Resumo
Este artigo aborda a urbanização de assentamentos precários, a partir de estudos de caso do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) na franja leste da metrópole de Curitiba, objetivando discutir o tratamento empregado nas Áreas de Preservação Permanente (APPs). Verifica-se que as intervenções buscaram a restituição máxima do espaço das APPs antes ocupados e que os parques lineares foram a estratégia adotada para equilibrar funções urbanas e ambientais. Constatam-se o impasse em relação ao projeto paisagístico proposto pelo Estado e as demandas locais, resultando no atraso ou paralisação de obras, além da reincidência do ciclo de degradação ambiental. Constatam-se, também, avanços como a ressignificação das APPs como uma estrutura natural de macrodrenagem e a apropriação desse espaço pela população para o uso coletivo de lazer.
APP; urbanização de assentamentos precários; PAC Favelas; parque linear
Abstract
This paper analyzes slum upgrading based on case studies focusing on the implementation of the Growth Acceleration Program (known as PAC) in the east side of the Curitiba metropolis, with the aim of discussing urban solutions employed in Permanent Preservation Areas (PPAs). The results showed that the interventions aimed to restore, to the maximum limit, the space of the PPAs that had been previously occupied, and that linear parks were the strategy adopted to equalize environmental and urban functions. Other findings are the existence of an impasse concerning the landscape design proposed by the state ignoring local demands, which results in the delay or interruption of the constructions, and the recurrence of the environmental degradation cycle. Advances were also observed, such as the resignification of PPAs as natural macro--drainage structures, and the use of PPAs by the community for collective leisure activities.
Permanent Preservation Areas; slum upgrading; Growth Acceleration Program for slums; linear park
Introdução
O assentamento precário é consequência da urbanização desigual das metrópoles brasileiras, caracterizada pelo desiquilíbrio entre as classes de renda no acesso a moradia, infraestrutura e serviços urbanos. Mediante a baixa produção habitacional dos programas públicos e sem condições financeiras para adquirir uma moradia na cidade legal, resta a camada mais pobre da população ocupar áreas inadequadas para urbanização, protegidas por legislação ambiental e que não interessam ao mercado imobiliário. Uma combinação que resulta, muitas vezes, em ocupações de risco e degradação ambiental das Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Apesar do discurso de “cidade modelo” e “cidade ecológica”, construído nas últimas décadas do século XX, Curitiba não foge à regra da urbanização desigual brasileira. Uma problemática que é acentuada na capital paranaense pelo diferenciado tratamento histórico da habitação nas políticas públicas. De acordo com Albuquerque (2007)ALBUQUERQUE, A. F. (2007). A questão habitacional em Curitiba e o enigma da cidade modelo. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo., a questão habitacional não gozou da mesma atenção do poder público local, quanto gozaram o transporte coletivo e o uso do solo, tendo como resultante o extravasamento dos assentamentos precários para os municípios do entorno, especialmente na franja leste,1 1 Adota-se como franja leste a porção territorial dos municípios de Colombo, Pinhais, Piraquara e São José dos Pinhais, que integram a mancha urbanizada da metrópole de Curitiba. na década de 1990, em terras com baixo valor no mercado formal devido às restrições impostas pelas legislações ambientais. Uma dinâmica que confirma, segundo a autora, o papel desempenhado por mananciais e planícies fluviais do Rio Iguaçu e seus afluentes na absorção das mazelas socioambientais de Curitiba.
Maricato (2010)MARICATO, E. (2010). “O Estatuto da Cidade Periférica”. In: CARVALHO, C. S.; ROSSBACH; A. (orgs.). O Estatuto da Cidade: comentado. São Paulo, Ministério das Cidades, Aliança das Cidades. chama a atenção para esse grave problema das metrópoles brasileiras. Segundo a autora, em Curitiba, as áreas onde a ocupação por moradias ilegais mais cresceu, na década de 2000, foram aquelas em que a ocupação era proibida por lei, mas não o era na prática da ocupação no território. Portanto, se, por um lado, é inquestionável a relevância das “funções ambientais”2 2 De acordo com Mello (2014), as principais funções desempenhadas pelas APPs são: receptar e conter os sedimentos da bacia; reter as águas na microbacia; garantir a flutuação natural dos níveis de água; promover estabilidade das bordas do curso d´água, prevenindo assoreamento; permitir as migrações laterais dos cursos d´água; e proteger a biodiversidade e as cadeias gênicas. realizadas pelas APPs, tanto em termos hidrológicos, quanto ecológicos e geomorfológicos; por outro lado, é inegável a presença de moradias precárias, efeito da ausência de políticas públicas compatíveis com a demanda por habitação popular na metrópole.
Por muito tempo, as ocupações precárias em áreas de proteção ambiental protagonizaram o chamado “conflito entre moradia e meio ambiente” que, muitas vezes, repercute em políticas públicas fragmentadas, que culpabilizam os moradores pelos danos ambientais, como o desmatamento, assoreamento e impermeabilização do solo (Polli, 2010POLLI, S. A. (2010). Moradia e Meio Ambiente: os conflitos pela apropriação de território nas áreas de mananciais em São Paulo. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.); consequentemente, atribuindo aos moradores a culpa pelos efeitos adversos da degradação ambiental. E, na franja leste, a restrição3 3 Lei estadual n. 8935/1989 traz inúmeras exigências para ocupação em mananciais, especialmente em relação aos loteamentos já aprovados e não implantados. de novas ocupações e a coibição de obras de melhoria de infraestrutura nas ocupações consolidadas em mananciais, nas últimas décadas do século XX, só pioraram o quadro de precariedade socioambiental nos fundos de vale e APP.
