RESUMO
Este artigo aborda o tema das burocracias subnacionais e a forma como gradualmente ao estudos na literatura nacional vêm ampliado a análise da sua estrutura e funcionamento em estados e municípios. Após uma geração de estudos sobre o poder local mais voltada para analisar democracia e participação, mais recentemente a compreensão das burocracias subnacionais vem assumindo relevância nos marcos da descentralização de atribuições para estados e municípios, o que demanda mais capacidade burocrática. O trabalho também mapeia o debate sobre as burocracias subnacionais na literatura internacional e nacional. Descreve-se a realidade do funcionalismo público estadual e municipal no contexto do federalismo descentralizado comparado com o governo central para evidenciar sua expansão e os efeitos causados na administração pública dessas esferas de governo. Por fim, são sugeridos temas emergentes nesta incipiente agenda de pesquisa para estudos quantitativos e estudos de caso.
Palavras-chave:
burocracias subnacionais; política pública; administração pública; governo local; federalismo brasileiro
ABSTRACT
This article addresses the topic of Brazilian subnational bureaucracies and how studies in national literature have gradually expanded the analysis of their structure and functioning in states and municipalities. After a generation of studies on local power focused on analyzing democracy and participation, the understanding of subnational bureaucracies has gained relevance in the framework of decentralization of responsibilities to states and municipalities, which demands more bureaucratic capacity. This study also maps the debate on subnational bureaucracies in international and national literature. The reality of state and municipal public service in the context of decentralized federalism is also described in comparison with the central government to highlight its expansion and the effects it has on the public administration of these spheres of government. Finally, emerging themes are suggested in this incipient research agenda for quantitative studies and case studies.
Keywords:
subnational bureaucracy; public policy; public administration; local government; Brazilian federalism
RESUMEN
Este artículo aborda el tema de las burocracias subnacionales y la forma en que los estudios en la literatura nacional han ido ampliando el análisis de su estructura y funcionamiento en estados y municipios. Luego de una generación de estudios sobre el poder local más centrados en analizar la democracia y la participación, más recientemente la comprensión de las burocracias subnacionales ha cobrado relevancia en el marco de la descentralización de responsabilidades hacia estados y municipios, lo que exige mayor capacidad burocrática. El trabajo también mapea el debate sobre las burocracias subnacionales en la literatura nacional e internacional. También se describe la realidad del servicio público estatal y municipal en el contexto del federalismo descentralizado en comparación con el gobierno central para resaltar su expansión y los efectos causados en la gestión pública de estas esferas de gobierno. Finalmente, se sugieren temas emergentes en esta incipiente agenda de investigación para estudios cuantitativos y estudios de casos.
Palabras clave
burocracias subnacionales; política pública; administración pública; gobierno local; federalismo brasileño
INTRODUÇÃO
O debate na literatura é central na análise sobre a construção do Estado moderno pelo menos desde os textos seminais de Woodrow Wilson, Frank Goodnow e Max Weber nas primeiras décadas do século XX. O que há de comum na produção acadêmica sobre o tema, e que perdurou por muitas décadas, foi o foco na análise das burocracias das esferas centrais de governo. A construção dos Estados nacionais, e a ampliação de suas áreas de atuação, sobretudo com a expansão das políticas de bem-estar social, justificavam o estudo dos aparatos burocráticos que gradualmente foram crescendo. A atuação estatal como provedor de serviços públicos e garantidor de direitos para parcelas cada vez maiores da sociedade cresceu progressivamente, sobretudo após a década de 1930. Essa realidade incentivou a pesquisa acadêmica sobre as burocracias, visando a compreensão da sua inserção e papéis desempenhados no campo da administração pública.
Durante décadas, o Estado como instituição política foi considerado sinônimo de sua representação na esfera nacional. Os principais debates propostos pela literatura estavam orientados para esse âmbito de análise (ver, por exemplo, Waldo [1952]Waldo, D. (1952). Development of theory of democratic administration. American Political Science Review, 46(1), 81-103. https://doi.org/10.2307/1950764
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, Krylova [2019]Krylova, Y. (2019). Bureaucratic politics. In: A. Farazmand (ed.). Global Encyclopedia of Public Administration, Public Policy, and Governance. Springer Nature Switzerland AG. https://doi.org/10.1007/978-3-319-20928-9
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, Lindblom [1980]Lindblom, C. E. (1980). O processo de decisão política. Editora da Universidade de Brasília., Peters [1995Peters. B. Guy (1995). The politics of the bureaucracy. New York: Longman Publishers.], Schumpeter [1984]Schumpeter, J. (1984). Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores., Aberbach, Putnam e Rockman [1981]Aberbach, J. D., Putnam, R. D. e Rockman, B. A. (1981). Bureaucrats and Politicians in Western Democracies. Cambridge: Harvard University Press., Geddes [1994]Geddes, B. (1994). Politician’s Dilemma: building state capacity in Latin America. University of California Press., Grindle [2012]Grindle, M. S. (2012). Jobs for the boys. Patronage and the State in comparative perspective. Harvard University Press. e Panizza, Peters e Laburru [2022]Panizza, F. E, Peters, B. G. e Laburru, C. R. (2022). The Politics of Patronage Appointments in Latin American Central Administrations. University of Pittsburgh Press. https://doi.org/10.2307/j.ctv35bfdwc
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). Mais recentemente, as burocracias públicas assumiram destaque como veículos para conter processos de democratic backsliding (Bauer e Becker, 2020Bauer, M. W. e Becker, S. (2020). Democratic Backsliding, Populism, and Public Administration. Perspectives on Public Management and Governance, 3 (10), 19-31. https://doi.org/10.1093/ppmgov/gvz026
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). Voltou com força o debate da década de 1950 sobre a relação entre democracia e burocracias públicas (Bertelli, 2021Bertelelli, A. M. (2021). Democracy administered: how public administration shapes representative government. Cambridge University Press.).
Com efeito, o estudo das burocracias públicas tem enfatizado prioritariamente o Estado nacional como o espaço de reflexão. É nesse sentido que o dossiê Funcionalismo público nos estados e municípios: capacidades, politização e desigualdades vem em muito boa hora contribuir para adensar a pesquisa sobre a administração pública subnacional. Em termos teóricos, a reflexão proposta pelos organizadores desse número especial é fundamental para firmar o conhecimento sobre as burocracias estaduais e municipais. Em especial, no caso de países federais nos quais existe algum nível de descentralização territorial, a importância de estudar a estrutura e o funcionamento das burocracias subnacionais é mais significativa.
A estrutura do serviço público é um aspecto essencial para o funcionamento dos sistemas federais, pois molda a capacidade da esfera central e das unidades constituintes cumprirem seus papéis. No Brasil, após décadas de regime autoritário e de democratização tardia, a organização da burocracia subnacional é mais recente do que em outras federações. Examinar a estrutura da função pública estadual e municipal, com foco em sua capacidade administrativa e nível de profissionalização é um campo de estudo ainda pouco explorado na literatura de ciência política e administração pública. É preciso conhecer mais as implicações para o funcionamento do federalismo e das relações intergovernamentais sobre como capacidades burocráticas subnacionais estão adequadas para assumir crescentes responsabilidades.
