Resumo
O Solo Criado enquanto conceito tem cada vez mais colocado questões para o urbanismo e para o direito. O presente artigo tem por objetivo apresentar e problematizar, sob as perspectivas urbanística e jurídica, a natureza, as dimensões e os desdobramentos do Solo Criado na cidade de São Paulo. A importância da abordagem consiste em fomentar uma discussão sobre a mercantilização dessa terra virtual que, utilizada com propósito redistributivo, tem risco de funcionar às avessas por meio da geração e transferência de renda.
direito urbanístico; política urbana; alienação de bens públicos; solo criado; concessão urbanística
Abstract
Created Land as a concept has been increasingly raising questions for Urbanism and Law. This article aims to present and discuss, under the urban and legal perspectives, the nature, dimensions and developments of Created Land in the city of São Paulo. This approach is important because it fosters a discussion on the commodification of such virtual land, which, used with a redistributive purpose, is at risk of working in reverse through income generation and transfer.
urban law; urban policy; disposition of public goods; created land; urban concession
Introdução
A técnica construtiva permitiu, desde princípios do século XX, a edificação em altura. São pisos que ampliam a quantidade de área utilizável para além da metragem do terreno. Essa extensão de área representa uma criação de solo (solo criado), que vem cada vez mais colocando questões para o urbanismo e para o direito. É objeto de diferentes interpretações e utilização, muitas delas acabando judicializadas.1 1 Ação Civil Pública (TJSP) 1034059-70.2018.8.26.0053, que questiona a transferência da possibilidade de exploração do potencial adicional de construção pelo particular; ADIn 2028122-62.2018.8.26.0000, que tem por objeto a inconstitucionalidade do “direito de protocolo” que rege as regras sobre o direito de construir acima do coeficiente básico de aproveitamento no tempo; Apelação Cível (TJSP) 1013904.47-2019.8.26.0053, que discute as regras de pagamento na outorga onerosa; Ação Civil Pública (TJSP) 1010569-20.2019.8.26.0053, que questiona a necessidade de Estudo Técnico de Impacto Ambiental para quantificar e avaliar o impacto do aumento da potencial adicional de construção.
Este texto traz ao debate a problematização do conceito e natureza do solo criado e suas transformações ao longo do tempo. Para tanto, procede a uma análise de seus fundamentos nos campos disciplinares do urbanismo e do direito e respectiva intersecção interdisciplinar.
Maricato (2011MARICATO, E. (2011). O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, Vozes, p. 185) expressou a “esfinge” da questão urbana como sendo o “nó da terra”. A reflexão aqui desenvolvida parte dessa ideia, ampliando-a para abordar o “nó da terra virtual”, ou seja, o espaço construído que extrapola a área do lote, o “solo criado”.
Como a terra virtual é a base da constituição de vários dos chamados novos instrumentos urbanísticos, discutir sua natureza jurídica e econômica é fundamental. Aqui se propõe esse debate, passando pela análise de seus fundamentos nos campos disciplinares do urbanismo e do direito e sua correspondência a valores econômicos, como potencial de geração e transferência de rendas.
A atividade urbanística que produz a cidade é fruto de ações do poder público, que implementa a infraestrutura e os edifícios públicos, bem como regula as ações privadas. Parâmetros urbanísticos foram criados para condicionar a forma urbana – tecido e edificações. O desenvolvimento da técnica, que permitiu a verticalização, deu margem à concepção do conceito de solo criado.
O foco do debate proposto é o solo criado, essa imaterialidade que pode se tronar edificação e que se concretiza, a partir de sua explicitação em termos de potencial construtivo, expresso como coeficiente de aproveitamento. É diferente de recuo, taxa de ocupação ou gabarito, cujo objetivo explícito é interferir na forma das edificações, porque não necessariamente condiciona uma forma.
A noção de solo criado foi absorvida no Brasil, na década de 1970, sob diferentes vertentes interpretativas, conforme se verá adiante, e, a partir de então, reconfigura-se e adquire conceitos e propósitos distintos, assumindo uma alternância de ênfase entre razão e objetivo urbanístico e razão e objetivo econômico. É justamente essa ponderação e seus impactos que o presente artigo procura pavimentar, como base para desenvolvimento de metodologia que permita identificar ganhos e perdas de diversas naturezas e, inclusive, processos indiretos e invisíveis de transferência de renda.
Na virada do século, sob variadas formas e em diversas cidades do País, o solo criado passou a ser monetizado, chegando ao limite, em são Paulo, de configurar-se como Certificado de Potencial Adicional de Construção (Cepac), que se trata de um título negociado em bolsa. A criação e venda desse produto virtual possibilitam geração e transferência de renda.
Qual a natureza desse solo virtual e de sua propriedade e qual a transferência de renda que promove são os objetivos da discussão que este texto pretende fomentar.
Presentemente, a manipulação de parâmetros urbanísticos vem sendo explorada como forma de financiamento do desenvolvimento urbano. Como é produzido esse valor e de onde é extraído são as grandes questões. Não existe mágica. Quem perde, onde e em que proporção em decorrência do surgimento desse valor?
Apenas para afinar o raciocínio, é possível fazer uma comparação com o sistema tributário brasileiro, particularmente o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). É evidente que dispor de maior recurso advindo dos impostos permite, ao poder público, promover políticas de disponibilização de equipamentos públicos e de inclusão social. No entanto, com o formato regressivo que tem o ICMS, se, de um lado, provê recursos, de outro, desfavorece os mais pobres. Nossa hipótese é a de que a outorga onerosa e sua aplicação, particularmente nas Operações Urbanas Consorciadas (OUC), da forma como funcionam hoje, assemelham-se ao ICMS. Esse é o debate. Envolve conceitos, princípios de direito, alguns casos exemplares e muita conta para entender esse quadro.
A partir da década de 1990, sobretudo a partir de 1995, com a reforma do Estado, sucederam-se transformações de matizes econômicos, políticos e sociais. Realizaram-se reformas econômicas no sentido da liberalização de mercados, privatizações que repercutiram no campo do direito enquanto regulação e, consequentemente, no urbanismo enquanto ciência e técnica de intervenção no território.
Nesse contexto, as relações jurídicas tornaram-se cada vez mais complexas com a delegação de bens e de serviços – antes concebidos e executados pelo poder público – para a iniciativa privada, borrando cada vez mais os limites entre os dois âmbitos.
É nesse cenário que se pretende analisar as diversas implicações da noção de solo criado, buscando resgatar e entender a natureza urbanística, jurídica e econômica dessa “terra virtual”, bem como as acomodações teóricas e jurídicas que lhe foram aplicadas no período recente. Com essa perspectiva e base teórica, que permitem a formulação de questões, o próximo passo, proposta futura, é estruturar metodologia de pesquisa capaz de avançar no entendimento do processo de apropriação e transferência de rendas que a gestão dessa “terra virtual”, por meio de diferentes instrumentos urbanísticos, desencadeia nas cidades. De uma ótica que parte da cidade de São Paulo, dar-se-á início a essa problematização.
Fundamentos do Solo Criado no campo disciplinar do urbanismo
O urbanismo trabalha com forma e desenho urbano. É de sua prática o estabelecimento de parâmetros para o parcelamento do solo e para as edificações, atribuindo, aos imóveis, um potencial construtivo definido por meio de parâmetros urbanísticos específicos para cada rua ou para cada zona, configurando, à cidade, determinada densidade e desenho urbano. O urbanismo, nessa perspectiva, é praticado pelo poder público por meio de regulação pública do uso do solo urbano – regulação que, desde a década de 1940, ocorre nas grandes cidades, progressivamente incorporando elementos de zoneamento (Feldman, 2005FELDMAN, S. (2005). Planejamento e zoneamento. São Paulo, 1974-1972. São Paulo, Edusp.), expresso por meio Código de Obras e Lei de Uso e Ocupação do Solo.
