Resumo
Nas últimas décadas, categorias como “cidades criativas” e “distritos criativos” ganharam espaço na agenda tanto de universidades quanto de governos e organizações internacionais, propondo uma nova forma de pensar a política urbana que combina planejamento urbano, desenvolvimento, artes, cultura e turismo. O presente artigo procura analisar historicamente os processos de surgimento e disseminação dessa racionalidade político-discursiva que está na base de uma nova agenda internacional para as cidades. O foco está posto na reconstituição da rede sociodiscursiva envolvida na consagração dos setores criativos como estratégia de desenvolvimento urbano e como peça fundamental dos projetos de renovação urbana adotados no mundo todo.
cidades criativas; política urbana; política cultural; renovação urbana; cultura
Abstract
In recent decades, categories such as “creative cities” and “creative districts” have gained ground in the agenda of universities, governments, and international organizations, proposing a new way of thinking about urban policies that combines urban planning, development, arts, culture, and tourism. This article historically analyzes the processes of emergence and dissemination of this political-discursive rationality that is the basis of a new international agenda for cities. It focuses mainly on the reconstitution of the socio-discursive network involved in the recognition of the creative sectors as an urban development strategy and a fundamental part of urban renewal projects adopted worldwide.
creative cities; urban policy; cultural policy; urban renewal; culture
A narrativa da “cidade criativa” e as políticas de renovação urbana
Ao longo da segunda metade do século XX, uma série de transformações socioeconômicas, técnico-produtivas e políticas, inicialmente deflagradas nos países industrialmente avançados e depois difundidas por quase todo o globo, criou condições para uma vigorosa expansão das práticas de lazer no cotidiano das sociedades contemporâneas. Processos como a reconfiguração tecnológica da estrutura produtiva, a expansão do setor de serviços e as lutas trabalhistas levaram à reformulação da carga horária das classes operárias e dos segmentos médios em inúmeros países, o que, em muitos casos, também foi acompanhado de uma elevação na renda, permitindo que houvesse um aumento progressivo no tempo e nos recursos investidos pelas famílias em práticas e atividades de lazer de toda sorte, como consumo de bens e serviços culturais, turismo, esportes e entretenimento (Dumazedier, 2004DUMAZEDIER, J. (2004). Sociologia empírica do lazer. São Paulo, Perspectiva.).
À medida que o lazer se transforma em um polo de atração permanente no dia a dia de bilhões de pessoas, envolvendo diversos tipos de atividades, uma miríade de agentes e organizações é mobilizada com o intuito de oferecer e ofertar bens e serviços especializados, fomentando o desenvolvimento de uma economia do ócio e da diversão cada vez mais pungente e globalizada (Lipovetsky e Serroy, 2011LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. (2011). A cultura mundo. São Paulo, Companhia das Letras.).
Dentro desse cenário, o intenso crescimento do consumo cultural fora do lar, o sucesso dos espetáculos de entretenimento e a expansão das atividades turísticas repercutem na formação de toda uma rede de equipamentos culturais, centros turísticos, restaurantes, hotéis, shoppings, boates, dentre outros, que se fazem presentes em praticamente todo centro urbano de médio ou grande porte ao redor do mundo (Alves, 2012ALVES, E. (2012). A economia criativa do Brasil: o capitalismo cultural brasileiro contemporâneo. Latitude. Maceió, v. 6, n. 2, pp. 191-214.). O desenvolvimento dessa rede de negócios urbano-culturais, bem como as novas formas de sociabilidade e de deslocamentos associadas a ela, tem produzido um enorme impacto no ordenamento do espaço dessas cidades, instaurando novas dinâmicas e promovendo transformações significativas. Em inúmeros casos, assiste-se à diferenciação funcional de ruas e bairros inteiros através da estruturação de circuitos de diversão, consumo cultural, entretenimento e turismo. De certo modo, as dinâmicas e os fluxos da economia do ócio e da diversão acabam se amalgamando ao próprio processo de urbanização de diferentes regiões dessas cidades.
Em meio a esses processos, categorias como cidades criativas e distritos criativos ganham espaço cada vez maior na agenda de governos e de organizações internacionais, propondo uma nova forma de pensar a política urbana que combina planejamento urbano, cultura, entretenimento e turismo. O conceito “cidades criativas” surge ainda na década de 1980 como eixo de um debate que propunha a integração das artes e da cultura no planejamento das políticas de desenvolvimento urbano (Landry, 2011LANDRY, C. (2011). “Prefácio”. In: REIS, A.; KAGEYAMA, P. (orgs.). Cidades criativas: perspectivas. São Paulo, Garimpo de Soluções.). Durante a década de 1990, o conceito é ampliado a partir da ideia de indústrias criativas, reconhecendo novos setores – moda, arquitetura, turismo, design – como recursos estratégicos para as cidades (Alves e Couto, 2019ALVES, E.; COUTO, B. (2019). “Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 18, n. 41, pp. 328-359.).
Como sugerido por Yúdice (2008)YÚDICE, G. (2008). Modelos de desarrollo cultural urbano: ¿gentrificación o urbanismo social? Alteridades. Cidade do México, v. 18, n. 36., trata-se mais de um conceito político que visa implantar uma agenda de intervenção do que de uma ferramenta propriamente analítica. Em última medida, a categoria faz parte de uma racionalidade discursiva poderosa que tem estimulado governos, empresas e organizações no sentido de combinar políticas e estratégias de desenvolvimento urbano com o fomento das indústrias da criatividade (Alves, 2014ALVES, E. (2014). “As indústrias da criatividade e a cultura popular sertanejo-nordestina”. In: FARIAS, E.; MIRA, M. C. (orgs.). Faces contemporâneas da cultura popular. Jundiaí, Paco Editorial.). Áreas como as de cultura, entretenimento e turismo passam a ser defendidas como peças fundamentais das políticas de planejamento e desenvolvimento urbano, projetando-se um verdadeiro enlace entre políticas urbanas, políticas culturais e políticas de turismo.
Tomadas pelo processo mais amplo de expansão do lazer e já incorporando essa nova forma de racionalidade político-administrativa, diversas cidades ao redor do mundo passaram a investir inúmeros recursos materiais e simbólicos com o intuito de fomentar novas atividades no âmbito da economia da diversão e do ócio (Lipovetsky e Serroy, 2011LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. (2011). A cultura mundo. São Paulo, Companhia das Letras.). De São Francisco a Melbourne, de São Paulo a Cingapura, a aposta nos setores da cultura, do entretenimento e do turismo como alternativa para o desenvolvimento local urbano tem sido o norte de muitas instituições governamentais, privadas e da sociedade civil. Indo mais além, a economia da diversão e do ócio tem sido muitas vezes fomentada como estratégia de especialização e de inserção diferenciada na economia global, bem como nas geografias simbólicas que hierarquizam certas cidades enquanto destino turístico.
Uma estratégia amplamente utilizada nesse sentido é a criação de enormes enclaves culturais ou centros de entretenimento-turismo que funcionam como um complexo especializado no consumo cultural e turístico, reunindo equipamentos culturais, restaurantes, bares e lojas, em uma determinada via ou área da cidade, com o objetivo de atrair o maior número de pessoas e grupos interessados em oportunidades de lazer. Grande parte dos projetos de renovação de áreas urbanas – como centros históricos, portos e regiões industriais – tem sido lançada com esse intuito. Ao fim, a própria paisagem urbana é remodelada, de modo que os diversos aspectos que a estruturam são reformatados a partir da gramática do lazer, da viagem e do consumo (Freire-Medeiros, 2009FREIRE-MEDEIROS, B. (2009). Gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro, Editora FGV.).
Inspirado por esse cenário, este artigo propõe a seguinte pergunta de pesquisa: “Quais são os processos histórico-sociais que fomentam a incorporação da cultura, arte, entretenimento e turismo à lógica das políticas de renovação urbana?”.