Os estudos sobre poder local foram influenciados pelas inovações institucionais de democracia participativa e controle social tomadas como indutoras de mudanças na relação com a sociedade. A pesquisa sobre as burocracias subnacionais ficou secundarizada, pois a descentralização de atribuições para instâncias locais foi assumida como forma de aumentar a legitimidade governamental ao reduzir a distância com a sociedade (Lavalle e Vera, 2011Lavalle, A.G. e Vera, E.I. (2011). A trama da crítica democrática: Da participação à representação e à accountability. Revista de Cultura e Política, 84, 95-139. https://doi.org/10.1590/S010264452011000300005
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). A descentralização e a democracia participativa foram tomadas como forma de melhorar o funcionamento da democracia local (Kersting et al., 2016Kersting, N. et al. (2016). Local democratic renewal by deliberative participatory instruments: Participatory budgeting in comparative study. In S. Kuhlmann and G. Bouckaert (Eds.). Local Public Sector Reforms in Times of Crisis (pp. 317-32). London: Palgrave.). Nessa toada, temas “administrativos” foram considerados, até muito recentemente, secundários na análise dos governos subnacionais.
Para ser justo, essa discussão usualmente era abordada pela ótica das finanças públicas a respeito dos números sobre as despesas dos governos subnacionais com os salários do funcionalismo público. O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), por exemplo, publicou, a partir da década de 1990, muitos estudos sobre o tema. Agora é o momento de redescobrir as burocracias subnacionais como um campo próprio de estudo. Na próxima seção será apresentado um panorama da literatura internacional e nacional sobre esse tema. Contudo, há necessidade de ampliar os estudos, dada a relevância que governos subnacionais vêm assumindo em muitos países na provisão de serviços e políticas públicas, o que implica maior protagonismo de atuação diante das esferas nacionais.
Por outro lado, o contexto do federalismo brasileiro e a descentralização das políticas sociais desde o final da década de 1980 só ampliou a importância das burocracias subnacionais (Grin, Lotta e Abrucio, 2023Grin, E. J., Lotta, G. e Abrucio, F. L. (2023). Relaciones intergubernamentales y administración pública: los casos de las políticas públicas de salud, educación y asistencia social en Brasil. In: Navarro, F. M. e Guadamarra, J. D. P. (Eds.). Los nuevos desafíos de la administración pública en una esperada época de postpandemia (pp. 261-286). Tirant Lo Blanch.). A descentralização atribui, sobretudo para os municípios, um papel estratégico na oferta de políticas de bem-estar social (Arretche, 1999Arretche, M. T. S. (1999). Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (40), 111-141. https://doi.org/10.1590/S010269091999000200009.
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). A descentralização resultou em um reforço da Federação, pois aumentaram-se as atribuições, poderes e recursos, além da ênfase na maior eficiência dos governos subnacionais (Wilson et al, 2009Wilson, R. H et al. (2009). Governance in the Americas: Decentralization, Democracy, and Subnational Government in Brazil, Mexico, and the US., University of Notre Dame Press.).
Melo (1999)Melo, M. A. (1999). O município na federação brasileira e a questão da autonomia. In: Konrad-Adenauer-Stiftung. Centro de Estudos. Subsidiariedade e fortalecimento do poder local. Konrad-Adenauer-Stiftung. argumenta que a Constituição Federal de 1988 (CF 88) compreendeu o município sob dois enfoques distintos: a) como princípio democrático (núcleo da vida política associado ao controle social e à participação cidadã (a matriz social-democrata); b) como princípio da engenharia administrativa para a eficiência na prestação dos serviços públicos (visão neoliberal que diminui o papel do governo nacional). Nessas duas dimensões, as capacidades estatais administrativas, técnicas e relacionais assumiram crescente relevância, pois o estoque de recursos necessários se tornou mais complexo (Grin, Demarco e Abrucio, 2021Grin, E. J., Demarco, D. J. e Abrucio, F. L. (2021). Capacidades estatais municipais: o universo desconhecido no federalismo brasileiro. Porto Alegre: Editora UFRGS/CEGOV.). O conhecimento disponível na literatura nacional sobre as capacidades estatais de municípios é reduzido e, no caso dos Estados, ainda mais escasso. O estágio atual da produção acadêmica, associada com o esforço de bring the subnational state back in, reforça mais a importância desse número nos Cadernos de Gestão Pública e Cidadania.
É importante situar essa edição especial nesse cenário, pois a análise do funcionalismo público estadual e municipal adquire sentido no bojo da reorganização do federalismo. Nesse processo, duas questões são centrais para entender a relevância do estudo sobre as burocracias subnacionais: a autonomia constitucional como ente federativo e a responsabilidade crescente pela implementação de políticas públicas descentralizadas, sobretudo aquelas de bem-estar social. Nenhum dos fatores pode ser dissociado se o objetivo é compreender a forma como passaram a se organizar as burocracias estaduais e municipais.
A autonomia constitucional de estados e municípios vem associada com a autodeterminação no âmbito das suas competências, o que lhes garante auto-organização, autogoverno, autolegislação e autogestão. Os municípios e os estados gozam de autonomia política, administrativa e financeira, sobre a qual não há possibilidade de interferência das instâncias superiores de governo (Grin, Segatto, Abrucio, 2016Grin, E. J., Segatto, C. I e Abrucio, F. L. (2016). El asociativismo intermunicipal en Brasil. In: Cravacuore, D. A. e Chacon, A. (Eds.). El asociativismo intermunicipal en America Latina. Santiago de Chile: Universidad Tecnológica Metropolitana.). Porém, na prática, são poucas as áreas em que estados e municípios efetivamente exercem competências legislativas e administrativas exclusivas, uma vez que a CF 88 define muitas atribuições exclusivas para o governo federal. No limite, estados e municípios poderiam exercer uma “autonomia negativa”, uma vez que não são obrigados a aderir às políticas federais. Mas isso é uma impossibilidade virtual, pois não conseguiriam arcar sozinhos com os custos da implementação de ações em áreas como saúde, assistência social e educação.
Nas últimas três décadas, os municípios, sobretudo, tornaram-se a unidade federativa central para a qual direciona-se a implementação e a provisão das políticas públicas. Coube aos municípios assumir a tarefa de ampliar o acesso a direitos sociais consagrados na CF 88, além da autonomia para contratar mais servidores, ressalvadas as restrições introduzidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal após o ano 2000. Nesse contexto, ampliaram-se as exigências por qualificar e expandir suas burocracias para responder aos seus novos papéis no plano local e nas relações intergovernamentais (Grin e Abrucio, 2018Grin, E. J.; Abrucio, F. L. (2018). Las capacidades estatales de los municipios brasileños en un contexto de descentralización de políticas. Reforma y Democracia, 70, 93-126.; Franzese e Abrucio, 2013Franzese, C. e Abrucio, F. L. (2013). Efeitos recíprocos entre federalismo e políticas públicas: os casos dos sistemas de saúde, assistência social e de educação. In: Hocman, G. e Faria, C. A. P. (Eds.). Federalismo e políticas públicas no Brasil (pp. 361-386). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. https://doi.org/10.7476/9788575415504
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).