A lei de mananciais da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) altera o entendimento sobre a ocupação em mananciais, de espaço altamente restritivo para uma visão mais flexível de busca pelo equilíbrio de funções urbanas e ambientais. No bojo desse alinhamento de agendas ambiental e urbana, é criado o programa Direito de Morar, em 2003, iniciando a prática da urbanização em mananciais e fundos de vale, em detrimento das práticas de remoção total das ocupações. Na esfera federal, o entendimento dessas áreas como interesse social, com a possibilidade de redução da faixa de APP para 15m, dada pela resolução Conama n. 369, segundo Travassos (2010)TRAVASSOS, L. (2010). Revelando rios: novos paradigmas para intervenção em fundos de vale urbanos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo., abriu caminho para a urbanização e a implantação de parques lineares.
Articulado aos instrumentos da Lei de Mananciais, o programa Direito de Morar passou a nortear as ações contratadas pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) no âmbito do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), modalidade Projetos Prioritários de Investimentos (PPI), Intervenção em Favelas (IF). Assim, as intervenções são balizadas por “Planos de Recuperação Ambiental e Urbanização”, tornando a dimensão ambiental protagonista do discurso institucional do PAC Favelas na franja leste da metrópole. E a prática da urbanização de favelas passa a ser vista como solução para equilibrar funções urbanas e ambientais em fundos de vale e mananciais.
Tendo o governo estadual como proponente, o PAC Favelas na franja leste tem compartilhamento de responsabilidade entre as executoras locais, Cohapar e Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), cabendo, à companhia de habitação, gerenciar os itens contratuais relativos ao projeto urbanístico, produção habitacional e às obras de infraestrutura de drenagem; e, à companhia de saneamento, as obras de infraestrutura de abastecimento de água e esgoto. Por sua vez, as prefeituras responsabilizam-se por providenciar terreno para a construção das moradias e pelo processo de realocação das famílias em áreas de risco de inundação.
Assim, após 15 anos do PAC Favelas voltado à urbanização de áreas de fragilidade ambiental, em fundos de vale, da franja leste metropolitana, questiona-se: qual foi a abordagem projetual em relação as APPs? Houve compatibilização de funções urbanas e ambientais nas soluções empregadas? Para qual caminho apontam as experiências locais?
A partir dessas indagações, ao buscar apoio na literatura, percebem-se inquietações similares, como, por exemplo, as de Denaldi, Ferrara e Silva (2016) que apontam que a requalificação de assentamentos precários, do ponto de vista ambiental, ainda é um grande desafio no Brasil, em razão do processo de urbanização plena estar em construção e especialmente em relação a “[...] entender o que seja o ganho ambiental que deve ser obtido com processos de urbanização, quais são os parâmetros urbanísticos e ambientais aceitáveis, sem que se consolidem precariedades”.
Considerando o crescente reconhecimento da importância da dimensão ambiental na urbanização de assentamentos precários, a partir de estudos de caso, do PAC Favelas na metrópole de Curitiba, este artigo busca contribuir ao debate, relatando a experiência local e discutindo avanços e impasses no tratamento urbanístico empregado nas APPs.
Estudos de caso: PAC Iraí e Guarituba
Localizado no município de Pinhais, o PAC Iraí apresenta duas poligonais de intervenção em áreas de fragilidade ambiental (Figura 1). A primeira, no fundo de vale do rio Palmital, entre os bairros Jardim Cláudia e Alto Tarumã, na altura do condomínio Alphaville Graciosa. Por ser um ponto crítico de risco de inundação, a área já havia sido objeto do Programa de Saneamento Ambiental (Prosam) na década de 1990. A segunda, no fundo de vale do rio Atuba, divisa com o município de Curitiba, bairro Emiliano Perneta, entre rodovia PR 415 e rua Tomazina.
É importante dizer que ambas as poligonais do PAC Iraí contemplam ocupações em terrenos remanescentes de loteamentos regulares e irregulares que tinham, originalmente, destinação como áreas livres para fins de preservação ambiental.
A situação anterior às obras era de precariedade socioambiental: do total de 1.640 famílias contempladas, 747 viviam em áreas sujeitas ao risco de inundação (Cohapar, 2009COHAPAR – Companhia de Habitação do Paraná (2009). Uma nova estrutura social para a Grande Curitiba: memorial da intervenção do PAC Favelas no município de Pinhais. Curitiba.). A poligonal do Palmital caracterizava-se pela baixa densidade populacional na APP, com predominância de construções mistas de “alvenaria e madeira”, enquanto a poligonal Atuba apresentava alta densidade populacional, com predominância de construções em alvenaria com variados graus de qualidade construtiva. A infraestrutura também oscilava, deficitária na ocupação mais consolidada e praticamente inexistente, com grande carência de saneamento básico na poligonal Palmital. A Figura 2 apresenta um panorama da precariedade socioambiental antes das intervenções do PAC.