A principal hipótese levantada é de que uma das condições desse fenômeno diz respeito à presença de uma extensa rede sociodiscursiva que, ao longo das últimas décadas, tem contribuído com a consagração social e a disseminação global da racionalidade político-discursiva que lança os chamados setores criativos enquanto estratégia de desenvolvimento urbano e como peça fundamental dos projetos de renovação urbana.
Assim, este artigo adota essa rede sociodiscursiva como objeto de estudo, focando principalmente nos processos de circulação da racionalidade político-discursiva que ela consagra. Racionalidade que Yúdice (2008)YÚDICE, G. (2008). Modelos de desarrollo cultural urbano: ¿gentrificación o urbanismo social? Alteridades. Cidade do México, v. 18, n. 36. designou como modelo de “políticas turístico-culturais de renovação urbana”.1 1 () É importante destacar que a relação entre cidades e a indústria do turismo é bem anterior ao debate sobre cidades criativas, indústrias criativas ou economia criativa e ao modelo de políticas turístico-culturais de renovação urbana. No caso da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a presença do turismo enquanto campo econômico e institucional remonta à segunda metade do século XIX (Farias, 2011). Além disso, nem todas as formas de turismo estão necessariamente conectadas às chamadas indústrias ou economias criativas. Desse modo, o conceito e as práticas do turismo que foram incorporados pelos termos “indústrias criativas” e “economia criativa”, e também pelo modelo “turístico-cultural” de renovação, dizem respeito principalmente ao turismo cultural. Um detalhamento mais aprofundado sobre turismo cultural pode ser encontrado em Craik (1997).
Delimitado o objeto, os seguintes objetivos de análise são propostos: 1) entender o contexto sociopolítico de surgimento dessa racionalidade, precisamente como parte do debate sobre o renascimento dos centros urbanos estadunidenses nos anos 1960; 2) identificar as dinâmicas de circulação internacional desse modelo político-discursivo nas décadas de 1970 e 1980, principalmente na Europa; 3) analisar o papel central desempenhado por atores como as entidades da Organização das Nações Unidas (ONU) no processo de chancelamento e disseminação dessa racionalidade; e 4) problematizar a consagração desse modelo particular enquanto um receituário universal para os problemas urbanos, econômicos e sociais de diferentes países.
Do ponto de vista metodológico, foram utilizados dois tipos de abordagem para dar conta dos objetivos propostos.
Primeiro, adotou-se o procedimento de análise de conteúdo, a saber, o exame sistemático de documentos manejados como fontes primárias ou secundárias (Babbie, 2003BABBIE, E. (2003). Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte, UFMG.). As fontes primárias – publicações oficiais de organismos internacionais, de estados estrangeiros e do Estado brasileiro; documentos elaborados por acadêmicos e consultores; publicações da mídia como um todo – foram abordadas como corpus historiográficos, ou seja, figuras materializadas da história que permitem realizar a reconstituição documentada de processos. Já as fontes secundárias – artigos, livros, dissertações e teses de cunho historiográfico, sociológico e antropológico – foram empregadas de modo a ampliar o rigor técnico da análise e suprir eventuais lacunas.
Segundo, foram realizadas visitas de campo em cidades como Rio de Janeiro, Belém, Liverpool (Inglaterra), Nova York, Baltimore e San Antonio (Estados Unidos), com o intuito de observar in loco importantes projetos turístico-culturais de renovação urbana e os respectivos contextos sociais nos quais estão inseridos, bem como coletar documentos históricos e acadêmicos ligados ao objeto de pesquisa.
Uma nova forma de pensar a renovação urbana: origens do modelo turístico-cultural
O surgimento das políticas turístico-culturais de renovação urbana remonta a um momento de transição na evolução das políticas de renovação urbana como um todo nos Estados Unidos, o que acontece entre as décadas de 1960 e 1970. Em linhas gerais, as intensas críticas que o modelo de renovação vigente até então vinha sofrendo, por parte tanto da academia quanto da população em geral, e, sobretudo, a pressão política diante da sua ineficácia em reverter os problemas urbanos para os quais tinha sido criado levaram a um longo processo de reformulação que vai ter como uma de suas consequências a criação de propostas de renovação urbana que tomam os setores da arte, cultura, entretenimento e turismo como os principais vetores de transformação e redesenvolvimento de áreas urbanas degradadas.
Os primeiros projetos de renovação urbana foram criados nos Estados Unidos ainda nos anos 1930, como uma tentativa de contenção dos efeitos deletérios da Grande Crise de 1929 sobre as cidades. Nesse primeiro momento, os projetos envolviam basicamente a demolição dos prédios e quarteirões comprometidos, seguida da construção de complexos habitacionais públicos para a população removida (Estados Unidos, 1973ESTADOS UNIDOS (1973). The Central city problem and urban renewal policy. Washington, DC, Congressional Research Service.; Weicher, 1972WEICHER, J. (1972). Urban renewal, national program for local problems. Washington, D.C., American Enterprise Institute for Public Policy Research.). Contudo, a consolidação de uma política sistemática de renovação urbana, com amplitude nacional, só acontece na segunda metade dos anos 1940, quando o governo federal promove uma série de leis e medidas, com o objetivo de reverter a situação crônica de deterioração física e abatimento socioeconômico que vinha acometendo os principais centros urbanos do país.
A primeira fase da política nacional foi caracterizada basicamente pela ampliação do modelo que já vinha sendo empregado em algumas cidades desde a Crise de 1929. Ou seja, mais demolições de edifícios e quarteirões deteriorados, com posterior construção de complexos habitacionais públicos para as famílias removidas. A legislação que ancorou essa primeira fase, a “Lei de Habitação de 1949” (Housing Act of 1949), previa a destinação de vultosas quantias de recursos federais para programas de “remoção de favelas” associados a iniciativas de renovação urbana, além da ampliação dos recursos federais voltados para a construção de moradias públicas (Estados Unidos, 1973ESTADOS UNIDOS (1973). The Central city problem and urban renewal policy. Washington, DC, Congressional Research Service.; Weicher, 1972WEICHER, J. (1972). Urban renewal, national program for local problems. Washington, D.C., American Enterprise Institute for Public Policy Research.). Com a ajuda desses aportes financeiros, governos locais e grupos de empresários promoveram uma onda de demolição de edifícios e até mesmo de quarteirões inteiros nas regiões centrais das principais cidades do país. Contudo, inúmeras demolições foram realizadas antes da construção dos complexos habitacionais públicos que receberiam as famílias removidas, deixando milhares de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade e, como consequência, gerando uma série de manifestações contrárias à política.
Ao longo das décadas de 1950 e 1960, um intenso debate público sobre o tema tomou conta do país. Por um lado, acadêmicos e líderes de movimentos sociais alegavam que a política de renovação urbana era responsável pelo deslocamento à força de comunidades inteiras, apresentando um caráter extremamente autoritário e desintegrador. A partir dessa crítica, uma visão de renovação com enfoque social e comunitário começa a ser construída nos Estados Unidos (Isenberg, 2017ISENBERG, A. (2017). Designing San Francisco: art, land, and urban renewal in the city by the bay. Princeton, Princeton University Press.; Zipp, 2010ZIPP, S. (2010). Manhattan projects: the rise and fall of urban renewal in cold war New York. Oxford, Oxford University Press.). Por outro lado, empresários e políticos defendiam que as remoções e demolições, combinadas com programas de habitação, eram necessárias para evitar que os centros urbanos se tornassem “guetos” abandonados à própria sorte.
