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“Jogo de espelhos”: comunidades morais entre “polícias”, “milícias” e “pi-lícias” cariocas

Resumo

O presente artigo objetiva lançar luz sobre um ator social pouco conhecido da dinâmica criminal carioca. Os “pi-lícias” são civis “desejosos em ser polícia” na vida cotidiana, e que acabam eventualmente trabalhando ilegalmente para policiais de diferentes formas: no mercado da segurança privada, em funções mais “ocultas” do policiamento cotidiano enquanto “informantes” em investigações, ou mesmo tal qual “forças auxiliares” em operações policiais e/ou paramilitares contra o tráfico varejista. Baseado em trabalho de campo etnográfico junto a candidatos à carreira policial militar no Rio de Janeiro, pretendo demonstrar que a fundação de “comunidades morais” entre “pi-lícias”, policiais militares e milicianos é fundamental para o agenciamento de alguns “esquemas” criados a partir dos mercados ilegais da segurança privada presentes na metrópole.

policiamento; ilegalismos; Estado; moralidades; esquemas

Abstract

The present paper sheds light on a little-known social actor in Rio de Janeiro's criminal landscape. “Pi-licias” are civilians who impersonate policemen in everyday life, working illegally for legitimate police officers in different ways. They are found in private security markets, as “informants” in parallel police investigations, or even as “auxiliary forces” in police and/or paramilitary raids against drug trafficking gangs. Based on ethnographic fieldwork with candidates for the military police career, the study aims to demonstrate how the “moral communities” founded among military police officers, militias, and “pi-licias” pave the way for illegal “schemes” that emerge from private security markets in Rio de Janeiro.

policing; illegalisms; state; moralities; schemes

Introdução: delineando o problema

A literatura especializada recente acerca da relação entre grupos ilegais e o controle territorial armado no Rio de Janeiro aponta para importantes mudanças geopolíticas na Região Metropolitana fluminense (RMRJ). Representações até então mais consolidadas que opunham a figura do varejista de drogas ilícitas enquanto “inimigo” a ser vencido pelas forças de segurança (Machado da Silva, 2010MACHADO DA SILVA, L. A. (2010). "Violência urbana", segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH. Salvador, v. 23, n. 59, pp. 283-300.; Misse, 2011MISSE, M. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política. Rio de Janeiro, v. 19, pp. 13-25.; Leite, 2012LEITE, M. (2012). Da "metáfora da guerra" ao projeto de "pacificação": favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, v. 6, n. 2, pp. 374-388.), em contraposição à figura do miliciano enquanto “mal menor” a proteger favelas e territórios periféricos do tráfico varejista (Zaluar e Conceição, 2007ZALUAR, A.; CONCEIÇÃO, I. S. (2007). Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 21, n. 2, pp. 89-101.; Cano e Iooty, 2008CANO, I.; IOOTY, C. (2008). "Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas 'milícias' no Rio de Janeiro". In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.), parecem insuficientes na compreensão do cenário criminal contemporâneo. Trabalhos como os de Hirata et al. (2021)HIRATA, D. V.; CARDOSO, A.; GRILLO, C.; SANTOS JR., O.; LYRA, D.; DIRK, R.; RIBEIRO, R.; PETTI, D.; SAMPAIO, J. (2021). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Rio de Janeiro, Heinrich Böll Stifung. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/2021-04/boll_expansao_milicias_RJ_FINAL.pdf. Acesso: 22 jan 2022.
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, Duarte (2021)DUARTE, T. L. (2021). Facções criminais e milícias: aproximações e distanciamentos propostos pela literatura. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. São Paulo, v. 90, pp. 1-16., Carvalho Rocha e Motta (2023), Figueiredo (2024)FIGUEIREDO, A. C. (2024). "Tráfico, milícia, operações policiais e o 'pulo do cria': dinâmicas em torno da tomada de território". In: PIRES, L.; ALBERNAZ, E.; RODRIGUES, E. (orgs.) Margens em disputa: ilegalismos, territórios armados e práticas militarizadas. Rio de Janeiro, Autografia. e Roque (2024)ROQUE, A. T. (2024). "'Não sou bandido, sou músico': uma etnografia sobre as relações entre o funk e a expansão miliciana no interior da Zona Oeste do Rio de Janeiro". In: PIRES, L., ALBERNAZ, E., RODRIGUES, E. (orgs.) Margens em disputa: ilegalismos, territórios armados e práticas militarizadas. Rio de Janeiro, Autografia. nos mostram diferentes elementos de sobreposição quanto às estratégias de territorialização e gerenciamento de mercados ilegais entre traficantes e paramilitares, fomentando novas problematizações acerca dos limites analíticos de categorias tais como “traficante” (Silva, 2019SILVA, G. B. da (2019). "Quantos ainda vão morrer eu não sei": o regime do arbítrio, curtição, morte e a vida em um lugar chamado de favela. Tese de doutorado. Niterói, Universidade Federal Fluminense.), “miliciano” (Brama, 2019BRAMA, L. (2019). As diversas milícias do Rio de Janeiro: entre expansões práticas e semânticas. Dissertação de mestrado. Niterói, Universidade Federal Fluminense.) ou mesmo “narcomiliciano” (Alves, 2023ALVES, J. C. de S. (2023). "Termo narcomilícia apaga papel da segurança pública na estrutura miliciana", afirma sociólogo. Disponível em: https://www.brasildefatorj.com.br/2023/11/06/termo-narcomilicia-apaga-papel-da-seguranca-publica-na-estrutura-miliciana-afirma-sociologo. Acesso em: 29 nov 2023.
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).

