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Liberdade de aprender e ensinar: reflexões a partir do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Freedom to learn and teach reflections based on Interamerican Human Rights System

Resumo

Neste artigo propõe-se pensar fundamentos jurídicos latino-americanos para a liberdade de aprender e ensinar no contexto contemporâneo de proibições de conteúdos ou metodologias rotulados de doutrinação político-ideológica ou de implementação do que ficou conhecido como “ideologia de gênero”. A partir da proposta de um Ius Constitutionale Commune latinoamericano, analisam-se alguns julgados e opiniões consultivas pertinentes ao tema da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Corte Constitucional da Colômbia e do Supremo Tribunal Federal do Brasil para articular parâmetros interpretativos sobre a liberdade de expressão, a proteção da infância, o direito à igualdade e à educação na tentativa de demonstrar a liberdade de aprender e ensinar na educação básica como uma categoria protegida no direito interamericano.

Palavras-chave:
Liberdade de aprender e ensinar; Ius Constitutionale Commune; Direito Interamericano; Diálogo entre cortes

Abstract

This article proposes to think about Latin American legal foundations for the freedom to learn and teach in the contemporary context of prohibitions of content or methodologies labeled as political-ideological indoctrination or implementation of what became known as “gender ideology”. Based on the proposal of a Latin American Ius Constitutionale Commune, some judgments and advisory opinions relevant to the topic of the Inter-American Court of Human Rights, the Constitutional Court of Colombia and the Federal Supreme Court of Brazil are analyzed in order to articulate interpretative parameters on freedom of expression, protection of childhood, right to equality and education in an attempt to demonstrate the freedom to learn and teach in basic education as a protected category in inter-American law.

Keywords:
Freedom to learn and teach; Ius Constitutionale Commune; Inter-american law; Dialogue between courts

Introdução

É certo que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) não se debruçou, até o momento, especificamente sobre a liberdade de aprender e ensinar (ou liberdade de cátedra e liberdade acadêmica). A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por sua vez, adotou, em dezembro de 2021, a Declaração de Princípios sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, ressaltando que eles não se aplicam à educação básica, foco de interesse do presente artigo.

As disputas narrativas sobre a educação em países da América Latina, em especial após a disseminação do que grupos de extrema direita passaram a chamar de “ideologia de gênero”, entretanto, tem criado um ambiente para que o tema seja levado à corte.

No Brasil, diversas entidades que tematizam o direito à educação, à liberdade de expressão e os direitos das mulheres, da população LGBTI+, de trabalhadores na educação e de estudantes, entre outros, são especialmente afetadas por estas investidas. Isso as têm mobilizado a agir individualmente e em rede para impedir retrocessos nos campos em que atuam, e o Poder Judiciário nacional tem sido uma das arenas dessa disputa.1 1 Um coletivo de 60 entidades promoveu e lançou em 2018 o Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas (AÇÃO EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA et al, 2018). A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.537 (Relator: Min. Roberto Barroso, 24 de agosto de 2020), contra Lei Estadual que instituía o Escola sem Partido em Alagoas, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2020, contou com diversas entidades da sociedade civil como amici curiae, dentre elas a União Nacional dos Estudantes (UNE); Associação Artigo 19 Brasil; Ação Educativa; Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres - CLADEM Brasil; Themis, Gênero, Justiça e Direitos Humanos; Instituto Maria da Penha; Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais - ANAJUDH.

Outros países americanos vêm enfrentando desafios semelhantes com o avanço da extrema direita, e a apropriação da pauta anti-gênero tem alavancado legislações restritivas de conteúdos e mobilizadoras de práticas de censura e intimidação de docentes e escolas. Contudo, a falta de consensos morais em torno de temas ligados a gênero e sexualidade na educação vem colocando barreiras para o tratamento adequado do tema pelas cortes nacionais. Portanto, é a necessidade de respostas jurídicas regionais que motiva o presente trabalho, cujo objetivo principal é compreender em que medida o direito interamericano oferece fundamentos para endereçar os desafios que as investidas da extrema-direita impõe à educação básica no continente, tendo em vista que este âmbito da formação de crianças e jovens foi excluído da citada declaração de princípios pela CIDH.

A análise documental é o principal recurso metodológico. Nesse sentido, investigou-se no ordenamento jurídico interamericano fontes regulatórias da educação, da liberdade de expressão, do direito à igualdade e da infância e juventude, incluindo normas, julgados e opiniões consultivas. Decisões das cortes constitucionais do Brasil e da Colômbia também foram objeto de análise. A abordagem de casos nacionais como fonte do direito interamericano está apoiada na noção de diálogo entre cortes ou no Ius Constitutionale Commune latino-americano.

O primeiro item tem como objetivo fazer uma breve contextualização histórico-política das investidas do movimento escola sem partido, no Brasil, e da pauta anti-gênero no Brasil e na América Latina, demonstrando como afetam de diferentes formas e estratégias a liberdade de aprender e ensinar na região.

No segundo item faz-se uma reflexão sobre o Ius Constitucionale Commune latino americano como suporte teórico e recurso interpretativo do direito interamericano, a permitir a construção de um ordenamento jurídico regional marcado pela estatalidade aberta, que bebe de múltiplas fontes e diferentes níveis normativos, inclusive da jurisprudência nacional, como se defende neste artigo.

No terceiro item o objetivo é explicitar o tratamento da liberdade de aprender e ensinar na educação básica no sistema interamericano que, como se verá, embora já haja pronunciamentos que tangenciam o tema, ainda é incipiente.

No quarto e último item é que se analisam propriamente as fontes documentais para extrair possíveis fundamentos interamericanos para a liberdade de aprender e ensinar a partir das manifestações da Corte IDH e das cortes constitucionais do Brasil e da Colômbia sobre direito à educação, liberdade de expressão, direito à igualdade e à proteção da infância e da juventude.

Contextualização histórico-política

A origem do discurso da “ideologia de gênero”, segundo a Professora Jimena Furlani (2016FURLANI, Jimena. Ideologia de gênero - Parte 1/6 - Quem criou, porquê e para quê? 2016. 1 vídeo (34 minutos e 22 segundos). Publicado pelo canal Papo de Corujas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5ro1O10l0v8. Acesso em: 13 set. 2016.
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), está nas respostas do movimento pró-vida e pró-família à Conferência sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e à IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, realizada em Pequim, em 1995, ambas da Organização das Nações Unidas e tematizaram direitos de mulheres e jovens. Em 1997, a autoproclamada delegada do movimento pró-vida e pró-família, Dale O’Leary, lança o livro intitulado Gender Agenda: Redefining Equality em que descreve as disputas políticas, a posição dos movimentos feministas e suas reivindicações de inclusão da categoria gênero nos documentos da ONU. Logo em seguida, no ano de 1998, a igreja católica do Peru realiza a Conferência Episcopal Peruana, em Lima, com o tema La ideología de género: sus peligros y alcances.

A expressão “ideologia de gênero” também é utilizada pelo advogado argentino contrário às causas de direitos reprodutivos e planejamento familiar, Jorge Scala, em seu livro La Ideología Del Género: o el género como herramienta de poder, de 2010SCALA, Jorge. La ideologia del Género: o el género como herramienta de poder. Rosario: Ediciones Logos Ar., 2010., reeditado em 2015 no Brasil com título mais mobilizador: A Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família.

Trata-se de uma narrativa articulada por parte de setores religiosos e ultraconservadores que visam se opor aos estudos de gênero, apresentando conceitos distorcidos ou descontextualizados, como, por exemplo, que deve ser imposto às crianças a ideia de que não são meninos nem meninas, mas que cada um deve inventar um gênero para si. A ideia disseminou-se na região latino-americana como um todo, tendo em vista que por aqui encontraram um caldo fértil de combinação da baixa densidade do Estado de Direito, sociedades profundamente androcêntricas e populismos ascendentes.

No Brasil, antes mesmo dos pânicos morais disseminados pela citada narrativa, embora em menor intensidade, desde o ano de 2004 já havia inciativas que pretendiam combater uma pretensa doutrinação escolar e defender certa neutralidade na educação, como o Movimento “Escola Sem Partido” - MESP (MIGUEL, 2016MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero" - Escola Sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 590-621, 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163. Acesso em: 13 jul. 2022.
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).

A confluência do MESP com a “ideologia de gênero” durante as discussões legislativas sobre os Planos de Educação no Brasil, tanto para a versão nacional quanto para as versões estaduais e municipais, levou multidões de pessoas às casas legislativas de todas as esferas. A intenção era barrar as versões originais dos projetos de lei que incluíam metas para reduzir desigualdades educacionais baseadas no gênero e na sexualidade, e também em outros marcadores de diferença, como raça, etnia, presença de deficiência, origem campesina, dentre outros.

Alegava-se que as propostas legislativas visavam implantar na educação a “ideologia de gênero” que, segundo a narrativa propagada pelas forças contrárias à educação inclusiva, seria uma ameaça à família e à natureza dos corpos, pois visava incidir na sexualidade de crianças e adolescentes e também alterar o seu gênero. Por ocasião da votação do plano estadual, um parlamentar paranaense subiu na tribuna com cartilhas apócrifas para denunciar que estavam sendo distribuídos nas escolas materiais ensinando crianças a usar cachimbos para craque, e como fazer sexo seguro com outra pessoa do mesmo sexo (PARANÁ, 2015).

O combate à perspectiva de gênero e sexualidade na educação também foi mote da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições brasileiras de 2018, das quais saiu eleito. No decurso do período de campanha, alguns fatos levaram o debate da liberdade de cátedra para o âmbito universitário em decorrência de episódios envolvendo proibição de manifestações e cursos que tematizavam o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Posteriormente, as universidades foram alvo de congelamento de gastos por medidas do então Ministro da Educação Abraham Weintraub contra o que chamou de “balbúrdia” em três universidades (ROSSI, 2019ROSSI, Marina. Corte ou contingenciamento, quem está certo na guerra de narrativas da educação? El País, Caderno Educação, São Paulo, 02 jun. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/politica/1559334689_188552.html. Acesso em 11 jul. 2021.
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).

Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter julgado inconstitucionais diversas leis que visavam proibir “doutrinação política e ideológica” e conteúdos ligados a gênero e sexualidade nos currículos escolares2 2 Nas ações diretas de inconstitucionalidade 5537, 5580 e 6038, todas de relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 24 ago. de 2020), o pleno decidiu por maioria de votos (vencido o Ministro Marco Aurélio) declarar inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, nos termos do voto do Relator. Também as arguições de descumprimento de preceito fundamental 457, da relatoria do Min. Alexandre de Morais (BRASIL, STF, julgamento 27 abr. 2020); 460, da relatoria do Min. Luiz Fux (BRASIL, STF, julgamento 29 jun. 2020); 461, 465 e 600, da relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 24 ago. 2020); 467, da relatoria do Min. Gilmar Mendes (BRASIL, STF, julgamento 29 maio 2020); e 526, da relatoria da Min. Carmen Lúcia (BRASIL, STF, julgamento 11 maio 2020), que versavam sobre leis municipais que proibiam a abordagem de temáticas ligadas a gênero e sexualidade nos conteúdos escolares, muitas utilizando uma terminologia “ideologia de gênero”. Em relação a estas, o pleno da corte as reputou inconstitucionais em decisões unânimes. , a liberdade de aprender e ensinar segue no centro das discussões no país, agora provocadas por iniciativas com objetivos semelhantes a referidas legislações, mas reconfiguradas para contornar o entendimento da Suprema Corte sobre o tema. Assim, podemos citar os diversos projetos de lei sobre o ensino domiciliar em discussão na Câmara dos Deputados3 3 O ensino domiciliar consta na lista de 35 pautas prioritárias para o Governo Federal, entregue pelo presidente Jair Bolsonaro aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, na cerimônia de abertura dos trabalhos do Congresso Nacional para o ano de 2021. Já tramitava na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2401/2019, de iniciativa do Poder Executivo, com o objetivo de regulamentar a educação domiciliar no Brasil. Esta proposição fora apensada ao PL 3179/2012, em novembro de 2019 e, diante das pressões para acelerar a sua aprovação, foi desapensado em abril de 2021, quando o ensino domiciliar entrou nas pautas das comissões temáticas com possibilidade de ir à votação na tramitação da proposta mais antiga. O tema foi debatido no Supremo Tribunal Federal, quando julgou o Recurso Extraordinário 888.815, da relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 04 jun. 2015), em setembro de 2018. A corte, contudo, não reputou inconstitucional o ensino domiciliar em si. Ao contrário, decidiu-se que por ocasião do julgamento não havia legislação infraconstitucional que lhe desse suporte. Essa abertura para regulamentação permitiu a retomada dos debates legislativos em várias esferas. , Assembleias Legislativas e Câmara Municipais, com aprovação de alguns deles4 4 A título exemplificativo, cita-se a Lei 9.562/2019, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Vitória, em agosto de 2019; Projeto de Lei Nº 02/2020, aprovado pela Câmara Municipal de Itaúna - MG, em abril de 2020; Lei 7.160/2020, promulgada pela presidência da Câmara Municipal de Cascavel - PR, em setembro de 2020 (declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Paraná em junho de 2021); aprovação do Projeto de Lei 170/2019, em junho de 2021, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (vetada pelo Governador Eduardo Leite). . Também refletem essa tendência a expansão do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares5 5 Decreto Federal 10.004/2019 e Leis paranaenses 20.338/2020 e 20.505/2021. e projetos de lei que visam proibir o uso de linguagem neutra em escolas públicas e particulares. Estas iniciativas, contudo, fogem ao objeto da presente reflexão.6 6 Projetos de Lei Federal 5.198/2020, de autoria do Deputado Junio Amaral (PSC) e 5.248/2020, de autoria do deputado Guilherme Derrite (PP); Projeto de Lei Estadual carioca n.º 3.325/20, dos deputados Anderson Moraes (PSL), Márcio Gualberto (PSL) e Daniel Librelon (REP).

Na Colômbia, a narrativa da “ideologia de gênero” foi intensamente mobilizada no complexo contexto do debate público prévio ao plebiscito do Pacto da Paz, em 2016, juntamente com outras estratégias de desinformação e deslegitimação do acordo (GIL HERNÁNDEZ, 2021). Em uma ampla campanha publicitária promovida por setores políticos contrários ao pacto, ao qual se somaram as igrejas católicas e evangélicas, defendia-se que seus termos eram contrários à família, que promoveria o aborto e que prescreveria medidas que iam contra as leis naturais divinas do gênero e do sexo. Também se fazia referência a uma certa cartilha que levaria a “ideologia de gênero” para a educação formal (ESGUERRA MUELLE, 2017ESGUERRA MUELLE, Camila. Cómo hacer necropolíticas en casa: Ideología de género y acuerdos de paz en Colombia. Sexualidade, Saúde e Sociedade. Revista Latino-Americana, Rio de Janeiro, n. 27, p. 172-198, dec. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/7SpLbL3jcWLjFzdZgYyRZrn/abstract/?lang=es. Acesso em: 13 jul. 2022.
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).

A estratégia da campanha de vincular a “ideologia de gênero” ao Pacto da Paz se valia do interesse de segmentos contrários à educação inclusiva em responder à sentença 478-T/15 (Magistrado: Jorge Ignacio Pretelt Chaljub, 03 de agosto de 2015), da Corte Constitucional, dada no ano anterior, em que foi determinado às autoridades educacionais uma série de medidas para assegurar o direito à educação da população LGBTI. Trata-se de uma decisão estrutural provocada por recurso a partir de um caso concreto. A mãe de Sergio David Urrego Reyes, um estudante de dezessete anos, buscava o reconhecimento de violações de direitos fundamentais do seu filho, que se suicidou após ser perseguido e difamado pela administração de sua escola, localizada em Bogotá, após ter sido fotografado beijando um colega de classe.

O Peru também protagonizou o que pode ser o maior movimento antigênero organizado da América Latina. Com Mis Hijos No Te Metas surgiu no país, em 2016, por iniciativa de grupos religiosos e conservadores contra esforços do governo Pedro Pablo Kuczynski para incluir no currículo escolar a perspectiva de gênero. Keiko Fujimori, candidata à presidência do país nas eleições de 2021, chegou a apresentar enquanto congressista um projeto de lei que proibia as escolas de abordarem “enfoque de igualdade de gênero”, “expressão de gênero” e “violência de gênero”. O movimento se expandiu e, em 2018, organizava protestos simultâneos contra a “ideologia de gênero” no Peru, na Argentina, na Bolívia e no Paraguai. Naquele ano, também já tinha se estendido para o Chile e Equador. (PIRES, 2018PIRES, Breiller. ‘Não se meta com meus filhos’: movimento contra políticas de gênero na América Latina corteja Bolsonaro. El País, Caderno Internacional, São Paulo, 15 nov. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/14/internacional/1542229156_126326.html. Acesso em: 11 jul. 2021.
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).

Em âmbito interamericano, desde 2013, há organizações antigênero atuando de forma isolada e por alianças, como foi o caso da Si a la Vida, Asociación Família Importa e Human Life International, na assembléia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) daquele ano, que teve lugar na Guatemala. Na ocasião, o grupo fazia pressão contra a aprovação da Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, especificamente pelo seu texto vedar a discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero (MORAGAS, 2021MORAGAS, Mirta. O caso da Organização dos Estados Americanos. In: CORREA, Sônia (ed.). Políticas antigênero na América Latina: resumos dos estudos de casos nacionais. Tradução: Nana Soares. 1. ed. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids - ABIA, 2021. p. 106-115. Ebook. Disponível em: https://is.gd/Xk6jkf. Acesso em: 12 out. 2021..
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).

Na assembleia geral do ano seguinte, no Paraguai, estes grupos se organizaram em forma de plataforma de “defesa da vida e da família” e buscaram ocupar espaços oficiais deste órgão dedicados à sociedade civil, aos quais os movimentos LGBTI e feministas não tiveram acesso. Eles apresentaram argumentos antigênero para tentar obstruir a resolução sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade e Expressão de Gênero. Por conta dessas pressões, notas de rodapé foram adicionadas ao texto (MORAGAS, 187).

Nota-se, portanto, uma intensa movimentação em torno do tema na América Latina. A amplitude das frentes de combate a uma pretensa “ideologia de gênero” na região irradia efeitos e atinge diversas categorias protegidas pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos e pelo seu Protocolo Adicional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. As tentativas de restrição de conteúdos educacionais, pensando aqui especialmente naqueles relacionados a gênero e sexualidade, podem ser enquadradas como ofensas tanto a direitos individuais de estudantes e docentes quanto a expressões coletivas das categorias protegidas. Nesse sentido, o presente artigo se debruça sobre os dispositivos normativos regionais possivelmente violados a partir da sua literalidade textual e pelos informes e recomendações emitidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), bem como pela análise de decisões da Corte IDH em casos que se aproximam do tema. Para esta última possibilidade, a proposta é pensar os atravessamentos por direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais com os quais se depara a liberdade de aprender e ensinar, tais como a liberdade de expressão, o direito à educação, a vedação à discriminação e a proteção de direitos da infância e da juventude.

Até este ponto não se apresentou uma proposta conceitual para a liberdade de aprender e ensinar na intenção de pensá-la a partir dos fatos antes relatados no Brasil, em relação ao programa “Escola sem Partido”, e na América Latina quanto à “ideologia de gênero”. Contudo, para partir de algum ponto conceitual, cabe esclarecer a escolha pelo uso da própria expressão constitucional ao destacar como um princípio para a educação a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, II, Constituição Federal). Para este trabalho, focamos nos verbos “aprender” e “ensinar” para dar destaque não às posições de sujeitos em polos opostos (professores vs. alunos), mas para explicitar a dialeticidade entre os sujeitos implicados numa prática educativa de mão dupla, como propõe Paulo Freire (1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 1996. (ed. dig. Coletivo Sabotagem, 2002).). A opção também é uma proposta de dar enfoque a um direito que protege não apenas docentes e pesquisadores, mas também estudantes desde a mais tenra idade. De todo modo, a “liberdade de aprender e ensinar” na forma como a abordamos não se confunde com liberdade de cátedra ou liberdade acadêmica, que estão vinculadas ao ensino universitário.

Tradicionalmente, liberdade de cátedra e liberdade acadêmica se relacionam ao direito de docentes e pesquisadores de livremente escolherem conteúdos, metodologias e objetos de pesquisa e ensino, limitados, certamente, pelos regulamentos específicos da profissão. Também é vista como intimamente relacionada com a liberdade de expressão (ROBL FILHO, 2018ROBL FILHO, Ilton Norberto. Liberdade Acadêmica e Científica: dimensões e problemas contemporâneos. Espaço Jurídico Journal of Law, São Miguel do Oeste, v. 19, n. 3, p. 755-776, set./dez. 2018. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/17499. Acesso em: 13 jul. 2022.
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). Essa abordagem acaba por dar pouco destaque ao direito de aprender, focado nos estudantes, que contemporaneamente exige atenção e maior reflexão no campo jurídico. Por isso a liberdade de aprender e ensinar é aqui pensada tanto a partir da liberdade de expressão, como do direito à educação, da não discriminação e da proteção da infância.

Fundamentos para pensar a liberdade de aprender e ensinar a partir da noção de Ius Constitutionale Commune na América Latina

Para iniciar a proposta de um diálogo entre constituições e cortes locais e as normas interamericanas e sua interpretação pela Corte IDH quanto ao direito de aprender e ensinar, lança-se mão da noção de estatalidade aberta e do Ius Constitutionale Commune como ferramentas interpretativas que permitem pensar essa inter-relação dos ordenamentos jurídicos locais e internacional.