O resultado desse debate marca o início da segunda fase da política de renovação urbana norte-americana que, na virada da década de 1950 para 1960, passa a ser caracterizada – pelo menos do ponto de vista do Estado – por uma forte preocupação com a melhoria das condições de vida da população mais pobre atingida, tanto pelo processo de deterioração dos centros quanto pelos subsequentes programas de demolição. Dessa forma, a legislação que fundamenta essa segunda fase, a “Lei de Habitação e Desenvolvimento Urbano de 1965” (Housing and Urban Development Act of 1965), passa a prescrever a construção de casas de baixo e médio custo, a prestação de serviços sociais, a participação política e a integração da comunidade e, principalmente, o imperativo de que os novos complexos habitacionais fossem construídos antes da realização das remoções e demolições. Nesse sentido, a nova legislação procurava contemplar as perspectivas dos dois grupos que se confrontaram durante o debate da década de 1950 (Estados Unidos, 1973ESTADOS UNIDOS (1973). The Central city problem and urban renewal policy. Washington, DC, Congressional Research Service.).
Contudo, na prática, muitos projetos de renovação de centros urbanos e zonas portuárias tomaram uma direção totalmente apartada dos propósitos sociais e econômicos almejados pela legislação de 1965. Um número considerável de projetos foi realizado com o objetivo de construir condomínios residenciais de luxo nas regiões centrais da cidade e viabilizar “atividades não residenciais”, como comércio, escritórios, atrações culturais, turísticas e de entretenimento. Nos anos que seguem, esse tipo de prática vai se confirmar como o modelo dominante.
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pela ascensão de uma nova forma de compreensão no âmbito da política e do próprio Estado norte-americano: a perspectiva neoliberal. Enquanto uma forma de compreensão do mundo que procura descrever, avaliar e propor as maneiras pelas quais a sociedade, o Estado e a economia devem se relacionar, essa perspectiva se distingue principalmente pelo axioma de que o Estado, como entidade coletiva, deve reduzir ao máximo seu raio de ação, com o intuito de preservar as liberdades individuais e sua capacidade de autorregulação por meio do mercado (Boas e Gans-Morse, 2009BOAS, T. C.; GANS-MORSE, J. (2009). Neoliberalism: from new liberal philosophy to anti-liberal slogan. Studies in Comparative International Development. Nova York, v. 44, n. 2, pp. 137–161.).
Uma das principais repercussões da perspectiva neoliberal sobre a gestão das cidades diz respeito à reorientação do planejamento centralizado pelo Estado para o chamado “planejamento estratégico”. Essa metodologia criada no contexto administrativo de grandes corporações privadas passa a ser defendida como uma técnica de governança urbana na década de 1970. A justificativa para tal era de que o setor público e as cidades estavam diante de um novo ambiente global, marcado por mudanças e incertezas, e que, para se adequar ao novo cenário, era preciso seguir o exemplo das grandes empresas que já vinham passando por uma “revolução administrativa” com esse propósito (Lima Júnior, 2003).
Assim, a principal missão da gestão urbana seria justamente capacitar as cidades para a competição ou, em outras palavras, melhorar a sua competitividade e produtividade através de investimentos em inovação, autonomia administrativa e capacidade de negociação com parceiros públicos e privados. Desse modo, os governos locais precisavam renovar os seus instrumentos de gestão, os princípios de suas políticas urbanas, bem como as próprias instituições, e o planejamento estratégico seria o melhor recurso disponível nesse sentido.
No âmbito das políticas de renovação, esse olhar economicista altera os termos de avaliação e execução em jogo, de modo que agora os projetos de renovação urbana precisam justificar sua existência de acordo com novos objetivos: aumento da competitividade, capacidade de inovação e diversificação da economia da cidade; potencial para construção de uma imagem-marca e, consequentemente, poder de marketing para atrair novos investidores e turistas. Em suma, seu potencial para diferenciar a cidade dentro do mercado local, regional ou global (Bianchini e Parkinson, 1993BIANCHINI, F.; PARKINSON, M. (1993). Cultural policy and urban regeneration: the West European experience. Manchester, Manchester University Press.; Smith e Ferrari, 2012SMITH, H.; FERRARI, M. (2012). Waterfront Regeneration Experiences in City-building. Londres, Routledge.).
Na prática, o que se viu naquele momento em diversas partes dos Estados Unidos foi o esvaziamento dos programas de habitação e serviços sociais e a criação de todo tipo de incentivo para que desenvolvedores privados levassem adiante seus próprios projetos de renovação. Os fundos federais financiaram um verdadeiro boom na construção de estádios, hotéis, centros de convenções e distritos de entretenimento por todo o país (Cowan, 2016COWAN, A. (2016). Nice place to visit tourism and urban revitalization in the postwar Rustbelt. Philadelphia, Temple University Press.).
É nesse contexto histórico-social que a racionalidade discursiva das políticas turístico-culturais de renovação urbana ganha relevo.
Ainda na primeira metade da década de 1970, alguns governos locais e estaduais norte-americanos lançam esforços no sentido de mensurar a contribuição das artes e da cultura para a economia, com foco, sobretudo, no desenvolvimento das cidades.2 2 () Os estudos encontrados e analisados foram: 1) As artes, uma prioridade para investimento: relatório da Força Tarefa em Artes & Humanidades do Governador (Massachusetts, 1973; 2) Relatório do Comitê do Prefeito para Política Cultural (Nova York, 1974; 3) Uma introdução à economia das organizações culturais da Filadélfia: descobertas de um estudo sobre impacto econômico (Greater Philadelphia Cultural Alliance, 1975); e 4) As artes na Washington metropolitana: alguns dados preliminares sobre economia, finanças e organização (Washington Regional Arts Project, 1975).
De forma geral, os estudos desenvolvidos se propunham a avaliar a situação das instituições artístico-culturais em determinados territórios, apontando para a necessidade de apoio e financiamento por parte do Estado com base no argumento de que essas instituições não só produziam benefícios educacionais, sociais e culturais, mas também importantes benefícios econômicos e fiscais (Massachusetts, 1973MASSACHUSETTS (1973). The arts, a priority for investment: the report of the Governor's Task Forces on the Arts & Humanities. Washington, D.C., National Conference of State Legislatures.; Nova York, 1974NOVA YORK (1974). Report of the mayor's committee on cultural policy. Nova York, The Committee.; Greater Philadelphia Cultural Alliance, 1975GREATER PHILADELPHIA CULTURAL ALLIANCE (1975). An introduction to the economics of Philadelphia's cultural organizations: findings of an economic impact survey. Philadelphia, GPCA.; Washington Regional Arts Project, 1975WASHINGTON REGIONAL ARTS PROJECT (1975). The arts in metropolitan Washington: some preliminary data on economics, financing, and organization. Washington D.C.).
A importância histórica desses estudos reside no fato de que eles inauguram o processo de oficialização da maneira de pensar que está na base do modelo: atividades e instituições ligadas às artes e cultura podem desempenhar papel estratégico na retomada da vitalidade econômica de uma determinada área ou cidade.
Tendo falhado largamente no objetivo de atrair norte-americanos afortunados a viverem na cidade, os líderes do redesenvolvimento urbano esperavam convencê-los a se divertir lá. O turismo parecia oferecer a oportunidade de preencher as múltiplas necessidades dos planejadores de renovação de centros urbanos: ele trazia gente – mais especificamente, gente com renda disponível – de volta para o centro, estimulava empreendimentos imobiliários que poderiam aumentar a arrecadação de impostos e proviam um motivo para grandes projetos de construção como centros de convenções, hotéis e estádios que poderiam, em uma única tacada, eliminar acres de zonas deterioradas da cidade e substituí-los por novas vitrines brilhantes. Além disso, porque esses projetos pretendiam ser vistos e visitados por turistas, eles provinham um símbolo de marketing potente da prosperidade econômica e cultural da cidade. (Cowan, 2016COWAN, A. (2016). Nice place to visit tourism and urban revitalization in the postwar Rustbelt. Philadelphia, Temple University Press., p. 32; tradução nossa)
Dos anos 1970 para 1980, esse raciocínio vai sair das esferas locais e estaduais para ocupar o espaço privilegiado das comissões legislativas e executivas federais, determinando cada vez mais a forma como a política nacional de renovação urbana seria pensada e executada a partir de então. Ao longo desse processo, houve um deslocamento das formas oficiais de pensamento e ação dedicadas ao espaço urbano, que passaram de uma imagem pautada na moradia, no trabalho e na produção industrial para uma imagem pautada no turismo, no lazer e no consumo artístico-cultural (Couto, 2019COUTO, B. (2019). A reinvenção do espaço urbano a partir da cultura e do entretenimento-turismo: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.).