Além disso, outro aspecto importante deste cenário geopolítico criminal – e que é, por vezes, “eclipsado” pelo maior interesse acadêmico e jornalístico sobre os grupos armados explicitados antes – diz respeito ao papel dos agentes ilegais de segurança privada. Possuindo íntima relação com as forças policiais e grupos de milícias, estimativas apontam que o Brasil ultrapassou um milhão de agentes privados trabalhando em funções de segurança em 2022 (FBSP, 2022FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022). A segurança privada não controlada. Disponível: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/18-anuario-2022-a-seguranca-privada-nao-controlada.pdf. Acesso em: 12 mar 2023.
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, p. 6). Com quase metade dessa força de trabalho alocada fora de regulamentações legais (ibid., p. 7), a oferta de serviços ilegais é abundante no país. Como argumentam Brito, Souza e Lima (2011, p. 168), uma característica lapidar do mercado brasileiro de segurança privada é sua operação em redes sobrepostas com a polícia no que diz respeito à sua organização, funcionamento e formas de recrutamento. Particularmente no Rio, esses mercados são administrados com base em relações de confiança notadamente entre policiais militares (PMs) que compartilham os mesmos ambientes em patrulhas e batalhões (Cortes, 2015CORTES, V. (2015). Espaço urbano e segurança pública: entre o público, o privado e o particular. Dissertação de mestrado. Niterói, Universidade Federal Fluminense., p. 93). Embora a presença policial seja quase onipresente, civis de confiança dos agentes – mesmo sem a autorização legal para o exercício da profissão – são empregados no exercício de funções de proteção patrimonial privada, escolta armada ou mesmo no patrulhamento de logradouros públicos. Dados da Pnad/2017 trabalhados por Rodrigues, Ribeiro e Cano (2019) apontam que o estado fluminense possui 113.292 agentes de segurança privados – 1,3 vezes o número de agentes públicos. Só no recorte da Baixada Fluminense, aproximadamente 70% das empresas atuantes não possuem qualquer autorização legal para funcionar (Goulart e Florentino, 2023GOULART, F.; FLORENTINO, G. (orgs.) (2023). Segurança privada, milícias e racismo institucional. Rio de Janeiro, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial. Disponível em: https://dmjracial.com/wp-content/uploads/2023/04/Seguranca-Privada-1.pdf. Acesso em: 5 nov 2023.
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). Dados estimados para a capital e o restante da RMRJ, todavia, são desconhecidos.

Diante desse cenário, o presente artigo objetiva lançar luz sobre um ator social ainda pouco conhecido da dinâmica criminal carioca – mas que é, não obstante, fundamental na compreensão do entrelaçamento entre a polícia e os mercados ilegais da segurança privada. Chamados de “pi-lícias” pelos próprios agentes da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), esses civis “que querem se passar por polícia” podem ser encontrados em “esquemas”1 1 Um “esquema” descreve o arranjo de relações de caráter pessoal voltadas para a operação de algum mercado encravado nas dobras do legal-ilegal. Na ausência de mecanismos formais de regulação e produção de previsibilidade, bem como pela sua interface com dinâmicas criminais, um “esquema” imprescinde de mecanismos regulatórios baseados na confiança e no segredo entre os seus partícipes para que possa se realizar. Sobre isso, ver Costa e Oliveira (2014) e Rodrigues (2022). de segurança ilegal capitaneados por policiais, como também assumir funções mais “ocultas” do policiamento cotidiano enquanto “informantes” das dinâmicas criminais locais de bairros e favelas, ou mesmo tal qual “forças auxiliares” em operações policiais e/ou paramilitares contra o tráfico varejista.

O significado da categoria é curioso, uma vez que ela combina o prefixo “pi” mais o sufixo “lícia”. Segundo o jargão policial militar fluminense, “pi” significa “pé inchado” e serve para adjetivar pejorativamente qualquer civil como um potencial consumidor abusivo de álcool. Isso ocorre por faltarem aos civis, nesta chave de compreensão nativa, atributos essenciais do “espírito militar” como a hierarquia e a disciplina (Castro, 2004CASTRO, C. (2004). O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.). Por outro lado, o sufixo “lícia” se refere à palavra “polícia”, usada indistintamente pelos agentes em seu dia a dia para nomear a instituição polícia militar e os PMs. Em suma: um “pi-lícia” pode ser definido como um civil que luta para se tornar ou ao menos parecer um “polícia de verdade”. Todavia, o que mais define os “pi-lícias” enquanto sujeitos encravados entre o mundo civil e militar não é apenas o seu “desejo” (nunca completamente realizado) em fazer parte do universo policial. Como veremos, sua proximidade material e simbólica com os PMs é ambivalente: eles conseguem parcialmente capitalizar alguns benefícios dessa proximidade, ao mesmo tempo que seu “desejo de ser polícia” é instrumentalizado pelos agentes para outros fins.

Partindo assim das relações de proximidade entre policiais, “pi-lícias” e milicianos, pretendo demonstrar que a fundação de “comunidades morais” (Bailey, 1971BAILEY, F. G. (1971). "Gifts and Poison". In: BAILEY, F. G. (org.). Gifts and Poison: the politics of reputation. Oxford, Basil Blackwell.) entre esses sujeitos é de fundamental importância no agenciamento de alguns “esquemas” criados a partir dos mercados ilegais da segurança privada no Rio de Janeiro. Da mesma forma, no tocante à problemática sugerida pelo dossiê “Ilegalismos e produção da cidade”, meu objetivo em apresentar as relações entre civis “que querem ser polícia” e PMs é demonstrar como as forças policiais se apresentam enquanto importantes “centros de poder” (Geertz, 1997GEERTZ, C. (1997). "Centros, reis e carisma: reflexões sobre o simbolismo do poder". In: GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, Vozes., p. 187) na produção de sentidos urbanos para uma parcela considerável da população brasileira, em especial nas periferias de uma metrópole como o Rio de Janeiro. Em alinhamento com Wirth (1976WIRTH, L. (1976). "O urbanismo como modo de vida". In: VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., p. 107), se o “modo de vida urbano” pode ser abordado “como um conjunto de atitudes de ideias” que consolidam “formas de comportamento coletivas e sujeitas a mecanismos característicos de controle social” na cidade, a polícia se configura, nesse sentido, tal qual um modelo cultural prescritor de uma ética e visão de mundo que vai além dos espaços formais definidores daquilo que comumente compreendemos enquanto “a polícia”.

