com repercussão geral reconhecida, no qual o empresário Carlos Francisco Ribeiro Jereissati ingressou com ação indenizatória contra o ex-Ministro das Comunicações do Governo Fernando Henrique Cardoso, Luiz Carlos Mendonça de Barros. Os fatos se deram em decorrência de reportagem, publicada na Revista Época em 23 de novembro de 1998, ter divulgado trechos de ligações telefônicas entre Luiz Carlos Mendonça de Barros e André Lara Resende, Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no qual se indicava uma suposta preferência de Barros por um dos consórcios que estaria participando do processo licitatório de privatização do sistema Telebrás.
Além disso, a controvérsia judicial se deu pelo fato de que Barros ter afirmado, em diversos órgãos de imprensa, que acreditava que o vazamento das ligações ilicitamente grampeadas teria pretensamente partido do empresário Carlos Francisco Ribeiro Jereissati. Para isso, Jereissati ajuizou, ainda em 1998, ação indenizatória cível contra Mendonça de Barros perante a Justiça de São Paulo, demandando a reparação em R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais).
A sentença julgou improcedente a demanda, com a condenação em honorários advocatícios na monta de 15%, o que totalizaria a quantia de R$ 2.250.000,00. Assim, Jereissati apelou ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que manteve a improcedência da demanda, mas apenas deu provimento ao recurso de Jereissati para reduzir os honorários advocatícios a R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).
Jereissati interpôs Recurso Especial, que teve seguimento concedido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o recurso de Jereissati, no REsp nº 961.512/SP, considerou que Luiz Carlos Mendonça de Barros ofendeu a honra de Jereissati ao atribuir-lhe, de forma reiterada e pública, o cometimento de suposto delito criminal, fixando indenização no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
Mendonça de Barros, então, interpôs Recurso Extraordinário em face da decisão do STJ. Em seu recurso, asseverou que a decisão do STJ violou a liberdade de expressão (contida nos arts. 5º, IX, e 220, da Constituição Federal), pois, na condição de Ministro de Estado das Comunicações, explicitou somente uma opinião de cunho crítico, que deveria ser alcançada pela liberdade de expressão. Ponderou, ainda, que as declarações feitas na função de Ministro de Estado não ensejariam indenização em dano moral, salvo em casos excepcionais.
A Repercussão Geral foi reconhecida pelo Plenário do STF em 10/08/2012. O voto do Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, fez breves digressões sobre o conteúdo da liberdade de expressão, remetendo, mais uma vez, o seu voto no caso Ellwanger. Todavia, diferentemente das outras ocasiões analisadas na qual apenas exaltava o seu entendimento sobre a impossibilidade de restrição do direito à liberdade de expressão, no presente caso, Mello fez colocações importantes sobre o conteúdo desta liberdade constitucional (BRASIL, 2012).
O Relator mencionou que o STF tem entendido que as restrições à liberdade de expressão decorrem da colisão com outros direitos fundamentais, como a proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem de terceiros. Assim sendo, o Ministro referiu, de maneira, expressa que “nenhum direito é absoluto, nem mesmo a garantia à liberdade de expressão (ver, por todos, Habeas Corpus nº 82.424, redator do acórdão ministro Maurício Corrêa, julgado em 17 de setembro de 2003, em que fiquei vencido)” (BRASIL, 2020, p. 8). Aqui, mais uma vez, houve menção expressa ao caso Ellwanger por parte do Relator para o julgamento da causa.
Todavia, o voto do Ministro Marco Aurélio Mello considerou que deve sempre haver a prevalência da liberdade de expressão quando em confronto com outros valores constitucionais. Assim, a posição de Mello foi de considerar que a liberdade de expressão possuiria maior relevância frente a outros valores de natureza constitucional. 16 16 “Especificando com o conflito existente no RE 685.493/SP entre liberdade de expressão x exercício da função pública, o voto condutor sintetizou da seguinte forma: “o que está em debate não é a liberdade de expressão nas relações que o servidor estabelece com a própria Administração Pública, à qual está ligado, como visto, de forma vertical. Busca-se definir a extensão do direito à liberdade de expressão no trato com os administrados de modo geral e presente a coisa pública” (BRASIL, 2020, p. 11).