Gradualmente, as intervenções de renovação urbana vão sendo redirecionadas para a finalidade de transformar centros e portos em espaços de consumo com foco em turismo e entretenimento, voltados para “visitantes” da classe média suburbana ou para turistas vindos de outras regiões e países.
O impacto desse fenômeno será enorme, considerada a posição central ocupada pelos Estados Unidos na arena global. Pouco a pouco, essa nova forma de pensar as políticas urbanas vai se disseminar pelo mundo. Como será detalhado no próximo tópico, a experiência norte-americana dos anos 1960 e 1970 vai ter influência direta sobre os debates e as opções políticas que outros países – sobretudo, os europeus – irão promover nas décadas seguintes.
A circulação transoceânica do modelo turístico-cultural de renovação urbana
Provavelmente por conta das proximidades acadêmicas, políticas e ideológicas entre os EUA e o Reino Unido (bem como do alinhamento entre as gestões Ronald Reagan e Margaret Thatcher), este foi o primeiro país europeu a adotar a perspectiva recém-criada pelos estadunidenses, implementando um modelo de política urbana integralmente voltada para a promoção de desenvolvimento econômico local através de grandes projetos da iniciativa privada. Já, no ano de 1981, a zona portuária de Londres vai vivenciar a execução de um dos maiores projetos de renovação urbana do mundo, Docklands, complexo de arranha-céus totalmente concebido, coordenado e financiado pela iniciativa privada (Edwards, 1992EDWARDS, B. (1992). London docklands: urban design in an age of deregulation. Oxford, Butterworth Architecture.).
Poucos anos depois, o exemplo norte-americano também vai se espalhar para outros países do continente, levando antigas cidades industriais e portuárias, como Rotterdam, na Holanda, e Bilbao, na Espanha, a adotar grandes projetos urbanos de cunho artístico-cultural como eixo de suas políticas de redesenvolvimento – praticamente nos mesmos moldes do que fora feito uma década antes em Baltimore, Nova York e São Francisco.
Lideranças urbanas na Europa ocidental, assim como seus companheiros norte-americanos haviam feito nos anos 1970, estimularam o desenvolvimento de políticas culturais com o intuito de melhorar a reputação de suas cidades, auxiliar a regeneração física dos centros urbanos, expandir o turismo e outras indústrias de serviço emergentes, além de ajudar a gerar consenso local em um período de mudanças sociais e econômicas. (Bianchini e Parkinson, 1993BIANCHINI, F.; PARKINSON, M. (1993). Cultural policy and urban regeneration: the West European experience. Manchester, Manchester University Press., p. 208; tradução nossa)
Por mais que, no caso europeu, os contextos e formas de implementação do novo modelo tenham sido extremamente diversos, o fato é que a fórmula que combina cultura e renovação urbana definitivamente foi importada da experiência estadunidense dos anos 1970. Em linhas gerais, ela chega e se dissemina pela Europa através de ações de cooperação intergovernamental e da atuação de agências interestatais que, em última medida, acabam conformando redes de criação e transmissão de conhecimento, responsáveis pela manutenção de um tráfego transoceânico de modelos em políticas públicas (Couto, 2019COUTO, B. (2019). A reinvenção do espaço urbano a partir da cultura e do entretenimento-turismo: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.).
Ao que tudo indica, foram as próprias organizações norte-americanas que iniciaram o processo de disseminação da nova visão pelo continente europeu, realizando conferências e encontros em cidades europeias com o intuito de mostrar, para suas lideranças, como elas poderiam “aprender com a experiência estadunidense e começar a explorar efetivamente o potencial de seus recursos culturais para conduzir projetos de regeneração urbana” (Bianchini e Parkinson, 1993BIANCHINI, F.; PARKINSON, M. (1993). Cultural policy and urban regeneration: the West European experience. Manchester, Manchester University Press., p. 1). Contudo, muito rapidamente as próprias organizações europeias também assumiram essa missão:
[...] alguns planejadores e políticos começaram a olhar para o outro lado do Atlântico. Pois, em fins dos anos 1970, segundo a sonora mensagem que vinha dessas bandas, as cidades norte-americanas haviam encontrado uma fórmula mágica. Numa típica reunião anglo-americana de alto nível, o inglês sisudo projetaria slides, mostrando a árida desolação da Liverpool intraurbana; já os exuberantes norte-americanos viriam com fotos de um vibrante centro comercial de Boston, cheio de vida, cor e excitação. (Hall, 1995HALL, P. (1995). Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva., p. 412)
No Reino Unido, a Associação para as Artes Britânica e Americana (British and American Arts Association) realizou uma importante conferência sobre o tema na cidade de Glasgow no fim de 1988, lançando, em 1989, a publicação “Artes e a cidade em transformação: uma agenda para a regeneração urbana”. O documento, de caráter explicitamente panfletário, afirma que a iniciativa nasceu do interesse britânico pelas histórias de sucesso de regeneração de cidades nos EUA e que seu principal objetivo é construir redes de cooperação entre líderes britânicos e norte-americanos para a promoção do papel das artes nas políticas de renovação urbana (British and American Arts Association, 1989BRITISH AND AMERICAN ARTS ASSOCIATION (1989). Arts and the changing city: an agenda for urban regeneration. Londres, British and American Arts Association., p. 9).
As artes chegam aonde outros setores não conseguem: esse fato aparece repetidas vezes ao longo deste livro. Mas elas também podem desempenhar uma parte importante na economia local [...]. As indústrias culturais são um setor econômico em crescimento [...] elas permitem que uma comunidade engaje em atividades que reforçam sua identidade e que fazem sentido economicamente: são comercialmente viáveis, ajudam a criar empregos e oferecem treinamento profissional. (Ibid., p. 10; tradução nossa)
Já no continente europeu, um dos núcleos mais importantes dessa rede foi a Comissão Europeia, órgão executivo da União Europeia. Na virada da década de 1980 para 1990, a Comissão também patrocinou a realização de conferências e encontros com os mesmos objetivos daqueles realizados pelos norte-americanos e britânicos (Bianchini e Parkinson, 1993BIANCHINI, F.; PARKINSON, M. (1993). Cultural policy and urban regeneration: the West European experience. Manchester, Manchester University Press.). A partir dos anos 2000, essa função passa a ser desempenhada pela Organização das Nações Unidas, sobretudo, pela entidade para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco. Através de uma agenda que propõe a aliança entre cultura e desenvolvimento, a Unesco vai desempenhar papel central na propagação do modelo turístico-cultural de renovação pela Europa e por outros continentes (Alves, 2010ALVES, E. (2010). Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. Sociedade e Estado. Brasília, v. 25, n. 3, pp. 539-560.; Alves e Couto, 2019ALVES, E.; COUTO, B. (2019). “Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 18, n. 41, pp. 328-359.).
Em resumo, essas organizações atuaram como um ambiente socioinstitucional fortemente empenhado na circulação de ideias e modelos para políticas públicas, contribuindo com a consagração/disseminação internacional da perspectiva turístico-cultural forjada no âmbito da política urbana norte-americana.
É importante reforçar que, no caso europeu, as motivações políticas e as formas de realização desse novo modelo foram bem mais diversas do que nos EUA, tendo sido influenciadas pela história, política e geografia local e regional de cada cidade e país. Muitas vezes, o contexto político de sua implementação correspondeu ao oposto do norte-americano, sendo marcado por tendências de democratização e fortalecimento de movimentos culturais e sociais, além de agendas que envolviam a melhoria do elemento público da cidade e até mesmo a extensão do estado de bem-estar social (Smith e Ferrari, 2012SMITH, H.; FERRARI, M. (2012). Waterfront Regeneration Experiences in City-building. Londres, Routledge.).