Em 1957, em São Paulo, a lei n. 5.261/1957 limita, pela primeira vez, o coeficiente de aproveitamento – em seis vezes a área do terreno para uso comercial e em quatro, para uso residencial.
A implementação urbanística no País e, particularmente, em São Paulo, nesse período, operou, como regra, em um formato “comando e controle” a partir de normas rígidas e de licenciamento e fiscalização da produção do espaço.
Uma primeira mobilidade na forma de aplicação da norma ocorreu com a lei n. 7.288/1969, que permitiu a doação de terras, à prefeitura, para o alargamento da avenida Paulista e possibilitou que o doador utilizasse o índice de aproveitamento da área remanescente do terreno, considerando também a área doada.
A Lei de Zoneamento de 1972 (lei municipal n. 7.805/1972), com a introdução da fórmula de Adiron,2 2 Nome dado em referência a Benjamin Adiron Ribeiro, então Secretário da Coordenadoria-Geral de Planejamento. A fórmula inserida na referida Lei de Zoneamento estabeleceu uma proporção inversa entre coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação do lote. O empreendedor poderia aumentar o coeficiente de aproveitamento na medida em que diminuía a taxa de ocupação, o que estimulava a taxa mínima de ocupação e acarretava consequências para tipologia e forma urbanas. provocou a produção de determinadas tipologias, como a do edifício vertical no centro do lote, com baixa taxa de ocupação, com o propósito de ampliar áreas permeáveis e circulação de vento entre as edificações. Não se faz aqui avaliação de mérito ou de interesses ocultos, mas apenas do procedimento tal qual formalizado. Posteriormente, outras legislações municipais, a exemplo das leis n. 8.006/1974,3 3 Conhecida como Lei de Hotéis, autoriza “maior permissividade na construção em áreas e maior flexibilidade na sua utilização”, prevendo o aumento do coeficiente de aproveitamento. n. 8.076/19744 4 Permitia a utilização do coeficiente de aproveitamento máximo para hospitais. e n. 8.328/1975,5 5 Dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo nas Z8 e amplia as hipóteses de aplicação da fórmula de Adiron para as Z10 e 12, além de regulamentar incentivos de aumento do coeficiente de aproveitamento para hipótese de doação de área parcial de terreno para a realização de obras por parte da prefeitura. trouxeram outros incentivos que excluem áreas de cômputo para efeito do cálculo do coeficiente de aproveitamento. Assim, a dimensão econômica do potencial construtivo, expresso como coeficiente de aproveitamento, é introduzida, sob a forma de incentivo econômico para viabilização de determinados objetivos.
Com o progressivo processo de verticalização nas maiores cidades brasileiras a partir de meados do século XX, surgem no País, a partir de São Paulo, as primeiras reflexões a respeito do conceito de “solo criado”.
Esse conceito surgiu na década de 1970 na Europa6 6 Em 1971, em Roma, técnicos ligados à Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa firmam documento em que defendem a separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, bem como a ideia de que este último deveria pertencer à coletividade. e nos Estados Unidos.7 7 O Plano de Chicago da década de 1970 trazia o instrumento do “zoning bônus”, que previa a permissão de coeficientes de aproveitamento maiores e, portanto, mais lucrativos, exigindo-se uma contrapartida e também o instrumento da Transferência do Direito de Construir (Rezende et al., 2009). A França, cujo modelo inspirou o Brasil, criou, em 1975, uma nova política fundiária visando aumentar a eficácia do controle do uso e ocupação do solo por meio do instituto denominado plafond legal de densité (PLD).8 8 Na França, desde 1975, existe o chamado Teto Legal de Densidade (plafond legal de densité), instituído por meio da lei n. 75-1328 (Code de L’urbanisme), cujo coeficiente era de 1,5 para Paris e 1,0 para outras cidades. Esse instituto estabelecia que a ampliação na área para a qual a legislação previsse um potencial construtivo acima desse limite, caso o proprietário o desejasse, seria paga pelo valor equivalente ao valor do metro quadrado do terreno na exata proporção do excesso (Rezende et al., 2009REZENDE, V. F. et al. (2009). A outorga onerosa do direito de construir e o solo criado: uma necessária avaliação das matrizes conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Recife, v. 11, n. 2, pp. 51-71., p. 53).
Originado no campo do urbanismo, esse conceito corresponde à metragem construída além das dimensões do lote. Esse solo criado (pavimentos sobrepostos) é área construída geradora de maior demanda por infraestrutura e espaços públicos. Admite-se que, assim, caberá, ao criador de solo, algum tipo de contrapartida à coletividade.
No Brasil, as primeiras discussões sobre o solo criado ocorreram na década de 1970, nos marcos de estudo sobre as questões relacionadas ao uso do solo e suas potencialidades realizado pelo Grupo Executivo da Grande São Paulo (Gegran), órgão da Secretaria de Planejamento do estado. Segundo a análise jurídica do Gegran, o direito de construir deveria ganhar autonomia em relação ao direito de propriedade, na medida em que o direito de construir pertencia à coletividade (Grau, 1983GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT., p. 72) e, em alguns casos, poderia ser alienado ao particular.9 9 No caso da preservação de imóveis de valor histórico.
Ao mesmo tempo, a prefeitura de São Paulo, após intensos debates promovidos pela Fundação Prefeito Faria Lima – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam), elaborou em 1976 uma proposta de institucionalização do solo criado com a finalidade de orientar o controle do crescimento urbano e do uso do solo, a chamada Carta de Embu.10 10 A Carta de Embu derivou de estudos e eventos, em especial seminários, que ocorreram nas cidades de Embu, São Paulo e São Sebastião, promovidos pelo Cepam (Grau, 1983). Acreditava-se que a adoção do conceito de solo criado poderia propiciar melhor gestão do desenvolvimento urbano. O documento define o solo criado como a construção praticada em pavimentos sobrepostos, tendo como parâmetro um coeficiente único de aproveitamento do solo para toda a cidade. Nesse sentido, segundo a Carta, da mesma forma que o loteador é obrigado a doar, ao uso público, áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e áreas livres, o criador de solo deveria oferecer à coletividade as compensações necessárias ao reequilíbrio urbano reclamado pela criação do solo adicional. Assim, avançou-se na ideia de que o interessado deveria conceder ao poder público áreas proporcionais ao solo criado ou sua substituição pelo equivalente econômico. Cabe notar que, nesse sentido, a Carta de Embu enfatizava o caráter urbanístico do solo criado.
O então prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, acatou a ideia do solo criado e a lançou no XX Congresso Estadual dos Municípios, no Guarujá, em 1976, enfatizando o aspecto financeiro para os municípios. A partir daí, segundo Silva (2008)SILVA, J. A. da (2008). Direito urbanístico brasileiro. São Paulo, RT., emergiram duas linhas de abordagem do instrumento: a corrente financista, preocupada em angariar recursos, e a corrente urbanística, que desprezava o aspecto financeiro do instituto e centralizava seu argumento em torno de um interesse coletivo, fundado na ideia de equidade social, pelo mesmo direito de construir para todos.