A CF 88 confere muitos poderes às municipalidades: legislar sobre questões de interesse local; complementar a legislação federal e estadual quando possível; criar e arrecadar seus próprios impostos; organizar e executar diretamente ou sob regime de concessão ou autorização de serviços públicos de interesse local; manter programas nas áreas de educação infantil e fundamental; prestar serviços de saúde; promover ordenamento do território e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo; aprovar, por lei, o Plano Plurianual, diretrizes orçamentárias e o orçamento anual; e implementar a política de desenvolvimento urbano. O artigo 165 da CF 88 define que os municípios devem aprovar o Plano Plurianual, as Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Anual. Os municípios devem executar a política de desenvolvimento urbano e garantir o bem-estar de seus habitantes, respeitado o Estatuto das Cidades. Os municípios com mais de 20 mil habitantes (30% do total) devem elaborar seus Planos Diretores.
A lista de questões sobre as quais os municípios podem legislar é extensa (artigo 30 da CF 88): normalizar questões de interesse local; cobrar impostos próprios; aplicar seus rendimentos; complementar a legislação federal e estadual quando aplicável; criar e suprimir divisões administrativas, obedecendo à legislação estadual; prestar, diretamente ou mediante concessão ou autorização, serviços públicos de interesse local, inclusive transporte coletivo; manter, com cooperação técnica e financeira federal e estadual, programas de educação infantil e ensino fundamental e atenção à saúde da população; promover o ordenamento do território e o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano e proteger o patrimônio histórico-cultural.
Ainda que o aumento das competências tributárias, símbolo básico da autonomia financeira municipal, permita ampliar as receitas locais, essa tarefa requer modernização gerencial (Grin et al., 2018Grin, E. J. et al. (2018). Sobre desconexões e hiatos: uma análise de capacidades estatais e finanças públicas em municípios brasileiros. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 23(76), 312-336. https://doi.org/10.12660/cgpc.v23n76.75417
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). Quanto à gestão administrativa, mais autonomia exige mais capacidade de autorregulação e demanda mais qualidade técnica e organizacional. O aumento das responsabilidades requer mais servidores, o que impacta na capacidade de gestão de pessoas. Os municípios podem instituir o regime jurídico dos servidores públicos, legislar sobre serviços públicos e licitação e contratos administrativos, respeitadas as normas federais da chamada “Lei das Licitações” (Resende, 2008Resende, A. J. C. (2008). Autonomia Municipal e Lei Orgânica. Cadernos da Escola do Legislativo, 10 (15), 7-42.). Responsabilidades adicionais vêm sendo repassadas para os governos subnacionais, com ênfase para os municípios, a exemplo das legislações federais na áreas de saneamento e resíduos sólidos. Muitas dessas atribuições traduzem as competências comuns entre a União, estados e os municípios propostas no artigo 23 da CF 88. Mas essas atribuições demandam conhecimento técnico especializado, o que reitera a necessidade de burocracias capacitadas. Esses são alguns dos desafios para as burocracias municipais responderem, mas que vem sendo enfrentado desigualmente conforme o seu porte, região e características socioeconômicas (Grin e Fernandes, 2019Grin, E. J. e Fernandes, G. A. L. (2019). Capacidades estatales en los municipios brasileños: resultados tímidos en un contexto de autonomía política local y un escenario de dependencia financiera. In: Grin, E. J., Completa, E. R., Carrrera-Hernández, A. P. e Abrucio, F. L. (Eds.). Capacidades estatales en gobiernos locales iberoamericanos: actualidad, brechas y perspectivas (pp. 92-148). Rio de Janeiro: Editora FGV.; Marenco, 2017Marenco, A. (2017). Burocracias Profissionais Ampliam Capacidade Estatal para Implementar Políticas? Governos, Burocratas e Legislação em Municípios Brasileiros. DADOS - Revista de Ciências Sociais, 60 (4), 1025-1058. https://doi.org/10.1590/001152582017141
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).
A literatura nacional já evidenciou como a indução federal logrou êxito para que os estados e municípios aderissem a políticas públicas alinhadas com o artigo 23 da CF 88 (Arretche, 1999Arretche, M. T. S. (1999). Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (40), 111-141. https://doi.org/10.1590/S010269091999000200009.
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). Contudo, uma faceta menos conhecida desses arranjos de relações intergovernamentais consiste na reconfiguração que foi necessária na estrutura e no funcionamento das burocracias subnacionais. Voltaremos a esse ponto ao abordar os números do funcionalismo estadual e municipal. Considerando o contexto federativo no qual se insere o debate proposto nesse número especial, a próxima seção volta-se para a produção acadêmica internacional e nacional sobre as burocracias subnacionais. O objetivo é localizar os principais temas em debate e, com isso, situar como a literatura vem abordando esse tema.
O DEBATE NA LITERATURA SOBRE AS BUROCRACIAS SUBNACIONAIS
A metodologia utilizada foi a análise bibliométrica para identificar padrões bibliográficos, assumindo que frequência de referências é um indicador de relevância dos tópicos para os estudos de um campo de conhecimento (Robredo e Cunha, 1998Robredo, J. e Cunha, M. B. (1998). Aplicação de técnicas infométricas para identificar a abrangência do léxico básico que caracteriza os processos de indexação e recuperação da informação. Ciência da informação, 27,11-27. https://doi.org/10.1590/S010019651998000100003
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). Da base Scopus foram extraídas informações do resumo (abstract), palavras-chave (keywords), ano de publicação, títulos, autores, número total de citações recebidas e o DOI dos trabalhos.
A busca na base Scopus foi realizada a partir das seguintes palavras “bureaucracy, “state capacity”, “city”, “subnational”, “municipality”, “federative states”, “province”, “districts” e “federative unit”, “local” que foram combinadas conforme mostrado na Tabela 1. Ao usar apenas “states” a base respondia com textos que não se referiam ao nível subnacional, assim, para evitar a contaminação da base de dados por textos que não são o foco desta pesquisa, optou-se pelo uso de “federative states”. Além disso, foram utilizados filtros de área, pois existem pesquisas nas ciências da computação e na medicina. Com isso, optou-se por extrair da base apenas textos que estivessem categorizados nas Ciências Sociais e Administração. Também foram utilizados filtros de país, ambos tomando o Brasil como base: um que limitou os textos apenas à produção nacional e outro que excluiu esses e possibilitou comparar a produção internacional com a nacional. Também foram excluídos textos repetidos, o que totalizou 2929 textos internacionais e 69 brasileiros.
As principais técnicas utilizadas são a nuvem de palavras e a análise de correlação de palavras para a mineração de texto, a fim de observar os resumos para analisar os temas propostos debatido (Robredo e Cunha, 1998Robredo, J. e Cunha, M. B. (1998). Aplicação de técnicas infométricas para identificar a abrangência do léxico básico que caracteriza os processos de indexação e recuperação da informação. Ciência da informação, 27,11-27. https://doi.org/10.1590/S010019651998000100003
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). A nuvem de palavras é uma técnica de contagem de palavras que serve para visualizar os principais tópicos debatidos em um banco de dados textual. Uma correlação de palavras, assim como a nuvem, se preocupa com a frequência de ocorrência das palavras, mas também com as outras palavras presentes nas mesmas frases em que aparecem. Assim, ela não só mostra a relevância dos termos, mas também os contextos. É importante apontar que as correlações geradas estão acima de 0,3, sejam positivas ou negativas. Esse valor segue o padrão estabelecido por Figueiredo Filho e Silva Junior (2009Figueiredo Filho, D. B. e Silva Júnir, J. A. (2009). Desvendando os Mistérios do Coeficiente de Correlação de Pearson (r). Revista Política Hoje, 18 (1), 115-146.) que consideram pequenas as correlações com valores entre 0,1 e 0,3, médias aquelas entre 0,3 e 0,7 médias e grandes aquelas acima desse valor. As palavras mais proeminentes nas análises de coleção de palavras serão filtradas para analisar o conteúdo integral dos resumos dos artigos com maior número de citações. O número total de citações recebidas é adotado como uma proxy da relevância dos textos. Todas as técnicas de análise aqui citadas se apoiaram na linguagem de programação R.