Os países latino-americanos compartilham realidades próximas no que se refere aos direitos humanos. Todos são irremediavelmente atingidos pela colonialidade, boa parte deles passou por governos ditatoriais na segunda metade do século XX e a maioria dos estados enfrenta desafios para consolidação da democracia e fortalecimento das instituições, bem como para combater as desigualdades e a violência que marcam a região. Estas características comuns se refletem nas opções normativas sobre direitos humanos tanto no plano internacional, como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (OEA, 1969) e o protocolo Adicional sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (OEA, 1988), quanto nas constituições nacionais. A interpretação destas normas pela ótica dos direitos humanos na região, aliada às cláusulas de abertura presentes em diversas constituições7 7 “A título exemplificativo, a Constituição da Argentina, após a reforma constitucional de 1994, dispõe, no artigo 75, inciso 22, que, enquanto os tratados em geral têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, os tratados de proteção dos direitos humanos têm hierarquia constitucional, complementando os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos. A Constituição Brasileira de 1988, no artigo 5º, parágrafo 2º, consagra que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem os direitos decorrentes dos princípios e do regime a ela aplicável e os direitos enunciados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, permitindo, assim, a expansão do bloco de constitucionalidade. A então Constituição do Peru de 1979, no mesmo sentido, determinava, no artigo 105, que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional e não podem ser modificados senão pelo procedimento que rege a reforma da própria Constituição. Já a atual Constituição do Peru de 1993 consagra que os direitos constitucionalmente reconhecidos devem ser interpretados em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Decisão proferida em 2005 pelo Tribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, adicionando que os direitos humanos enunciados nos tratados conformam a ordem jurídica e vinculam os poderes públicos. A Constituição da Colômbia de 1991, reformada em 1997, confere, no artigo 93, hierarquia especial aos tratados de direitos humanos, determinando que estes prevalecem na ordem interna e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pelo país. Também a Constituição do Chile de 1980, em decorrência da reforma constitucional de 1989, passou a consagrar o dever dos órgãos do Estado de respeitar e promover os direitos garantidos pelos tratados internacionais ratificados por aquele país. Acrescente-se a Constituição da Bolívia de 2009, ao estabelecer que os direitos e deveres reconhecidos constitucionalmente serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Bolívia, que prevalecerão em relação à própria Constituição se enunciarem direitos mais favoráveis (artigos 13, IV e 256). Na mesma direção, destaca-se a Constituição do Equador de 2008, ao consagrar que a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado que reconheçam direitos mais favoráveis aos previstos pela Constituição têm prevalência em relação a qualquer outra norma jurídica ou ato do Poder Público (artigo 424), adicionando que serão aplicados os princípios pro ser humano, de não restrição de direitos, de aplicabilidade direta e de cláusula constitucional aberta (artigo 416). A Constituição do México, com a reforma de junho de 2011, passou a contemplar a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos e a regra interpretativa fundada no principio pro persona.” (PIOVEZAN, 2017, p. 175-176) deu origem pouco a pouco a um fenômeno perturbador da noção tradicional de soberania. Um grupo de pesquisadores que se aproximaram através dos eventos do Colóquio Ibero-americano, organizado pela Professora Mariela Moralis Antoniazzi, tem observado os trabalhos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e sua relação com os Estados através de um enfoque comum e a ele deram o nome de Ius Constitutionale Commune na América Latina - ICCAL (BOGDANDY, 2019BOGDANDY, Armin Von. Ius Constitutionale Commune na América Latina: um olhar para um constitucionalismo transformador. Revista Culturas Jurídicas, v. 6, n. 14, p. 244-291, mai./ago., 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/ 45348/26024. Acesso em: 10 jul. 2021.
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).

Segundo o Professor Armin Von Bogdandy (2019BOGDANDY, Armin Von. Ius Constitutionale Commune na América Latina: um olhar para um constitucionalismo transformador. Revista Culturas Jurídicas, v. 6, n. 14, p. 244-291, mai./ago., 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/ 45348/26024. Acesso em: 10 jul. 2021.
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, p. 246), o ICCAL se orienta pela rejeição às “três ideologias constitucionais latino-americanas, a saber, o conservadorismo, o liberalismo e o radicalismo” e se volta a uma combinação entre o direito nacional e o internacional, à opção “metodológica a partir de princípios, a centralidade dos direitos e a estratégia de perseguir transformações de maneira incremental.”.

A Professora Flávia Piovesan defende o Ius Constitutionale Commune como um espaço aberto de dialógico entre ordens jurídicas e saberes interdisciplinares:

Isto é, aos parâmetros constitucionais somam-se os parâmetros convencionais, na composição de um trapézio jurídico aberto ao diálogo, aos empréstimos e à interdisciplinariedade, a ressignificar o fenômeno jurídico sob a inspiração do human rights approach. (PIOVESAN, 2017PIOVESAN, Flávia. Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos Humanos e o Sistema Interamericano: perspectivas e desafios. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1356-1388, 2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/28029/20617. Acesso em: 12 jul. 2021.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p. 1374)

Nesse sentido é que se propõe pensar a liberdade de aprender e ensinar como uma inter-relação não apenas de categorias protegidas pelas normativas interamericanas, mas também como resultado de um constitucionalismo multinível, no qual se entrelaçam normas internas e internacionais e sua interpretação em “uma rede, de vários planos, localizados em diversos níveis, que se alimentam e limitam reciprocamente” (FACHIN, 2020FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo multinível: diálogos e(m) direitos humanos. Revista Ibérica do Direito, Porto, v. 1, n. 1, p. 53-68, jan./jun. 2020. Disponível em: http://www.revistaibericadodireito.pt/index.php/capa/article/view/26. Acesso em 13 jul. 2022.
http://www.revistaibericadodireito.pt/in...
, p. 57).

Para esse exercício, parte-se de julgados e opiniões consultivas da Corte IDH, de um caso julgado pela Corte Constitucional colombiana e de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil. Quanto aos primeiros, elegeu-se os casos Atala Riffo vs. Chile (OEA, Corte IDH, julgado em 24 fev. 2012), que tematiza o direito à igualdade e também o direito à infância; o caso das Crianças Yean e Bosico vs. República Dominicana (OEA, Corte IDH, julgado em 8 set. 2005) que, apesar de se centrar no direito ao reconhecimento da personalidade jurídica e à nacionalidade, tangencia o direito à educação; a Opinião Consultiva 5/1985 (OEA, Corte IDH 1985), que traça parâmetros interpretativos sobre o direito à liberdade de expressão recorrentemente reforçados em decisões posteriores da corte; e o Parecer Consultivo 24/2017 (OEA, Corte IDH, 2017), que reconhece a orientação sexual e identidade de gênero como categorias protegidas pela Convenção Americana. Quanto à corte colombiana, recorremos à Sentencia T-478/2015 (COLÔMBIA, julgado em 3 ago. 2015), relativa à ação movida pela mãe de Sergio David Urrego Reyes, antes citada. E, por fim, em relação ao Brasil, propõe-se considerar um conjunto de ações constitucionais julgadas em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal, também já citadas, todas relativas a legislações anti-gênero municipais e uma lei estadual do Programa “Escola sem Partido”.

A liberdade de aprender e ensinar nas manifestações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

A CIDH vem tratando da liberdade de aprender e ensinar desde o ano de 2016, quando realizou, na cidade do Panamá, em 6 de dezembro, a audiência pública com o tema Educación en derechos humanos en Brasil, solicitada por aquele país (OEA, CIHD, 2016).

Além disso, em 2017, designou de ofício audiência pública para ouvir a sociedade civil e o estado brasileiro sobre o Programa “Escola sem Partido”, que ocorreu no período de sessões n.º 162, no dia 25/05/2017, em Buenos Aires, sob o título Derechos humanos y educación libre, plural y sin censura en Brasil (OEA, CIHD, 2017).

Nesta audiência, a CIDH, expressou a importância que a educação baseada na diversidade tem no combate ao bullying:

Agregó el Presidente y Relator sobre derechos de las personas LGTBI que hoy en día en muchos países este tema está presente, movimientos de olas conservadores que quieren invisibilizar este tema, y hay que tener como línea clara que la educación, empezando desde la niñez, es una forma de superar la discriminación respecto de la LGTBI. Se trata de que la educación basada en la diversidad sirva para evitar el manoteo (bullying) y maltrato. Agregó que hará un seguimiento cercano, con la confianza que el gobierno de Brasil defiende lo avanzado en este tema, para que no haya retrocesos. (OEA, CIDH, 2017, s./n.)

Em abril de 2017, relatores das Nações Unidas denunciaram as iniciativas legislativas no País com base no Programa “Escola sem Partido” e alertaram que, se aprovadas, as leis podem representar uma violação ao direito de expressão nas salas de aulas e uma “censura significativa” (CHADE, TOLEDO, 2017CHADE, Jamil; TOLEDO, Fernando. Relatores da ONU classificam ‘Escola sem Partido’ como ‘censura’. Folha de São Paulo, Caderno Educação, Genebra, 13 abr. 2017. Disponível em https://is.gd/LZ5G4D. Acesso em: 20 mar. 2019.
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).

No ano de 2018, a CIDH promoveu uma visita in loco ao Brasil e, na ocasião, a educação também foi pauta dos trabalhos, sendo que ao final resultou um comunicado à imprensa no qual consta pedido ao estado brasileiro de atenção e solução urgente para que faça cessar os ataques à liberdade de expressão que atingem a imprensa, professores e organizações sociais. No mesmo comunicado, destacou-se positivamente a decisão do Supremo Tribunal Federal na arguição de descumprimento de preceito fundamental 548, em que se referendou medida cautelar “garantindo a liberdade de manifestação e opinião que embasa a liberdade de cátedra nas Universidades brasileiras”. A Comissão também demonstrou preocupação com o crescimento de discursos equivocados sobre direitos humanos e de intolerância e ódio, destacando a estigmatização da perspectiva de gênero com a disseminação da narrativa da “ideologia de gênero” (OEA, CIDH, 2018, s./n.).