A legislação nacional da época não chegou a incorporar, de forma direta, o conceito do solo criado sob a forma de instrumento urbanístico. Todavia, conforme já abordamos, existiram leis que tratavam de funcionalizar o potencial construtivo (expresso por meio do coeficiente de aproveitamento), no sentido de incentivar determinadas formas de ocupação ou usos, conforme mencionado anteriormente: alargamento da avenida Paulista, fórmula de Adiron, lei de hotéis e de hospitais. A partir de 1990, o conceito de solo criado e sua operacionalização passam a ser incorporados aos planos diretores, cujos textos trabalham de forma mais pragmática suas potencialidades de aplicação e efeitos.
Essa ambiguidade entre razão e objetivo urbanístico e razão e objetivo econômico vai se configurar e adquirir formas distintas a partir de então, assumindo uma alternância de ênfase entre uma e outra dessas perspectivas.
Fundamentos do Solo Criado no campo disciplinar do direito
O debate jurídico em torno do solo criado nas décadas de 1970 e 1980 enfoca a questão de sua constitucionalidade e a separação, ou não, entre direito de propriedade e direito de construir (Greco, 1981GRECO, M. A. (1981). “O solo criado e a questão fundiária”. In: PESSOA, A. (org.). Direito do urbanismo: uma visão sociojurídica. Rio de Janeiro, Ibam.; Silva, 2008SILVA, J. A. da (2008). Direito urbanístico brasileiro. São Paulo, RT.).
Havia, no âmbito desse debate, duas linhas de abordagem. A linha do Gegran (Grau, 1983GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT., p. 60) defendia que essa separação era patente, na medida em que o direito de construir seria da coletividade por impactar o meio ambiente urbano – nesse sentido, a aquisição do direito de construir deveria se dar por autorização ou concessão, mediante pagamento de preço público. Já a linha adotada pelo Cepam (Silva, 2008SILVA, J. A. da (2008). Direito urbanístico brasileiro. São Paulo, RT., p. 266) defendia que o solo criado não implicava a separação da faculdade de construir do direito de propriedade do terreno uma vez que transformava em direito subjetivo a faculdade de construir até o limite do coeficiente único igual a um, e apenas o que o superasse (solo criado) representaria a necessidade de compensar o meio ambiente urbano.
Em seminário do Gegran realizado em 1975, em São Paulo, juristas e urbanistas, partindo da premissa da necessidade de separação do direito de construir e do direito à propriedade, defenderam a ideia de regulação do solo criado, por lei federal, e, portanto, a competência para essa distinção seria da União. Essa corrente, ao entender que havia autonomia do direito de construir, também considerava possível a transferência do direito de construir para outros terrenos. A outra vertente, adotada por Silva (2008)SILVA, J. A. da (2008). Direito urbanístico brasileiro. São Paulo, RT., gestada nos estudos de administração pública e nos seminários-cursos do Cepam, defendia que lei municipal seria suficiente para sua regulamentação.
A inserção da política urbana no campo da regulação jurídica e do planejamento urbano experimenta transformações no que diz respeito a seu fundamento. Até meados do século XX, a política urbana tinha como fundamento criar regras limitadoras da propriedade com base no poder de polícia e, portanto, era estudada no campo do direito, no ramo do direito administrativo.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a política de desenvolvimento urbano foi alocada, do ponto de vista topológico normativo, nos marcos da ordem econômica. Assim, a atividade urbanística passou a ocupar, no plano normativo-jurídico, categoria de forma de intervenção do Estado no domínio econômico, com vistas a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
E mais: o fato de a política urbana estar inserida na ordem econômica faz com que a atividade urbanística tenha de se submeter aos princípios e diretrizes da ordem econômica (Massonetto, 2015MASSONETTO, L. F. (2015). Pontos cegos da regulação urbanística: notas sobre uma articulação programática entre o direito econômico e o direito urbanístico. Revista de Direito Financeiro e Econômico – RFDFE. Belo Horizonte, ano 4, n. 6, pp. 141-154.) e aos fins da República Federativa do Brasil. Entre os fins da República, podemos citar, a título de exemplo, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza. Entre os princípios da ordem econômica, além da função social da propriedade urbana, destacamos a redução das desigualdades sociais e regionais que corresponde ao princípio redistributivo (Massonetto, 2003MASSONETTO, L. F. (2003). Operações urbanas consorciadas: a nova regulação urbana em questão. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 17, pp. 101-118.).
Esse conjunto de condições implica, perante a possibilidade de criação de solos artificiais não apoiados diretamente sobre o solo natural, a ideia de um potencial construtivo (coeficiente de aproveitamento) único a todos os terrenos, um “padrão de utilização da propriedade” (Grau, 1983GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT., p. 45), conferindo maior equidade entre os proprietários e corrigindo distorções. Implica, ainda, a perspectiva de vedar a concentração e a apropriação da riqueza social gerada na produção do espaço. É, nesse sentido, que instrumentos urbanísticos ou formas de projeto que não tenham esse caráter são, conceitualmente, incompatíveis com a Constituição Federal.
Da mesma maneira, o instituto jurídico solo criado (expresso sob a forma de disponibilidade de potencial construtivo acima de um) com a contrapartida denominada outorga onerosa do direito de construir deve ser compreendido. É ônus financeiro cuja natureza jurídica é de compensação urbano-ambiental – que compete ao proprietário, caso queira, construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, nos termos do que permite o artigo 28 do Estatuto da Cidade.
No âmbito jurídico, o fundamento direto do solo criado, ou melhor, da exigência de contrapartida pela criação de solo virtual, pelo poder público decorre do dispositivo constitucional quanto à função social da propriedade urbana (artigo 5º, XXIII, da CF).
Vale lembrar que o princípio da função social da propriedade urbana, pela ordem jurídica brasileira, abarca também a questão ambiental, de modo a falar-se em um princípio da função socioambiental da propriedade urbana (Humbert, 2009HUMBERT, G. L. H. (2009). Direito urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel urbana. Belo horizonte, Fórum.).
O solo criado, ao mesmo tempo que tem função urbanística, corresponde a uma parte do espaço aéreo que se constitui como recurso ambiental (Brasil, 1981BRASIL (1981). Lei n. 6.938, de 31 de agosto. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: 2 jun 2019.
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, artigo 3º, V) destinado a satisfazer as necessidades comuns dos seres humanos e, nesse sentido, submete-se, simultaneamente, às normas do direito urbanístico e do direito ambiental, cabendo a estes a tarefa de verificar as necessidades de uso e formas de acesso pelos interessados ao recurso urbano-ambiental solo criado que melhor atenda aos interesses protegidos por suas esferas.
Portanto, o solo criado deve tanto observar os objetivos constitucionais da política urbana de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (Brasil, 1988BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal e Centro Gráfico., artigo 182) quanto promover e manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (ibid., artigo 225).
Machado (2017MACHADO, P. A. L. (2017). Direito ambiental brasileiro. São Paulo, Malheiros., p. 72) menciona três formas de acesso aos recursos ambientais que são disciplinadas pelo direito ambiental: a) acesso visando ao consumo do bem (caça, pesca, etc.); b) acesso causando poluição (despejo de poluentes); e c) acesso para a contemplação de paisagem.
O solo criado, contudo, enquadra-se, a rigor, como elemento ambiental de produção do espaço que provoca degradação ambiental (Brasil, 1981BRASIL (1981). Lei n. 6.938, de 31 de agosto. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: 2 jun 2019.
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, artigo 3º, II,) pelo aumento do tráfego, poluição e impermeabilização no espaço urbano.
A lei n. 6.938/1981 (ibid., artigo 4º, VII), que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, coloca como um de seus objetivos a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.