Com forma de sustentar meus argumentos, apresento dados construídos através de trabalho de campo etnográfico realizado por quinze meses (julho/2019 – setembro/2020) junto a centenas de candidatos ao concurso de “soldado da PMERJ”. Dentro deste universo, conheci dezenas de candidatos que já possuíam relações prévias com a polícia antes de prestar concurso para a corporação, por conta de, entre outras relações, seus empregos em firmas de segurança administradas por agentes. Entre esses candidatos está Wellington – um “pi-lícia” que objetiva reconquistar seu caminho de entrada formal no universo policial ao tentar, pela segunda vez, o referido concurso. A trajetória de Wellington é objeto de interesse analítico por ela demonstrar, por um lado, como as forças policiais cada vez mais disputam os sentidos da vida urbana periférica brasileira nas dobras do legal-ilegal (Manso, 2020MANSO, B. P. (2020). A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo, Todavia.; Feltrán, 2021FELTRÁN, G. (2021). A política como violência. Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política. Campos dos Goytacazes, v. 17, n. 2, pp. 228-257.), num contexto de crescente autonomização política policial (Pires, Albernaz e Rodrigues, 2024RODRIGUES, E. de O. (2024). Fake officers/real police: what are pi-lícias doing in the streets of Rio de Janeiro? The Cambridge Journal of Anthropology. Cambridge (no prelo).). Da mesma forma, ela demonstra também alguns dos enredamentos entre policiais, milicianos e “pi-lícias” na operação dos “mercados da proteção” em curso na metrópole carioca, dentro da ampla e diversificada rede de policiamento que acontece “através, por acima, por abaixo e para além do Estado” (Loader, 2000LOADER, I. (2000). Plural policing and democratic governance. Social & Legal Studies. Londres, v. 9, n. 3, pp. 323-345., p. 238).

Os dados apresentados no artigo estão assim organizados em duas sessões complementares. Primeiramente, apresento a errática trajetória de vida do candidato junto a milicianos e PMs em seu cotidiano de trabalho e lazer. Meu interesse inicial é descrever como essas relações entre civis e policiais forjam “comunidades morais” em recantos esquecidos da metrópole carioca, alimentadas por um “mercado de reputações” que torna a carreira policial atrativa para uma série de jovens que habitam esses lugares. Já na segunda parte, me detenho em um caso específico da trajetória de Wellington, quando ele foi “plantado” dentro de um casarão abandonado na região central da cidade, servindo de “informante” para uma investigação policial sobre a venda local de entorpecentes. Embora não fosse “de fato” nem policial nem miliciano, a participação ativa de Wellington nesse “esquema” demonstra como tais “comunidades” pavimentam caminho para uma série de práticas ilegais de policiamento que são instrumentalizadas através dos “pi-lícias”. Por fim, nos apontamentos que finalizam o artigo, sugiro compreender a relação entre “polícias”, “pi-lícias” e “milícias” através de um “jogo de espelhos” identitário, cujos reflexos espelham construções de ordem moral e política fundamentalmente instáveis.

A trajetória de Wellington

Meu primeiro contato com Wellington se deu logo na primeira semana de campo, por conta de uma situação recorrente entre meus interlocutores: o desinteresse pelas matérias cobradas no exame intelectual do concurso.2 2 Durante o período do campo, o “cursinho preparatório” onde fiz inicialmente minha observação participante oferecia grade de disciplinas baseada no exame intelectual dos últimos concursos para “soldado” realizados até então (2010 e 2014). Neles, a PMERJ exigiu conhecimentos teóricos nas seguintes disciplinas: língua portuguesa instrumental, redação, história, geografia, sociologia, legislação de trânsito, direitos humanos e informática. Por ser licenciado em geografia e doutorando em antropologia na época, meu contato inicial com os candidatos se desenvolveu a partir da minha posição enquanto “monitor informal” das disciplinas do campo das “humanidades”. No intervalo de uma das aulas, Wellington e outros candidatos se levantaram e saíram para “tomar um café”, no intuito de vencer a preguiça daquela manhã de sábado. Perguntei se poderia acompanhá-los e nenhum deles fez qualquer objeção. Chovia, e eles decidiram comprar café numa máquina automática localizada no próprio prédio, na entrada do hall onde ficavam os elevadores. Descemos juntos, com os candidatos conversando sobre o andamento da aula de informática. Todos nós nos servimos e fomos para uma varanda coberta que dava acesso ao prédio, a fim de conversar por alguns minutos. Entre um gole e outro da bebida, Wellington esbravejava: “E eu vou calcular apreensão de droga no Excel? Ver ‘bagulho’ de nascimento de Dom Pedro pra preencher um B.O. [Boletim de Ocorrência]? Porra, a prova não é pra PM? Tem que saber onde o sol nasce pra dar tiro, irmão!?”.

O jeito fanfarrão e expansivo de Wellington preenchia todo o ambiente com sua presença. Ele era facilmente notado. Enquanto todos riam das suas piadas, ele conseguia prender a atenção dos colegas com um ritmo de fala cadenciado, além de muito bem articulado e comunicativo. Aliando ainda a sua aparência de um pouco mais idade, Wellington exercia certa liderança dentro daquele grupo de jovens potenciais PMs. O respeito que os outros candidatos apresentavam por ele me parecia construído com base nas histórias que ele contava, na construção coletiva da sua reputação. Retomando Bailey (1971BAILEY, F. G. (1971). "Gifts and Poison". In: BAILEY, F. G. (org.). Gifts and Poison: the politics of reputation. Oxford, Basil Blackwell., p. 12), as reputações dentro de uma dada comunidade se relacionam com as histórias que circulam entre seus membros. É através desse contar e ouvir histórias que vamos tecendo nossa própria leitura do outro, a partir de processos classificatórios dos seus membros que definem hierarquias e padrões de inclusão/exclusão dentro da comunidade. Sendo um ex-militar que sempre andou muito próximo a integrantes das forças policiais de segurança, Wellington tinha a reputação de alguém que já conhecia os meandros da vida de polícia3 3 “Vida de polícia” é uma categoria nativa do universo policial do Rio de Janeiro, e que ouvi da boca de PMs e candidatos ao longo do meu campo. Ela descreve as peculiaridades relativas à rotina diária do trabalho policial e características mais gerais do estilo de vida dos agentes relacionados aos seus riscos e oportunidades. Histórias sobre a “vida de polícia” normalmente mobilizam elementos centrais da “subcultura policial” (Reiner, 2004) muito ligados ao senso de missão policial, o desejo de ação, a divisão “nós/eles” entre policiais e civis, visões conservadoras e autoritárias de mundo, etc. mesmo sem ser ainda formalmente um “polícia”.