Um dos casos mais emblemáticos na experiência europeia foi o da cidade de Barcelona, na Espanha, cujas áreas centrais e zona portuária passaram por processos de reestruturação dos anos 1980 até os anos 2000. Se Boston e Baltimore foram os ícones da fase turístico-cultural de renovação urbana nos EUA, Barcelona exerceu a mesma posição enquanto modelo de sucesso na Europa e, posteriormente, no mundo (González, 2011GONZÁLEZ, S. (2011). Bilbao and Barcelona “in Motion”. How urban regeneration “models” travel and mutate in the global flows of policy tourism. Urban Studies, v. 48, n. 7, pp. 1397-1418.).
A experiência de Barcelona, principalmente no que diz respeito ao uso bem-sucedido de um megaevento esportivo (Olimpíadas de Verão de 1992) como catalisador de projetos de renovação urbana, foi sistematicamente referendada pelas principais redes globais de discussão e construção de políticas públicas para cidades, como a Eurocities, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos e o Banco Mundial (ibid.).
É preciso ter em conta que a consagração da experiência de Barcelona como um modelo internacional não se deu espontaneamente, mas foi fruto de um intenso trabalho de políticos e de acadêmicos catalães no sentido de divulgar e exportar as perspectivas e os programas urbanísticos que haviam sido implementados na cidade como um caso de sucesso a ser seguido, contribuindo, assim, para a própria renovação da imagem e da posição de Barcelona na Europa e no mundo (Vainer, 2000VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria: planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, O. (org.). A cidade de pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes.).
Em estudo sobre visitantes que vão até a cidade catalã especificamente para aprender sobre os projetos de renovação, González estima que uma média de 270 grupos desse tipo visitou a cidade por ano, entre 2001 e 2008. O que dá uma média de uma delegação estrangeira na cidade para cada dia útil do ano (González, 2011GONZÁLEZ, S. (2011). Bilbao and Barcelona “in Motion”. How urban regeneration “models” travel and mutate in the global flows of policy tourism. Urban Studies, v. 48, n. 7, pp. 1397-1418., p. 1404). Segundo a autora, esses grupos eram em grande parte originários da própria Europa, América Latina e Leste Asiático (ibid.). Tratava-se de arquitetos, planejadores urbanos, empresários e prefeitos interessados nos mais diversos temas, como organização de megaeventos, desenvolvimento econômico, parcerias público-privadas, etc.
Por um lado, milhares de profissionais da área de planejamento visitam essas duas cidades (Barcelona e Bilbao) para aprender a partir de seus projetos de renovação, o que sugere que existe um consenso transnacional no “que deve ser feito” em termos de política urbana. Por outro lado, a mensagem não é uniforme e passa por mutações ao longo do processo de circulação, o que não reflete a tese de uma convergência global unidirecional. (Ibid., p. 1411; tradução nossa)
Por mais que o contexto político e histórico que dá início ao processo de renovação na cidade e que os próprios projetos dos anos 1980 fossem extremamente diferentes dos congêneres norte-americanos, o fato é que Barcelona ficou mundialmente conhecida pela aplicação de um receituário muito semelhante: a realização de eventos esportivos e de entretenimento e a efetivação de intervenções na infraestrutura turístico-cultural da cidade como um meio de recuperar o desenvolvimento econômico local.
Isso fica ainda mais evidente nos achados da pesquisa de González. Os elementos mais populares dos projetos de Barcelona e Bilbao para os turistas de políticas públicas e para as redes de difusão de conhecimento são justamente aqueles “identificados pela literatura como parte de uma tendência de urbanismo neoliberal”: autoridades locais e sua função empreendedora; semiprivatização de instituições públicas para torná-las mais similares e colaborativas com o setor privado; marketing e publicidade voltados para as paisagens das cidades dentre outros. “Questões sociais e de política social, apesar de serem importantes em ambas as cidades – e aparecerem nos documentos oficiais e de publicidade – são muito pouco abordadas” (ibid., p. 1413; tradução nossa).
Ou seja, independentemente de todas as nuances de um longo processo de renovação, a imagem de Barcelona que se espalha e influencia os demais países é uma versão estereotipada. Como pontuado por González, parece haver um consenso internacional bastante enraizado no âmbito das políticas turístico-culturais de renovação e desenvolvimento urbano. Há algumas décadas, os mesmos tipos de intervenção e as mesmas cidades-modelo atraem a atenção de milhares de políticos, planejadores, empresários de diferentes países.
É importante sublinhar que, desde o seu período de gestação nos anos 1960 até os dias atuais, o modelo turístico-cultural de renovação urbana tem sofrido inúmeras críticas por parte de especialistas (Weicher, 1972WEICHER, J. (1972). Urban renewal, national program for local problems. Washington, D.C., American Enterprise Institute for Public Policy Research.). Ainda assim, esse modelo continua sendo reiterado e difundido como uma peça-chave da agenda internacional para cidades e políticas urbanas, o que viabiliza a sua consolidação como uma racionalidade político-administrativa cada vez mais generalizada e naturalizada.
A rede internacional das políticas turístico-culturais de renovação urbana
Nesse contexto, a ONU tem desempenhado um papel crucial ao atuar sistematicamente como um dos principais fiadores do modelo no âmbito das redes transnacionais de circulação de ideias e referências para políticas públicas. Desde o fim da década de 1980, as entidades do sistema, com destaque para a Unesco, têm o divulgado e defendido como parte de um repertório discursivo mais amplo que procura conciliar cultura e desenvolvimento (Alves, 2011ALVES, E. (2011). A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió, Edufal.). Através de todo um conjunto de orientações técnicas e normativas para elaboração, execução e avaliação de políticas, programas de capacitação profissional, projetos de campo, fundos de assistência financeira e, sobretudo, convenções que criam compromissos jurídicos entre os países signatários, a ONU contribui de forma decisiva para a consagração internacional do modelo turístico-cultural e, sobretudo, para o seu enraizamento na pauta de governos nacionais, regionais e locais pelo mundo todo (Alves, 2010ALVES, E. (2010). Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. Sociedade e Estado. Brasília, v. 25, n. 3, pp. 539-560.; Alves, 2011ALVES, E. (2011). A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió, Edufal.; Alves e Couto, 2019ALVES, E.; COUTO, B. (2019). “Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 18, n. 41, pp. 328-359.).
Segundo Alves (2011)ALVES, E. (2011). A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió, Edufal., a tentativa de conciliação entre os conceitos de cultura e desenvolvimento no âmbito do repertório discursivo da ONU foi iniciada na década de 1980 como um esforço das elites intelectuais nacionais e transnacionais, no sentido de criar uma malha conceitual – e, posteriormente, jurídica – capaz de dar conta dos processos sociais contemporâneos de expansão da produção e do consumo simbólico-cultural e, principalmente, de oferecer soluções ou medidas que pudessem dirimir as muitas tensões e antagonismos envolvidos.
Por um lado, havia uma enorme preocupação com relação à ameaça de homogeneização cultural advinda da intensa expansão da produção norte-americana por diferentes territórios. Por outro lado, também havia o reconhecimento de que indivíduos e grupos detinham o direito tanto de conservar a sua própria cultura, como de transformá-la, podendo, assim, reivindicar acesso aos diversos meios de produção e fruição cultural existentes.
Dessa forma, boa parte do trabalho jurídico-intelectual esteve concentrado no propósito de alinhar os objetivos de desenvolvimento material e combate às desigualdades sociais através da geração de emprego e renda promovida por meio da cultura enquanto setor econômico, com o imperativo ético e político de proteção e promoção da diversidade cultural e dos direitos culturais dos povos (ibid., p. 241).