É em 2021, contudo, que a Comissão adota posição contundente contra as investidas à liberdade de aprender e ensinar no Brasil, com a edição do relatório sobre a situação dos direitos humanos no país (OEA, CIHD, 2021a). Nele, o órgão opina que o Projeto de Lei n.º 7.180/2014, que visava instituir o Programa “Escola sem Partido” em âmbito nacional, tem forte potencial de violar ao artigo 13.2 do Protocolo de São Salvador (OEA, CIHD, 1988). Quanto à adoção da perspectiva de gênero na educação, anotou que se trata de uma ferramenta essencial para combater a discriminação contra mulheres e população LGBTI (OEA, CIDH, 2021). Transcrevemos trecho que bem resume as observações da corte sobre a liberdade de expressão e de cátedra:

(...) a Comissão registra com grande preocupação as restrições à liberdade de expressão e de cátedra vividas por professores de todos os níveis de ensino diante de ameaças de denúncias em função do conteúdo de suas aulas. O projeto de Lei Nº. 867/2015, apensado ao Projeto de Lei Nº. 7180/2014 e que propõe criar o “Programa Escola sem Partido”, se aprovado, representaria a institucionalização das violações à liberdade de expressão e cátedra já vividas por professores. Além do projeto de lei federal, encontram-se ainda em tramitação projetos de lei de mesma natureza em 8 assembleias legislativas estaduais e em 10 câmaras municipais de vereadores. A Comissão expressa sua preocupação quanto ao exercício do direito à liberdade de expressão por parte de professores e professoras caso esses projetos sejam aprovados. (OEA, CIDH, 2021a, p. 175)

Finalmente, em dezembro de 2021, no 182º período ordinário de sessões, a Comissão adotou a Declaração de Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, consignando expressamente que seu conteúdo não se aplica diretamente à educação básica, para a qual “el Protocolo de San Salvador consagró el deber del Estado de contribuir a la creación de un ambiente estable y positivo en el cual las niñas, niños y adolescentes perciban y desarrollen los valores de comprensión, solidaridad, respeto y responsabilidad” (OEA, CIDH, 2021b, p. 5-6).

Com estes apontamentos sobre a aparição da liberdade de aprender e ensinar em pronunciamentos da CIDH, é possível desde logo notar que o entendimento abrange tanto o ponto de vista do direito à educação por estudantes, quanto o direito à liberdade de expressão e de ensinar por estes e por docentes. Da mesma forma, pode-se observar a sinalização da Comissão para a violação de direitos de diversas ordens, como o direito à igualdade e a não discriminação, à liberdade de expressão e à educação. Nas linhas seguintes, busca-se aprofundar essa análise a partir de julgamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos e de cortes nacionais, especificamente a brasileira e a colombiana, na tentativa de visualizar alternativas de tratamento do tema a partir da noção de diálogo entre cortes.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) dedica o seu artigo 13 à liberdade de expressão (OEA, CIDH, 1969). O item 1 a estabelece como um direto universal e sua abrangência tanto no sentido de buscar e receber informações de qualquer natureza, quanto no de disseminá-la.8 8 “Art. 13.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.” (OEA, CIDH, 1969, s./n.) O item 2 proíbe a censura prévia e prevê a possibilidade de responsabilização posterior desde que legalmente prevista e voltada a proteger direitos e reputação de outras pessoas ou a segurança nacional, ordem pública e saúde e moral públicas. A única exceção à censura prévia se relaciona com a regulação de acesso a espetáculos públicos para proteção da infância e adolescência (item 4).

A primeira manifestação da Corte IDH sobre a liberdade de expressão não decorre de um caso contencioso, mas de uma consulta feita pelo Estado da Costa Rica, em julho 1985. A intenção era conhecer a interpretação da corte sobre a compatibilidade da Ley Orgánica del Colegio de Periodistasde Costa Rica n.º 4420, de 1969, com os artigos 13 e 29 da Convenção Americana, especificamente quanto à obrigatoriedade da associação de jornalistas para o exercício da profissão. Apesar da especificidade do questionamento, a Corte traçou importantes parâmetros para a compreensão da extensão da liberdade de expressão que posteriormente foram aplicados no julgamento dos casos Olmedo Bustos vs. Chile (2001), sobre a censura ao filme Última Tentação de Cristo (1988), dirigido por Martin Scorcese; Ivcher Bronstein vs. Peru (2001); e Granier y otros vs. Venezuela (2013), ambos sobre canais de televisão que faziam críticas aos governos de Alberto Fujimori e Hugo Chávez (LEGALE, CAUSANILHAS, 2018LEGALE, Siddharta; CAUSANILHAS, Tayara. Opinião Consultiva n. 05/85 da Corte IDH: dimensões e restrições da liberdade de expressão. Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Seção Corte IDH, Casoteca, 29 jun. 2018. Disponível em: https://nidh.com.br/oc5/. Acesso em: 14 jul. 2021.
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).

Em relação a tais parâmetros, interessa para este trabalho o entendimento da corte sobre as dimensões individual e social da liberdade de expressão, expresso na citada opinião consultiva que tem força de res interpretata a todos os Estados parte da Convenção. Nesse sentido:

31. Em sua dimensão individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento teórico do direito a falar ou escrever, mas compreende também, inseparavelmente, o direito a utilizar qualquer meio apropriado para difundir o pensamento e fazê-lo chegar ao maior número de destinatários. Quando a Convenção proclama que a liberdade de pensamento e de expressão compreende o direito a difundir informações e ideias "por qualquer... processo", está destacando que a expressão e a difusão do pensamento e da informação são indivisíveis, de modo que uma restrição das possibilidades de divulgação representa diretamente, e na mesma medida, um limite ao direito de se expressar livremente. Daí a importância do regime jurídico aplicável à imprensa e ao status de quem se dedique profissionalmente a ela.

32. Em sua dimensão social, a liberdade de expressão é um meio para o intercâmbio de ideias e informações e para a comunicação massiva entre os seres humanos. Compreende também o direito de cada um a comunicar aos outros seus próprios pontos de vista, implica também o direito de todos a conhecer opiniões e notícias. Para o cidadão comum, o conhecimento da opinião alheia ou da informação de que dispõem os outros tem tanta importância como o direito a difundir a própria. (OEA, Corte IDH, 1985, p.8)

A universalidade da liberdade de expressão prevista no artigo 13.1 da CADH aliada à sua dimensão social permite concluir, primeiramente, que tanto docentes quanto estudantes de quaisquer idades são sujeitos desse direito. Em segundo lugar, que o acesso às informações e pontos de vista também são direitos tutelados pela norma interamericana. Nesse sentido, propostas que vedam debates de conteúdo político ou relacionados à gênero e sexualidade nas práticas educativas contrariam a norma interamericana. A própria literalidade do artigo 13.2 veda a censura a conteúdos de qualquer natureza, assegurada apenas excepcionalmente a regulação de faixa etária para espetáculos públicos. A dimensão social da liberdade de expressão, trazida na interpretação da corte, a seu turno, compreende o direito de estudantes ao acesso às mais diversas informações, ainda que perturbadoras ou em desacordo com crenças e posições filosóficas familiares.

É verdade que os defensores do “Escola sem Partido” e de legislações anti-gênero utilizam argumentos como a precocidade de crianças e adolescentes para ter acesso a determinados assuntos, ou que eles e elas representariam uma “escuta cativa”. Em geral, demonstram preocupação com temas relacionados a sexualidade e gênero, como se verifica pelo movimento contra a “ideologia de gênero”. A esta posição é possível se contrapor pela própria ausência de sentido à narrativa “ideologia de gênero” ou à ideia de doutrinação política e ideológica. É que aquilo que pretendem proibir nunca é colocado em termos precisos9 9 Dentre quase uma dezena de legislações municipais no Brasil que proíbem a “ideologia de gênero” nos conteúdos escolares, merece menção duas do Estado de Pernambuco que cuidaram de melhor detalhar a proibição. Segundo a Lei 2.985/2017, de Petrolina, proíbe-se em seu art. 1º “a disciplina denominada Ideologia de Gênero, bem como toda e qualquer disciplina que tente orientar a sexualidade dos alunos ou que tente extinguir o gênero masculino ou feminino como gênero humano”. A Lei a Lei 4.432/2017, de Garanhuns, em seu § 1º, cuidou de conceitua-la: “Considera-se teoria de gênero, questões de gênero, identidade de gênero ou ideologia de gênero, para efeitos desta Lei, a concepção de que os dois sexos, masculino e feminino, são considerados construções culturais e sociais e o entendimento de que existem outros gêneros sexuais além dos dois ora mencionados.” Ambas tiveram a sua constitucionalidade questionada pela Procuradoria Geral da República na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 522, da relatoria do Min. Marco Aurélio Mello, não julgada até o encerramento da escrita deste artigo. . Como defende Sônia Correa (2021CORREA, Sônia. Ideologia de gênero: assim surgiu o espantalho. Outras Palavras, São Paulo, 14 maio 2021. Disponível em https://outraspalavras.net/direita-assanhada/ideologia-de-genero-assim-surgiu-o-espantalho/. Acesso em: 15 jul. 2021.
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, sem paginação), a “ideologia de gênero” é “(...) como uma cesta da qual, segundo contextos e circunstâncias, objetos são extraídos para serem alvejados”. Para serem tomados seriamente como conteúdos que possam ser objeto de regulação etária, como qualquer limitação de direitos humanos e fundamentais, é necessário intenso esforço argumentativo, não sendo possível apoiar-se unicamente naquilo que Stanley Cohen (apud MISKOLCI, 2007MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social - reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 101-128, jun./jul. 2007. p. 101-128. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/?format=pdf⟨=pt Acesso em 15 jun. 2021.
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) na década de sessenta chamou de pânico moral ou então na irrefletida reprodução de preconceitos contra populações historicamente vulnerabilizadas, como a feminina e a LGBTI.

Nesse sentido, recorda-se que no julgamento do caso Atala Riffo vs. Chile (julgado em 24 fev. 2012), que será mais bem explanado a seguir, a Corte IDH estabeleceu que, sob o pretexto de proteção do interesse superior da criança, para efeitos de decisão sobre a guarda, não é admissível considerar comportamentos dos pais que não impliquem em riscos reais à criança, como especulações e estereótipos a respeito da sexualidade e conceitos tradicionais de família.

Finalmente, para contrapor-se a este argumento da precocidade, também é possível recorrer ao entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento pelo plenário virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.537, da relatoria do Ministro Roberto Barroso, finalizado em 21 de agosto de 2020. Ao declarar inconstitucional a Lei n. 7.800/2016, que instituía no Estado de Alagoas o programa “Escola Livre” com texto idêntico à minuta de projeto de lei disponibilizada pelo Movimento “Escola sem Partido”, a corte constitucional considerou que a pretensa vulnerabilidade de estudantes não é motivo legítimo para reduzir o universo informacional e cultural de estudantes, limitando seu acesso a conteúdos políticos ou filosóficos.10 10 “A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser ‘vulnerável’. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza.” (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p. 19)

Liberdade de aprender e ensinar e direito à educação no diálogo entre Cortes

Para pensar a relação do direito à educação e a liberdade de aprender e ensinar, necessário abordar também aspectos do direito à não discriminação e do interesse superior da criança. Para tanto, recorreremos à jurisprudência da Corte IDH nos casos Atafa Riffo e Crianças vs. Chile, Crianças Yan e Bosico vs. República Dominicana e à opinião consultiva 24/2017. E também às decisões da Corte Constitucional da Colômbia no caso Sergio David Urrego Reyes (COLÔMBIA, Sentencia T-478/15) e do Supremo Tribunal Federal sobre o Programa “Escola sem Partido” e leis anti-gênero.