Assim, como consequência do comprometimento ambiental e da poluição que o uso do solo criado provoca no espaço urbano, incide o princípio do poluidor-pagador, exigindo contrapartida financeira – pela poluição do espaço urbano – que tem natureza de compensação ambiental e é precificada como forma de permitir a mensuração prévia dos custos dos agentes econômicos na produção do espaço urbano.
Essa contrapartida financeira, que no caso do solo criado é a outorga onerosa, tem natureza de compensação ambiental e tem a função urbanística de tentar equalizar, no que superar o coeficiente de aproveitamento básico, o desequilíbrio relativo entre adensamento e infraestrutura.
Nesse sentido, por força do princípio constitucional da função socioambiental da propriedade urbana, o exercício do direito de edificar pode e deve ser condicionado a usos mínimos e máximos compatíveis com o meio ambiente urbano a serem expressos em padrões pela norma jurídica (Grau, 1983GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT.) na medida em que a atividade urbanística corresponde a uma intervenção do Estado na economia.
Além do coeficiente básico e máximo, cunhou-se o coeficiente de aproveitamento mínimo que corresponde ao que o proprietário é obrigado, por lei, a construir para cumprir a função social da propriedade urbana.
É preciso reforçar que o cumprimento da função social da propriedade urbana, na seara econômica, implica a observância do fim máximo da ordem econômica, que é propiciar dignidade a todos, segundo os ditames da justiça social, além da observância do princípio redistributivo, em que pese notarmos um esforço da atual correlação de forças em tentar subverter essa lógica.11 11 Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019, que institui a declaração de Direitos da Liberdade Econômica e Urbanístico que, a nosso ver, em absoluta contrariedade com o disposto no artigo 170 da CF, cria uma hierarquia na qual há prevalência do livre exercício da atividade econômica e da propriedade em detrimento das normas de direito urbanístico e da função social da propriedade urbana.
Finalmente, é importante salientar, diante do exposto, que, considerando que a edificação superior ao coeficiente de aproveitamento básico impacta diretamente a infraestrutura, o meio ambiente urbano (tráfego, poluição, etc.) e a necessidade de espaços públicos, o direito de edificar, além do coeficiente único, deve ser entendido como pertencente à coletividade.12 12 Nesse sentido, cf. Grau (1983), um grupo de especialistas – da Comissão Econômica para a Europa – reunidos em Roma, em 1973, definiu a necessidade de se afirmar a separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, dada a suposição de que este último deva pertencer à coletividade. Ou seja, deve submeter-se ao interesse público, tal como seu precedente, na escala horizontal, fundado na obrigação de o loteador destinar áreas públicas, conforme mencionado anteriormente no item Fundamentos do solo criado no campo disciplinar do urbanismo.
A natureza urbanística, jurídica e econômica da “terra virtual”
Se, em 1965, Choay (1965CHOAY, F. (1965). O urbanismo. São Paulo, Perspectiva., p. 2), em seu livro seminal O urbanismo, designava urbanismo como “uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e crítico e por sua pretensão científica”, hoje fica claro que esse campo do saber se transformou, com o avanço do neoliberalismo e a desregulamentação, em uma amálgama entre projeto, direito e economia, em que o conhecimento sobre essa inter-relação e efetivos impactos do ponto de vista dessas três disciplinas é ainda restrito.
No entanto, muitas intervenções nas cidades vêm sendo feitas por meio de instrumentos urbanísticos, no Brasil, vários deles incluídos no Estatuto da Cidade, como promotores do interesse público. Contudo, observa-se que o balanço entre a livre-iniciativa e a construção de uma sociedade mais justa e solidária, com redução de desigualdades sociais, tem resultados ainda pouco avaliados, com uma apreensão geral de que não atendem aos objetivos e benefícios expressos (Fix, 2001FIX, M. A. B. (2001). Parceiros da exclusão. Duas histórias da construção de uma “nova cidade” em São Paulo: Faria Lima e Água Espraiada. São Paulo, Boitempo.; Ferro e Carriço, 2017FERRO, A.; CARRIÇO, J. (2017). Outorga onerosa do direito de construir. Natureza jurídica e justiça social. Vitruvius, Arquitextos. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.211/6826. Acesso em: 2 jun 2019.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/rea...
; Nogueira, 2019NOGUEIRA, K. M. S. (2019). Aplicação da outorga onerosa do direito de construir na cidade de São Paulo: uma exploração a partir dos agentes privados. Dissertação de mestrado. Santo André, Universidade Federal do ABC.). São mais raros os estudos de mensuração de impactos e “efeitos colaterais”. Faltam pesquisa e avaliação para evidenciar em que medida boas intenções, no campo urbanístico, sem claro domínio de sua repercussão nas diversas esferas e, particularmente, no plano econômico não acabam por prejudicar e penalizar justamente quem a proposta enuncia querer beneficiar.
Constroem-se, a seguir, alguns pontos como referenciais para aprofundamento de conceitos e potenciais medições.
Tradução em valor econômico, os primórdios
Diferentemente dos ideais que embasaram toda a discussão acerca do conceito de solo criado, na década de 1970, a partir do final dos anos 1980, consolidou-se a percepção de que diferentes índices e parâmetros urbanísticos (coeficiente de aproveitamento) constituíam vantagem diferencial aos lotes urbanos contemplados com maior potencial construtivo, e passou-se a estabelecer um valor para esse diferencial. Daí resultou, por exemplo, em São Paulo, a possibilidade de transferência de potencial construtivo, nos casos de imóveis tombados em que, por força do tombamento, não se fazia possível atingir o potencial construtivo máximo do respectivo lote.
Tal ideia de influência norte-americana, segundo Nobre (2019NOBRE, E. A. C. (2019). Do plano diretor às operações urbanas consorciadas: a ascensão do discurso neoliberal e dos grandes projetos urbanos no planejamento paulistano. São Paulo, Annablume., p. 169), foi trazida para o Brasil por Azevedo Netto e defendida na perspectiva de controle do uso do solo e preservação histórica.
Com o propósito de preservar esses imóveis de valor histórico e cultural, foi implementada, em São Paulo, a lei municipal n. 9.725/1984, que dispunha sobre o uso da transferência de potencial construtivo de imóveis preservados, enquadrados como Z8-200 (área ou edifício considerado patrimônio histórico ou ambiental).
Pouco depois (gestão Jânio Quadros), foi implementada a lei municipal 10.209/1986. Conhecida por Lei do Desfavelamento, estabelecia a figura das Operações Interligadas, permitindo que a iniciativa privada construísse Habitação de Interesse Social (HIS), ou pagasse por ela, em troca da revisão dos índices e uso do zoneamento em áreas de onde a favela fosse removida. A partir de 1990, o procedimento deixou de ser aplicado na remoção de favelas em áreas de interesse imobiliário, revertendo seu fundamento. Passou a ser possível a alteração de índices na cidade inteira, exceto nas zonas exclusivamente residenciais, mediante pagamento à municipalidade de valores destinados à construção de HIS pelo próprio poder público.
As operações interligadas representaram a primeira flexibilização da legislação urbanística sem o propósito de incentivar determinada forma urbana apresentada como desejável (anteriormente aplicou-se para escolas, hospitais e edifícios residenciais isolados, no centro do lote).
Embora muitas vezes determinadas regiões de fato merecessem maior adensamento e verticalização, a prática demonstrou que as operações interligadas propiciaram a criação de espaços de exceção na cidade, sobretudo com as propostas de intervenção relativas aos empreendimentos de grande porte e aos megaprojetos.