Dentro desse processo de dilatação do binômio cultura-desenvolvimento, o modelo turístico-cultural de renovação e desenvolvimento urbano vai encontrar um ambiente discursivo e institucional extremamente propício para a sua reprodução. Ainda que as entidades do sistema ONU possuam um quadro de técnicos e consultores extremamente heterogêneo, sensível aos problemas que vêm sendo denunciados há décadas por acadêmicos e ativistas, e que sua visão de desenvolvimento urbano seja extremamente abrangente, salta aos olhos o modo sistemático e continuado pelo qual elas recomendaram – e ainda recomendam – o modelo turístico-cultural.
Como ficará claro nos próximos parágrafos, a perspectiva que aparece em repetidas publicações e normativas da ONU é inequívoca, sendo extremamente parecida com a que foi desenvolvida nos EUA ainda na década de 1970.
A partir de 1996, no âmbito do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), a ONU passa a defender o imperativo de que as cidades precisavam se preparar para enfrentar os novos desafios do mundo globalizado, ressaltando a importância de que os governos locais estimulassem a competitividade e a produtividade através de políticas de inovação, conectividade e flexibilidade institucional (Borja e Castells, 1997BORJA, J.; CASTELLS, M. (1997). Local and global: the management of cities in the information age. Londres, Routledge.). Tomando o modelo de Barcelona como referência, na ocasião, a ONU aponta para o caráter estratégico de projetos urbanos de larga escala e dos setores do entretenimento e do turismo como ferramentas para alavancar a posição das cidades em um contexto de competição (ibid.). Esse posicionamento representa um dos pontos de inflexão que levaram o organismo internacional a divulgar e defender o modelo turístico-cultural de renovação urbana.
Alguns anos mais tarde, em 2004, a Unesco instituiu a rede de cooperação “Cidades Criativas”, fórum através do qual diferentes cidades do mundo se reuniram com o intuito de compartilhar ideias e experiências que pavimentariam a consolidação da cultura e da criatividade como os principais vetores do desenvolvimento urbano local (Unesco, 2004, p. 1). A rede, que conta atualmente com 180 cidades de 72 países diferentes, realiza encontros anuais, planos de ação, pesquisas, estudos de caso, dentre outras atividades, com o objetivo final de “promover as indústrias culturais e da criatividade, fortalecer a participação cidadã na vida cultural e integrar a cultura nos planos de desenvolvimento urbano” (Unesco, 2016a, p. 6). Como contrapartida à sua entrada, cada cidade-membro compromete-se a compartilhar suas melhores práticas, construir parcerias com as demais cidades e, principalmente, “posicionar as indústrias culturais e da criatividade no centro de seus planos de desenvolvimento local” (ibid.). De acordo com o comunicado “Redes de Cidades Criativas” (Creative Cities Network/Réseau Des Villes Créatives), publicado pela Unesco em 2016, a cultura e a criatividade cumprem um papel decisivo na conquista do desenvolvimento urbano sustentável:
Elas contribuem com a diversificação da economia e com a geração de empregos, enquanto também promovem a qualidade de vida dos cidadãos ao contribuir com a fábrica social da cidade e com sua diversidade cultural, além de ajudarem a definir as identidades compartilhadas. Similarmente, ao promover a participação cultural e ao gerar ou revitalizar espaços públicos vivos, a criatividade também se torna um vetor de inclusão e de bem-estar. As cidades estão no centro desses processos de desenvolvimento baseados no potencial da cultura e da criatividade. (Ibid.; tradução nossa)
Em 2011, o relatório do diretor-geral da Unesco intitulado Cultura e desenvolvimento corroborou essa perspectiva, ao definir a cultura como um princípio transversal dos objetivos de desenvolvimento e como um vetor de desenvolvimento “por direito próprio” (Unesco, 2011UNESCO (2011). Culture and development: report of the Director-General of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Paris, Unesco., p. 4).
Mais recentemente, à medida que o repertório discursivo do sistema ONU se desloca para o conceito de “desenvolvimento sustentável”, essa tendência tem sido reforçada pelo fato de que a cultura e a criatividade passaram a ser apresentadas como uma alternativa para uma forma mais abrangente e inclusiva de desenvolvimento. No relatório de 2014, intitulado Cultura e desenvolvimento sustentável, o diretor-geral da Unesco afirmou que a Assembleia Geral “reconhece as contribuições da cultura tanto como facilitadora quanto como promotora das dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável” (Unesco, 2014, p. 4). No documento, após a apresentação de dezenas de motivos pelos quais a cultura deveria ser reconhecida como uma alternativa estratégica para o desenvolvimento econômico e a erradicação da pobreza, o diretor-geral afirmou que:
O patrimônio cultural e as indústrias criativas deveriam formar um recurso estratégico para o desenvolvimento local e, promovendo a regeneração de centros históricos e a conservação e o reuso adaptativo dos recursos do seu patrimônio cultural, poderiam melhorar as condições de vida das áreas urbanas. (Ibid., p. 17; tradução nossa)
Em 2016, o relatório da Unesco intitulado Cultura, Futuro das Cidades – publicado no âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável –, defendeu a importância da cultura em todos os níveis do desenvolvimento urbano como: 1) um recurso-chave, na medida em que constitui um setor econômico relevante; 2) um meio de atrair cidadãos e visitantes interessados em aproveitar a riqueza cultural da cidade; 3) um atrativo para investimentos de instituições públicas e privadas; 4) além de uma forma de socializar os valores artísticos incorporados nas tradições da cidade e ajudar a definir a sua identidade (Unesco, 2016b, p. 19).
“Nenhuma cidade pode ser bem-sucedida sem essa dimensão cultural, e isso se tornará mais aparente no futuro, quando a demanda por bens e serviços culturais se expandir, particularmente nas economias emergentes” (ibid.; tradução nossa). Ao fim, o relatório convoca as autoridades nacionais e locais a redesenharem suas políticas públicas, a partir desse novo entendimento de que a cultura pode e deve atuar como importante fonte de desenvolvimento econômico e social local.
A cultura está no centro da renovação urbana e inovação. Esse relatório apresenta insights e evidências concretas mostrando o poder da cultura como um recurso estratégico para a criação de cidades mais inclusivas, criativas e sustentáveis. Criatividade e diversidade cultural são os vetores centrais do sucesso urbano [...]. Essa reflexão tem sido a base do trabalho da Unesco nas últimas décadas, notavelmente através do desenvolvimento de programas como a Rede de Cidades Criativas, as iniciativas das Cidades Inteligentes e a proteção de paisagens urbanas históricas. Essa visão recebeu nova energia com o reconhecimento do papel da cultura enquanto facilitadora do desenvolvimento sustentável e como uma das condições-chave para atingir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n. 11: “Tornar as cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. (Ibid., p. 5; tradução nossa)
Assim, na medida em que se constituem como fóruns internacionais de formulação e debate sobre políticas públicas nas mais diversas áreas, a Unesco e as demais entidades do sistema ONU, ao defenderem reiteradamente o caráter estratégico da cultura enquanto propulsor do desenvolvimento econômico e urbano, contribuíram com a legitimação e a propagação internacional do modelo turístico-cultural. Em última instância, ele passa a compor um código mais amplo, a partir do qual algumas ideias são vistas como legítimas, possíveis e, logo, executáveis, enquanto outras são descartadas e esquecidas (González, 2011GONZÁLEZ, S. (2011). Bilbao and Barcelona “in Motion”. How urban regeneration “models” travel and mutate in the global flows of policy tourism. Urban Studies, v. 48, n. 7, pp. 1397-1418.).
Além do mais, como argumenta Alves (2011ALVES, E. (2011). A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió, Edufal., p. 209), o repertório discursivo da Unesco e do sistema ONU, formado a partir da conciliação entre cultura e desenvolvimento, configura uma nova formação discursiva que, como tal, instaura um novo sistema de práticas acompanhado de novos recursos de poder. Dessa forma, enquanto parte desse repertório, o modelo turístico-cultural também passa a ser incorporado como uma referência naturalizada de ações e práticas de governança, financiamento, orientação e normatização, seja dos próprios organismos internacionais, seja de governos nacionais ou locais. Em suma, o sistema ONU atua como um dos mais importantes núcleos da complexa rede socioinstitucional através da qual essa nova visão de política urbana se efetiva e se dissemina (Couto, 2019COUTO, B. (2019). A reinvenção do espaço urbano a partir da cultura e do entretenimento-turismo: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.).