Inicialmente, cabe apontar que, apesar das controvérsias a respeito da justiciabilidade dos direitos sociais, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê expressamente, no seu artigo 19, a hipótese de acionamento do sistema de petições para o caso de violação ao direito à educação por algum dos estados parte do protocolo.11 11 Art. 19.6: “6. Caso os direitos estabelecidos na alínea a do artigo 8, e no artigo 13, forem violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo, essa situação poderia dar lugar, mediante participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais regulado pelos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.” (OEA, CIDH, 1988, s./n.) Entretanto, até o momento, não houve julgamento pela Corte IDH de casos em que se reivindique o direito à educação. Ele aparece de forma lateral em alguns casos, como o das Crianças Yean e Bosico vs. República Dominicana (OEA, Corte IDH, 2005).

Dilcia Yean e Violeta Bosico nasceram na República Dominicana, em 1996 e 1985, respectivamente, e possuem ascendência haitiana (pelo pai e pelo avô). Em razão da ascendência tiveram dificultada a emissão de suas certidões de nascimento pela República Dominicana, sendo mantidas como apátridas até o ano de 2001. A Corte considerou que o Estado violou o direito à nacionalidade e à igualdade perante a lei, o direito ao nome e ao reconhecimento da personalidade jurídica e à integridade pessoal. Em sua fundamentação, porém, teceu considerações sobre o dever de proteção das crianças e sobre o dever de os Estados garantirem o acesso universal à educação. Vejamos:

Faz-se necessário ressaltar que, em conformidade com o dever de proteção especial das crianças consagrado no artigo 19 da Convenção Americana, interpretado à luz da Convenção dos Direitos da Criança e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em relação ao dever de desenvolvimento progressivo contido no artigo 26 da Convenção, o Estado deve prover educação primária gratuita a todos os menores, em um ambiente e em condições propícias para seu pleno desenvolvimento intelectual. (OEA, Corte IDH, 2005, p. 66).

(...)

O Estado deve cumprir sua obrigação de garantir o acesso à educação primária e gratuita a todas as crianças, independentemente de sua ascendência ou origem, o que se deriva da especial proteção que se deve oferecer às crianças. (OEA, Corte IDH, 2005, p. 78).

Adicionalmente, pode-se recorrer à literalidade do artigos 13.1 e 13.2 do Protocolo de São Salvador, que concebem a educação como um direito universal, devendo ser orientada para “o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz” (OEA, CIDH, 1969, s./n.).

Daí pode-se extrair, inicialmente, fundamento para a educação plural e livre de discriminação. Passa-se, então, a abordar a relação entre educação, direito anti-discriminação e proteção à infância e juventude.

No caso Atala Riffo vs. Chile, a Corte IDH aborda o direito à não discriminação e o relaciona com o interesse superior da criança. Trata-se de um caso judicial que chegou à Suprema Corte de Justiça do Chile e foi levado à Corte IDH. Karen Atala Riffo litigava com seu ex-marido pela guarda de três filhos menores de idade. Ele havia ajuizado uma demanda de guarda ou tutela perante o Juizado de Menores de Villarrica alegando que o desenvolvimento físico e emocional das crianças estaria em risco se permanecessem sob os cuidados da mãe, diante da sua nova “opção de vida sexual” e por estar em convivência lésbica com outra mulher. A justiça chilena havia negado o pedido do marido em todas as instâncias ordinárias. Contudo, a Suprema Corte reformou as decisões para conceder a guarda ao esposo sob quatro argumentos, a saber: (a) discriminação social que as crianças sofreriam em razão da orientação sexual de sua mãe; (b) confusão de papéis a que as crianças estariam assujeitadas por conviverem com um casal de duas mulheres; c) priorização da vida pessoal da mãe em relação ao interesse das crianças; e (d) direito das crianças de viver numa família com um pai e uma mãe (OEA, Corte IDH, 2012).

A corte considerou que o Chile violou o direito à igualdade e à não discriminação, à vida privada, às garantias judiciais e imparcialidade em relação à Sra. Karen Atala Riffo, além do direito de ser ouvido em relação às crianças.

Este caso é interessante para o tema aqui tratado por dois aspectos que em geral orbitam as tensões em torno das discussões sobre a limitação de determinados temas nos currículos escolares. O primeiro deles é que se trata da primeira manifestação da Corte IDH sobre a orientação sexual como uma categoria protegida pelo artigo 24 da CADH.12 12 “Levando em conta as obrigações gerais de respeito e de garantia, estabelecidas no artigo 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação fixados no artigo 29 da citada Convenção, o estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, as resoluções da Assembleia Geral da OEA, as normas estabelecidas pelo Tribunal Europeu e pelos organismos das Nações Unidas (pars. 83 a 90 supra), a Corte Interamericana estabelece que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são categorias protegidas pela Convenção. Por isso, a Convenção rejeita qualquer norma, ato ou prática discriminatória com base na orientação sexual da pessoa. Por conseguinte, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais, seja por particulares, pode diminuir ou restringir, de maneira alguma, os direitos de uma pessoa com base em sua orientação sexual.” (OEA, 1969, p. 33-34) Desse entendimento já se pode afirmar que proibir conteúdos educacionais apenas porque consideram outras formas de viver a sexualidade que não a heterossexual é em si contrária ao direito à igualdade. Note-se que o mesmo raciocínio se aplica à identidade de gênero, que também foi considerada uma categoria protegida pelo artigo 24 na opinião consultiva 24/201713 13 “De acordo com o que precede, levando em consideração as obrigações gerais de respeito e garantia estabelecidas no artigo 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação estabelecidos no artigo 29 da referida Convenção, conforme estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, das Resoluções da Assembleia Geral da OEA e das agências das Nações Unidas (supra, parágrafos 71 a 76), a Corte Interamericana estabelece que orientação sexual e identidade de gênero, bem como a expressão de gênero são categorias protegidas pela Convenção. Por esta razão, a Convenção proíbe qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa. Por conseguinte, nenhuma regra, decisão ou prática de direito interno, seja por autoridades estatais ou por indivíduos, pode diminuir ou restringir, de qualquer forma, os direitos de uma pessoa com base na sua orientação sexual, identidade de gênero e/ou a sua expressão de gênero.” (OEA, 1985, p. 38). . O princípio da igualdade também se inter-relaciona com o direito à educação previsto no artigo 26 da CADH e no artigo 13 do Protocolo Adicional de São Salvador, na medida em que o acesso à educação não pode ser facilitado ou dificultado com fundamento na orientação sexual de estudantes. A realização do direito à educação depende, contudo, não apenas de garantir o acesso à educação, mas também da inclusão de temáticas ligadas a sexualidade e gênero como forma de alargar o sentido do pertencimento a alunos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero.

Temos aqui outro fundamento que dá sentido à liberdade de aprender e ensinar, isto é, se o direito interamericano protege o direito à livre expressão da orientação sexual e da identidade de gênero, a priori, nenhum conteúdo escolar sobre estes temas poderia ser excluído dos currículos sob pena de ferir a liberdade de docentes e estudantes a tratar de temas da vida e sujeitos presentes na própria sala de aula e na sociedade como um todo. Isto não significa dizer, todavia, que podem ser ensinados sem critérios ou metodologia apropriadas.

O segundo aspecto pelo qual o caso Atala Riffo interessa para esse debate se relaciona com o interesse superior da criança e a exposição a orientações sexuais e formatos de família diversas das consideradas tradicionais. Não raro, o argumento de setores contrários à perspectiva de gênero está ligado à ideia de proteção da infância. Embora este caso não trate especificamente do direito à educação, a Corte IDH trouxe fundamentos que desconstroem esse discurso ao estabelecer que o interesse superior da criança não pode ser invocado para amparar discriminação com base na orientação sexual da pessoa14 14 “Concluindo, a Corte Interamericana observa que ao ser, de maneira abstrata, o “interesse superior da criança” um fim legítimo, a mera referência a ele, sem provar, concretamente, os riscos ou danos que poderiam implicar a orientação sexual da mãe para as crianças, não pode constituir medida idônea para a restrição de um direito protegido como o de poder exercer todos os direitos humanos sem discriminação alguma pela orientação sexual da pessoa. O interesse superior da criança não pode ser usado para amparar a discriminação contra a mãe ou o pai, em virtude da orientação sexual de qualquer deles. Desse modo, o julgador não pode levar em consideração essa condição social como elemento para decidir sobre uma guarda ou tutela.” (OEA; Corte IDH, 2005, p. 38-39). . Esse entendimento vai de encontro às estratégias de movimentos como o “Escola sem Partido” e anti-gênero, na medida em que o argumento de defesa da infância e juventude contra o que chamam de erotização precoce está pautada precisamente em bases discriminatórias contra a população LGBTI e feminina como um todo.

Nesse sentido, um outro pilar da liberdade de aprender e ensinar na educação básica parece se erigir: a proteção da infância e juventude não pode ser invocada para limitar conteúdos curriculares quando o objetivo é limitar a circulação de ideias que contemplam a experiência de populações historicamente marginalizadas se isso não representa riscos concretos.

Em âmbito nacional, o direito à educação livre de discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero foi tratado pela Corte Constitucional colombiana na Sentencia T-478/15. A corte considerou inconstitucional a perseguição sofrida pelo estudante Sergio David Urrego Reyes em razão de sua orientação sexual por violar o direito à igualdade, ao bom nome, à honra e à intimidade e concluiu que na escola a proteção ao direito à livre orientação sexual e à identidade de gênero deve ser ainda mais rigorosa, à medida que os menores de idade tem o direito de serem formados em ambientes democráticos e plurais.15 15 “Así, queda claro que uno de los ámbitos más importantes para la protección del derecho a la igualdad, la dignidad y el libre desarrollo de la personalidad es el respeto absoluto por la expresión de la identidad de género o la orientación sexual. En el ámbito escolar, esta protección debe ser aún más estricta pues los menores de edad tienen el derecho de ser formados en espacios democráticos y plurales. Así, la prohibición de discriminación por razón de género o de orientación sexual es absoluta y ningún tercero, ya sean otros estudiantes o las autoridades del colegio, pueden perseguir o amedrentar a los estudiantes que deciden asumir voluntariamente una opción sexual diversa. Cualquier actitud en ese sentido, como se explicará en el capítulo siguiente, constituye un trato de hostigamiento que debe ser reprochado y a toda costa prevenido.” (COLÔMBIA, 2015, parágrafo 57). É dizer, a leitura da corte colombiana permite pensar que a liberdade de aprender tem raízes também no princípio democrático.