As operações interligadas, em seu formato definido pela lei n. 11.426/1993, em substituição ao formato anterior que objetivava remoção de favelas, passam a operar na cidade de São Paulo sob a lógica da exceção, e não da regra, em relação à legislação urbanística, ainda que seu objetivo contemplasse uma explícita forma redistributiva e de promoção de equidade, já que os recursos eram aplicados em HIS. O procedimento foi julgado inconstitucional em 2001, sob o argumento de que a lei permitia que a alteração de parâmetros urbanísticos fosse possível via decreto, quando, na verdade, deveria ser por lei. Foi, então, interrompido.
O solo criado, quantidade de área construída superior à metragem do lote, passa, desde sua formulação original, de uma categoria material (maior área habitável) para uma categoria econômica (pois envolve um preço): como compensação por “perdas”, como no caso das Z8-200, como forma de incentivo a determinados usos ou tipologias (edifícios no centro do lote, hotéis, hospitais) ou como forma de arrecadação (com objetivos de promoção de HIS, em 1990), mas posteriormente e, em outras cidades do País, com diversas outras formulações, procedimentos e objetivos.
Potencial adicional de construção como incentivo
Nos termos do artigo 174 da Constituição Federal, o Estado é agente normativo e regulador da atividade econômica e, pelo texto constitucional, pode exercer a atividade de regulação de três formas: função de fiscalização, incentivo e planejamento, como meios pelos quais tal papel regulador pode ser desempenhado.
O Plano Diretor de 2014, nessa linha, prevê algumas possibilidades de uso do potencial adicional de construção como incentivo do planejamento urbano, como, por exemplo, a gratuidade da outorga para construção de HIS em Zona Especial de Interesse Social (Zeis), o não cômputo para fins de consumo do potencial adicional de construção das áreas destinadas à HIS, na operacionalização da cota de solidariedade e no caso do incentivo ao adensamento nos corredores de estruturação urbana.
Apesar de ser possível e até desejável, em alguns casos, o uso do incentivo econômico na regulação urbana, é fato que sua utilização indiscriminada pode beneficiar o mercado imobiliário de forma indevida ou até mesmo diminuir consideravelmente as receitas oriundas da outorga onerosa e comprometer os objetivos redistributivos dos recursos.
Essa percepção de possível ineficácia já tem sido evidenciada na área econômica, em vários trabalhos sobre impactos de incentivos e desonerações fiscais. Entretanto, no campo do urbanismo, faltam conhecimento e debate a respeito desse tipo de impacto, decorrente do uso de diversos instrumentos jurídico – urbanísticos, particularmente no caso da concessão urbanística, conforme se verá adiante.
A outorga onerosa, instrumento jurídico-político
Ao longo da década de 1980, foi sendo construída a noção de que a motivação para verticalizar, ou seja, para criar solo, decorre do maior interesse pelo “ponto”, em função dos investimentos públicos e privados em seu entorno. A cobrança pelo adicional construtivo, nos casos em que o proprietário tivesse interesse de fazê-lo (tendo em vista o aproveitamento mais intenso de sua propriedade), seria contrapartida à valorização da propriedade gerada pela sociedade, tanto pela infraestrutura pública quanto pelos investimentos privados que qualificam o local, e deveria ser restituída à sociedade. Do mesmo modo, imóveis mantidos vazios, desperdiçando os investimentos públicos disponibilizados, deveriam arcar com responsabilidades sob forma de imposto progressivo e sucessivamente à desapropriação. São fundamentos da “reforma urbana” cuja perspectiva seria distribuir socialmente a valorização urbana socialmente construída.
Em São Paulo, o Plano Diretor de 2002, construído já sob os fundamentos e vigência do Estatuto da Cidade, positivou o mecanismo da outorga onerosa de potencial adicional de construção, estabelecendo um coeficiente de aproveitamento básico e um coeficiente de aproveitamento máximo. Com o atual Plano Diretor, aprovado em 2014, estabeleceu-se, pela primeira vez, o coeficiente de aproveitamento igual a 1 e destinação dos recursos obtidos com a outorga onerosa para um fundo separado, o Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), destinado à infraestrutura de transporte e habitação social.
Cabe então discutir mais alguns aspectos sobre o solo criado e sua efetivação via coeficiente de aproveitamento e pagamento de outorga onerosa para sua ampliação. Explicitada no Estatuto da Cidade (Brasil, 2001BRASIL (2001). Lei n. 10.257, de 10 de julho. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 2 jun 2019.
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), entre os instrumentos jurídicos e políticos, no artigo 4º, V, a outorga onerosa não constitui um tributo, mas uma obrigação urbanística com base constitucional na função social da propriedade. Não é um tributo, pois não há obrigatoriedade. O proprietário só fará esse pagamento, relativo ao uso de potencial construtivo adicional, se tiver interesse em edificar mais.13
13
Nesse sentido, o STF (RE 387.047-5) deliberou que a natureza da outorga onerosa não é tributo.
Os recursos obtidos com a outorga onerosa em função do uso de potencial construtivo adicional ou de alteração de uso só poderão ser utilizados para ações de política urbana de caráter territorial, e as condições a serem observadas deverão ser estabelecidas por lei municipal específica, conforme determina o Estatuto da Cidade (ibid., artigo 28).
No Plano Diretor de São Paulo de 2014SÃO PAULO (Município) (2014). Lei n. 16.050, de 31 de julho. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga a Lei n. 13.430/2002. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/. Acesso em: 2 jun 2019.
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(São Paulo, 2014SÃO PAULO (Município) (2014). Lei n. 16.050, de 31 de julho. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga a Lei n. 13.430/2002. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/. Acesso em: 2 jun 2019.
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), o potencial construtivo adicional é expresso como bem jurídico dominical, de titularidade da prefeitura, com funções urbanísticas e socioambientais.
Esse entendimento, que expressa um esforço de compatibilizar as ideias do solo criado com as categorias jurídicas, nasce das discussões do Gegran, da separação entre o direito de propriedade e o direito de construir. O direito de construir ganha mais do que autonomia com a “teoria da patrimonialização do direito de construir” (Pinto, 2010PINTO, V. C. (2010). Direito urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo, RT.), segundo a qual o potencial adicional de construção se torna uma espécie de bem, dotado de valor econômico que se incorpora no terreno, mas que vai além do pagamento do ônus urbanístico que o proprietário contribui para o financiamento da infraestrutura.
Nesse sentido, Pinto afirma que:
[...] faz-se necessário empreender um amplo esforço de reformulação teórica, a fim de identificar e revisar todas as consequências do modelo conceitual adotado pelo Estatuto da Cidade. Trata-se de construir uma nova teoria unificadora que ofereça uma alternativa global à doutrina anterior e seja capaz de abrigar os novos e antigos institutos dentro de um todo coerente. (Ibid, 229)
A teoria da patrimonialização do direito de construir transpõe o instituto do solo criado na teoria do direito como “bem autônomo”14 14 Na teoria geral do direito, “bem” significa valor material ou imaterial que possa ser objeto de relação jurídica incorporado ao patrimônio das pessoas. passível de ser apropriado e negociado como algo comercializável e rentável.
A adoção da teoria da patrimonialização do direito de construir tem algumas consequências. Uma delas é a de permitir, ao proprietário, uma vez incorporado ao lote o direito de construir mediante pagamento, o ajuizamento de ação de indenização pelos “prejuízos” patrimoniais sofridos em caso de qualquer superveniência legislativa que reduza o direito de construir. Outra consequência é a de que o potencial adicional de construção se torna bem passível de comercialização e remuneração nas relações entre a prefeitura e os agentes que participam da produção do espaço.