Naquela manhã, ele contou que já poderia estar na PMERJ há quase 10 anos. Disse que tentou o concurso de 2010 e que não passou porque “zerou” a prova de informática. Por isso ele dizia ficar “muito puto” com aquela disciplina em especial, já que temia não conseguir novamente a aprovação por sua dificuldade com os números. Wellington ainda era soldado da Aeronáutica quando tentou pela primeira vez a prova. Engajou-se aos 18 anos, após concluir o ensino médio, e tentou virar PM para continuar a trajetória militar que vários homens da sua família e da sua vizinhança percorreram. Aos 24, ele deixou a Aeronáutica ainda na graduação de soldado, quando terminou seu período de 6 anos de serviços temporários prestados às Forças Armadas. Mesmo lamentando o fracasso, ele afirmava que não ter “virado polícia” em 2010 teve seu lado bom: “Maninho, vou falar pra vocês: se eu entro naquela época, eu tinha morrido”. Wellington justificou a frase ao falar que andava de “oitão”4 4 Referência ao revólver calibre .38 milímetros. para tudo quanto era lado, se metendo em brigas e colecionando muitas inimizades na juventude. Eu ouvia tudo aquilo em silêncio, embora bastante intrigado, tentando pensar no tipo de inimizades que meu interlocutor colecionara para andar armado e temer ser morto. Muito a contragosto, decidi, todavia, guardar silêncio naquele momento e esperar outras oportunidades para saber mais da sua vida. Afinal, assim como Doc uma vez explicou a Whyte (2005WHYTE, W. F. (2005). Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área pobre urbana degradada. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., p. 303), “se te aceitam, basta que você fique por perto, e saberá as respostas a longo prazo, sem nem mesmo ter que fazer as perguntas”.

Consegui compreender aquela afirmação ao longo do tempo, ao reunir, pouco a pouco, fragmentos do “mosaico biográfico” de Wellington através da nossa convivência prolongada. Tendo trinta e três anos completos,5 5 Embora tradicionalmente a idade limite para o concurso de “soldado PM” fosse 30 anos, havia uma disputa jurídica na época do campo por conta das contestações ao PL n. 346/19, de autoria da deputada estadual Martha Rocha, que modificou a idade máxima de ingresso na carreira para 35 anos. Mesmo aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o projeto foi vetado pelo então governador Wilson Witzel a pedido da própria PMERJ. Ainda em 2019, a Alerj derrubou o veto do governador, que tentou durante meses anular a lei e manter a idade máxima em 30 anos. Pela insegurança jurídica da situação, alguns candidatos como Wellington decidiram tentar a prova e, caso desclassificados pela idade, seus empossamentos poderiam ser disputados, teoricamente, na justiça. Em todo caso, no concurso seguinte para “soldado”, realizado em 2024, a questão foi pacificada com a idade máxima fixada pelo edital em 32 anos. meu interlocutor trabalhava como representante comercial de uma firma de equipamentos hospitalares na época do campo. O emprego – o primeiro em sua vida de carteira assinada – estava longe de “pagar bem”. Mas era algo, segundo Wellington, mais “concreto” do que os “bicos” que ele fez durante muito tempo em outros lugares, principalmente em funções no mercado da segurança privada. Casado há 14 anos e com dois filhos, ele creditava ao nascimento do segundo rebento, ocorrido havia cinco anos, o principal motivo para ter levado a vida “mais devagar” desde então. A nova rotina laboral tomava boa parte do seu tempo de segunda a sexta-feira, sendo o fim de semana dedicado à família ou a eventuais viagens de trabalho para visitar clientes no interior fluminense. Tudo isso, no entanto, não o impedia de se valer das viagens para encontrar alguma das suas duas “amantes”, ou mesmo para sair com os amigos longe dos olhos da esposa. Seu salário de aproximadamente três mil reais era gasto desta forma: com algumas despesas da família, com as eventuais “noitadas” e em “agrados” pontuais às “amantes” como o “dinheiro pro salão”, motéis, lingeries e, mais raramente, o “pagamento de boletos”, a exemplo de contas de luz, água, gás, etc.

As altas despesas e a “grana curta” sempre foram problemas alegados por Wellington para voltar a pensar na PMERJ enquanto opção de vida. Ele acreditava que os ganhos econômicos na corporação – fossem eles legais ou ilegais – poderiam melhorar a condição de todos aqueles envolvidos em suas dinâmicas familiares e (extra)conjugais. Isso gerava para ele uma espécie de dilema, explicado através de uma representação nativa comum acerca da vida de polícia que ouvi de muitos outros candidatos e de alguns policiais ao longo do campo. Grosso modo, eles afirmavam que “todo polícia que se preza tem uma amante”, sendo tal reputação alegadamente um dos motivos que levam PMs a se envolverem com a corrupção, dada a incompatibilidade do “estilo de vida cafajeste” com os baixos salários.6 6 O salário inicial de um “soldado da PMERJ”, na época do campo, era de R$3.452,55 brutos. Wellington sintetizava o argumento desta forma: “Tu pega aí um ‘polícia’ mais ‘cascudo’… tipo um ‘terceiro sargento’. O coroa vai ter aí pra sustentar, no mínimo, ex-mulher, esposa, filho... fora as ‘piranhas’ que ele come. Como é que o ‘polícia’ vai fazer isso se não for na sacanagem?”.7 7 A “sacanagem”, no universo da PMERJ, é uma outra categoria nativa que descreve as práticas ilegais cometidas pelos agentes para auferir renda.

Para Wellington, todas essas expectativas profissionais e reputações acerca da carreira policial não eram algo aleatório, mas fruto da maneira errática como sua trajetória foi acontecendo. Pelo seu porte físico avantajado, aliado ainda à prática regular de artes marciais e pelo treinamento militar recebido na Aeronáutica, meu interlocutor logo recebeu convites para trabalhar de “segurança” em diferentes atividades: eventos em boates, bordéis ou casas de shows, na segurança de pequenas galerias comerciais ou lojas, entre outros. Ele trabalhava inicialmente aos finais de semana ou à noite, nas folgas do quartel, conseguindo complementar assim o salário de soldado que recebia na época. Quando largou a caserna, passou a se dedicar integralmente a esses “bicos”, conhecendo mais de perto PMs que trabalhavam informalmente assim como ele, ou mesmo outros “polícias” que “empregavam” colegas de farda ou civis de confiança em suas firmas de segurança. Foram essas pessoas que o convenceram a fazer o concurso de “soldado PM” em 2010, logo que Wellington saiu da Aeronáutica, assim como foram esses mesmos agentes que acabaram por assumir papel importante em sua vida profissional e pessoal ao tornarem-se pessoas próximas.