Mello entendeu que o regime de responsabilização dos agentes políticos, como era o caso de Mendonça de Barros, possui especificidades, isso porque, na visão do Ministro: (1) existe interesse público em que os agentes públicos mantenham os cidadãos informados sobre a condição dos negócios públicos; (2) os agentes públicos possuem um dever de expressão, já que, em diversas circunstancias, são obrigadas a se manifestar sobre fatos públicos; e, (3) o Supremo Tribunal Federal compreende que a privacidade dos servidores públicos situa-se em posição inferior ao dos demais indivíduos, “aqueles que ocupam cargos públicos têm a esfera de privacidade reduzida. Isso porque o regime democrático impõe que estejam mais abertos à crítica popular” (BRASIL, 2020, p. 15).
Analisando o caso concreto, Mello entendeu que os juízos de Mendonça de Barros foram: (a) proferidos no calor do momento, sem maior reflexão ou prova; (b) as acusações de Barros contra Jereissati não foram incriminatórias, mas apenas com um juízo de possibilidade; e, (c) as afirmações ocorreram no bojo da controvérsia dos procedimentos de privatização, no qual o Ministério comandado por Barros era diretamente envolvido.
Por envolver suposto direcionamento de procedimento licitatório, há inegável interesse público nas conversas entre Luiz Carlos Mendonça de Barros e André Lara Resende. Por esse motivo, Mello abrangeu que inexistiria qualquer necessidade de indenização por parte de Mendonça de Barros, já que a “liberdade de expressão é o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir” (BRASIL, 2020, p. 22).17 17 A ideia se aproxima da explicação sobre a garantia negativa da liberdade de expressão. Pieroth e Schlink (2012, p. 269) expõem o seguinte: “É que, tal como da liberdade de opinião positiva faz parte o fato de a opinião chegar ao seu destinatário, também da liberdade de opinião negativa faz parte o fato de a opinião também não ser transmitida àquele a quem o manifestante e difusor também não ser transmitida àquele a quem o manifestante e difusor a não quiser fazer chegar”.
Por fim, a proposta do Ministro foi a de dar provimento ao recurso extraordinário para a reforma integral do acórdão do STJ, com o julgamento de improcedência da demanda, tal como decidido inicialmente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mas com a redução dos honorários advocatícios a serem arcados por Carlos Francisco Ribeiro Jereissati. Foi proposta, ainda, a seguinte tese: “Ante conflito entre a liberdade de expressão de agente político, na defesa da coisa pública, e honra de terceiro, há de prevalecer o interesse coletivo” (BRASIL, 2020, p. 22).
Apenas a proposta do Ministro Luiz Edson Fachin dava provimento ao recurso para a extinção do processo sem julgamento de mérito, pela existência de ilegitimidade passiva. A única real divergência entre os Ministros foi sobre a tese aplicável ao caso concreto, cuja proposição de tese do Ministro Alexandre de Morais era a seguinte: “Os ministros de Estado, por não serem abrangidos pela imunidade material, estão sujeitos ao dever de reparação previsto no art. 5º, V, da Constituição Federal, em face de opiniões e palavras que violem o art. 5º, X, da CF/1988, inclusive se proferidas em razão do exercício do cargo” (BRASIL, 2020, p. 68), sendo acompanhada pela Ministra Rosa Weber.
4.5 Interações e dissonâncias entre os casos recentes selecionados e o precedente Ellwanger
Muito embora a composição do STF, nos casos elencados citados acima, tenha alterado de forma considerável - consoante os esclarecimentos que já foram realizados no item 3.2 do artigo - cumpre realizar uma análise de interação e dissonâncias desses com o paradigmático caso Ellwanger.