Nessa linha, a patrimonialização do direito de construir aparece no Plano Diretor de 2014 em dois dispositivos: o artigo 116, que classifica o potencial adicional de construção como bem jurídico dominical, e o § 3º do artigo 144, que, ao tratar da concessão urbanística, prevê o potencial adicional de construção como objeto de remuneração da concessão.
O regime jurídico de bens públicos na ordem jurídica brasileira caracteriza tais bens por uma série de limitações e afetações, além de submetê-los ao regime jurídico especial de direito público, que é exorbitante ao direito privado. Podem ser conceituados como bens públicos todos os que pertencem às pessoas jurídicas de direito público, bem como os que, embora não sejam propriedade de tais pessoas, estejam afetados a uma finalidade pública (Bandeira De Mello, 2005BANDEIRA DE MELLO, C. A. (2005). Curso de direito administrativo, 19. ed. rev. e atual. até a EC 47/2005. São Paulo, Malheiros.).
O Código Civil de 2002 vigente, seguindo a linha do Código Civil de 1916, classifica os bens públicos em: a) de uso comum do povo, ou seja, que pertencem a todos indistintamente, como ruas, parques, mares, recursos ambientais, atmosfera; b) de uso especial, que são os bens afetados a um serviço público, como escolas e hospitais públicos; c) bens dominicais, que são aqueles de domínio privado do Estado que não são afetados à finalidade pública e, portanto, podem ser alienados, como, por exemplo, as terras devolutas.
Os bens de uso comum do povo são aqueles destinados a toda a coletividade, e seu uso pode ser, de acordo com o artigo 103 do Código Civil, gratuito ou retribuído. Já os bens de uso especial são destinados à prestação de serviços públicos e, portanto, afetados a uma finalidade pública. Os bens públicos afetados a alguma finalidade ou destino públicos são inalienáveis e impenhoráveis. Os bens dominicais, por sua vez, não estão afetados a qualquer uso comum, tampouco à prestação de serviços públicos, e podem ser alienados ou utilizados como geradores de renda ao Estado.
A classificação do solo criado/potencial construtivo como bem jurídico dominical tem consequências jurídicas, urbano-ambientais e, sobretudo, econômicas.
Isso porque tal classificação permite não só a atribuição de valor econômico, com o qual o Estado pode operar como arrecadação e como renúncia, mas também sua apropriação e comercialização pelo privado. Essa comercialização, em casos relacionados a bens protegidos, já foi colocada anteriormente no direito brasileiro, quando da positivação do instrumento da transferência do direito de construir, que permite a alienação pelo particular do potencial de construção atribuído a sua propriedade, mas que não pode ser utilizado na própria, em função do tombamento ou proteção do bem. No entanto, o uso do instrumento da transferência do direito de construir no caso de bens protegidos é sempre muito restrito e condicionado.
Nessa perspectiva, o Plano Diretor de 2014, ao conceituar o potencial adicional de construção como bem público dominical, permite que o poder público o utilize não necessariamente para fins urbanísticos e ambientais, mas para finalidades exclusivamente econômicas, em especial como objeto de remuneração das parcerias público-privadas entre administração pública e agentes privados da produção do espaço urbano.
Configura-se, assim, um claro debate acerca da natureza jurídica de o solo criado constituir-se como bem, valendo lembrar que nem sempre é possível buscar compatibilidade de conceitos urbanísticos no direito. Classificá-lo como bem remete a algo livre de apropriação e transação no mercado de quem dispuser de recursos financeiros para tal.
Importante, contudo, salientar novamente que, considerando que a edificação superior ao coeficiente de aproveitamento básico impacta diretamente a infraestrutura e o espaço urbano-ambiental, o direito de edificar verticalmente deve ter seu fundamento constitucional de acordo com os valores da ordem urbanística e do meio ambiente e ser entendido como pertencente à coletividade, de forma que, caso se admita que o solo criado possa ser categorizado como bem, certamente se aproximar ia mais do conceito de bem de uso comum do povo de natureza difusa15 15 Utiliza-se aqui a palavra difusa em sua acepção jurídica do termo ligado a algo comum à coletividade, insuscetível de ser mensurado de forma individual, nos termos do disposto no artigo 81 da lei n. 8.078/1990. do que de bem dominical, compartilhados do entendimento de que a natureza jurídica do solo criado é de recurso ambiental com função urbanística utilizado na produção do espaço urbano.
Operações urbanas consorciadas: o Solo Criado como ativo financeiro
Por força da previsão no Estatuto da Cidade, o solo criado serviu de insumo para estruturação e modelagem das operações urbanas consorciadas. Embora elas já existissem, é de fato no Plano Diretor de 2002 que sua regulamentação se torna mais densa e específica.
A operação urbana consorciada é modalidade de intervenção urbana em determinadas áreas da cidade. Nesse perímetro delimitado, a outorga onerosa deve ser investida em infraestrutura no próprio local, o que exige o princípio distributivo dentro da própria área. Além disso, foi prevista a operacionalização da outorga onerosa sob forma de Cepac, comercializado em bolsa de valores. Desse modo, o potencial construtivo adicional desvincula-se do lote e passa a ativo financeiro, passível de especulação, inserindo um novo significado em sua original natureza material de solo criado.
Continua-se a imaginar, no âmbito urbanístico, o coeficiente de aproveitamento como uma categoria material, relativa à forma urbana, quando, na verdade, transformou-se numa categoria financeira e, como tal, determina o que será ou não construído, desafiando qualquer lógica urbanística.
Planos e legislações urbanísticas seguem usando controles e lógicas da materialidade e da forma, enquanto a produção do espaço construído vê os coeficientes como ativo financeiro. A dimensão urbanística fica sujeita ao cálculo financeiro da viabilidade para o empreendedor.
As operações urbanas consorciadas acabam configurando duas formas de armadilha: para que os Cepacs sejam vendidos, é necessária a evidência de liquidez das edificações que os utilizem, liquidez esta que deriva de vantagens diferenciais, o que torna o processo concentrador de benefícios nessas partes do território, elevando, nesses locais, o preço da terra.
A segunda armadilha é que, por operar com um ativo comercializado em bolsa de valores, remete a relação entre o poder público e o investidor à esfera do direito privado, em que o disposto no contrato prevalece, ainda que, em determinadas circunstâncias, venha a afetar negativamente o interesse público, contrariando, assim, a função pública da atividade urbanística.
A ideia do comum e a apropriação pelo privado
A ideia do comum como princípio político que se opõe à nova razão neoliberal do mundo (Dardot e Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo.), marcada pela prevalência da lógica da mercadoria e da concorrência que afeta diversas dimensões da existência humana, foi trazida à luz das lutas sociais como forma de oposição à apropriação privada daquilo que não era de ninguém ou do que era propriedade pública ou patrimônio coletivo (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. (2017). Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo.).
No âmbito das cidades e da política urbana, sobretudo com o advento do neoliberalismo, embora a gestão política da riqueza social, que abarca o princípio redistributivo, seja poder-dever do Estado, alguns bens comuns urbanos, ou seja, aqueles pertencentes a toda a coletividade, eis que produzidos pela riqueza social, são apropriados e destruídos pelos interesses privados (Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade a revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes., p. 156).