Meu interlocutor sempre demonstrou sentir orgulho da proximidade com esses agentes, notadamente pelas possíveis “vantagens” que tal relação trazia. Ele admitia que a maioria dos seus “bicos de segurança” foram indicações dos seus amigos PMs. Os civis trabalhando nesses “bicos” eram geralmente pessoas como ele, ou seja, trabalhadores sem habilitação formal para o exercício da profissão, mas que se inseriam nesses mercados por intermédio de amigos e conhecidos que eram policiais ou pessoas próximas a policiais. A escolha por certos civis estava ligada, segundo ele, à reputação que cada um ia construindo sobre si mediante a avaliação das suas performances individuais. Elas sempre deveriam corresponder ao máximo às expectativas dos policiais, e Wellington era taxativo nesse aspecto: “pra trabalhar de ‘segurança’ tem que ter disposição. Se der uma de ‘água de salsicha’,8 8 Outra categoria nativa do universo da PMERJ, usada pejorativamente para designar agentes que não assumem funções mais operacionais do trabalho policial, como aquelas ligadas ao trabalho nas ruas. Ser “água de salsicha” é ser um “polícia que não fede nem cheira”, o oposto do PM corajoso e valente, o “polícia brabo” ou mesmo o “polícia pica das galáxias”. ninguém te chama de novo”. Atributos como bravura e coragem, atrelados ainda a perícia com armas de fogo e ser “bom de porrada”, eram mandatórios para conseguir uma boa inserção no mercado e para fazer circular sua “fama” entre os policiais que comandavam esses “esquemas”. A variedade de situações, nesse sentido, fazia com que os preços cobrados por cada uma dessas empreitadas fossem distintos:

“às vezes num pagode aí dia de sábado, dava pra tirar cem, centro e cinquenta [reais] por noite. No puteiro dava mais, porque o dono era ‘colega’ [o dono era policial]. Mas o bom mesmo era festa de playboy. Já tirei até duzentos e cinquenta por noite, fora a comida e os pertences que a gente podia achar no final da festa”.

Apesar de a proximidade com policiais ampliar consideravelmente o “campo de possibilidades” profissional nativo (Velho, 1981VELHO, G. (1981). "Projeto, emoção e orientação em sociedades complexas". In: VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.), meu interlocutor afirmava seu interesse na carreira não apenas em termos materiais, mas também simbólicos. Dois ativos fundamentais merecem lugar de destaque na negociação destas outras reputações entre civis e policiais militares. Em primeiro lugar, o medo é o componente fundamental da noção de “respeito” entre PMs cariocas (Ramos, 2017RAMOS, L. dos S. (2017). Entre a "judaria interna", a "pista salgada" e o "medo de se entregar": Uma etnografia das representações de medo entre policiais militares do Estado do Rio de Janeiro. Monografia de bacharelado. Niterói, Universidade Federal Fluminense.), sendo a capacidade de “fazer o mal a alguém” (ibid., p. 20) o principal operador (Bailey, 1971BAILEY, F. G. (1971). "Gifts and Poison". In: BAILEY, F. G. (org.). Gifts and Poison: the politics of reputation. Oxford, Basil Blackwell., p. 12) a hierarquizar cada agente dentro dessas comunidades morais. Certa vez, num intervalo entre as aulas, perguntei irritado se Wellington queria entrar para a polícia “só pelo dinheiro”, já que ele tentava, diuturnamente, me convencer a largar a “miséria de ser professor” para tentar o concurso da PMERJ. Surpreso com minha irritação, ele tentou me explicar por que pensava em entrar para a polícia para além dos benefícios econômicos:

"Dinheiro é importante, mas não é só isso. Tu não tá me entendendo! Todo mundo quer ser ‘amigo do polícia’, né? Tu já viu alguém querer arrumar confusão com ‘polícia’? Dá em cima da mulher dele, ou dar um tapa no filho do ‘polícia’? Quando a chapa esquenta, é o ‘polícia’ que decide se tu tá certo ou errado. Se tu sabe usar a arma, a farda e a carteira [funcional], ‘ser polícia’ pode abrir portas".

A explicação de Wellington me pareceu transbordar razões ligadas à simples busca de melhores “oportunidades de emprego”, por ela fazer referência à importância de se ter uma boa relação com a polícia. Hornberger (2004HORNBERGER, J. (2004). "My police - your police": the informal privatisation of the police in the inner city of Johannesburg. African Studies. Joanesburgo, v. 63, n. 2, pp. 213-230., p. 213) nos mostra que, em contextos sociais precários, estabelecer relações de boa vizinhança com policiais pode ser, muitas vezes, uma das mais importantes formas de sobrevivência para os pobres urbanos. Se tal problemática for trazida para as periferias brasileiras, onde as forças policiais controlam e influenciam o cotidiano local devido ao alto poder discricionário (e baixíssimo accountability) que os agentes possuem (Albernaz, 2020ALBERNAZ, E. R. (2020). Economias-políticas marginais: produtividade policial, vizinhanças radicais e a (re)produção cotidiana das desigualdades em uma favela de Niterói-RJ. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia. Niterói, n. 50, pp. 107-127.; Ferreira, 2021FERREIRA, I. do C. (2021). Entre mercadorias políticas e autos de resistência: memórias etnográficas de um oficial do extinto 1º BPM da PMERJ. Dissertação de mestrado. Niterói, Universidade Federal Fluminense.), muitos moradores compreendem as polícias e outros grupos criminais armados como os principais “centros de poder” para a ordem social local. Wellington e outros candidatos como ele tinham plena consciência disso. Eles percebiam como os agentes usavam a PMERJ enquanto “plataforma” para elevar sua reputação local entre vizinhos, amigos e conhecidos em seus lugares de moradia, trabalho e lazer.9 9 Esses lugares particulares, que denominei lugares de polícia, são espaços que não correspondem ao sentido estritamente geográfico do termo, mas sim, como defende Massey (1991), a um recorte particularizado no espaço que agrega certa “constelação de relações sociais” acerca de experiências compartilhadas entre os sujeitos – inclusive sobre o que é “ser polícia”. Da mesma forma, nos lugares de polícia a territorialidade policial não é exercida exclusivamente pelos papéis que os agentes assumem quando em serviço. Trata-se, por outro lado, de espaços onde a presença de policiais enquanto seus moradores ou frequentadores assíduos implica algum controle sobre a circulação local de mercadorias, pessoas e informações. Para um debate metodológico sobre a construção analítica da categoria, ver Rodrigues (2023). Nessas paragens, ser reconhecido enquanto “amigo”, “conhecido”, “esposa”, “filho” ou ao menos como “alguém próximo” de um “polícia brabo” (e não de um mero “água de salsicha”) é uma forma de se obter “respeito” através da reputação que tal agente constrói sobre si.