A atuação dessa rede de formulação e propagação de ideias e modelos em políticas públicas, liderada por organismos internacionais como a ONU, o Banco Mundial ou a União Europeia – mas dinamicamente sustentada por acadêmicos, consultores, servidores públicos, políticos e empresários em diversos países –, foi imprescindível para a consolidação dessa nova forma de pensar as relações entre as cidades, as artes, a cultura e o turismo.
Como observado por Lima Júnior, esses novos modelos na área de política urbana e econômica, ratificados com o selo de organismos internacionais, são antes de tudo representações sociais que alcançaram “realidade objetiva, sendo incorporadas em estudos, planos, novos arranjos e espaços institucionais, intervenções físicas, enfim, elementos objetivos que contribuem para consolidar uma determinada visão do mundo social” (Lima Júnior, 2003, p. 148).
Na perspectiva de Bourdieu e Wacquant, trata-se da circulação planetária de ideias e de modelos que surgem em meio às particularidades da sociedade e do Estado norte-americano e que, por meio de congressos, livros e informes, acabam sendo disseminados como critérios “sem história”, aparentemente universais (Bourdieu e Wacquant, 2005, p. 209). Lugares comuns que são sistematicamente divulgados e reiterados por canais supostamente neutros, como os organismos internacionais, conformando uma espécie de senso comum universal, que desenraiza as particularidades daquela sociedade e a transforma em um modelo tácito.
[...] o remodelamento das relações sociais e das práticas culturais nas sociedades avançadas segundo o padrão norte-americano [...] é hoje aceito com resignação como desdobramento inevitável das evoluções nacionais, quando não é celebrado com um entusiasmo manso que lembra o entusiasmo pelos Estados Unidos suscitado, há meio século, pelo plano Marshall em uma Europa devastada. (Ibid., p. 211)
Uma nova semântica: cidades, criatividade e economia
As pesquisas desenvolvidas por Alves e Yúdice apontam para o esforço contínuo dessa mesma rede de atores no sentido de disseminar um programa tanto econômico quanto sociopolítico, sintetizado na retórica da “economia cultural” e das “indústrias criativas”, que tem como cerne a defesa do caráter estratégico da arte e da cultura, seja como uma alternativa para estimular o crescimento econômico e o desenvolvimento urbano, seja como um instrumento para melhoria das condições sociais através da promoção da cidadania cultural e dos direitos culturais (Alves, 2011; Yúdice, 2013YÚDICE, G. (2013). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, Editora UFMG.; Alves e Couto, 2019ALVES, E.; COUTO, B. (2019). “Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 18, n. 41, pp. 328-359.).
A arte se dobrou inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver problemas, inclusive o de criação de empregos. Seu objetivo é auxiliar na redução das despesas e, ao mesmo tempo, ajudar a manter o nível da intervenção estatal para a estabilidade do capitalismo. Uma vez que todos os atores da esfera cultural se prenderam a essa estratégia, a cultura não é mais experimentada, valorizada ou compreendida enquanto transcendente. E enquanto for esse o caso, os apelos à cultura não estarão mais ligados a essa estratégia. (Yúdice, 2013YÚDICE, G. (2013). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, Editora UFMG., p. 29)
Ou seja, trata-se de um processo de internacionalização de uma nova semântica que altera os conceitos de criatividade, arte e cultura, bem como o entendimento das suas relações, seja com a cidade, seja com a economia.
Com base nessa nova semântica, a criatividade humana e a cultura são percebidas cada vez menos como práticas ligadas a aspectos sublimes e transcendentais do humano e cada vez mais como recursos a serem instrumentalizados com vistas a razões econômicas e/ou sociais (ibid.).
Como ironicamente ressaltado por Yúdice, os administradores globais “descobriram” a criatividade e a cultura como instrumentos capazes de contribuir simultaneamente para o fortalecimento da sociedade civil, para o desenvolvimento político e econômico dos estados-nacionais e até mesmo para a conservação da biodiversidade do planeta (ibid.). Contudo a contrapartida dessa operação quimérica é que as instituições governamentais e privadas recorrem cada vez mais à medida da utilidade como única forma de legitimação de projetos, intervenções ou investimentos nessa área. “‘A cultura pela cultura’, seja lá o que isso represente, nunca receberá fomentos a não ser que possa oferecer uma forma indireta de retorno” (ibid., p. 33).
O setor das artes e da cultura alega que pode resolver os problemas dos Estados Unidos: melhorar a educação, abrandar a rixa racial, ajudar a reverter a deterioração urbana através do turismo cultural, criar empregos, diminuir a criminalidade, e talvez até tirar algum lucro. Essa reorientação das artes está sendo realizada por seus administradores. Assim como nos casos clássicos da governamentalidade em que há total subordinação dos técnicos aos administradores [...], os artistas estão sendo levados a gerenciar o social. (Ibid., p. 30)
Não é coincidência que essa perspectiva tenha sido formulada justamente em um período de redução drástica do papel do Estado nos EUA, com queda acentuada no volume de recursos públicos distribuídos para as áreas ditas sociais. Nesse contexto, os ideólogos do neoliberalismo defendiam que a sociedade civil, junto ao mercado, deveria assumir a responsabilidade por essas áreas no lugar do Estado. Posteriormente, o mesmo programa político-econômico seria imposto a outros países por instituições financeiras, como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, enquanto condição para recebimento de empréstimos.
Eis que a arte, a cultura e a criatividade são apresentadas, não por esses ideólogos, mas pelos próprios administradores de instituições culturais, movimentos da sociedade civil e acadêmicos, como uma alternativa capaz de prover assistência social e qualidade de vida em compensação à retirada do Estado (ibid., p. 415).
Ora, a disseminação global dessa nova compreensão, enquanto parte de um “senso comum universal”, como sugerido por Bourdieu e Wacquant, veicula tacitamente uma filosofia do indivíduo e da organização social ligada à experiência norte-americana (Bourdieu e Wacquant, 2005, p. 211), que muitos autores têm designado como uma visão neoliberal de mundo.
Enquanto esquema de compreensão da realidade, essa visão é caracterizada primordialmente por decifrar os comportamentos e as relações sociais apenas em termos econômicos, elevando princípios do universo do mercado e da administração de empresas à condição de referências absolutas, seja das ações individuais e coletivas, seja das instituições e organizações como um todo (Foucault, 2008FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.).
[...] a força da representação liberal e suas políticas competitivas advêm do peso da dominação econômica que ela legitima. Racionalizada na forma da teoria econômica, sobretudo da neoclássica [...], a representação liberal se afirma devido à sua correspondência com o processo de expansão geográfica da forma mercantil de produção de valor [...]. A grande força propulsora que levou o neoliberalismo ao mundo inteiro [...] foi a existência daquilo que chamei de um casamento virtuoso, ou, pelo menos, vitorioso, entre essas ideias e o movimento real do capitalismo na direção de uma desregulação crescente e de uma globalização econômica de natureza financeira. (Lima Júnior, 2003, p. 239)
Seguindo Yúdice (2013YÚDICE, G. (2013). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, Editora UFMG., p. 53), não se trata de condenar esse processo como uma espécie de profanação da criatividade humana e da cultura, mas de percebê-lo como a consolidação de uma nova maneira de entendê-las e praticá-las, estreitamente vinculada a uma visão neoliberal de mundo.