Análise do debate internacional
O debate internacional é muito anterior e mais amplo do que o caso brasileiro (ver figura 1). As Figuras 2 e 3 analisam os elementos frequentes no interior desse debate, que serão aprofundados ao observar os textos de maior número de citações nos quais termos específicos estão presentes. Aqui essa variável é utilizada como proxy para a relevância dos textos. Os textos que foram citados também podem ser encontrados no apêndice metodológico do texto disponível no link: https://osf.io/pk5uy/?view_only=334490bc1c034e87bae22beecfc8a4b7.
Como esperado, o termo “burocracia” (“bureaucracy”) tem posição central e é a palavra-chave mais frequente das pesquisas. Em seguida, assumem destaque termos como: “política pública” (“policy”), “local”, “social”, “governança” (“governance”), “desenvolvimento”, “rua” (“street”), “urbano” (“urban”), entre outros, além de algumas políticas setoriais como satélites menores. É comum na literatura que os termos “public” e “policy” estejam juntos, mas, para aprofundar a análise, optou-se por separá-los em suas análises. Tomando-se o termo “público” isoladamente, as pesquisas de maior relevância apontam focos diversos de investigações em políticas setoriais (nuvem da Figura 2) como educação, bem-estar social, planejamento, terras e meio ambiente. Também é possível observar nessas pesquisas fatores relacionados a gestão burocrática como culturas organizacionais e e-governance que demonstram seus impactos nas atividades dos agentes.
Na filtragem do termo “policy” duas questões chamam atenção. Primeiramente, a forte presença de textos cujo foco é ressaltar a evolução de uma política pública específica, em muitos casos, orientada para a implementação e as “burocracias de rua” e as mudanças no ciclo de políticas públicas. Outra categoria de textos enfatiza os processos de tomada de decisão em políticas públicas como participação democrática e estudos de relações informais.
As políticas setoriais são diversas, pois muitas aparecem na nuvem, mas o termo “social” se destaca, o que pode indicar políticas setoriais que vêm sendo mais investigadas. Assim, foram filtrados os onze textos mais citados que utilizam o termo. Há muitos estudos sobre políticas de urbanização, principalmente na China, considerando que os termos “urban” e “China” aparecem também na nuvem de palavras. Mesmo inexistindo uma correlação entre esses termos, ambos foram filtrados. Quanto ao termo “urbano”, políticas de urbanização e o papel dos agentes estatais são o foco na China, mas a Índia é um país com maior frequência entre os dez textos mais citados. O termo “China” resultou em pesquisas dos mais variados temas (políticas de urbanização, participação social, descentralização entre outros).
Chama atenção nas Figura 2 e 3, devido a sua posição central no cluster azul, o termo “governança” (“governance”). Os principais temas associados são as mudanças e características de mecanismos de governança no executivo local e o seu impacto na compliance. São muitos os estudos de caso que investigam os mecanismos e aspectos da governança em políticas públicas. Outros termos frequentemente utilizados são instituições” (“institutions”) e “accountability”, um indicador de que os estudos pesquisam regras e arranjos de governança. Ao filtrar o termo “instituições” (“institutions”), dentre os dez textos mais citados, os arranjos institucionais que mediam as relações de governança no nível local mostram-se relevantes e avançam para questões como a autonomia da burocracia. Por fim, é valido destacar a frequência com que países da África subsaariana aparecem quando esse filtro é aplicado. O outro termo ligado a governança é “accountability”, que aparece muito ligado a “corrupção” (“corruption”). O tema é explorado de duas formas. Accountability das burocracias, sua ligação com corrupção e como manter os agentes accountable. Em segundo lugar estão o estudo das burocracias responsáveis pela accountability e o tópico da transparência.
Observando os clusters da Figura 3, nota-se que o azul apresenta questões ligadas à governança e às instituições e focos de pesquisa mais delimitados. O cluster vermelho mostra fatores mais característicos das burocracias como objeto de estudo, por exemplo, termos como “governo local” (“local government”), “e-government” e “administração pública”. Porém, destacam-se alguns termos que ligam esses dois clusters: “participação” (“participation”), “democracia” (“democracy”) e sociedade civil (“civil society”). Foram encontrados trabalhos que abordam a participação democrática da sociedade civil, embora a conexão com a burocracia precise ser mais bem investigada.
Quando se filtra separadamente “participação” (“participation”) e “democracia (“democracy”), surge o trade-off entre democratização e burocratização no bojo do processo de tomada de decisão nas políticas públicas em governos locais. Ressalta-se que o termo central do cluster “governo local” (“local government”) que, em princípio, gera maior proximidade com a população e pode valer-se de mecanismos de participação mais direta que impactam as políticas públicas. Um ponto central no debate é o nível de representatividade das burocracias de alto, médio ou baixo escalão. Outro debate importante é sobre a legitimidade da ações das burocracias e sua relação com a sociedade civil, mas não se limitando àquelas ao nível de rua. Também frequente é o papel dos governos locais e a sua capacidade de implementar as políticas e as características específicas da máquina pública. Esses são fatores que vêm sendo explorados pela literatura internacional ao abordar as burocracias nos governos locais.
Considerando o papel do nível local de governo em países federais, assume destaque a implementação de políticas públicas (“policy implementation”), sobretudo o foco nas burocracias do nível de rua, também relacionado com o termo anterior. A filtragem por “governos locais” e “implementação de políticas públicas” retorna em textos voltados a analisar os papel dos diferentes níveis federativos, com ênfase para o papel indutor de esferas superiores sobre a implementação no nível local. Verifica-se que alguns estudos trabalham com a visão da assimetria de informações entre os implementadores e a gestão, algo que condiz com a aparição dos termos “principal” e “agente”.
Considerando a repetição de trabalhos e o surgimento frequente de termos na nuvem de palavras e na correlação de palavras-chave, observa-se que os temas identificados servem de contexto para os outros debates, como é o caso das políticas setoriais. As análises bibliométricas nos textos dos resumos mostraram grande repetição dos termos encontrados. Há alguns destaques na correlação de palavras, que apresentam clusters que mostram o uso frequente de abordagens, como a do principal-agente e do olhar voltado para agentes do poder executivo. Contudo, o principal são as metodologias, pois há apenas técnicas qualitativas, como entrevistas em profundidade e semiestruturadas e observação participante.
É valido frisar que os termos “red” e “tape” aparecem correlacionados, e indicam que esse é um tema frequente. Ao fazer uma filtragem pelos resumos que os citam, é notável a sua utilização como variável explicativa para problemas na gestão, em situações específicas como a do furação Katrina ou como um fator de controle burocrático.
De maneira geral, essa análise mostra que a literatura internacional possui alguns focos específicos no estudo das burocracias subnacionais. Chama atenção um rico debate sobre a legitimidade dessas ações e a inserção da participação social nos governos locais, que revisitam o trade-off entre o insulamento burocrático e a democracia no processo de tomada de decisão das políticas públicas. Há estudos institucionais que focam na governança e seu papel para a accountability e o controle da corrupção, bem como no uso de metodologias qualitativas, na presença frequente de estudos de caso para avaliar burocracias, e na implementação de políticas públicas específicas em diferentes setores.