No Brasil, a liberdade de aprender e ensinar foi tratada expressamente no julgamento de uma dezena de ações constitucionais.16 16 Ver nota 4. Nas ações diretas de inconstitucionalidade contra uma Lei do Escola sem Partido, o Supremo Tribunal Federal considerou que a limitação de conteúdos escolares ou de regulação de comportamento de docentes para que seja observada certa neutralidade política e ideológica feria o direito à educação, porque a Constituição brasileira assegura uma educação emancipadora ao determinar que ela vise o pleno desenvolvimento da pessoa e o exercício da cidadania (art. 205, CF), além de conduzir à promoção humanística do país (art. 214, V, CF).17 17 Conforme o voto do relator: “A Constituição assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional.” (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p. 12). A corte brasileira também recorreu ao Protocolo Adicional de São Salvador para reafirmar este aspecto do direito à educação. E, o mais interessante para o presente trabalho, fez uma leitura do artigo 13.4 do citado protocolo. Segundo a corte, este dispositivo, que assegura aos pais a escolha do tipo de educação a ser ministradas a seus filhos, não concede à família a soberania sobre os conteúdos escolares. Ao contrário, o dispositivo condiciona a opção da família aos demais princípios contemplados no protocolo para uma educação “que seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à participação em uma sociedade democrática, à promoção do pluralismo ideológico e das liberdades fundamentais” (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p. 14-15).

O Supremo Tribunal Federal, além de reconhecer a liberdade de aprender e ensinar nos moldes tradicionais em que se insere a liberdade acadêmica, também a visualiza como um direito de estudantes ao livre aprendizado. Nesse sentido, em diálogo com os dispositivos convencionais, toca também no dever de proteção do superior interesse da criança, ainda quando conteúdos curriculares possam se chocar com os interesses ou crenças da família. Trata-se da reafirmação de crianças e adolescentes como sujeitos de direito. Vale o destaque:

A toda evidência, os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo. Esse tipo de providência - expressa no art. 13, § 5º - significa impedir o acesso dos jovens a domínios inteiros da vida, em evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender. A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que proveem de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola. (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p.15)

Essa decisão também trás um outro elemento importante para compreender as dimensões da liberdade de aprender e ensinar ao limitar expressamente a autoridade parental na definição dos currículos escolares. Neste aspecto, a liberdade de aprender e ensinar assegura a autonomia de estudantes em relação aos interesses de pais e mães. Essa é a contundente conclusão da Ministra Rosa Weber em seu voto apartado nas ADIs n.º 5580 e 6038, ao destacar que o titular do direito a uma educação livre e plural é o próprio educando (sic), não seus pais.

Ao longo do voto do relator, Ministro Roberto Barroso, nota-se uma clara aderência ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, seja ao citar expressamente suas normas ,seja ao coloca-las em pé de igualdade com a própria constituição brasileira, o que se percebe pelas reiteradas referências à inconstitucionalidade e à inconvencionalidade da lei impugnada.

Estas ações não discutiam ainda a proibição à dita “ideologia de gênero”. Ela aparece, em verdade, na primeira decisão da corte sobre a liberdade de cátedra na vigência da Constituição de 1988.18 18 Registra-se que o primeiro precedente do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a liberdade de cátedra ocorreu em 1964, poucos meses após o golpe militar no Brasil, foi o Habeas Corpus 40.910, julgado em 24 de agosto de 1964, no qual o tribunal decidiu tolher ação penal movida contra Sérgio Cidade de Rezende, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica de Pernambuco. A denúncia narrava que ele havia distribuído um manifesto contrário à ordem política então vigente a alunos da disciplina de introdução à economia, no qual os conclamava à defesa da democracia e da liberdade. (BRASIL, 1964, p. 1312) Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457, da relatoria do Min. Alexandre de Moraes, julgada meses antes, o relator se apoia na Opinião Consultiva 24/2007 da Corte IDH, para declarar inconstitucional a Lei 1516/2015, da cidade de Novo Gama - GO, que proibia a “ideologia de gênero” nos materiais didáticos das escolas municipais.19 19 Segundo o voto do relator: “O funcionamento eficaz da democracia representativa, que pressupõe a concretização do sistema de educação plural e igualmente democrático, assegurado pela Constituição Federal, exige absoluto respeito à ampla liberdade de expressão, possibilitando as liberdades de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, de opinião, de criação artística, de proliferação de informações, de circulação de ideias; garantindo-se, portanto, os diversos e antagônicos discursos e intepretações - moralistas e obscenos, conservadores e progressistas, científicos, literários, jornalísticos ou humorísticos.” (BRASIL, ST, ADPF 457, p. 12-13). O relator cita a alínea “i”, do parágrafo 101, da Opinião Consultiva para defender a existência de um amplo sistema legal protetivo à população LGBTI, em especial quanto ao reconhecimento da identidade de gênero e proteção das pessoas trans no que se refere ao direito à educação e à liberdade de expressão, dentre outros.

Neste julgamento inaugural sobre a liberdade de aprender e ensinar no Brasil após a redemocratização, houve apresentação de votos separados pelos Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes. Todos eles reafirmam a contrariedade da lei impugnada ao ordenamento jurídico interamericano. Nesse sentido, pode-se citar a menção à OC-24/2017 pelo Ministro Edson Fachin para defender a identidade de gênero como constitutiva da dignidade humana; e o recurso ao artigo 1º da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos pelo Ministro Gilmar Mendes como fundamento do compromisso do estado brasileiro com a igualdade, destacando sua dimensão positiva e o dever de promoção da inclusão de grupos estigmatizados e marginalizados.

O mesmo entendimento é seguido, sempre à unanimidade, nas ADPFs 460, da relatoria do Min. Luiz Fux; 461, 465 e 600, da relatoria do Min. Roberto Barroso; 467, da relatoria do Min. Gilmar Mendes; e 526, da relatoria da Min. Carmen Lúcia.20 20 Em 2021, as ADPFs 522, da relatoria do Min. Marco Aurélio, e 466, da relatoria da Min. Rosa Weber, ambas sobre leis municipais antigênero, tiveram seu julgamento iniciado pelo plenário virtual, com lançamento de votos dos relatores pela procedência, mas foram interrompidos por pedido de destaque do Min. Nunes Marques. Consequentemente, os atos de julgamento praticados até então, como sustentações orais em vídeo e votos lançados, perdem efeito, de modo que o julgamento deverá reiniciar totalmente quando de uma nova inclusão em pauta pelo presidente da corte. Observa-se também nestes julgados intenso diálogo institucional entre a corte constitucional brasileira e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Como relator da ADPF 460, o Ministro Luiz Fux reputou inconstitucional uma lei da cidade de Cascavel-PR que proibia conteúdos relacionados a gênero e sexualidade, ressaltando que seu objetivo acabava por esterilizar a participação social que emana de uma educação plural, e incluiu na fundamentação de seu voto o artigo 13 do Protocolo de São Salvador, argumentando que a educação democrática é um compromisso internacional assumido pelo Brasil e que uma pretensa neutralidade de conteúdos escolares contraria o ordenamento jurídico nacional e internacional ao pretender calar vozes que não ressoem o discurso familiar. Merece destaque, também, a compreensão de que a família, como um dos sujeitos do dever constitucional de educar, também deve zelar pelo pluralismo de ideias e liberdade de aprender e ensinar. 21 21 Conforme o relator: “Por integrar o conceito de educação, o pluralismo de ideais constitui dever também da família, cabendo-lhe zelar pela liberdade de aprendizado e divulgação do pensamento, da arte e do saber.” (BRASIL, STF, ADPF 460, 2020, p. 8). E, ainda, a prevalência do melhor interesse da criança e da construção de uma sociedade justa, livre e plural sobre a autonomia dos pais.22 22 Segundo o relator: “Quando se trata do melhor interesse da criança e da construção de uma sociedade livre, justa e plural, por mais razão ainda, a autonomia da vontade dos pais não pode obstar a proposta progressista da Constituição. Em especial, a autonomia da vontade dos pais não pode ditar os termos em que os profissionais da educação vão exercer seu mister, por toda a expertise e experiência adquirida por aqueles que pensam o ambiente escolar. Por ambas as razões, a liberdade religiosa ou filosófica não se presta a travestir o abuso de poder familiar.” (BRASIL, ST, ADPF 460, 2020, pp. 11-12).

Nas ADPFs 461, 465 e 600, o voto do Ministro Roberto Barroso, relator, considerou inconstitucionais leis municipais de Paranaguá-PR, Palmas-TO e Londrina-PR, respectivamente, que, igualmente, estabeleciam censura sobre temas relacionados a gênero e sexualidade nas escolas dos municípios. Em seu voto, defendeu que a previsão constitucional da educação voltada ao pleno desenvolvimento da pessoa, à capacitação para a cidadania e ao desenvolvimento humanístico do país (arts. 205 e 214, CF) está alinhada com o artigo 13 do Protocolo de São Salvador.23 23 “Tais disposições constitucionais estão alinhadas, ainda, com normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais” (BRASIL, STF, ADPF 461, 2020, p. 7; ADPF 465, 2020, p.7; ADPF 600, 2020, p. 7). O ministro também dedicou um tópico específico à educação sexual como constitutiva da integral proteção de crianças e adolescentes.

A Ministra Carmem Lúcia, relatora da ADPF 526, não faz referência a normativas internacionais em seu voto, no qual reputa inconstitucional Lei de Foz do Iguaçu-PR com conteúdo semelhante às normas já citadas. Contudo, os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, concordando com a conclusão da relatora, apresentaram votos separados com fundamento idêntico aos votos que proferiram no julgamento da ADPF 457, antes citada, referindo-se ao ordenamento jurídico interamericano.

Finalmente, na ADPF 467, o Ministro Gilmar Mendes, relator, reapresenta os fundamentos que vinha trazendo nos votos das ADPFs julgadas anteriormente e já citadas neste capítulo.

Por ter enfrentado o tema em diversas oportunidades, como se viu, a corte brasileira é a única que chegou a debater a liberdade de aprender e ensinar de forma mais direta, fazendo ela mesma o diálogo entre as fontes nacionais e regionais. Apesar de os julgamentos terem ocorridos todos em 2020, a distribuição das ações a diversas relatorias permitiu que várias nuances da liberdade de aprender e ensinar fossem exploradas, podendo-se perceber claramente um amadurecimento dos entendimentos. Eles reafirmam a sua relação com o princípio democrático, com a proteção da infância e juventude, com o direito da antidiscriminação e com a liberdade de expressão, que foram acima explicitados a partir das manifestações da Corte IDH e da corte colombiana. É, porém, com o estabelecimento de uma limitação expressa à autoridade parental e, consequentemente, a demarcação da autonomia de educandas(os) como titulares do direito à educação que o STF enriquece o debate sobre a liberdade no campo educacional.