Além do medo, outro ativo que merece destaque nesses “mercados da reputação” diz respeito ao exercício de certos padrões hegemônicos de masculinidade. Compreendo hegemonia aqui no sentido gramsciano mobilizado por Connell (1995)CONNELL, R. (1995). Masculinities: the social organization of masculinity. In: CONNEL, R. Masculinities. Oakland, University of California Press., que aponta o gênero como um lugar de exercício do poder não apenas por intermédio da violência, mas também da cultura. Trata-se de um conjunto de performances que corporificam formas mais honradas e coletivamente reconhecidas de “ser homem” (Connell e Messerschmidt, 2013CONNELL, R.; MESSERSCHMIDT, J. W. (2013). Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 21, n. 1, pp. 241-282.), mas que dependem de condições particulares inscritas no tempo e no espaço para se construírem enquanto hegemônicas.

Wellington me contou muitas histórias de como ele “fazia sucesso” com as mulheres em sua vizinhança ou nas festas aonde ia por andar armado, por trajar acessórios de vestuário que o identificavam ao universo policial, ou mesmo por conseguir acessar boates ou shows simplesmente por estar na companhia de PMs que “davam carteirada”. Dessas narrativas, o corte de cabelo no estilo militar, os cordões dourados e prateados de “corrente grossa”, os relógios de mostradores grandes e chamativos, algumas tatuagens e até mesmo certos gestuais usados em cumprimentos ou saudações emergiam tal qual “objetos materiais” (McCraken, 2007, p. 102) que compunham as performances do gênero masculino no universo policial militar. Em diferentes ocasiões, testemunhei outros candidatos civis afirmarem que a tríade “relógio + cordão + arma” conformava o que eles chamavam de “kit PM”, dado que a maior parte dos PMs que lhes eram de convivência próxima não abriam mão desses objetos em qualquer lugar que fossem. Segundo eles, esses artigos serviam não só para identificar os agentes entre si mesmos quando eles não estivessem fardados, mas também na sua apresentação cotidiana num mundo binário compreendido a partir da potencial interação com bandidos ou mulheres. O “kit PM” estar à mostra serviria tanto para alertar possíveis criminosos que ali estava um “polícia brabo” pronto para responder a qualquer agressão, quanto para atrair mulheres que, do ponto de vista nativo, possuiriam predileção para sair com algum homem reconhecido enquanto “polícia”.

Se pensada da perspectiva de Mizrahi (2018)MIZRAHI, M. (2018). "O Rio de Janeiro é uma terra de homens vaidosos": mulheres, masculinidade e dinheiro junto ao funk carioca. Cadernos Pagu. Campinas, v. 52, pp.185-215., a “pessoa masculina” no universo policial carioca também toma de empréstimo a exibição de adornos como dinheiro, cordões, anéis, armas, roupas, etc. e a própria presença ostensiva de mulheres na sua definição relacional. São esses adornos da pessoa que permitem emergir o homem enquanto “pessoa social” (ibid., p. 5), já que sua compreensão enquanto tal é tributária da produção de uma estética, em forma de performance, que procura auferir rendimentos para si através do consumo desses símbolos. Entretanto, duas questões correlatas surgem daí. Em primeiro lugar, é importante perceber que essas mesmas performances de gênero possuem um componente territorial muito claro, já que elas se inscrevem mais fortemente em certas “regiões morais” (Park, 1976PARK, R. E. (1976). "A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano". In: VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.) da metrópole carioca. Em segundo lugar, é importante perceber também que todos esses objetos reconhecidos como símbolos do universo policial não são manipulados, apenas, por policiais nessas paragens. Chamo a atenção para o fato de que é nas áreas mais pauperizadas da capital e da sua região metropolitana, onde a polícia se apresenta mais claramente enquanto “centro político” a disputar os sentidos da vida urbana cotidiana ao lado de grupos armados como traficantes e paramilitares, que o “ser policial” encapsula esses padrões hegemônicos de masculinidade.10 10 Ainda na chave analítica sugerida por Mizrahi (2018), a noção de “pessoa masculina” no universo policial militar parece manter, nesse sentido, íntima relação com os apontamentos da autora sobre as interseções entre as masculinidades do universo do funk, do tráfico e da própria contravenção, ou mesmo com outras “masculinidades violentas” estudadas por Ceccheto (2004) em relação ao universo dos lutadores de jiu-jitsu, ou mesmo Monteiro (2003) em relação às torcidas de futebol. Uma parte importante dos candidatos que conheci, inclusive, transitava com frequência por esses outros dois universos culturais no Rio de Janeiro, ou mesmo tinha passagem pelo “mundo do crime” enquanto ex-traficantes ou assaltantes. Não é à toa que Wellington e tantos outros candidatos civis que conheci não queriam “ser polícia” nos bairros mais abastados da Zona Sul ou na Barra da Tijuca, mas sim, preferencialmente, nos subúrbios pobres da capital ou na Baixada Fluminense. Nessas regiões, a reputação de um “polícia” permite que ele seja mais facilmente “temido” e “desejado”.

Por todas essas razões, Wellington conseguia auferir rendimentos variados por intermédio desses mercados reputacionais territorializados, principalmente através da sua mimetização enquanto “polícia” aos olhos do público. Apenas pela sua aparência, ninguém de fora dessas comunidades era capaz de diferenciá-lo de agentes à paisana quando em trânsito por esses espaços de moradia, trabalho e, principalmente, lazer:

“Todo domingo tinha uma roda de samba ‘pica’ lá na ‘Águia de Prata’, que depois virava um pagode. Tinha dia que os ‘polícia’ fechavam camarote. Quando eles me chamavam, eu ficava lá de cima com eles vendo o movimento, tomando whisky, os ‘baldinho’ cheio de cerveja na mesa. As ‘mulher’ rendiam muito pra gente! Elas olhavam lá de baixo, só encarando, a gente só falava: ‘aí, tu mesmo, sobe!’. O camarote ficava cheio de mulher, parecia que tu tava ‘pescando’! De lá, era só levar pro motel.... era mulher pra caralho!”