O debate no Brasil
O número de trabalhos encontrados na literatura nacional é quarenta vezes menor em relação ao debate internacional. Outro ponto-chave é que o número de citações dos trabalhos internacionais pôde referir-se a dez nas filtragens, contudo essa não é uma opção viável para o caso brasileiro. As filtragens, em alguns casos, retornam a menos dez citações de textos e algumas sequer são citadas.
Na Figura 4, observam-se algumas diferenças em relação à literatura internacional. Os termos “burocracia” (“bureaucracy”), “políticas públicas” (“policy”) e “social” figuram com posições centrais, e indicam sua maior frequência, mas outros termos ganham relevância, por exemplo, os termos “rua” (“street”) e “capacidade estatal” (“state capacity”), algo que não foi frequentemente visto no cenário mundial. Além disso, houve uma menção mais significativa do termo “implementação” (“implementation”), bem como das áreas de “saúde” (“health”) e “habitação” (“housing”), uma possível indicação de uma maior predominância de estudos voltados à burocracia de nível de rua. A falta de referência ao conceito de governança, muito notada no debate internacional, que é um fator mais ligado ao nível de gestão, pode ser um indicador que reforce essa tendência específica da literatura nacional. A nuvem e o mapa de correlação das palavras nos resumos podem ser encontrados no apêndice metodológico disponível no link: https://osf.io/pk5uy/?view_only=334490bc1c034e87bae22beecfc8a4b7.
A Figura 5 apresenta diferenças significativas em relação a sua contraparte internacional. Existe apenas um cluster com termos diversificados que mostram como o tema da burocracia está ligado aos estudos sobre áreas específicas, principalmente as políticas sociais. Um indicativo nessa direção é a presença de termos como “programa Bolsa Família” (“Bolsa Família program”), “inclusão social” (“social inclusion”) e “políticas sociais” (“social policies”).
Isoladamente, há termos não vinculados a esse cluster, tais como “alimentação escolar” (“school feeding”), “clima organizacional” (“organizational climate”) e “sociedade civil” (“civil society”). Apenas sete pesquisas abordam esses temas. Respectivamente, essas duas primeiras pesquisas tratam da política de alimentação escolar e do clima organizacional agradável para funcionários públicos. Com o filtro “sociedade civil” (“civil society”), foram encontradas três pesquisas, sendo seu foco a ênfase benéfica da relação entre os governos e a sociedade seja por meio da participação institucionalizada, no decorrer da implementação, ou pela representatividade dos setores organizados. Esses temas também estão presentes nas pesquisas internacionais.
Filtrando o termo “capacidades estatais”, foram encontrados trabalhos que, em comum, trazem o entendimento da capacidade estatal como capacidade burocrática e adotam o nível de profissionalização como uma proxy, sobretudo em governos municipais. É notável a ausência de estudos que analisem a capacidade como variável dependente. Os termos “capacidade” (“state”) e “estado” (“capacity”) não são vistos separados.
Quando se trata de “rua” (“street”), as dez pesquisas filtradas em diversas áreas se referem à burocracia de nível de rua. Um ponto crucial é entender as estratégias que se desenvolvem na implementação, a exemplo da discricionariedade ou categorização dos cidadãos atendidos.
Nas Figuras 4 e 5, observa-se o termo “implementação” (“implementation”) em estudos de políticas nas áreas de saúde e assistência social, que discutem a interação entre a burocracia responsável pela entrega do serviço e seus usuários, além de ressaltar a discricionariedade dos agentes. Outros estudos estão focados na análise dos fatores que atuam na fase da implementação, como motivação dos funcionários públicos e análise de arranjos institucionais.
No que se refere às políticas setoriais, “social”, “saúde” (“health”) e “moradia” (“housing”), assumem destaque, sobretudo, os termos “assistência social” (“social assistance”), “inclusão social” (“social inclusion”) e “políticas sociais” (“social policies”). Ao filtrar o termo “social”, nota-se uma preocupação em observar a implementação desse tipo de política, de maneira tanto qualitativa quanto quantitativa. É comum que seja enfatizada a perspectiva dos agentes que tomam a burocracia não apenas como objeto de estudo, mas também como fonte de dados. Outro ponto abordado é o processo de tomada de decisão e dos atores envolvidos (servidores, políticos e grupos de interesse).
A segunda política setorial relevante é a saúde. O filtro do termo “health” mostra cinco artigos voltados para as políticas de atenção primária. Três trabalhos utilizam a abordagem de estudo de caso para analisar fatores na burocracia de um único município ou para discutir os arranjos institucionais que criam a implementação. Por fim, são poucos os textos com o filtro “moradia” (“housing”), mas esses se valem da literatura sobre burocracias em estudos de outras políticas setoriais. São pesquisas que analisam fatores institucionais, o papel da burocracia e transformações em políticas públicas de habitação.
Devido à presença de outros termos quando os termos centrais da Figura 4 eram filtrados e à repetição de trabalhos, esgotou-se a exploração de palavras-chave. Ao adotar as mesmas técnicas com os textos dos resumos ocorreram muitas repetições, com destaque para termos como “governo” (“government”) e “atores” (“actors”). O primeiro é muito utilizado para se referir a estudos com o governo local e o segundo usado indicando estudos que tem os atores como seu objeto de pesquisa central.
Vale frisar a presença dos termos “análise” (“analysis”) e “dados” (“data”). Diferentemente da literatura internacional, cuja frequência de métodos qualitativos é maior, os pesquisadores brasileiros preferem optar pelo uso de técnicas quantitativas. De maneira geral, a literatura brasileira sobre burocracias subnacionais adota alguns pontos-chave como a capacidade estatal para implementar políticas públicas e a discricionariedade dos burocratas de nível de rua. Também é relevante apontar que, no Brasil, estudos sobre políticas setoriais específicas têm maior espaço, e não se restringem a serem temas satélites, mostrando-se centrais nos estudos.
Observa-se ainda que um debate forte internacionalmente não é encontrado nas pesquisas brasileiras: a participação da sociedade civil. Ligado a questões de representatividade e legitimidade das ações burocráticas, esse é um fator pouco explorado no Brasil, pois os estudos tomam a população como usuária de serviços públicos e não como participante ativa nas decisões no âmbito das políticas públicas. No Brasil, não foram encontrados estudos voltados ao debate sobre insulamento burocrático e suas implicações para a legitimidade burocrática. As pesquisas nacionais abordam questões mais práticas em determinados contextos de políticas públicas.