Considerando os entendimentos da Corte IDH sobre a liberdade de expressão, o direito à não discriminação, à educação, a proteção do direito da infância e os julgados das cortes nacionais sobre direito à educação livre de discriminação e à liberdade de aprender e ensinar, é possível pensar numa solução dialógica entre as cortes para o tratamento da liberdade de aprender e ensinar na educação básica. Estes apontamentos serviram para visualizar os fundamentos presentes no interior do bloco de constitucionalidade formado pelo entrelaçamento das diversas ordens jurídicas que se manifestaram sobre o tema e compõem o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, recheando de sentidos a liberdade de aprender e ensinar no direito regional.

Conclusão

A guerra cultural em torno das temáticas de gênero e sexualidade que inevitavelmente atingiram a educação em países latino americanos, como os movimentos pelo Programa “Escola sem Partido”, no Brasil, e antigênero em diversos países, enseja respostas regionais às inciativas políticas estatais, comunitárias ou mesmo privadas. Neste artigo, buscou-se demonstrar possíveis fundamentos para um tratamento interamericano sobre a liberdade de aprender e ensinar na educação básica, a partir de julgados da Corte IDH, da Corte Constitucional da Colômbia e do Supremo Tribunal do Brasil. Sob a noção de Ius Constitutionale Commune, partiu-se de decisões da Corte IDH sobre o alcance da liberdade de expressão, direito à proteção da infância, direito à igualdade e direito à educação para uma aproximação com a liberdade de aprender e ensinar. O diálogo entre as cortes como recurso interpretativo do direito interamericano, ao mesmo tempo que permite a cooperação entre os diversos níveis normativos para construção do direito regional, também se inspira nos desafios que os Estados enfrentam em matéria de direitos humanos e nas soluções locais para questões que irradiam efeitos sobre toda a região, a fim de oferecer respostas com a amplitude necessária. A aproximação potencializada pelas lentes de padrões interpretativos das cortes nacionais sobre o direito à educação livre de discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero e pautada na educação democrática preenche de sentidos a liberdade de aprender e ensinar em contextos latinoamericanos para permitir seu enquadramento como categoria protegida pela Convenção Americana de Direitos Humanos e seu pelo Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.

Em momentos retrocessivos no cenário nacional de proteção dos direitos humanos, o direito internacional e os estandartes interamericanos em matéria de direitos humanos podem despontar como um piso mínimo a segurar os movimentos de regresso ou, quando menos, reconhecer responsabilidades. Isto se mostra ainda mais acentuado em relação às vulnerabilidades sociais e grupos marginalizados, temas estes que estão presentes em pautas de difícil - até mesmo impossível - consenso moral. Nestes casos, o debate e o diálogo com o direito internacional revelam-se fundamentais à própria sobrevivência.