Em relação ao primeiro julgado selecionado, biografias não autorizadas (ADI 4.815), o caso Ellwanger não parece ter tido um impacto em termos de definição dos critérios de ponderação quanto ao aparente conflito da liberdade de expressão com a vida privada dos indivíduos biografados. Isso porque, até mesmo, a decisão do Plenário do STF foi unânime, decidindo-se pela inconstitucionalidade das disposições dos arts. 20 e 21, do Código Civil, em relação à liberdade de manifestação prevista no art. 5º, IX, da Constituição Federal.
Quanto ao segundo caso, o RHC nº 134.682/BA (Jonas Abib), muito embora tenha citado diretamente diversos trechos daquilo que decidiu o STF no caso Ellwanger, houve uma divergência completa daquilo que se decidiu em 2003. Os motivos são simples, o STF compreendeu que o proselitismo religioso integra a liberdade de expressão, mesmo que as palavras proferidas tenham sido contra uma comunidade específica (espíritas). No entanto, o STF entendeu que os pressupostos do caso Ellwanger são totalmente válidos especialmente quanto à imprescritibilidade do crime de racismo e às ofensas dirigidas a raça humana, mas, quando envolvida uma comunidade que supostamente não seria vulnerável, não haveria motivo para haver repreensão da conduta.
Dentre os casos escolhidos, talvez, o caso Jonas Abib tenha sido o que gerou a maior discussão, especialmente quanto à solução dada pela Suprema Corte brasileira para casos versando sobre a liberdade de expressão. Weingartner Neto (2019) expõe que a dissociação realizada em termos de hate speech e a liberdade religiosa parece ser frágil, uma vez que o livro de Jonas Abib também se dirige às religiões de matriz africana, sendo que a denúncia se referia, primordialmente, a essas manifestações religiosas.
Weingartner Neto (2019) entende que o caso Jonas Abib funcionou como uma espécie de modulação ao paradigma do caso Ellwanger, já que este último tratava nitidamente de uma hipótese de racismo, enquanto aquele versaria sobre a intolerância religiosa.18 18 A mesma conclusão é apresentada por Silva (2017). Ainda, o caso Jonas Abib considerou que a liberdade de expressão abrange o proselitismo religioso, mas que traz dúvidas quando aplicado em face dos adeptos das religiões de matriz africana. Todavia, o caso Abib tem a capacidade de oferecer novas perspectivas para outras situações de conflitos entre a liberdade de expressão.
De acordo com Leite (2019LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de expressão religiosa e discurso de ódio contrarreligioso: a decisão do STF no RHC 134.682. Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 7, n. 3, out., 2019.), o caso Jonas Abib não trouxe bons parâmetros em termos de conflitos de liberdade de expressão e outros valores constitucionais. No entendimento de Leite, o precedente encaixa-se no problema existente no ordenamento jurídico da ausência de regras, súmulas, enunciados ou mesmo entendimentos doutrinários sobre a liberdade de expressão, o que poderia reduzir, até mesmo, a quantidade de processos envolvendo o assunto.
Mas, as objeções realizadas por Leite (2019LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de expressão religiosa e discurso de ódio contrarreligioso: a decisão do STF no RHC 134.682. Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 7, n. 3, out., 2019.) quanto à solução adotada pelo STF foram de que pouco importaria se Jonas Abib fosse integrante da Igreja Católica, mesmo porque o objetivo desta seita seja possuir um discurso tendente à universalidade dos cristãos. Ademais, o autor pondera que o caso gera muito mais dúvidas do que respostas efetivas, parecendo, em sua visão, um caso concreto sob medida, sem que houvesse uma solução de maneira mais universalizante.
Quanto ao terceiro caso (Ministério Público Federal x Jair Messias Bolsonaro - Inq 4694), novamente, o STF valeu-se esparsamente de diversos pressupostos teóricos formulados pela Suprema Corte no caso Ellwanger. Assim como nos demais casos, a lição retirada do HC nº 82.424 é apenas de que a liberdade de expressão não é um valor absoluto, mas não quando confrontada com a imunidade parlamentar, contida no art. 53, caput, da Constituição Federal. Novamente, trechos de Ellwanger são citados de forma espalhada, mas sem haver a devida contextualização de cada situação, nem mesmo qual era o conflito existente no julgamento em questão.