CONTRA FATOS NÃO HÁ ARGUMENTOS: OS NÚMEROS DAS BUROCRACIAS SUBNACIONAIS
O federalismo descentralizado implementado no Brasil desde o final da década de 1980 não pode ser dissociado dos efeitos que produziu na organização das burocracias subnacionais. As consequências vêm se manifestando em muitas dimensões que impactam tanto o funcionamento da administração, quanto a gestão financeira de estados e municípios. Nesse particular, desde que o Atlas do Estado Brasileiro passou a divulgar dados sobre os governos subnacionais, as possibilidades para a compreensão dessa realidade qualificaram-se muito. As bases de dados disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Pesquisa de Informações Básicas Municipais - MUNIC - para os municípios com informações abertas para todas as localidades desde 2004 e Pesquisa de Informações Básicas Estaduais - ESTADIC - para os Estados com dados sobre os vinte e sete governos estaduais) e da Secretaria do Tesouro Nacional/ Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (STN/SICONFI), essas são as duas fontes públicas mais utilizadas para o estudo das burocracias subnacionais. Essa seção se apoia nessas informações para descrever a realidade do funcionalismo público estadual e municipal no contexto do federalismo descentralizado de forma comparada com o governo central. Os dados utilizados para essa discussão são: evolução do contingente de servidores estaduais e municipais, remuneração média, níveis de escolaridade e informações sobre desigualdade salarial conforme o gênero no funcionalismo público.
Em 34 anos (de 1985 a 2019), o contingente de funcionários municipais quase quadriplicou. Em especial, desde o ano 2000, a burocracia municipal mais que dobrou de tamanho. No mesmo período, houve um aumento de cerca de 50% dos servidores estaduais, sendo que esse processo ter sido o mais gradual nessas três décadas (Figura 6). O funcionalismo federal expandiu-se a taxas muito menores. Na virada dos anos 2000, os municípios ultrapassaram os estados em número de servidores, Em resumo: foi na esfera municipal que a burocracia pública mais ampliou o seu tamanho.
A MUNIC não permite avaliar as áreas em que se concentrou o aumento do funcionalismo público, de modo que seria apressado deduzir que houve um “inchaço de servidores”. É sabido que, nas políticas sociais, especialmente educação, saúde e assistência social, as responsabilidades foram crescentemente ampliadas para os municípios. Após 2003, aumentou a cobertura do Programa Bolsa Família (PBF) e o Sistema Único da Assistência Social virtualmente atingiu a totalidade das cidades, o que demandou a contratação de servidores. Na educação, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), até 2006 no ensino fundamental, e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), após 2008 no ensino básico, passaram a demandar mais servidores e professores para responder à ampliação do número de estudantes matriculados. Igualmente digna de nota é a oferta crescente de programas pelo Ministério da Saúde que implica na ampliação do contingente de servidores municipais. Na área da segurança pública, após os anos 2000, houve a ampliação das guardas municipais.
Dados do Atlas do Estado Brasileiro (Lopez e Guedes, 2018Lopez, F. e Guedes, E. (2018). Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Atlas do Estado Brasileiro: uma Análise Multidimensional da Burocracia Pública Brasileira em Duas Décadas (1995-2016).https://www.ipea.gov.br/atlasestado/
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) mostram que, do total de servidores municipais, 40% integram o núcleo dos serviços de educação ou saúde (professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde). Portanto, o federalismo descentralizado vem influenciando a dimensão da gestão de pessoas nos municípios em áreas sensíveis de políticas públicas que dependem da oferta de profissionais para a sua provisão (Grin e Abrucio, 2018Grin, E. J.; Abrucio, F. L. (2018). Las capacidades estatales de los municipios brasileños en un contexto de descentralización de políticas. Reforma y Democracia, 70, 93-126.). Esperavase o crescimento das burocracias municipais, principalmente nos municípios menores onde o PBF e a expansão do acesso à educação básica pública são mais necessárias.
Entre 2003 e 2017, saúde e educação representaram, na média para os municípios, cerca de 37% do total de servidores. Nos estados, educação, saúde e segurança, no mesmo período, representaram cerca de 47% do funcionalismo (Atlas do Estado Brasileiro). Entre 2005, ano da criação do SUAS, e 2014, por exemplo, o número de servidores municipais cresceu quase 46% na assistência social (Censo SUAS, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2014). A elevação do número de servidores é significativa pelas devido às novas dinâmicas organizacionais geradas e à exigência de qualificação técnica para lidar com novas e crescentes responsabilidades. O Figura 7 mostra como, em dez anos após iniciada a descentralização de políticas, em 1998 os municípios passaram a ser os entes federativos com mais densidade de servidores. As burocracias municipais crescentemente assumem papel central na vida das populações locais.
O artigo 23 da Constituição Federal, ao definir as competências comuns entre os três entes federativos, passou a requerer mais capacidade administrativa, pois a descentralização das políticas aumentou as demandas por organização e prestação de serviços locais. Além de políticas próprias, os municípios aderem a programas elaborados sobretudo pelo governo federal, o que igualmente requer bases gerenciais para atender demandas e regras inseridas nestas iniciativas (Grin e Fernandes, 2019Grin, E. J. e Fernandes, G. A. L. (2019). Capacidades estatales en los municipios brasileños: resultados tímidos en un contexto de autonomía política local y un escenario de dependencia financiera. In: Grin, E. J., Completa, E. R., Carrrera-Hernández, A. P. e Abrucio, F. L. (Eds.). Capacidades estatales en gobiernos locales iberoamericanos: actualidad, brechas y perspectivas (pp. 92-148). Rio de Janeiro: Editora FGV.).
Outra informação essencial para qualificar a descrição das burocracias subnacionais é a sua evolução salarial (Figura 8). Os rendimentos medianos dos servidores públicos municipais são os menores, ainda que tenham crescido de forma contínua desde 2003. A explicação possível para esse fenômeno está na expansão da receita própria municipal gerada pela Lei Complementar 116/2003 que ampliou a base de cobrança dos serviços pelo Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). Também houve um crescimento dos percentuais repassados pelo Fundo de Participação dos Municípios desde 2003. No geral, as receitas próprias municipais cresceram de 5,7% em 2005, para 81% em 2020, e, no mesmo período, as receitas estaduais cresceram de 27,6% para 29% (Afonso, Lukic e Castro, 2018Afonso, J. R., Lukic, M. R., and Castro, K. P. (2018). ICMS: crise federativa e obsolescência. Revista Direito GV, 14 (3), 986-1018. https://doi.org/10.1590/2317-6172201837.
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; Frente Nacional de Prefeitos, 2022Frente Nacional de Prefeitos (2022). MultiCidades - Finanças dos Municípios do Brasil. Aequus Consultoria.).
O crescimento dos vencimentos dos servidores estaduais mostra que os valores medianos são maiores do que os recebidos na esfera municipal. As diferenças com os salários medianos dos servidores federais são muito significativas quando comparadas com a esfera estadual e, sobretudo, com o funcionalismo municipal. Ao mesmo tempo em que a descentralização fez crescer as responsabilidades dos governos locais em várias áreas de políticas públicas, o que demandou a ampliação do quadro de servidores, essa expansão quantitativa, conforme valores medianos, mostra uma burocracia com salários menores. O desenho do federalismo descentralizado não pode prescindir dos municípios para implementar e garantir o estado de bem-estar no Brasil (Franzese e Abrucio, 2013Franzese, C. e Abrucio, F. L. (2013). Efeitos recíprocos entre federalismo e políticas públicas: os casos dos sistemas de saúde, assistência social e de educação. In: Hocman, G. e Faria, C. A. P. (Eds.). Federalismo e políticas públicas no Brasil (pp. 361-386). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. https://doi.org/10.7476/9788575415504
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). Contudo, esse processo de grande envergadura não tem correspondência nos valores medianos de salário. Há outros fatores que ajudam a explicar essa situação - economia local, escolaridade dos servidores, menor capacidade de pagamento das prefeituras, entre outros -, mas, o fato é que as burocracias municipais recebem menores salários.