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  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457/GO. Direito Constitucional. Lei 1.516/2015 do Município de Novo Gama - GO. Proibição de divulgação de material com informação de ideologia de gênero em escolas municipais. Usurpação de competência privativa legislativa da União. Diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, CF). Violação aos princípios atinentes à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento a arte e o saber (art. 206, II, CF), e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF). Proibição da censura em atividades culturais e liberdade de expressão (art. 5º, IX, CF). Direito à igualdade (art. 5º, caput, CF). Dever estatal na promoção de políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação de minorias. Inconstitucionalidade formal e material reconhecidas. Procedência. Relator: Min. Alexandre de Moraes, julgamento 27 abr. 2020, publicação 03 jun. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752834386 Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 460/PR. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Artigo 2º, parágrafo único, da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel - PR. Vedação de “políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. Usurpação da competência privativa da união para legislar sobre diretrizes e bases da educação. A proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias. A construção de uma sociedade solidária, livre e justa perpassa a criação de um ambiente de tolerância, a valorização da diversidade e a convivência com diferentes visões de mundo. Precedentes arguição conhecida e julgado procedente o pedido. Relator: Min. Luiz Fux, julgamento 29 jun. 2020, publicação 13 ago. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753445537 Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 461/PR. Direito à educação. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual, bem como a utilização desses termos nas escolas. Procedência do pedido. Relator: Min. Roberto Barroso, julgamento 24 ago. 2020, publicação 22 set. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753886751 Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 465 MC/TO. Medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual, bem como a utilização desses termos nas escolas. Deferimento da liminar. Relator: Min. Roberto Barroso, julgamento 24 ago. 2020, publicação 17 set. 2020.
  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 467/MG. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Constitucional. 2. Cabimento da ADPF. Objeto: artigos 2º, caput, e 3º, caput, da Lei 3.491, de 28 de agosto de 2015, do município de Ipatinga (MG), que excluem da política municipal de ensino qualquer referência à diversidade de gênero e orientação sexual. Legislação reproduzida por diversos outros municípios. Controvérsia constitucional relevante. Inexistência de outro instrumento capaz de resolver a questão de forma efetiva. Preenchimento do requisito da subsidiariedade. Conhecimento da ação. 3. Violação à competência da União para editar normas gerais sobre educação. 4. Afronta aos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil relativos ao pluralismo político e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem quaisquer preconceitos. 5. Direito à liberdade de ensino, ao pluralismo de ideais e concepções pedagógicas e ao fomento à liberdade e à tolerância. Diversidade de gênero e orientação sexual. 6. Normas constitucionais e internacionais proibitivas da discriminação: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Princípios de Yogyakarta, Constituição Federal. 7. Violação à liberdade de ensinar, aprender, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. 8. Arguição julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos trechos impugnados dos artigos 2º, caput, e 3º, caput, da Lei 3.491, de 28 de agosto de 2015, do município de Ipatinga, que excluem da política municipal de ensino qualquer referência à diversidade de gênero e à orientação sexual. Relator: Min. Gilmar Mendes, julgamento 29 maio 2020, publicação 07 jul. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753189469 Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • ______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 600/PR. Direito à educação. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero, bem como a utilização do conceito nas escolas. Procedência do pedido. Relator: Min. Roberto Barroso, julgamento 24 ago. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344415067&ext=.pdf Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • PARANÁ. Assembleia Estadual. Ata n. 58 da Sessão Ordinária do dia 22 de junho de 2015. Curitiba: Diário Oficial do Poder Legislativo Estadual, 25 jun. 2015.
  • PIOVESAN, Flávia. Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos Humanos e o Sistema Interamericano: perspectivas e desafios. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1356-1388, 2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/28029/20617 Acesso em: 12 jul. 2021.
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  • PIRES, Breiller. ‘Não se meta com meus filhos’: movimento contra políticas de gênero na América Latina corteja Bolsonaro. El País, Caderno Internacional, São Paulo, 15 nov. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/14/internacional/1542229156_126326.html Acesso em: 11 jul. 2021.
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  • ROBL FILHO, Ilton Norberto. Liberdade Acadêmica e Científica: dimensões e problemas contemporâneos. Espaço Jurídico Journal of Law, São Miguel do Oeste, v. 19, n. 3, p. 755-776, set./dez. 2018. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/17499 Acesso em: 13 jul. 2022.
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  • SARLET, Ingo Wolfgang; Travincas, Amanda Costa Thomé. O direito fundamental à liberdade acadêmica - notas em torno de seu âmbito de proteção - a ação e a elocução extramuros. Revista Espaço Jurídico Journal of Law, São Miguel do Oeste, v. 17, n. 2, p. 529-546, maio/ago. 2016. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/10328 Acesso em: dia mês 2022.
    » https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/10328
  • SCALA, Jorge. La ideologia del Género: o el género como herramienta de poder. Rosario: Ediciones Logos Ar., 2010.
  • __________. A Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família. São Paulo: Editora Katechesis, 2015.
  • 1
    Um coletivo de 60 entidades promoveu e lançou em 2018 o Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas (AÇÃO EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA et al, 2018). A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.537 (Relator: Min. Roberto Barroso, 24 de agosto de 2020), contra Lei Estadual que instituía o Escola sem Partido em Alagoas, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2020, contou com diversas entidades da sociedade civil como amici curiae, dentre elas a União Nacional dos Estudantes (UNE); Associação Artigo 19 Brasil; Ação Educativa; Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres - CLADEM Brasil; Themis, Gênero, Justiça e Direitos Humanos; Instituto Maria da Penha; Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais - ANAJUDH.
  • 2
    Nas ações diretas de inconstitucionalidade 5537, 5580 e 6038, todas de relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 24 ago. de 2020), o pleno decidiu por maioria de votos (vencido o Ministro Marco Aurélio) declarar inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, nos termos do voto do Relator. Também as arguições de descumprimento de preceito fundamental 457, da relatoria do Min. Alexandre de Morais (BRASIL, STF, julgamento 27 abr. 2020); 460, da relatoria do Min. Luiz Fux (BRASIL, STF, julgamento 29 jun. 2020); 461, 465 e 600, da relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 24 ago. 2020); 467, da relatoria do Min. Gilmar Mendes (BRASIL, STF, julgamento 29 maio 2020); e 526, da relatoria da Min. Carmen Lúcia (BRASIL, STF, julgamento 11 maio 2020), que versavam sobre leis municipais que proibiam a abordagem de temáticas ligadas a gênero e sexualidade nos conteúdos escolares, muitas utilizando uma terminologia “ideologia de gênero”. Em relação a estas, o pleno da corte as reputou inconstitucionais em decisões unânimes.
  • 3
    O ensino domiciliar consta na lista de 35 pautas prioritárias para o Governo Federal, entregue pelo presidente Jair Bolsonaro aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, na cerimônia de abertura dos trabalhos do Congresso Nacional para o ano de 2021. Já tramitava na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2401/2019, de iniciativa do Poder Executivo, com o objetivo de regulamentar a educação domiciliar no Brasil. Esta proposição fora apensada ao PL 3179/2012, em novembro de 2019 e, diante das pressões para acelerar a sua aprovação, foi desapensado em abril de 2021, quando o ensino domiciliar entrou nas pautas das comissões temáticas com possibilidade de ir à votação na tramitação da proposta mais antiga. O tema foi debatido no Supremo Tribunal Federal, quando julgou o Recurso Extraordinário 888.815, da relatoria do Min. Roberto Barroso (BRASIL, STF, julgamento 04 jun. 2015), em setembro de 2018. A corte, contudo, não reputou inconstitucional o ensino domiciliar em si. Ao contrário, decidiu-se que por ocasião do julgamento não havia legislação infraconstitucional que lhe desse suporte. Essa abertura para regulamentação permitiu a retomada dos debates legislativos em várias esferas.
  • 4
    A título exemplificativo, cita-se a Lei 9.562/2019, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Vitória, em agosto de 2019; Projeto de Lei Nº 02/2020, aprovado pela Câmara Municipal de Itaúna - MG, em abril de 2020; Lei 7.160/2020, promulgada pela presidência da Câmara Municipal de Cascavel - PR, em setembro de 2020 (declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Paraná em junho de 2021); aprovação do Projeto de Lei 170/2019, em junho de 2021, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (vetada pelo Governador Eduardo Leite).
  • 5
    Decreto Federal 10.004/2019 e Leis paranaenses 20.338/2020 e 20.505/2021.
  • 6
    Projetos de Lei Federal 5.198/2020, de autoria do Deputado Junio Amaral (PSC) e 5.248/2020, de autoria do deputado Guilherme Derrite (PP); Projeto de Lei Estadual carioca n.º 3.325/20, dos deputados Anderson Moraes (PSL), Márcio Gualberto (PSL) e Daniel Librelon (REP).
  • 7
    “A título exemplificativo, a Constituição da Argentina, após a reforma constitucional de 1994, dispõe, no artigo 75, inciso 22, que, enquanto os tratados em geral têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, os tratados de proteção dos direitos humanos têm hierarquia constitucional, complementando os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos. A Constituição Brasileira de 1988, no artigo 5º, parágrafo 2º, consagra que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem os direitos decorrentes dos princípios e do regime a ela aplicável e os direitos enunciados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, permitindo, assim, a expansão do bloco de constitucionalidade. A então Constituição do Peru de 1979, no mesmo sentido, determinava, no artigo 105, que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional e não podem ser modificados senão pelo procedimento que rege a reforma da própria Constituição. Já a atual Constituição do Peru de 1993 consagra que os direitos constitucionalmente reconhecidos devem ser interpretados em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Decisão proferida em 2005 pelo Tribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, adicionando que os direitos humanos enunciados nos tratados conformam a ordem jurídica e vinculam os poderes públicos. A Constituição da Colômbia de 1991, reformada em 1997, confere, no artigo 93, hierarquia especial aos tratados de direitos humanos, determinando que estes prevalecem na ordem interna e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pelo país. Também a Constituição do Chile de 1980, em decorrência da reforma constitucional de 1989, passou a consagrar o dever dos órgãos do Estado de respeitar e promover os direitos garantidos pelos tratados internacionais ratificados por aquele país. Acrescente-se a Constituição da Bolívia de 2009, ao estabelecer que os direitos e deveres reconhecidos constitucionalmente serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Bolívia, que prevalecerão em relação à própria Constituição se enunciarem direitos mais favoráveis (artigos 13, IV e 256). Na mesma direção, destaca-se a Constituição do Equador de 2008, ao consagrar que a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado que reconheçam direitos mais favoráveis aos previstos pela Constituição têm prevalência em relação a qualquer outra norma jurídica ou ato do Poder Público (artigo 424), adicionando que serão aplicados os princípios pro ser humano, de não restrição de direitos, de aplicabilidade direta e de cláusula constitucional aberta (artigo 416). A Constituição do México, com a reforma de junho de 2011, passou a contemplar a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos e a regra interpretativa fundada no principio pro persona.” (PIOVEZAN, 2017, p. 175-176)
  • 8
    “Art. 13.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.” (OEA, CIDH, 1969, s./n.)
  • 9
    Dentre quase uma dezena de legislações municipais no Brasil que proíbem a “ideologia de gênero” nos conteúdos escolares, merece menção duas do Estado de Pernambuco que cuidaram de melhor detalhar a proibição. Segundo a Lei 2.985/2017, de Petrolina, proíbe-se em seu art. 1º “a disciplina denominada Ideologia de Gênero, bem como toda e qualquer disciplina que tente orientar a sexualidade dos alunos ou que tente extinguir o gênero masculino ou feminino como gênero humano”. A Lei a Lei 4.432/2017, de Garanhuns, em seu § 1º, cuidou de conceitua-la: “Considera-se teoria de gênero, questões de gênero, identidade de gênero ou ideologia de gênero, para efeitos desta Lei, a concepção de que os dois sexos, masculino e feminino, são considerados construções culturais e sociais e o entendimento de que existem outros gêneros sexuais além dos dois ora mencionados.” Ambas tiveram a sua constitucionalidade questionada pela Procuradoria Geral da República na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 522, da relatoria do Min. Marco Aurélio Mello, não julgada até o encerramento da escrita deste artigo.
  • 10
    “A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser ‘vulnerável’. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza.” (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p. 19)
  • 11
    Art. 19.6: “6. Caso os direitos estabelecidos na alínea a do artigo 8, e no artigo 13, forem violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo, essa situação poderia dar lugar, mediante participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais regulado pelos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.” (OEA, CIDH, 1988, s./n.)
  • 12
    “Levando em conta as obrigações gerais de respeito e de garantia, estabelecidas no artigo 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação fixados no artigo 29 da citada Convenção, o estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, as resoluções da Assembleia Geral da OEA, as normas estabelecidas pelo Tribunal Europeu e pelos organismos das Nações Unidas (pars. 83 a 90 supra), a Corte Interamericana estabelece que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são categorias protegidas pela Convenção. Por isso, a Convenção rejeita qualquer norma, ato ou prática discriminatória com base na orientação sexual da pessoa. Por conseguinte, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais, seja por particulares, pode diminuir ou restringir, de maneira alguma, os direitos de uma pessoa com base em sua orientação sexual.” (OEA, 1969, p. 33-34)
  • 13
    “De acordo com o que precede, levando em consideração as obrigações gerais de respeito e garantia estabelecidas no artigo 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação estabelecidos no artigo 29 da referida Convenção, conforme estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, das Resoluções da Assembleia Geral da OEA e das agências das Nações Unidas (supra, parágrafos 71 a 76), a Corte Interamericana estabelece que orientação sexual e identidade de gênero, bem como a expressão de gênero são categorias protegidas pela Convenção. Por esta razão, a Convenção proíbe qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa. Por conseguinte, nenhuma regra, decisão ou prática de direito interno, seja por autoridades estatais ou por indivíduos, pode diminuir ou restringir, de qualquer forma, os direitos de uma pessoa com base na sua orientação sexual, identidade de gênero e/ou a sua expressão de gênero.” (OEA, 1985, p. 38).
  • 14
    “Concluindo, a Corte Interamericana observa que ao ser, de maneira abstrata, o “interesse superior da criança” um fim legítimo, a mera referência a ele, sem provar, concretamente, os riscos ou danos que poderiam implicar a orientação sexual da mãe para as crianças, não pode constituir medida idônea para a restrição de um direito protegido como o de poder exercer todos os direitos humanos sem discriminação alguma pela orientação sexual da pessoa. O interesse superior da criança não pode ser usado para amparar a discriminação contra a mãe ou o pai, em virtude da orientação sexual de qualquer deles. Desse modo, o julgador não pode levar em consideração essa condição social como elemento para decidir sobre uma guarda ou tutela.” (OEA; Corte IDH, 2005, p. 38-39).
  • 15
    Así, queda claro que uno de los ámbitos más importantes para la protección del derecho a la igualdad, la dignidad y el libre desarrollo de la personalidad es el respeto absoluto por la expresión de la identidad de género o la orientación sexual. En el ámbito escolar, esta protección debe ser aún más estricta pues los menores de edad tienen el derecho de ser formados en espacios democráticos y plurales. Así, la prohibición de discriminación por razón de género o de orientación sexual es absoluta y ningún tercero, ya sean otros estudiantes o las autoridades del colegio, pueden perseguir o amedrentar a los estudiantes que deciden asumir voluntariamente una opción sexual diversa. Cualquier actitud en ese sentido, como se explicará en el capítulo siguiente, constituye un trato de hostigamiento que debe ser reprochado y a toda costa prevenido.” (COLÔMBIA, 2015, parágrafo 57).
  • 16
    Ver nota 4.
  • 17
    Conforme o voto do relator: “A Constituição assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional.” (BRASIL, STF, ADI 5537, 2020, p. 12).
  • 18
    Registra-se que o primeiro precedente do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a liberdade de cátedra ocorreu em 1964, poucos meses após o golpe militar no Brasil, foi o Habeas Corpus 40.910, julgado em 24 de agosto de 1964, no qual o tribunal decidiu tolher ação penal movida contra Sérgio Cidade de Rezende, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica de Pernambuco. A denúncia narrava que ele havia distribuído um manifesto contrário à ordem política então vigente a alunos da disciplina de introdução à economia, no qual os conclamava à defesa da democracia e da liberdade. (BRASIL, 1964, p. 1312)
  • 19
    Segundo o voto do relator: “O funcionamento eficaz da democracia representativa, que pressupõe a concretização do sistema de educação plural e igualmente democrático, assegurado pela Constituição Federal, exige absoluto respeito à ampla liberdade de expressão, possibilitando as liberdades de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, de opinião, de criação artística, de proliferação de informações, de circulação de ideias; garantindo-se, portanto, os diversos e antagônicos discursos e intepretações - moralistas e obscenos, conservadores e progressistas, científicos, literários, jornalísticos ou humorísticos.” (BRASIL, ST, ADPF 457, p. 12-13).
  • 20
    Em 2021, as ADPFs 522, da relatoria do Min. Marco Aurélio, e 466, da relatoria da Min. Rosa Weber, ambas sobre leis municipais antigênero, tiveram seu julgamento iniciado pelo plenário virtual, com lançamento de votos dos relatores pela procedência, mas foram interrompidos por pedido de destaque do Min. Nunes Marques. Consequentemente, os atos de julgamento praticados até então, como sustentações orais em vídeo e votos lançados, perdem efeito, de modo que o julgamento deverá reiniciar totalmente quando de uma nova inclusão em pauta pelo presidente da corte.
  • 21
    Conforme o relator: “Por integrar o conceito de educação, o pluralismo de ideais constitui dever também da família, cabendo-lhe zelar pela liberdade de aprendizado e divulgação do pensamento, da arte e do saber.” (BRASIL, STF, ADPF 460, 2020, p. 8).
  • 22
    Segundo o relator: “Quando se trata do melhor interesse da criança e da construção de uma sociedade livre, justa e plural, por mais razão ainda, a autonomia da vontade dos pais não pode obstar a proposta progressista da Constituição. Em especial, a autonomia da vontade dos pais não pode ditar os termos em que os profissionais da educação vão exercer seu mister, por toda a expertise e experiência adquirida por aqueles que pensam o ambiente escolar. Por ambas as razões, a liberdade religiosa ou filosófica não se presta a travestir o abuso de poder familiar.” (BRASIL, ST, ADPF 460, 2020, pp. 11-12).
  • 23
    “Tais disposições constitucionais estão alinhadas, ainda, com normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais” (BRASIL, STF, ADPF 461, 2020, p. 7; ADPF 465, 2020, p.7; ADPF 600, 2020, p. 7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    29 Mar 2023
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