E, por fim, o caso Luiz Carlos Mendonça de Barros x Carlos Francisco Ribeiro Jereissati - RE 685.493/SP - também possui diversas citações do caso Ellwanger, especialmente diversas menções são feitas pelo Relator Marco Aurélio Mello à sua postura favorável a um maior liberalismo quanto à liberdade de expressão e de como ele sempre se filiou ao provimento do recurso do Impetrante Ellwanger.
Mais uma vez, Ellwanger parece ter pouco contribuído após quase 20 anos, apenas fornecendo subsídios de fundamentação aos Ministros do STF, com trechos diversos, recortados sem a devida contextualização, especialmente o trecho do HC nº 82.424/RS que menciona que a liberdade de expressão não é um direito absoluto.
6. Conclusões
O caso Ellwanger foi um dos mais importantes julgamentos da história do STF, uma vez que o precedente marcou uma posição mais proativa da Corte Suprema na proteção de direitos fundamentais, no contexto pós-Constituição Federal de 1988. A decisão proferida pelo STF no caso Ellwanger marcou de forma inequívoca o início de uma nova era para a Corte Suprema, na qual a proteção dos direitos fundamentais passou a ter maior relevância.
Mesmo que a repercussão do HC nº 82.424/RS à época de sua decisão tenha sido bastante grande, os pressupostos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal neste caso, a partir de pesquisa de outros julgados mais recentes em termos de liberdade de expressão, não foram suficientes para definir uma posição uníssona, ou mesmo critérios claros para a decisão quanto aos conflitos envolvendo o direito à livre manifestação.
Após analisar quatro casos - biografias não autorizadas, Jonas Abib, Ministério Público Federal x Jair Messias Bolsonaro e Luiz Carlos Mendonça de Barros x Carlos Francisco Ribeiro Jereissati, conclui-se que, na maioria dos casos, a decisão do STF no Caso Ellwanger foi citada como sendo de grande importância para a definição do entendimento do STF sobre a liberdade de expressão e o proselitismo religioso. Contudo, houve também divergência quanto a essa decisão, sobretudo no caso Jonas Abib. Isso demonstra que, ao invés de haver uma linha única e clara, a decisão do STF no caso Ellwanger foi um mero fundamento para esses julgamentos, porém, sem demonstrar qualquer tipo de influência metodológica quanto à dimensão da liberdade de expressão.
Nas decisões mais recentes selecionadas no artigo envolvendo a liberdade de expressão, o caso Ellwanger contribuiu apenas com remissões esparsas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não havendo uma contribuição significativa para a decisão dos episódios de conflitos de liberdade de expressão pela Corte Superior;
A partir da verificação dos casos mais recentes em que há citação expressa ao HC nº 82.424/RS, em nenhum deles se verificou uma semelhança entre a técnica de decisão do caso Ellwanger, que se justifica pela existência de diferentes valores constitucionais que se conflitam diretamente com a liberdade de expressão. Ou seja, o STF tende a decidir caso a caso os problemas envolvendo a dimensão e os limites da livre manifestação do pensamento.
O caso Ellwanger parece possuir uma importância muito mais retórica ou histórica para o Supremo Tribunal Federal quanto à liberdade de expressão. Talvez, a sua mais recente repercussão seja ter consolidado a ideia de que os direitos fundamentais não são absolutos, havendo limites imanentes que são expostos pela própria Constituição Federal.