Assim, dentro dessa visão, se, por um lado, a criatividade é ressemantizada enquanto um recurso a ser gerenciado racional e estrategicamente, um ativo com potencial para contribuir com o desenvolvimento econômico, político e social de uma cidade ou país; por outro lado, a cidade é investida de novo significado, passando a ser entendida como um ator econômico que precisa se posicionar em um mercado global competitivo, planejando-se e instrumentalizando-se para tal.
Referências
- ALVES, E. (2010). Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. Sociedade e Estado. Brasília, v. 25, n. 3, pp. 539-560.
- ALVES, E. (2011). A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió, Edufal.
- ALVES, E. (2012). A economia criativa do Brasil: o capitalismo cultural brasileiro contemporâneo. Latitude. Maceió, v. 6, n. 2, pp. 191-214.
- ALVES, E. (2014). “As indústrias da criatividade e a cultura popular sertanejo-nordestina”. In: FARIAS, E.; MIRA, M. C. (orgs.). Faces contemporâneas da cultura popular. Jundiaí, Paco Editorial.
- ALVES, E.; COUTO, B. (2019). “Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 18, n. 41, pp. 328-359.
- BABBIE, E. (2003). Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte, UFMG.
- BIANCHINI, F.; PARKINSON, M. (1993). Cultural policy and urban regeneration: the West European experience. Manchester, Manchester University Press.
- BOAS, T. C.; GANS-MORSE, J. (2009). Neoliberalism: from new liberal philosophy to anti-liberal slogan. Studies in Comparative International Development. Nova York, v. 44, n. 2, pp. 137–161.
- BORJA, J.; CASTELLS, M. (1997). Local and global: the management of cities in the information age. Londres, Routledge.
- BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. (2005). “Sobre las astucias de la razón imperialista”. In: WACQUANT, L. (org.). El misterio del ministerio: Pierre Bourdieu y la politica democratica. Barcelona, Gedisa.
- BRITISH AND AMERICAN ARTS ASSOCIATION (1989). Arts and the changing city: an agenda for urban regeneration. Londres, British and American Arts Association.
- COUTO, B. (2019). A reinvenção do espaço urbano a partir da cultura e do entretenimento-turismo: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.
- COWAN, A. (2016). Nice place to visit tourism and urban revitalization in the postwar Rustbelt. Philadelphia, Temple University Press.
- CRAIK, J. (1997). “The culture of tourism”. In: ROJEK, C.; URRY, J. (orgs.). Touring Cultures. Londres, Routledge.
- DUMAZEDIER, J. (2004). Sociologia empírica do lazer. São Paulo, Perspectiva.
- EDWARDS, B. (1992). London docklands: urban design in an age of deregulation. Oxford, Butterworth Architecture.
- ESTADOS UNIDOS (1973). The Central city problem and urban renewal policy. Washington, DC, Congressional Research Service.
- FARIAS, E. (2011). Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil. Curitiba, Appris.
- FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.
- FREIRE-MEDEIROS, B. (2009). Gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro, Editora FGV.
- GONZÁLEZ, S. (2011). Bilbao and Barcelona “in Motion”. How urban regeneration “models” travel and mutate in the global flows of policy tourism. Urban Studies, v. 48, n. 7, pp. 1397-1418.
- GREATER PHILADELPHIA CULTURAL ALLIANCE (1975). An introduction to the economics of Philadelphia's cultural organizations: findings of an economic impact survey. Philadelphia, GPCA.
- HALL, P. (1995). Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva.
- ISENBERG, A. (2017). Designing San Francisco: art, land, and urban renewal in the city by the bay. Princeton, Princeton University Press.
- LANDRY, C. (2011). “Prefácio”. In: REIS, A.; KAGEYAMA, P. (orgs.). Cidades criativas: perspectivas. São Paulo, Garimpo de Soluções.
- LIMA JÚNIOR, P. (2003). Uma estratégia chamada “planejamento estratégico”: deslocamentos espaciais e atribuições de sentido na teoria do planejamento urbano. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
- LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. (2011). A cultura mundo. São Paulo, Companhia das Letras.
- MASSACHUSETTS (1973). The arts, a priority for investment: the report of the Governor's Task Forces on the Arts & Humanities. Washington, D.C., National Conference of State Legislatures.
- NOVA YORK (1974). Report of the mayor's committee on cultural policy. Nova York, The Committee.
- SMITH, H.; FERRARI, M. (2012). Waterfront Regeneration Experiences in City-building. Londres, Routledge.
- UNESCO (2004). Creatives cities of Unesco for sustainable development. Paris, Unesco.
- UNESCO (2011). Culture and development: report of the Director-General of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Paris, Unesco.
- UNESCO (2014). Culture and sustainable development Report of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Paris, Unesco.
- UNESCO (2016a). Creatives cities for sustainable development. Paris, Unesco.
- UNESCO (2016b). Culture, urban future: global report on culture for sustainable urban development. Paris, Unesco.
- VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria: planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, O. (org.). A cidade de pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes.
- WASHINGTON REGIONAL ARTS PROJECT (1975). The arts in metropolitan Washington: some preliminary data on economics, financing, and organization. Washington D.C.
- WEICHER, J. (1972). Urban renewal, national program for local problems. Washington, D.C., American Enterprise Institute for Public Policy Research.
- WIKIMEDIA (2022). Maremagnum. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Maremagnum_BCN_04_2016_7056.jpg Acesso em: 10 abr 2022.
» https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Maremagnum_BCN_04_2016_7056.jpg - YÚDICE, G. (2008). Modelos de desarrollo cultural urbano: ¿gentrificación o urbanismo social? Alteridades. Cidade do México, v. 18, n. 36.
- YÚDICE, G. (2013). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, Editora UFMG.
- ZIPP, S. (2010). Manhattan projects: the rise and fall of urban renewal in cold war New York. Oxford, Oxford University Press.
Notas
-
1
() É importante destacar que a relação entre cidades e a indústria do turismo é bem anterior ao debate sobre cidades criativas, indústrias criativas ou economia criativa e ao modelo de políticas turístico-culturais de renovação urbana. No caso da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a presença do turismo enquanto campo econômico e institucional remonta à segunda metade do século XIX (Farias, 2011FARIAS, E. (2011). Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil. Curitiba, Appris.). Além disso, nem todas as formas de turismo estão necessariamente conectadas às chamadas indústrias ou economias criativas. Desse modo, o conceito e as práticas do turismo que foram incorporados pelos termos “indústrias criativas” e “economia criativa”, e também pelo modelo “turístico-cultural” de renovação, dizem respeito principalmente ao turismo cultural. Um detalhamento mais aprofundado sobre turismo cultural pode ser encontrado em Craik (1997)CRAIK, J. (1997). “The culture of tourism”. In: ROJEK, C.; URRY, J. (orgs.). Touring Cultures. Londres, Routledge..
-
2
() Os estudos encontrados e analisados foram: 1) As artes, uma prioridade para investimento: relatório da Força Tarefa em Artes & Humanidades do Governador (Massachusetts, 1973MASSACHUSETTS (1973). The arts, a priority for investment: the report of the Governor's Task Forces on the Arts & Humanities. Washington, D.C., National Conference of State Legislatures.; 2) Relatório do Comitê do Prefeito para Política Cultural (Nova York, 1974NOVA YORK (1974). Report of the mayor's committee on cultural policy. Nova York, The Committee.; 3) Uma introdução à economia das organizações culturais da Filadélfia: descobertas de um estudo sobre impacto econômico (Greater Philadelphia Cultural Alliance, 1975)GREATER PHILADELPHIA CULTURAL ALLIANCE (1975). An introduction to the economics of Philadelphia's cultural organizations: findings of an economic impact survey. Philadelphia, GPCA.; e 4) As artes na Washington metropolitana: alguns dados preliminares sobre economia, finanças e organização (Washington Regional Arts Project, 1975)WASHINGTON REGIONAL ARTS PROJECT (1975). The arts in metropolitan Washington: some preliminary data on economics, financing, and organization. Washington D.C..
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Mar 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
-
Recebido
2 Maio 2022 -
Aceito
31 Out 2022