O segundo estudo de caso, PAC Guarituba, localiza-se no município de Piraquara (Figura 3), divisa com Pinhais e São José dos Pinhais, e corresponde à principal obra do PAC Favelas no estado do Paraná, em razão do volume de recursos, do número de famílias e da localização estratégica na Unidade Territorial de Planejamento (UTP)4 4 Unidade Territorial de Planejamento é um instrumento da Lei de Mananciais da Região Metropolitana de Curitiba que busca disciplinar o uso do solo no espaço formado entre áreas pressionadas por ocupação urbana e as Áreas de Proteção Ambiental (APAs). do Guarituba, região do marco zero de formação do rio Iguaçu. O PAC Guarituba contempla um emaranhado de ocupações em loteamentos regulares, irregulares, clandestinos e áreas públicas.
Com aproximadamente 44 mil habitantes, a UTP Guarituba tem mais de 12 mil edificações, das quais 5 mil unidades estão ocupadas irregularmente. A ausência de infraestrutura na planície fluvial da nascente do rio Iguaçu, caracterizada como de alta suscetibilidade a inundações, faz do Guarituba a maior ocupação irregular precária em área de manancial da metrópole de Curitiba.
Por se tratar de intervenção em UTP, um espaço de gestão territorial compartilhado pelo estado e prefeitura, o plano de urbanização foi iniciado no âmbito da Coordenação da Região Metropolitana (Comec) em 2004, sendo repassado à Cohapar em 2006. A urbanização foi viabilizada após alterações no zoneamento da UTP Guarituba (decreto estadual n. 6314/2006), que possibilitou maior adensamento populacional em manancial, ou seja, viabilizando as ações de urbanização e realocação para conjuntos habitacionais localizados no próprio Guarituba.
A situação anterior às obras era de extrema precariedade socioambiental, implicando a realocação de aproximadamente 800 famílias por risco de inundação. Conforme mostra a Figura 4, o Guarituba caracterizava-se por construções em madeira, e a infraestrutura era deficiente em partes da ocupação e inexistente em outras, cabendo, aos moradores, as soluções improvisadas das infraestruturas, como iluminação pública e saneamento.
Tanto no PAC Iraí quanto no PAC Guarituba, a dimensão ambiental revela-se no plano urbanístico das urbanizações como o eixo “recuperação ambiental”, tendo a implantação de parques lineares como principal ação de projeto. A recuperação ambiental é interpretada como a restituição do espaço físico das APPs, antes ocupado por edificações, somado à recomposição de vegetação das matas ciliares, conforme será ilustrado na sequência.
O projeto básico das urbanizações foi desenvolvido pelo poder público na esfera estadual e a execução contratada por lotes de licitação. Além do eixo (1) recuperação ambiental, o plano urbanístico do PAC Iraí e Guarituba é estruturado nos eixos: (2) remoção/realocação; (3) produção habitacional; (4) infraestrutura; e (5) regularização fundiária. Ressalta-se que a recuperação ambiental é um dos 22 componentes contratáveis do programa federal,5 5 Cf. Brasil (2007). podendo acumular 5% dos repasses da Orçamento Geral da União (OGU) para cada contrato.
Ao adotar as curvas de inundação do Plano Diretor de Drenagem Metropolitano como parâmetro de projeto para a realocação, em vez dos 30m da APP, o escopo dessas urbanizações não configura a busca pela remoção mínima, mas pela restituição máxima das áreas de restrição à ocupação em fundos de vale, com faixas de proteção ribeirinha variando de 50m aos 300m de largura, como na APP do rio Palmital.
No rio Atuba, que apresentava menos incidência de risco de inundação e maior grau de consolidação das ocupações, restituíram-se faixas ciliares com 50m de largura em média. No PAC Guarituba, a situação é peculiar, pois, além de restituir a APP do Rio Iraí, objetivou-se implantar a APP do canal paralelo, uma obra de macrodrenagem, realizada entre 1995 e 2002, que ramificou por 20km o leito do rio Iguaçu.
Ressalta-se que os rios Atuba, Palmital e Iraí-Iguaçu tiveram seus cursos retificados em meados da década de 1960, mas ainda preservam leito e taludes em terra. Uma condição que, vista pela dimensão ambiental, corrobora a decisão do poder público pela realocação das famílias nas faixas ciliares, visto que, segundo Denaldi, Ferrara e Silva (2016), remover moradores, quando o curso d´água está inteiramente tamponado ou transformado no restante de sua extensão, pode não se justificar, exceto em situações de risco à vida.
No caso do rio Atuba, 534 famílias foram realocadas para o Conjunto de Moradias Jerivá, enquanto, no rio Palmital, foram 213 famílias realocadas nos conjuntos jardim Dona Joaquina 2 e jardim Santa Clara (Cohapar, 2009COHAPAR – Companhia de Habitação do Paraná (2009). Uma nova estrutura social para a Grande Curitiba: memorial da intervenção do PAC Favelas no município de Pinhais. Curitiba.). Na situação anterior à urbanização, em sua maioria, os domicílios ocupavam terras entre meandros secos e o leito retificado dos rios Palmital e Atuba. O fato de serem ocupações em áreas públicas facilitou o processo de realocação no PAC Iraí, se comparado ao nó jurídico-fundiário das realocações no PAC Guarituba, no qual a maioria das ocupações decorre de loteamentos irregulares, aprovados na década de 1950. Portanto, anteriormente às recomendações quanto à faixa de preservação ciliar do Código Florestal de 1965 (lei federal n. 4.771) e Lei Lehmann (lei federal n. 6766 de 1979).