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Por sua vez, Cavalcante Filho (2018CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O discurso do ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira. São Paulo: Saraiva, 2018., p. 53) define o discurso de ódio “como a expressão cujo conteúdo ofende a honra ou a imagem de grupos sociais, especialmente minorias, ou prega a discriminação contra os integrantes desses grupos”. Pinto (2013PINTO, Indiara Liz Fazolo. Liberdade de expressão, Lei de Imprensa e discurso do ódio: da restrição como violação à limitação como proteção. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 53, jul./set. 2013., p. 219) apresenta a seguinte definição do discurso do ódio: “Entende-se que o discurso comprometido exclusivamente com a ofensa de pessoas ou grupos, em razão de características pelas quais foram historicamente oprimidos, consiste muito mais em ataque que em opinião, em nada contribuindo para o debate público e democrático. Pelo contrário, esse ambiente é inviabilizado pelo hate speech, na medida em que provoca ou a vingança da vítima, na mesma proporção de violência, ou o seu afastamento da discussão. 124 Por isso, tais manifestações não estão protegidas pela liberdade de expressão”.
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Na visão de Arguelhes (2021ARGUELHES, Diego Werneck. Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo? Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021. p. 38), o grande diferencial do caso Ellwanger seria pelo fato de se marcar uma postura de atuação do STF mais compromissada com as garantias constitucionais expostas pelo texto da Constituição de 1988: “Ellwanger não é uma vitória total ou imediata desta nova maneira de encarar a tarefa do Supremo, nem mesmo no nível do discurso. É uma arena pública em que diferentes ‘novos’ Supremos, em contraste a um mesmo ‘velho’ Supremo, reconhecem-se como aliados no diagnóstico da insuficiência do tribunal antigo e na adoção de um discurso para o tribunal novo”.
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“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
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O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul assim se pronunciou sobre os fatos delituosos: “Segundo o incluso Inquérito Policial, o denunciado, Siegfried, na qualidade de escritor e sócio-dirigente da Revisão Editora Ltda., situada na Rua Voltaire Pires, nº 300, conjs. 02/11, nesta cidade, de forma reiterada e sistemática, edita e distribui, vendendo-as ao público, obras de autores brasileiros e estrangeiros que abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias e com isso procura incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica” (RIO GRANDE DO SUL, 2004b, p. 37).
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Assim se manifestou, em 14 de junho de 1995, o Juízo da 8ª Vara Criminal de Porto Alegre: “Os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestação de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo. Lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram, e por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimento discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica. [...] As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são, senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão” (RIO GRANDE DO SUL, 2004c, p. 46).
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O Relator do caso, o Desembargador Fernando Mottola, apresentou a seguinte conclusão para fixar a condenação a Siegfried Ellwanger Castan: “Como se vê, quem distribui, vendendo-os ao público, livros que defendem ideias (próprias ou alheias, pouco importa) preconceituosas e discriminatórias, com a evidente intenção de gerar discriminação e preconceito, realiza os verbos nucleares do tipo penal do art. 20. E foi isso que o apelado fez, em plena vigência da Lei nº 8.081” (RIO GRANDE DO SUL, 2004a, p. 79).
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“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
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O Relator do caso, o Ministro Moreira Alves acusou o Ministro Maurício Correa, Relator para o Acórdão do caso, de mimetizar o Parecer juntado aos autos de lavra do Prof. Dr. Celso Lafer: “Moreira Alves afirmou que o voto de Maurício Corrêa praticamente repetia as palavras de Lafer. [...] As similitudes, na visão de Moreira Alves, e sua menção a essas semelhanças geraram uma áspera discussão entre ambos. Corrêa interpretou que o colega o acusava de apenas reproduzir os argumentos do parecerista, como se em seu voto não houvesse nada de novo, mera reprodução do parecer” (RECONDO; WEBER, 2019RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 221-222). Na visão dos autores o caso Ellwanger marca uma nova era do STF, visão que é compartilhada por Arguelhes (2021ARGUELHES, Diego Werneck. Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo? Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021.).
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As pesquisas no sistema de jurisprudência do STF foram realizadas entre 10 de julho de 2021 e 10 de agosto de 2021, disponível no link: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search>.