E o solo criado/potencial construtivo, operacionalizado mediante outorga onerosa, enquadra-se nessa perspectiva de transformação daquilo que era inicialmente público, destinado à realização de interesses coletivos e direitos comuns fundamentais (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. (2017). Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo.) em categoria exclusivamente econômica passível de apropriação pelo privado.
Concessão urbanística: Solo Criado como objeto de pagamento ao particular
A concessão urbanística é instrumento previsto no Plano Diretor de 2014 de São Paulo, que permite a delegação da atividade urbanística à empresa estatal ou, mediante licitação, à iniciativa privada.
Nos termos da lei municipal n. 14.917/2009, que dispõe, em caráter geral, sobre o instituto da concessão urbanística no município de São Paulo, concessão urbanística é
[...] o contrato administrativo por meio do qual o poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência, delega a pessoa jurídica ou a consórcio de empresas a execução de obras urbanísticas de interesse público, por conta e risco da empresa concessionária, de modo que o investimento desta seja remunerado e amortizado mediante a exploração dos imóveis resultantes destinados a usos privados nos termos do contrato de concessão, com base em prévio projeto urbanístico específico e em cumprimento de objetivos, diretrizes e prioridades da lei do plano diretor estratégico.
Apesar de não ser o objetivo deste texto debater o instrumento da concessão urbanística, faz-se necessário compreender seu significado e alcance para melhor entendimento do papel do potencial adicional de construção nesse instrumento.
A concessão urbanística é instrumento destinado a delegar atividade urbanística de execução ao particular, para realização de obras de urbanização, e uma das formas de remuneração do concessionário, pelo Plano Diretor vigente, é por meio da exploração do potencial adicional de construção a ser utilizado na implementação do Projeto de Intervenção Urbana que o fundamenta.
Na figura jurídica da concessão urbanística, portanto, a possibilidade de alienação pelo concessionário de potencial construtivo ampliado é parte do arranjo econômico.
Nesse sentido, a previsão de remuneração do concessionário por meio do potencial adicional de construção pode desvirtuar sua finalidade urbanística e ambiental, na medida em que os recursos públicos a serem obtidos com a venda do potencial, em vez de redistribuídos em favor de toda a sociedade, poderão ser apropriados pelo particular.
Conclusões
Mais do que conclusões, o que se busca é uma abertura de perspectivas.
Como a terra virtual é a base da constituição dos chamados novos instrumentos urbanísticos, a própria fundamentação desses instrumentos depende do enquadramento do “solo criado” e de sua expressão enquanto direito, economia e espaço construído. É o que se procurou iniciar neste texto.
Há fortes razões para que se proponha esse debate. As defesas assim como as críticas aos referidos novos instrumentos urbanísticos e seus impactos são contundentes, mas faltam reflexões e avaliações que de fato consigam avançar além das evidências mais visíveis.
Assim como é conhecido que nosso Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) é regressivo e que, se, por um lado, seu aumento permite ampliar investimentos públicos, prioritariamente de interesse da parcela mais pobre da população; por outro, é justamente sobre esse grupo que o referido imposto é proporcionalmente mais alto. A proposta aqui é compreender e avaliar a efetiva natureza e os impactos dos novos instrumentos que se apresentam como a grande “mágica” de uma fonte de recursos que representa somente ganhos, e não uma transferência de renda ou benefícios, como qualquer outra fonte de recursos. Trata-se de formular questões que não estão postas.
Tal qual o debate sobre eficácia e custo-benefício de incentivos fiscais e de exonerações tem se desenvolvido, é necessário transpor esse tipo de avaliação para o desenho dos novos instrumentos urbanísticos, particularmente a gestão do “solo virtual”.
As reflexões aqui desenvolvidas buscam avançar leituras sobre a natureza do solo virtual na perspectiva de desenvolver caminho e metodologia que evidenciem os processos de transferência (de renda, recursos, benefícios?) não evidentes que tais instrumentos, baseados na exploração econômica do solo virtual, promovem.
O solo criado, que é terra virtual, passou, desde suas primeiras apreensões enquanto conceito, por diversas transformações no País e, particularmente, no cenário paulistano, no que diz respeito à formulação de instrumentos urbanísticos, sua regulação, finalidades e aplicação. Inicialmente percebido como ampliação de área habitável e, portanto, de demanda por infraestrutura e espaços livres, era natural um entendimento acerca da necessidade e justeza de que se exigisse pela apropriação desse solo criado alguma forma de compensação urbano-ambiental, visando ao equilíbrio entre o adensamento e a infraestrutura urbana.
Além disso, em decorrência dos diferentes potenciais construtivos (coeficiente de aproveitamento) atribuídos a distintas áreas da cidade, houve de forma predominante o debate sobre as potencialidades financeiras do solo criado, a partir da clareza de que a definição de um ou de outro coeficiente de aproveitamento implicaria maior ou menor rentabilidade dos proprietários de terra e agentes econômicos que operam no mercado imobiliário. Assim, passou-se a enfatizar a ideia da função do solo criado e da outorga onerosa como captação da renda diferencial (Rezende et al., 2009REZENDE, V. F. et al. (2009). A outorga onerosa do direito de construir e o solo criado: uma necessária avaliação das matrizes conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Recife, v. 11, n. 2, pp. 51-71., p. 57; Ribeiro e Cardoso, 2003RIBEIRO, L. C. de Q.; CARDOSO, A. L. (2003). “A concessão onerosa do direito de 151 construir: instrumento da reforma urbana?”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. e CARDOSO, A. L. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro, Fase., p. 123).
Outro aspecto a destacar é que, a partir do instrumento da transferência do direito de construir, o potencial construtivo passa a bem apropriável e comercializável pelo particular e, mais tarde, quando da formulação de operação urbana consorciada, torna-se ativo financeiro. Os argumentos e os processos históricos dessa construção foram abordados ao longo do texto.
No entanto, foi a classificação do solo criado como bem de uso dominical que, além de permitir sua apropriação e mercantilização, aprofundou a viabilização de sua transferência ao particular, inclusive como fonte de ganhos e subsídio indevido, o que legitima, de modo já observado por alguns autores, o abuso do poder econômico pelo empreendedorismo imobiliário.
É, pelo escrutínio e aprofundamento da interpretação de todos esses aspectos, que se propõe delinear caminhos para identificar as transferências de renda operacionalizadas por meio de instrumentos urbanísticos que têm por base a gestão do solo virtual. Nesse sentido, cabem destacar estudos que vêm percorrendo esse caminho.
De acordo com estudos desenvolvidos por Nogueira (2019)NOGUEIRA, K. M. S. (2019). Aplicação da outorga onerosa do direito de construir na cidade de São Paulo: uma exploração a partir dos agentes privados. Dissertação de mestrado. Santo André, Universidade Federal do ABC. para o município de São Paulo, o percentual pago a título de outorga onerosa nos empreendimentos objeto de sua pesquisa foi diminuto diante da valorização do Valor Geral de Vendas (VGV)16 16 Cálculo que estima a receita de um empreendimento pelo seu potencial, considerando a venda de todas as unidades imobiliárias previstas para determinado empreendimento. proporcionada pelo aumento do potencial adicional de construção. Ou seja, a outorga onerosa não é capaz de captar os ganhos de rentabilidade dos empreendimentos de forma proporcional ao ganho viabilizado pelo aumento de potencial construtivo. No mesmo sentido, é sua a avaliação de que a incidência do fator de planejamento (Fp), que tem a função de garantir descontos no valor pela outorga onerosa em empreendimentos em áreas em que o Plano Diretor propõe adensar, praticamente não altera a decisão do incorporador. Avaliações de teor semelhante são feitas por Leite (2019)LEITE, H. R. S. (2019). A outorga onerosa do direito de construir como instrumento de gestão social da valorização da terra: o caso de São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo., que aponta a necessidade de monitoramento, por exemplo, da produção de HIS, relacionando-a com o total de contrapartida isentada ou a relação entre fator de interesse social e produção de Habitação de Mercado Popular (HMP). Do mesmo modo, a modelagem da transferência do direito de construir permite sua venda a interessados em construir acima do coeficiente básico de aproveitamento em outras partes da cidade, como alternativa à compra da outorga onerosa do direito de construir (Souza et al., 2019SOUZA, A. P.; PERETTO, F. T.; SEO, H. N. K. (2019). O Parque Augusta e o milagre da multiplicação do potencial construtivo: o caso das doações de imóveis para a implantação de Parques Municipais no PDE de 2014. In: XVII ENANPUR. Anais. Natal.).