No Guarituba, 694 famílias foram realocadas no conjunto residencial Madre Tereza de Calcutá. E o restante das famílias foi reassentado em terreno contíguo, mas com recursos do Programa PAC/FNHIS.
Produzir moradias para viabilizar o processo de realocação correspondeu à ação mais onerosa do PAC Iraí, respondendo por 57% dos repasses da OGU e 65% do valor total da urbanização. No PAC Guarituba, a realocação respondeu por apenas 14,5% dos recursos da OGU e 19% do valor total. Tal variação de preço é justificada pelo fator “terra localização”, em que, segundo Villaça (2001)VILLAÇA, F. (2001). Espaço Intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel., a mercadoria é o espaço urbano socialmente produzido e não a terra em si.
Apesar da variação no valor dos terrenos nos municípios de Pinhais e Piraquara, em ambos os estudos de caso, a produção de moradias ocorreu de forma concatenada ao processo de realocação das famílias. Houve uma convergência dos interesses políticos em detrimento da velha prática de contraposição de agendas urbanas e ambientais. A integração de atores tradicionalmente mais alinhados com a agenda ambiental ou a urbana (Instituto Água e Terra, Conselho Gestor dos Mananciais, Secretarias de Obras e Urbanismo das Prefeituras, Comec, Cohapar, Sanepar) ocorreu, pois o governo estadual foi o proponente das urbanizações, passando a desempenhar o papel de mediador de conflitos interinstitucionais nas várias escalas da administração pública.
Concluído o processo de realocação das famílias, o eixo “recuperação ambiental” volta-se à implantação dos parques lineares. No PAC Iraí, objetivava-se transformar 562.379,50m2 de áreas degradadas por ocupação urbana em áreas requalificadas. Uma ação que articulava financeiramente as três esferas governamentais, sendo R$1.398.653,06 de reais da OGU, R$222.852,00 do Estado e R$543.603,33 da prefeitura, totalizando um valor de investimento que correspondia a 4% do PAC Iraí (Cohapar, 2009COHAPAR – Companhia de Habitação do Paraná (2009). Uma nova estrutura social para a Grande Curitiba: memorial da intervenção do PAC Favelas no município de Pinhais. Curitiba.). No PAC Guarituba objetivava-se atuar em 357.369,98m2 de áreas ribeirinhas degradadas e vazios urbanos centrais. O valor de investimento atingia 5% do valor total da urbanização, o correspondente a R$4.940.335,78, sendo R$3.309.305,66 da OGU e o restante de contrapartidas locais.
Entre a restituição espacial das APPs e a implantação de parques lineares
Conforme descrito anteriormente, a restituição espacial da faixa de preservação permanente nos rios Atuba e Palmital ou a implantação da APP no canal paralelo ao rio Iguaçu, implicou a ação inicial de realocação de famílias. Em ambos os municípios, o processo de realocação ocorreu após situações fundiárias peculiares serem negociadas na arena legal. O contexto de judicialização tem sido a principal justificativa do poder público para os atrasos na execução das obras dos parques lineares.
Na poligonal Atuba do PAC Iraí, o tratamento paisagístico está dividido em porção sul e norte. A área de 86.004,98m2 correspondente à porção sul (entre PR 415 e vila União) foi a primeira a ser concluída em 2019; enquanto a área de 55.820,88m2 (ponte Mandaguaçu à rua Tomazina) da porção norte está parcialmente concluída.
Embora muitas edificações demolidas fossem precárias e estivessem com as fundações ancoradas nos taludes do rio Atuba, parte das unidades demolidas na APP apresentava boa qualidade construtiva. Somou-se, a isto, o fato de os moradores residirem na divisa com Curitiba. Assim, o convencimento das famílias quanto à necessidade de realocação representou um desafio ao projeto do parque linear do rio Atuba, visto que o tratamento convencional da drenagem (canalização com tamponamento do rio) persiste no imaginário popular como a solução definitiva para os problemas de inundações.
Mas a manutenção de ocupações em áreas ribeirinhas nem sempre é uma boa solução, podendo causar o estrangulamento do leito maior, um espaço necessário para que o rio exerça sua dinâmica hídrica. E, no caso do PAC Iraí e Guarituba, a manutenção das edificações também não se justificaria pela disponibilidade de terrenos para realocação.
As imagens apresentadas na sequência retratam as transformações físico-urbanísticas em curso nos estudos de caso, entre 2010 e 2022. Apesar da recomposição da vegetação não estar concluída, a intenção é demonstrar que o pós-intervenção revela um ganho ambiental quando comparado à situação pré-intervenção.
A Figura 5 retrata a porção norte da poligonal Atuba do PAC Iraí nos arredores da ponte do Mandaguaçu. A rua preexistente que margeava o leito do rio na margem esquerda (pertencente ao município de Pinhais) foi extinta, tendo sua área sido incorporada ao espaço do parque. Isso denota um tratamento mais alinhado ao manejo sustentável das águas pluviais, oposto ao tratamento com implantação de avenidas de vale, como o observado na margem direita, pertencente ao município de Curitiba.
O segundo conjunto de imagens (Figura 6) mostra a perspectiva sul retratada a partir da ponte do Mandaguaçu.