Os gastos de pessoal nas burocracias subnacionais também podem ser analisados como proporção da receita primária disponível, conforme a Tabela 2. Segundo Junqueira e Orair (2023Junqueira, G. e Orair, R. (2023). Despesas com pessoal ativo na federação brasileira entre 2002 e 2020. In: Lopez, F. G. e Cardoso Júnior, J. C. (Eds.). Trajetórias da burocracia na nova república: heterogeneidades, desigualdades e perspectivas (1985-2020) (pp. 241-262). Brasília: IPEA. https://.doi.org/10.38116/978-65-5635-047-9
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, p. 255), esse “indicador é capaz de captar com mais precisão se essas despesas são compatíveis com a capacidade de geração de receitas do Estado, e, consequentemente, se de fato pressionam o endividamento público de forma significativa”. Estados e municípios contam com um número mais elevado de servidores e, no caso dos últimos, com uma taxa de crescimento rápida nas duas últimas décadas, e comprometem um percentual maior de suas receitas com salários, apesar de remunerarem valores menores. A expansão das burocracias subnacionais, sobretudo na esfera municipal, é necessária para responder às demandas da descentralização crescente de atribuições.
Despesas com salários como proporção da receita primária disponível, por esfera de governo (em %)
Junqueira e Orair (2023Junqueira, G. e Orair, R. (2023). Despesas com pessoal ativo na federação brasileira entre 2002 e 2020. In: Lopez, F. G. e Cardoso Júnior, J. C. (Eds.). Trajetórias da burocracia na nova república: heterogeneidades, desigualdades e perspectivas (1985-2020) (pp. 241-262). Brasília: IPEA. https://.doi.org/10.38116/978-65-5635-047-9
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, p. 256) enfatizam que, apesar de os municípios serem os únicos com crescimento nesse indicador, o aumento não evidencia descontrole e se relaciona com a “construção do Estado de bem-estar social brasileiro, estabelecido na CF/1988, e de descentralização na execução das políticas sociais, ocorridos a partir da década de 1990”. Contudo, por óbvio que seja, as burocracias subnacionais “custam” mais para estados e municípios. Em linha com Cardoso Jr, Oliveira e Sousa (2020Cardoso Jr, J. C., Oliveira, A. L. M. e Sousa, V. E. M. (2020). Ocupação, escolaridade, remuneração e atuação dos servidores públicos no Brasil. Rev Bras Adm Pol, 13(2), 124-151., p. 137), “a despesa global de pessoal, considerando os três níveis da federação e os três poderes da União, não possui distribuição interna uniforme e esconde níveis muito díspares de remunerações e condições de trabalho por esfera de governo e esfera de poder”.
A escolaridade das burocracias subnacionais importa, assumindo essa variável como um atributo-chave para a qualidade da sua performance (Marenco, 2017Marenco, A. (2017). Burocracias Profissionais Ampliam Capacidade Estatal para Implementar Políticas? Governos, Burocratas e Legislação em Municípios Brasileiros. DADOS - Revista de Ciências Sociais, 60 (4), 1025-1058. https://doi.org/10.1590/001152582017141
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). Mais autonomia administrativa de estados e municípios requer mais capacidade de autorregulação e exige maior qualidade técnica e organizacional das prefeituras, o que pode ser visto pela evolução da escolaridade dos servidores públicos municipais (Figura 9). Os níveis 3 e 4 cresceram muito desde o início dos anos 2000, em linha com Marenco e Strohschoen (2018Marenco, A.e Strohchoen, M. T. B. (2018). Abrindo a caixa-preta da gestão municipal: variações no perfil de burocracias governamentais locais. In: Marenco, A. e Noll, M. I. (Eds.). A política, as políticas e os controles: como são governadas as cidades brasileiras (pp. 49-64). Porto Alegre: Tomo Editorial.). Por outro lado, o número de funcionários públicos analfabetos ou com poucos anos de escolaridade ainda é elevado (algo próximo a 600 mil em um total estimado de 6,5 milhões de funcionários públicos), realidade que é mais pronunciada nos municípios menores e mais carentes de capacidades estatais (Grin e Fernandes, 2019Grin, E. J. e Fernandes, G. A. L. (2019). Capacidades estatales en los municipios brasileños: resultados tímidos en un contexto de autonomía política local y un escenario de dependencia financiera. In: Grin, E. J., Completa, E. R., Carrrera-Hernández, A. P. e Abrucio, F. L. (Eds.). Capacidades estatales en gobiernos locales iberoamericanos: actualidad, brechas y perspectivas (pp. 92-148). Rio de Janeiro: Editora FGV.). Para Lopez e Guedes (2020)Lopez, F. e Guedes, E. (2020). Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil. (1986-2017). Texto para discussão 2579. Brasília: IPEA., entre 1986 e 2017, o percentual de servidores com escolaridade superior completa cresceu de 10% para 40% nos municípios. Houve uma redução dos servidores com ensino fundamental (de 14% para 10%) ou médio incompleto (de 53% para 9%). No funcionalismo estadual, cresceu o percentual de vínculos com nível superior completo. “O nível 1 caiu de 22% para 3%; o 2, de 19% para 6%; e o, de 37% para 32%, o nível 4 passou de 22% para 57%; e o 5 chegou a 2%, em 2017” (op. cit., p. 26).
Evolução da escolaridade dos servidores públicos municipais (por número de servidores - 1995-2016)
Com relação à discrepância de remuneração entre homens e mulheres, o sexo masculino recebe uma remuneração média superior, que cresceu nas últimas décadas. Conforme o Atlas do Estado Brasileiro, “em 1986, a média salarial das mulheres no setor público brasileiro era 17,1% inferior ao dos homens. Em 2017, a diferença entre os salários médios aumentou, e as mulheres recebiam 24,2% a menos que os homens”. Enquanto na esfera federal essa diferença vem se reduzindo, nos municípios, a diferença das remunerações médias aumentou: de 4,1% a menos que os homens em 1986 este percentual subiu para 4,9% em 2017. Porém, é nos estados onde essa realidade é ainda mais resiliente e cresceu nesse período: em 1986, as mulheres recebiam 21% a menos do que os homens; em 2017, este percentual passou para 25% (Atlas do Estado Brasileiro).
Os dados descritos nessa seção mostram como as burocracias subnacionais têm mudado sua composição em termos de número, escolaridade, salários e remuneração de acordo com o sexo, para tomar alguns indicadores centrais desse panorama. O tamanho e a importância do funcionalismo público estadual e municipal no federalismo descentralizado brasileiro é evidente, o que reforça a relevância da agenda de pesquisa sobre as burocracias subnacionais. Por detrás desses números, há muitas questões que ainda são pouco conhecidas e que essa edição especial procura incentivar as investigações nesse campo de estudo. Como ocorre a gestão de pessoas nos estados e municípios (incentivos, planos de carreira, cargos e salários, investimentos em formação e capacitação)? O que explica a maior resiliência das diferenças salariais entre homens e mulheres nos estados? Como os governos subnacionais decidem sobre a remuneração de seus servidores? Como se distribui a burocracia subnacional em outros setores que não educação, saúde e/ou segurança pública e o que motiva essa divisão? Como a elevação da escolaridade média dos servidores estaduais e municipais se traduz na prestação de um serviço público de maior qualidade? Com efeito, há muito ainda por conhecer na estrutura e funcionamento das burocracias subnacionais, tema da próxima seção
O QUE AINDA HÁ POR DESCOBRIR NAS BUROCRACIAS SUBNACIONAIS?