São importantes progressos, mas dizem mais ao elemento econômico de quem ganha. Falta avançar sobre o que gera esse ganho e, comisso identificar “de quem” ou “de onde” ele é transferido.
Pode-se ainda dizer que, diante das limitações de meios técnicos objetivos capazes de aferir o real potencial adicional de construção de cada localização da cidade, o coeficiente de aproveitamento máximo que deveria considerar também o impacto ambiental, para melhor aferir o desequilíbrio relativo entre adensamento e infraestrutura, em verdade, acaba por assumir um papel fundamental no estudo de viabilidade econômica e na rentabilidade dos empreendimentos imobiliários pelo aumento que proporciona no VGV. Nessas circunstâncias, o solo criado, contido no coeficiente máximo de aproveitamento, funciona, de um lado, como subsídio indireto da prefeitura aos incorporadores e proprietários de terreno e, de outro, como instrumento de calibração no cálculo das incorporadoras (Nogueira, 2019NOGUEIRA, K. M. S. (2019). Aplicação da outorga onerosa do direito de construir na cidade de São Paulo: uma exploração a partir dos agentes privados. Dissertação de mestrado. Santo André, Universidade Federal do ABC., p. 56).
Consequentemente, é perceptível que o produto imobiliário vem se desenhando a partir do padrão de eficiência econômica determinado pelos valores e formas de incidência da outorga onerosa, produzindo, assim, um urbanismo desenhado a partir de cálculos que raramente correspondem aos produtos propostos e esperados pelo planejamento. Essa condição impõe, à forma urbana, um produto que não tem fundamento urbanístico, mas representa a resultante de uma calibração de cálculo. Se, de um lado, urbanistas pensam o incentivo a determinadas formas e produtos; de outro, a lógica do cálculo econômico desenha outras. E o marketing encarrega-se de transformar redução de custos em aspectos desejáveis – como desde há alguns anos foram as “varandas gourmet”, vendidas como qualidade e status, mas produzidas porque “balcão” não conta como área construída. É mais área de piso, mas não é computada no coeficiente de aproveitamento e, portanto, não paga outorga onerosa.
Enfim, é necessário construir perguntas para que se possa enxergar além.
Nota de agradecimento
O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Projeto: Regulação urbanística e sustentabilidade urbana – PQ-2021, Processo: 313325/2021-9.
Referências
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Notas
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1
Ação Civil Pública (TJSP) 1034059-70.2018.8.26.0053, que questiona a transferência da possibilidade de exploração do potencial adicional de construção pelo particular; ADIn 2028122-62.2018.8.26.0000, que tem por objeto a inconstitucionalidade do “direito de protocolo” que rege as regras sobre o direito de construir acima do coeficiente básico de aproveitamento no tempo; Apelação Cível (TJSP) 1013904.47-2019.8.26.0053, que discute as regras de pagamento na outorga onerosa; Ação Civil Pública (TJSP) 1010569-20.2019.8.26.0053, que questiona a necessidade de Estudo Técnico de Impacto Ambiental para quantificar e avaliar o impacto do aumento da potencial adicional de construção.
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2
Nome dado em referência a Benjamin Adiron Ribeiro, então Secretário da Coordenadoria-Geral de Planejamento. A fórmula inserida na referida Lei de Zoneamento estabeleceu uma proporção inversa entre coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação do lote. O empreendedor poderia aumentar o coeficiente de aproveitamento na medida em que diminuía a taxa de ocupação, o que estimulava a taxa mínima de ocupação e acarretava consequências para tipologia e forma urbanas.
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3
Conhecida como Lei de Hotéis, autoriza “maior permissividade na construção em áreas e maior flexibilidade na sua utilização”, prevendo o aumento do coeficiente de aproveitamento.
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4
Permitia a utilização do coeficiente de aproveitamento máximo para hospitais.
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5
Dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo nas Z8 e amplia as hipóteses de aplicação da fórmula de Adiron para as Z10 e 12, além de regulamentar incentivos de aumento do coeficiente de aproveitamento para hipótese de doação de área parcial de terreno para a realização de obras por parte da prefeitura.
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6
Em 1971, em Roma, técnicos ligados à Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa firmam documento em que defendem a separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, bem como a ideia de que este último deveria pertencer à coletividade.
-
7
O Plano de Chicago da década de 1970 trazia o instrumento do “zoning bônus”, que previa a permissão de coeficientes de aproveitamento maiores e, portanto, mais lucrativos, exigindo-se uma contrapartida e também o instrumento da Transferência do Direito de Construir (Rezende et al., 2009REZENDE, V. F. et al. (2009). A outorga onerosa do direito de construir e o solo criado: uma necessária avaliação das matrizes conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Recife, v. 11, n. 2, pp. 51-71.).
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8
Na França, desde 1975, existe o chamado Teto Legal de Densidade (plafond legal de densité), instituído por meio da lei n. 75-1328 (Code de L’urbanisme), cujo coeficiente era de 1,5 para Paris e 1,0 para outras cidades.
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9
No caso da preservação de imóveis de valor histórico.
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10
A Carta de Embu derivou de estudos e eventos, em especial seminários, que ocorreram nas cidades de Embu, São Paulo e São Sebastião, promovidos pelo Cepam (Grau, 1983GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT.).
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11
Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019, que institui a declaração de Direitos da Liberdade Econômica e Urbanístico que, a nosso ver, em absoluta contrariedade com o disposto no artigo 170 da CF, cria uma hierarquia na qual há prevalência do livre exercício da atividade econômica e da propriedade em detrimento das normas de direito urbanístico e da função social da propriedade urbana.
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12
Nesse sentido, cf. Grau (1983)GRAU, E. R. (1983). Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. São Paulo, RT., um grupo de especialistas – da Comissão Econômica para a Europa – reunidos em Roma, em 1973, definiu a necessidade de se afirmar a separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, dada a suposição de que este último deva pertencer à coletividade.
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13
Nesse sentido, o STF (RE 387.047-5) deliberou que a natureza da outorga onerosa não é tributo.
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14
Na teoria geral do direito, “bem” significa valor material ou imaterial que possa ser objeto de relação jurídica incorporado ao patrimônio das pessoas.
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15
Utiliza-se aqui a palavra difusa em sua acepção jurídica do termo ligado a algo comum à coletividade, insuscetível de ser mensurado de forma individual, nos termos do disposto no artigo 81 da lei n. 8.078/1990.
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16
Cálculo que estima a receita de um empreendimento pelo seu potencial, considerando a venda de todas as unidades imobiliárias previstas para determinado empreendimento.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
31 Out 2021 -
Aceito
19 Abr 2022