A “Águia de Prata” era uma escola de samba que já tivera dias de melhor sorte no carnaval do Rio de Janeiro, embora as festas e os “ensaios de bateria” ainda atraíssem pequenas multidões à sua quadra no subúrbio carioca. O presidente da escola mantinha relação de proximidade com a contravenção local, sendo comum a presença de bicheiros, policiais, milicianos e, como a fala do próprio Wellington denunciava, “pi-lícias” entre os frequentadores dos eventos. Assim como em outros lugares de polícia, pessoas comuns desfrutavam de privilégios como o acesso ao referido camarote pelas relações de camaradagem mantidas com esses PMs, milicianos e contraventores. Além da quadra da “Águia de Prata”, Wellington descrevia ainda alguns bares em comum que eram frequentados por ele e outros homens de confiança próximos aos policiais, além de uma espécie de “circuito de bordéis” por onde ele transitava na companhia desses homens para trabalhar e se divertir. Eram festas regadas a churrascos, charutos, bebidas e orgias com prostitutas, que possibilitavam reforçar os votos de confiança e segredo entre eles. Pelos conteúdos sociais presentes nessas histórias, participar dessas atividades me parecia de fundamental importância não só para a galvanização positiva da reputação desses homens, mas também para o próprio fortalecimento político dessas comunidades.

Uma questão importante, no entanto, é que, embora essas comunidades morais englobassem também alguns “milícias”,11 11 Em meu campo, assim como no caso do “polícia”, meus interlocutores fossem eles civis ou policiais se referiam aos integrantes de grupos de milicianos simplesmente como alguém que era “milícia”. meu interlocutor afirmava nunca ter tido maior interesse em engrossar permanentemente as fileiras paramilitares. Ele trabalhou apenas durante um tempo para milicianos em funções menores (como recolher desarmado a “taxa de segurança” em seu antigo bairro de moradia), além de, alguns anos depois, ter participado pontualmente de ações contra traficantes como uma espécie de “força auxiliar” na invasão de favelas, notadamente pelo treinamento recebido nas Forças Armadas. Por ser próximo a membros da milícia atuante em sua antiga vizinhança, ele admitia ter sido bastante assediado no passado para assumir funções de maior responsabilidade nesses grupos, mas afirmava nunca ter cedido aos convites por não concordar com algumas práticas experimentadas de perto enquanto morador local:

“Eles [a milícia] surgiram com uma ideia boa. Lá na minha área, não tem nem comparação como é que as coisas melhoraram quando eles entraram. O bairro ficou tranquilão. Não tinha mais assalto... aquele monte de viciado indo comprar droga. Tiroteio, baile acontecendo até de madrugada sem deixar ninguém dormir... acabou aquilo tudo. Todo mundo apoiou porque ninguém aguentava mais. Mas eu nunca ‘fechei’ com eles por conta da ‘covardia’ que eles faziam. Não com bandido, viciado, ladrão... isso aí eles matavam e tem que matar mesmo. Mas, mano, cobrar de morador? Me botavam pra cobrar 40, 50 contos da ‘tiazinha’ do cachorro-quente. O cara que tinha um mercado, pagava 100. O morador era obrigado a comprar o gás mais caro na mão deles. Eu saí fora, meu negócio não era esse não. Se for pra ‘quebrar’ bandido, conta comigo. Agora, extorquir meu vizinho? Não fode!”.

Wellington deixou de trabalhar para os milicianos logo que começou a fazer os “bicos de segurança”, embora, em longo prazo, admitisse que galgar degraus na hierarquia miliciana fosse lhe garantir melhores rendimentos futuros. Em termos financeiros, Wellington não demonstrava ser tão ambicioso como outros candidatos que conheci em meu campo, dizendo ter sido mais importante, em sua escolha, a maior identificação moral com aqueles outros empregos que foram aparecendo. Ele não admitia fazer certas “covardias” contra pessoas inocentes, incluindo aí extorquir dinheiro de moradores do seu bairro coagidos a participar dos “mercados da proteção” locais. Não obstante, ele se manteve próximo a alguns “milícias” por eles frequentarem os mesmos lugares de polícia onde outros “pi-lícias” e “polícias” transitavam, já que parte desses agentes eram também “milícias” ou ao menos estavam enredados em malhas próximas pela lotação em batalhões das áreas territorializadas pelos paramilitares nos subúrbios da zona oeste carioca.

Em verdade, Wellington chamou minha atenção para o fato de que integrar esses grupos era a melhor forma que alguns civis encontravam para “dar vazão” ao desejo frustrado de “ser polícia”, já que, entre os “milícias”, havia muitos “polícias” expulsos da corporação e homens que tentaram e não conseguiram ingressar formalmente na carreira policial. No entanto, entre os “pi-lícias” tal idiossincrasia também estava presente, já que muitos desses sujeitos próximos aos policiais também falharam em entrar formalmente para a PMERJ – a exemplo do próprio Wellington. Embora categorias muito próximas, “pi-lícias” e “milícias” se diferenciavam pela maneira como essas identidades se relacionavam com a do “polícia”. Como no caso de Wellington, o “pi-lícia” é um sujeito agonístico que trava uma luta permanente consigo mesmo e com o mundo para “ser” ou ao menos “parecer” um “polícia”. Um “pi-lícia” não afirma, mas sim mimetiza a identidade policial através da mobilização de objetos culturais ou práticas sociais que o identificam parcialmente com o referido universo, já que ele ainda traz consigo, do ponto de vista dos PMs, elementos residuais de “poluição civil” enquanto “pé inchado”.