A Figura 7 traz a transformação em curso na margem esquerda do canal paralelo do rio Iguaçu. Devido à escala do PAC Guarituba, optou-se por utilizar imagens aéreas comparativas. Nesse trecho da intervenção, as remoções não visaram somente a instituir a faixa de APP no canal, mas também de redirecionar as áreas degradadas por ocupação para as diretrizes de instrumentos do planejamento ambiental estadual, como a Unidade Territorial de Planejamento (UTP) do Guarituba, que trata a área como Zona de Restrição à Ocupação (ZRO) e Área de Interesse Especial Regional do Iguaçu (Aieri),6 6 O decreto estadual n. 3742/2008 institui a Área de Interesse Especial Regional do Iguaçu (Aieri), que, dentre inúmeros objetivos, busca evitar ocupação urbana irregular, configurar corredores de biodiversidade e recuperar as funções ambientais das áreas contíguas ao leito do rio Iguaçu. cujo perímetro é delimitado pela curva de inundação em uma recorrência de 100 anos, do rio Iguaçu e da foz de seus tributários.
Após a restituição do espaço físico das faixas de preservação, o plano urbanístico das intervenções do PAC, no eixo “recuperação ambiental”, preconiza que essas áreas ribeirinhas adquiram caráter de uso coletivo via implantação de parques lineares, o que articularia funções urbanas e ambientais.
Buscar um espaço multifuncional é uma boa solução no sentido de quebrar a noção de intangibilidade da APP, que, segundo Mello (2008)MELLO, S. S (2008). Na beira do Rio tem uma Cidade: urbanidade e valorização dos corpos d´água. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., cria um paradoxo no espaço urbano.
[...] de um lado, as múltiplas funções urbanísticas e o efeito de atração que os corpos d’água exercem sobre as pessoas; de outro, o dispositivo legal que impede a ocupação formal das margens dos corpos d’água no Brasil, visando à preservação das suas funções ambientais. (p. 26)
O parque linear Atuba, com 3km de extensão, abrange um quarto do rio Atuba no território de Pinhais. Como dito anteriormente, o projeto teve a implantação dividida em duas fases. A primeira abrangendo a porção sul, entre a rodovia PR 415 e a vila União, e a segunda abrangendo a porção norte, entre a ponte do Mandaguaçu e rua Tomazina. O projeto original previa uma área total de 141.825,86m2 distribuídos em maciços de vegetação nativa, áreas de recomposição da vegetação, ciclovias e equipamentos públicos.
A Figura 8 traz a transformação físico-urbanística da área do parque linear do rio Atuba nas últimas seis décadas. Como a renaturalização do traçado original do rio não era objetivo do tratamento urbanístico, constata-se que a requalificação visou a atingir uma paisagem similar à observada em 1980.
A obra do parque linear do rio Atuba foi paralisada em 2018, após execução da primeira etapa de restituição espacial da APP, que correspondeu a realocação dos moradores, demolição das edificações e limpeza dos detritos (Prestes, 2018PRESTES, M. F. (2018). Requalificação ambiental em assentamentos precários: o PAC Favelas na Franja Leste da Metrópole de Curitiba. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.). O motivo do impasse era o pedido da prefeitura pela revisão do projeto paisagístico, elaborado pela esfera estadual, de forma a readequá-lo às necessidades locais, especialmente no tocante ao controle urbano.
Um dos dispositivos de controle urbano que poderiam ser implementados, segundo Prestes (ibid.), era um espaço demarcando a transição entre áreas privadas e APP. Esse elemento urbanístico, que poderia ser a própria ciclovia ou uma via-parque, atuaria em duas frentes: como barreira física inibidora de reocupações e descarte de lixo, especialmente detritos de construção civil; e melhorando aspectos de segurança pública, pois, na maior parte de sua extensão, a proposta projetual original do parque linear do rio Atuba gozava apenas dos fundos dos lotes privados. Uma condição urbanística que podia prevalecer por muitas décadas até que os proprietários reformassem suas casas, orientando-as de frente para o parque linear. Enquanto isso, becos formados por altos muros limitariam o alcance visual, aumentando a sensação de falta de segurança no espaço público. Uma condição que poderia resultar no abandono do local pelos frequentadores.
Verifica-se que a prefeitura realizou a revisão do projeto, e nos 2km lineares implantados, entre PR 415 e rua Apucarana, houve a demarcação espacial dos espaços públicos e privados. É perceptível, em comparação ao projeto original, que o parque recebeu mais equipamentos, como quadras poliesportivas, playgrounds e um espaço com infraestrutura para cães chamado “Parcao”. E teve diminuído o montante de áreas que tinha a previsão de recomposição de mata ciliar. Dessa forma, a função urbana centralizada nas atividades de lazer se sobressai na paisagem que vem se concretizando no parque linear do rio Atuba.
No poligonal do PAC Palmital, o parque linear está parcialmente concluído. Com 2km de extensão, abrange um terço do curso hídrico no município de Pinhais e segue o mesmo princípio multifuncional do parque linear do rio Atuba. Em alguns trechos críticos de inundação, o espaço reservado para APP atinge 200m de largura. Os equipamentos previstos estão concentrados em uma área central, que abriga ginásio de esportes, biblioteca, salas multiuso, casa do zelador e playgrounds.