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Os dispositivos do Código Civil considerados como inconstitucionais assim dispõem sobre a publicação de bibliografias: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
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Para o MP-BA, um problema relevante é que o livro teve mais de 400 mil exemplares vendidos e chegou à 85ª edição em 2007. A obra chegou a ser recolhida em 2008 por ordem da Justiça da Bahia.
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O Parecer da Procuradoria-Geral da República é pelo desprovimento do recurso, por se entender que a liberdade de expressão não seria um direito fundamental absoluto.
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Para que fique claro sobre os trechos controversos da publicação do padre Jonas Abib, extrai-se do Voto do Ministro Relator: “O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". Ele continua usando o mesmo disfarce. Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde nos rituais e nas práticas do espiritismo, da umbanda, do candomblé e de outras formas de espiritismo. Todas essas formas de espiritismo têm em comum a consulta aos espíritos e a reencarnação”. "Os próprios pais e mães-de-santo e todos os que trabalham em centros e terreiros são as primeiras vítimas: são instrumentalizados por Satanás. (...) A doutrina espírita é maligna, vem do maligno. (...)”. "O espiritismo não é uma coisa qualquer como alguns pensam. Em vez de viver no Espírito santo, de depender dele e ser conduzida por Ele, a pessoa acaba sendo conduzida por espíritos malignos. (...) O espiritismo é como uma epidemia e como tal deve ser combatido: é um foco de morte. O espiritismo precisa ser desterrado da nossa vida. Não é preciso ser cristão e ser espírita, (...) Limpe-se totalmente!". "Há pessoas que já leram muitos livros do chamado "espiritismo de mesa branca", de um kardecista muito intelectual que realmente fascina - as coisas do inimigo fascinam. Desfaça-se de tudo. Queime tudo. Não fique com nenhum desses livros. (...)” (BRASIL, 2016, p. 16-18, 29-30, 43).
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“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
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Aqui é interessante observar que o Ministro Luiz Fux votou de modo divergente no RHC nº 134.682/BA, caso Jonas Abib, por considerar que existiria nítido discurso de ódio de Abib contra a comunidade espírita. Além disso, naquela ocasião, manifestou muita preocupação com a legitimação do STF a uma situação de discurso de ódio. Todavia, afirmou de maneira expressa que se curvaria àquilo que foi decidido no RHC nº 134.682/BA em outras situações parecidas que viessem a ser julgadas pela Primeira Turma do STF. Efetivamente, o Ministro Luiz Fux fez aquilo que disse que seguiria doravante a partir do RHC nº 134.682/BA, mas não se perde de vista que o seu voto proferido no Inq. 4.694/DF (Ministério Público Federal x Jair Messias Bolsonaro) destoa totalmente daquilo que ele mesmo decidiu no caso Jonas Abib.
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“Especificando com o conflito existente no RE 685.493/SP entre liberdade de expressão x exercício da função pública, o voto condutor sintetizou da seguinte forma: “o que está em debate não é a liberdade de expressão nas relações que o servidor estabelece com a própria Administração Pública, à qual está ligado, como visto, de forma vertical. Busca-se definir a extensão do direito à liberdade de expressão no trato com os administrados de modo geral e presente a coisa pública” (BRASIL, 2020, p. 11).
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A ideia se aproxima da explicação sobre a garantia negativa da liberdade de expressão. Pieroth e Schlink (2012PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 269) expõem o seguinte: “É que, tal como da liberdade de opinião positiva faz parte o fato de a opinião chegar ao seu destinatário, também da liberdade de opinião negativa faz parte o fato de a opinião também não ser transmitida àquele a quem o manifestante e difusor também não ser transmitida àquele a quem o manifestante e difusor a não quiser fazer chegar”.
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18
A mesma conclusão é apresentada por Silva (2017SILVA, Priscilla Regina da. Contrarreligião: liberdade de expressão e discurso de ódio contrarreligioso. Curitiba: Juruá, 2017.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2024
Histórico
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Recebido
05 Jun 2022 -
Aceito
12 Mar 2023