Este trabalho buscou enfatizar a importância dessa edição especial e sua contribuição para o estudo das burocracias subnacionais. Ao mesmo tempo, o mapeamento da literatura realizado mostra os temas mais centrais nas produções acadêmicas nacional e internacional. Tanto pela perspectiva do esforço científico na produção do conhecimento como pela análise dos dados empíricos é possível observar que se trata de um campo de estudo a ser mais bem explorado pelas áreas de administração pública e ciência política. E o caso brasileiro é um bom laboratório para os estudos sobre as burocracias subnacionais pelas várias razões expostas neste trabalho. Conforme o texto desta chamada, o federalismo brasileiro possui grande diversidade entres os seus municípios e estados, o que torna o estudo das burocracias subnacionais um campo fecundo para a produção de conhecimento científico. Com isso, esta seção sugere temas emergentes nessa incipiente agenda de pesquisa para estudos quantitativos e estudos de caso.
Pouco se conhece sobre a politização das burocracias subnacionais, o que pode gerar trabalhos comparados entre diferentes municípios e estados para avaliar fatores explicativos de patronagem (ideologia partidária, perfil do incumbente, efeito da força ou debilidade das capacidades estatais ou mesmo a ausência de capital social que faz da politização uma forma de suprir carências técnicas, conforme Panizza, Peters e Laburru (2022)Panizza, F. E, Peters, B. G. e Laburru, C. R. (2022). The Politics of Patronage Appointments in Latin American Central Administrations. University of Pittsburgh Press. https://doi.org/10.2307/j.ctv35bfdwc
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. Também é importante testar, na esfera subnacional, as hipóteses sobre a política da burocracia propostas por Aberbach, Putnam e Rockman (1981)Aberbach, J. D., Putnam, R. D. e Rockman, B. A. (1981). Bureaucrats and Politicians in Western Democracies. Cambridge: Harvard University Press. e Peters (1995)Peters. B. Guy (1995). The politics of the bureaucracy. New York: Longman Publishers.. Analisar como atores burocráticos atuam politicamente no interior dos governos e na relação com grupos de interesse e outros atores políticos é um campo aberto para estudos de casos em município e governos estaduais. Nessa toada, pesquisas comparadas sobre burocracias representativas e suas conexões com stakeholders é outra rota ainda pouco explorada nos estudos sobre burocracias subnacionais.
Na esfera da gestão de pessoas, se sabe pouco além das informações básicas disponíveis na MUNIC e na ESTADIC sobre número e vínculo de servidores e, em algumas áreas, sobre a existência de planos de cargos, carreira e salário. Análises comparadas sobre a estrutura e o funcionamento das burocracias subnacionais pedem mais estudos, como, quais são as políticas de valorização profissional? Qual é o investimento realizado na qualificação? Como esses processos são considerados na progressão funcional? Quais casos bem-sucedidos podem jogar uma luz nessa área ainda pouco explorada nos estudos comparados no Brasil?
Também seria importante conhecer mais sobre o insulamento burocrático em nível subnacional (setores em que esse modelo de organização é usualmente encontrado, trajetórias e características institucionais e consequências para a administração pública). A discussão sobre resistência burocrática pode ser outro campo de pesquisa significativo, podendo ser o insulamento uma forma de preservação frente à politização da administração pública. A recente literatura sobre o tema (Bauer e Becker, 2020Bauer, M. W. e Becker, S. (2020). Democratic Backsliding, Populism, and Public Administration. Perspectives on Public Management and Governance, 3 (10), 19-31. https://doi.org/10.1093/ppmgov/gvz026
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; Lotta et al., 2023Lotta, G. et al. (2023). A resposta da burocracia ao contexto de retrocesso democrático: uma análise da atuação de servidores federais durante o Governo Bolsonaro. Revista Brasileira de Ciência Política, 40(1), 136. https://doi.org/10.1590/0103-3352.2023.40.266094
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), que se dedica a casos nacionais, propõe argumentos que podem ser testados na esfera subnacional. Também está por ser mais bem analisado como se efetiva a política burocrática como forma de atuação das burocracias estaduais e municipais.
Deve-se analisar a trajetória da construção das burocracias subnacionais e as razões que geraram seus formatos atuais. Mais do que discutir as áreas de saúde, educação e assistência social cuja indução federativa explica muito da realidade municipal e estadual, é preciso conhecer a organização em outros setores. Sobretudo, é necessário avaliar como essa estrutura setorial afeta a produção e a implementação de políticas públicas, e refletir sobre até que ponto as diferenças regionais na capacidade administrativa geram, ou exacerbam, a desigualdade regional no acesso aos serviços públicos Também é preciso conhecer mais sobre a construção de áreas que mais recentemente passaram a se estruturar, como é o caso das burocracias do controle nos temas de combate à corrupção e transparência governamental (ver o trabalho de Batista, Rocha e Santos, 2020Batista M., Rocha V., Santos J. L.A. (2020). Transparência, corrupção e má gestão: uma análise dos municípios brasileiros. Revista de Administração Pública, 54 (5),1382-40. https://doi.org/10.1590/0034-761220190290
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).
Burocracias subnacionais desenvolvem relações formais e informais com outras esferas de governo. Além de trabalhos que analisam as arenas de cooperação federativa na saúde e assistência social e, com menor ênfase, na educação, são escassos os trabalhos que analisam a gestão intergovernamental de políticas públicas. Sabidamente há assimetrias de capacidade técnica entre as burocracias federais e suas contrapartes em muitas cidades e estados, de modo que analisar como se desenvolvem essas interfaces é um campo em aberto para estudos de caso.
Mais do que esgotar a lista de temas passíveis de investigação, as possibilidades sugeridas visam indicar a atualidade dessa discussão. A edição especial Funcionalismo público nos estados e municípios: capacidades, politização e desigualdades é um incentivo para essa agenda ainda incipiente de estudos. É tempo de conhecermos mais sobre as burocracias subnacionais no federalismo brasileiro.
REFERÊNCIAS
- Arretche, M. T. S. (1999). Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (40), 111-141. https://doi.org/10.1590/S010269091999000200009
» https://doi.org/10.1590/S010269091999000200009 - Aberbach, J. D., Putnam, R. D. e Rockman, B. A. (1981). Bureaucrats and Politicians in Western Democracies Cambridge: Harvard University Press.
- Afonso, J. R., Lukic, M. R., and Castro, K. P. (2018). ICMS: crise federativa e obsolescência. Revista Direito GV, 14 (3), 986-1018. https://doi.org/10.1590/2317-6172201837
» https://doi.org/10.1590/2317-6172201837 - Batista M., Rocha V., Santos J. L.A. (2020). Transparência, corrupção e má gestão: uma análise dos municípios brasileiros. Revista de Administração Pública, 54 (5),1382-40. https://doi.org/10.1590/0034-761220190290
» https://doi.org/10.1590/0034-761220190290 - Bauer, M. W. e Becker, S. (2020). Democratic Backsliding, Populism, and Public Administration. Perspectives on Public Management and Governance, 3 (10), 19-31. https://doi.org/10.1093/ppmgov/gvz026
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024