Nesse projeto paisagístico, uma ciclovia separa o espaço público e privado, além de conectar espaços coletivos, inclusive os campos de várzea “futebol” preexistentes que foram mantidos na implantação do parque linear do rio Palmital. A Figura 10 mostra a transformação físico-urbanística da área desde 1953, quando o rio Palmital ainda não tinha sido retificado e a planície fluvial era ocupada por pastagens de gado.
Comparado ao projeto paisagístico implantado no rio Atuba, o projeto do rio Palmital manteve, no parque, o destaque para a função ambiental. Isto ocorreu, provavelmente, pelas características do fundo de vale de solo turfoso, alagadiço e pela presença de maciços de vegetação nativa. A execução parcial das infraestruturas de lazer, basicamente a ciclovia, e a falta de manutenção dos espaços vegetados vêm impactando a apropriação do uso coletivo pela população. Nos últimos anos, foram observados sinais de abandono do espaço, como a presença de matagal, lançamento de lixo e uso dos espaços vegetados para a pastagem de animais.
As obras foram retomadas em 2022, com aporte de R$1,5 milhão de reais destinado ao complexo esportivo e cultural do parque linear do rio Palmital (GPC, 2022GPC – Grupo Paraná Comunicação (2022). Assinada ordem de serviço para retomada das obras de equipamentos comunitários do Parque Palmital, em Pinhais. Disponível em: https://grupoparanacomunicacao.com.br/assinada-ordem-de-servico-para-a-retomada-das-obras-dos-equipamentos-comunitarios-do-parque-palmital-em-pinhais/. Acesso em: 10 maio 2023.
https://grupoparanacomunicacao.com.br/as...
). Enquanto o Estado responderá pela execução das obras arquitetônicas, a prefeitura assumirá a responsabilidade do tratamento paisagístico.
No PAC Guarituba, o projeto do parque linear tem área de 89.040,89m2 distribuída em 2km do canal paralelo do rio Iguaçu. A execução estava dividida em etapas: a primeira compreenderia 77.644,00m2 e a segunda abrangeria 11.396,46m2 em área crítica de inundação na ZRO da UTP Guarituba. A Figura 11 traz uma sequência de fotos das transformações na área do parque linear do Guarituba, desde a década de 1950.
– Transformação físico-urbanística no parque linear do canal paralelo do rio Iguaçu, 1953-2015
Após a instituição do espaço físico da APP no canal paralelo do rio Iguaçu, a obra de implantação das infraestruturas do parque linear foi paralisada. O motivo alegado pela prefeitura foi a readequação do projeto paisagístico às necessidades locais. No projeto elaborado na esfera estadual, segundo Prestes (2018)PRESTES, M. F. (2018). Requalificação ambiental em assentamentos precários: o PAC Favelas na Franja Leste da Metrópole de Curitiba. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo., o desenho fragmentou os espaços coletivos, não adotando mecanismos para conectá-los, como uma ciclovia. Para a autora, a circulação de frequentadores atraídos pela infraestrutura da ciclovia contribuiria no aspecto da segurança, ao trazer mais vitalidade urbana para a APP. O que seria fundamental para evitar ações de vandalismo, degradação e novos processos de ocupação da área.
Após 15 anos de PAC Guarituba, a paisagem ao longo do canal paralelo mostra sinais evidentes de falta de segurança e reinício do processo de degradação ambiental, com ocorrência de descarte de lixo, incluindo resíduos de construção civil, presença de matagal e falta de infraestruturas, como pavimentação e iluminação pública. Portanto, até o momento, não é possível chamar essa área de parque linear.
No plano das urbanizações em estudo, a implantação dos parques lineares era intrínseca à estratégia de recomposição da vegetação da mata ciliar. Uma ação que atendia ao preconizado por instrumentos do planejamento ambiental da metrópole de Curitiba, como a Lei de Mananciais. De acordo com a Tabela 1, os três parques somariam 533.121,83m2 de áreas de fundo de vale em processo de requalificação ambiental, onde pretendia-se plantar cerca de 14 mil mudas de vegetação nativa.
Mas, se, por um lado, os memoriais preconizavam a recomposição da vegetação nativa como uma das estratégias do eixo recuperação ambiental; por outro lado, não houve consenso institucional de que o projeto seria realizado integralmente como o previsto pelo Estado; faltou clareza sobre quem seria o executor e se a ação ocorreria no âmbito do programa PAC. A solicitação de revisão de parte dos projetos paisagísticos pelas prefeituras denota as diferentes visões entre o desejado pelo poder local e o pensado na esfera estadual. Assim, a recomposição de vegetação vem se mostrando um ponto de incongruência entre a teoria (previsto nos memoriais) e a prática (executado no território). Como exemplo, verifica-se que a lista de espécies7 7 (a) sucessão primária: corticeira do brejo, tapiá, araça, araucária, jerivá e pau de pólvora; (b) sucessão secundária: guaçatunga, cedro rosa, ingá, açoita cavalo e branquilo e (c) sucessão secundária tardia: cuvatã, cambuí, juvevê e tarumã. especificadas nos projetos do parque linear do rio Palmital e parque linear do rio Atuba não foi contemplada nos primeiros editais de licitação de obras, com previsão somente para o plantio de grama em leivas (Prestes, 2018PRESTES, M. F. (2018). Requalificação ambiental em assentamentos precários: o PAC Favelas na Franja Leste da Metrópole de Curitiba. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.).
Ressalta-se que os termos de convênio do PAC Favelas, assinado entre Estado e prefeituras, também contribuem com a lacuna entre o planejamento e a execução. As prefeituras ficando responsáveis pela operação, manutenção e conservação da recuperação ambiental das áreas degradadas, enquanto, aos atores da esfera estadual, cabia a responsabilidade pela execução do eixo recuperação ambiental. Salienta-se que não houve discriminação de obras nos termos de convênio do PAC, ficando apenas implícito que a recuperação ambiental englobaria o conteúdo programático dos parques, o que implicaria a recomposição da vegetação nativa, integrante do projeto paisagístico.
Tratando-se da recomposição de vegetação ciliar de áreas estratégicas para o planejamento ambiental da metrópole de Curitiba, as atribuições das instituições parceiras deveriam estar bem-definidas nos termos de convênio do PAC. E também acompanhadas de monitoramento e fiscalização. Não basta o entendimento, verbal ou implícito, de que no pós-urbanização as prefeituras assumiriam o plantio da vegetação, pois esse resultado nem sempre ocorre, visto que a disposição em aderir ao processo oscila entre os municípios.
Uma experiência é do PAC Iraí, poligonal do rio Palmital, no qual a iniciativa local iniciou, em 2017, o plantio de mudas de vegetação nativa, como araucária, e a instalação de placas coibindo o descarte de lixo. Registrou-se também, no ano de 2022, a realização, pela Secretaria de Meio Ambiente de Pinhais, do plantio pontual de mudas no parque linear do rio Atuba. Uma ação integrada com educação ambiental e o plano de arborização do município de Pinhais.
Porém, os números atingidos nas iniciativas locais ainda são baixos, se comparados às milhares de mudas almejadas nos memoriais das urbanizações. Isso deixa transparecer as diferentes interpretações de necessidades e prioridades entre os atores das esferas institucionais no tratamento urbano-paisagístico das APPs.
Considerações finais
O presente artigo propôs-se a analisar o tratamento urbano paisagístico de áreas de preservação permanente em urbanização pelo PAC na franja leste da metrópole de Curitiba, adotando como estudos de caso os PACs Iraí e Guarituba.
De maneira geral, constatou-se que o eixo estruturante “recuperação ambiental”, presente no memorial das intervenções, resultou na restituição espacial das faixas de APP, seguido da execução ou previsão de implantação de parques lineares, associando as funções de drenagem e lazer. Assim, o uso coletivo torna-se um dos aspectos-chave na requalificação da faixa ribeirinha.
A estratégia adotada nos estudos de caso da metrópole de Curitiba já vem sendo adotada em outras urbanizações no Brasil, como no Cantinho do Céu, em São Paulo, no qual a requalificação urbana e ambiental a que se propõe a urbanização, de acordo com o autor do projeto, “[...] se materializa no “tudo ao mesmo tempo”, em que as ações ocorrem de forma simultânea, orquestradas pelo eixo da criação dos espaços público” (Boldarini, 2013). Além da apropriação para uso coletivo impactar as questões de segurança e controle urbano das APPs, os parques lineares ainda auxiliam na resolução de problemáticas de drenagem. Ferrara, Cardoso e Machado (2022) mostram o potencial dos parques para uma abordagem descentralizada da drenagem na urbanização de favelas, associando lazer e gestão de riscos. Graciosa (2022)GRACIOSA, M. (2022). “A componente da drenagem na urbanização de favelas: cenários para integração, resiliência e sustentabilidade”. In: FERRARA, L. N.; CARDOSO, A. L.; MACHADO, E. A dimensão ambiental na urbanização de favelas: olhares críticos da drenagem urbana nos projetos do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital. elenca a priorização de soluções baseadas na natureza e a participação social como premissas para as soluções de drenagem em assentamentos precários.
Ao colaborarem com o amortecimento e a dissipação das cheias do fundo de vale do rio Iguaçu, sendo uma estrutura de macrodrenagem caracterizada pela faixa de APP livre de ocupação e sujeita a inundações sem o fator risco, os parques lineares dos rios Atuba e Palmital aproximaram as escalas local e metropolitana, além dos programas PAC Favelas, PAC Saneamento e PAC Risco.
Outro aspecto a ser observado nos estudos de caso é a vegetação ciliar, no que diz respeito tanto às funções urbanas de lazer quanto às ambientais de drenagem. Mello (2014)MELLO, S. S (2014). “Espaço urbanos em beira d´água: princípio de planejamento e intervenção”. In: SCHULT, S. L.; BOHN, N. As múltiplas dimensões das áreas de preservação permanente. Blumenau, Edifurb. diz que a conservação da mata ciliar natural, ou quando não for mais possível repor a vegetação com espécies nativas, configura o melhor caminho para o pleno exercício das funções ambientais das APPs. Miguez, Veróz e Rezende (2016) reiteram que a interceptação da precipitação nas copas das árvores, galhos, troncos e raízes diminui o escoamento superficial na bacia. Apesar da importância da vegetação, os estudos de caso revelam que este tem sido um dos pontos de impasse entre o campo teórico dos planos e projetos e o campo prático da execução das obras, gestão e manutenção dos parques lineares. Isso resulta em duas alternativas: regeneração natural ou plantio por iniciativas locais. Ressaltando-se que a regeneração natural tem resultado incerto em áreas urbanas, pois, além do estado de degradação da APP, o processo depende de variáveis, como nível de compactação do solo, presença de banco de sementes nas proximidades, animais dispersores, etc. A experiência de implantação da APP no canal paralelo do rio Iguaçu, PAC Guarituba, mostra que esta nem sempre é uma solução adequada, pois a combinação de variáveis resultou na formação de vegetação do tipo matagal, contribuindo para o aspecto de abandono e insegurança no espaço linear ribeirinho, que passou a ser alvo de descarte de lixo e de resíduos de construção civil.
Já as iniciativas locais de reflorestamento por plantio de mudas nativa, como nos parques lineares dos rios Atuba e Palmital, têm se mostrado adequadas na recomposição da vegetação ciliar, especialmente quando combinadas com as agendas de educação ambiental e o planejamento urbano municipal. Essa combinação propicia maior apropriação do espaço público tanto pela população quanto pela equipe técnica local.
Mas a recomposição da vegetação ciliar é um tratamento urbanístico que deve ser aplicado com moderação nos parques lineares de urbanização de assentamentos precários, pois, resguardadas as características fisiográficas das áreas, determinados trechos podem até ser exclusivos de preservação, enquanto outros exercem a função de uso coletivo para fins de lazer. O equilíbrio na distribuição espacial das funções urbanas e ambientais rompe com o princípio de intangibilidade das APPs, abrindo espaço para a urbanidade, além de se evitar a proliferação de parques lineares monofuncionais.
Outro aspecto a ser destacado nos estudos de caso é o eixo de produção habitacional. Houve avanço em relação ao tradicional descompasso entre a remoção das residências em APP e a produção das moradias, realizando primeiro a construção das unidades e depois a realocação das famílias. Também se observa que as realocações ocorreram no mesmo bairro ou limítrofes, mesmo com o valor da terra mais elevado nesses locais. O pagamento de indenizações ou o reassentamento em bairros longínquos da origem, pelo baixo valor da terra, não são uma medida eficaz, pois negam o direito à cidade e impulsionam novas ocupações em outras áreas de fragilidade ambiental mais bem localizadas. Assim, é crucial que o componente habitacional preceda a ação de tratamento urbanístico, e que número de unidades produzidas equivalha ao número de famílias demarcadas para remoção na APP.
Mesmo com os impasses elencados neste artigo, considera-se que a estratégia de implantação de parques lineares contribui para o fortalecimento de uma visão contemporânea das APPs mais alinhadas às demandas da cidade, como espaços para lazer e drenagem. Isso resulta na valorização desse elemento da natureza na paisagem urbana, em detrimento da invisibilidade (canalização dos rios, tamponamento e ocupação das APPs por avenidas).
Conclui-se que os parques lineares são ferramentas adequadas à preservação ambiental das APPs, valorização de paisagem, manejo de águas pluviais e controle urbano no pós-urbanização dos assentamentos precários, desde que estejam articulados ao planejamento ambiental na escala da cidade – macrodrenagem e corredores ecológicos –, mas sem deixarem de lado as demandas e as prioridades da escala local – equipamentos comunitários, infraestrutura, manutenção, etc.
Referências
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Notas
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1
Adota-se como franja leste a porção territorial dos municípios de Colombo, Pinhais, Piraquara e São José dos Pinhais, que integram a mancha urbanizada da metrópole de Curitiba.
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2
De acordo com Mello (2014)MELLO, S. S (2014). “Espaço urbanos em beira d´água: princípio de planejamento e intervenção”. In: SCHULT, S. L.; BOHN, N. As múltiplas dimensões das áreas de preservação permanente. Blumenau, Edifurb., as principais funções desempenhadas pelas APPs são: receptar e conter os sedimentos da bacia; reter as águas na microbacia; garantir a flutuação natural dos níveis de água; promover estabilidade das bordas do curso d´água, prevenindo assoreamento; permitir as migrações laterais dos cursos d´água; e proteger a biodiversidade e as cadeias gênicas.
-
3
Lei estadual n. 8935/1989 traz inúmeras exigências para ocupação em mananciais, especialmente em relação aos loteamentos já aprovados e não implantados.
-
4
Unidade Territorial de Planejamento é um instrumento da Lei de Mananciais da Região Metropolitana de Curitiba que busca disciplinar o uso do solo no espaço formado entre áreas pressionadas por ocupação urbana e as Áreas de Proteção Ambiental (APAs).
-
5
Cf. Brasil (2007)BRASIL (2007). Manual de instruções: Projetos Prioritários de Investimento – Intervenção em Favelas. Período 2007 a 2010. Brasília, Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental.
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6
O decreto estadual n. 3742/2008 institui a Área de Interesse Especial Regional do Iguaçu (Aieri), que, dentre inúmeros objetivos, busca evitar ocupação urbana irregular, configurar corredores de biodiversidade e recuperar as funções ambientais das áreas contíguas ao leito do rio Iguaçu.
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7
(a) sucessão primária: corticeira do brejo, tapiá, araça, araucária, jerivá e pau de pólvora; (b) sucessão secundária: guaçatunga, cedro rosa, ingá, açoita cavalo e branquilo e (c) sucessão secundária tardia: cuvatã, cambuí, juvevê e tarumã.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Set 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
02 Nov 2019 -
Aceito
20 Fev 2023