Por outro lado, o “milícia” não é um liminoide (Turner, 2015TURNER, V. (2015). "Do liminar ao liminoide, no brincar, no fluxo e no ritual". In: TURNER, V. Do ritual ao teatro: a seriedade humana de brincar. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.) vivendo entre o mundo civil e policial. Ele não mimetiza a identidade do “polícia” nos mesmos moldes, já que ele é ou foi um “polícia”, “bombeiro”, “agente penitenciário” ou ao menos “militar” no passado. Da mesma forma, no caso de civis, esses milicianos tendem a construir sua identidade e mesmo legitimidade de ação muito mais em oposição à figura do traficante do que qualquer outra coisa – mesmo que isso cada vez mais ocorra em termos “ideais”. Tal fato faz com que Wellington e outros candidatos desaprovem práticas recorrentes como o envolvimento de milicianos em mercados ilegais antes exclusivos do tráfico, denominando esses hibridismos de “milícias de ganso”.12 12 Categoria nativa usada por PMs para se referir a pessoas que, supostamente, possuem algum envolvimento com o uso ou comércio de drogas ilícitas. Sobre isso, ver Cruz e Costa (2021). Para eles, embora paramilitares cometam crimes, certas práticas, como a operação do varejo da droga, constituem um tabu, mesmo que, em termos práticos, as fronteiras identitárias entre esses atores estejam cada vez mais difusas. Não obstante, existem nessas comunidades morais operadores que fomentam processos de hierarquização entre os sujeitos a partir de valores de pureza referenciados sobre um “ideal de polícia”, cujo polo oposto, nesta taxonomia moral, repousa sobre a figura do “ideal de traficante”. Em outras palavras, tal diferenciação entre o sagrado (polícia) e o profano (tráfico) – e por conseguinte tudo aquilo categorizado entre eles – não se encontra, como esclarece Douglas (1976DOUGLAS, M. (1976). Pureza e perigo. Lisboa, Edições 70., p. 55), na materialidade das coisas em si, mas sim na moralidade de uma dada comunidade. Para a autora, os tabus se apresentam tal qual um “sistema de restrições” dinâmico que serve para excluir tudo aquilo que ameaça o ordenamento simbólico sustentador de uma dada identidade política – a exemplo das comunidades morais construídas em torno da polícia.

A despeito de todas essas aproximações e distanciamentos entre “polícias”, “pi-lícias” e “milícias”, não é surpreendente que moradores de periferias pobres como Wellington considerem a entrada nas forças policiais como forma de auferir benefícios como aqueles mostrados anteriormente. Os “pi-lícias” são um resultado direto deste movimento, que acaba por complexificar as comunidades morais construídas em torno dos agentes e dos seus próprios limites com o mundo civil. Entretanto, se aos “pi-lícias” é permitido desfrutar de certas “vantagens” ligadas a essa proximidade, outro elemento fundamental desta relação é a instrumentalização do seu “desejo de ser polícia” em benefício dos agentes. Outra história vivenciada por Wellington no âmbito da sua participação em uma investigação policial nos ajuda a compreender como acontece essa dinâmica hierárquica de trocas.

“Fazendo troia”

Embora as histórias de guerras descritas pela vida de polícia encontrem-se muito distantes dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, de Homero, existe uma forma muito particular de apropriação de um desses episódios por parte de policiais e afins no Rio de Janeiro. Grosso modo, quando um PM fala que ele ou algum companheiro de farda está a planejar ou a “fazer troia”, ele se refere a um conjunto de ações estratégicas que visam emboscar criminosos. Praticada geralmente (mas não exclusivamente) em espaços de favela, a “troia” não se trata de uma incursão espetacular da polícia que visa enfrentar belicosamente o tráfico varejista como se assiste diuturnamente nos noticiários ou filmes. De maneira distinta, “fazer troia” diz respeito aos agenciamentos silenciosos e ilegais praticados por agentes que procuram se “infiltrar” em áreas de interesse, como na proximidade de bocas de fumo ou de paióis de armas, no intuito de monitorar o movimento do tráfico sem serem percebidos. No momento mais oportuno, os PMs podem assim atacá-los, aumentando, significativamente, a chance de execução de criminosos ou mesmo de apreensão de drogas e armas. A analogia feita ao mito grego do “cavalo de troia” diz respeito a ambas as estratégias se valerem de uma “infiltração” no campo inimigo para a realização de um “ataque surpresa” – seja o inimigo uma sentinela troiana ou um soldado do tráfico carioca.

Algumas vezes, uma “troia” pode ser feita ao final de uma “operação policial”, quando a maioria dos agentes deixa a favela e alguns ficam para trás “entocados” em casas cuja localização julgue-se estratégica. Conforme o tráfico volta ao seu funcionamento rotineiro, os agentes da “troia” podem agir de surpresa, quando os bandidos acreditam estar seguros sem a presença da polícia por perto. Outras vezes, os PMs permanecem em sua posição defensiva por mais tempo, aguardando o retorno de uma “segunda operação” previamente combinada com os colegas de farda. Diante da nova incursão, os eventuais traficantes em fuga podem ser mais facilmente surpreendidos pelos agentes por tiros desferidos desde as janelas das casas ou de cima das lajes. “Troias” podem ser também construídas previamente com o auxílio da “P2”13 13 Serviço reservado da PMERJ, responsável pelo setor de “inteligência”. ou outros agentes que possuam dados sensíveis sobre determinado lugar, ou ainda aprimoradas pelo auxílio de “X-9s”14 14 Alcunha para alcaguete. locais que repassam informações acerca da localização das bocas de fumo, rotas de fuga dos bandidos e esconderijos de armas, drogas ou dinheiro.

No entanto, não apenas policiais no exercício da profissão participam de uma “troia” ou mesmo de uma “operação policial” no Rio de Janeiro. As comunidades morais descritas anteriormente entre “polícias”, “pi-lícias” e “milícias” pavimentam caminho para a participação de civis nesses “esquemas”, onde práticas ilegais de policiamento são agenciadas através das relações de confiança e segredo estabelecidas entre esses homens. Em uma dada ocasião, ao visitar Wellington, ele me levou até seu quarto e retirou orgulhoso do armário dois coletes ainda guardados “dos tempos de segurança”. O primeiro que segurei em mãos era um exemplar preto, com a inscrição “apoio” nas costas, como muitos outros coletes de uso comum de agentes privados de segurança que já tinha visto. Meu interlocutor contou que a peça fora usada em diferentes situações, como quando ele praticou seu primeiro homicídio, aos 22 anos de idade. Numa fatídica Quarta-Feira de Cinzas, quando largou um “bico de vigia” em um posto de gasolina às seis da manhã, Wellington percebeu dois rapazes numa moto reduzindo a velocidade próximos ao ponto de ônibus para onde ele se encaminhava. Embora a rua estivesse vazia, os dois rapazes passaram por ele em velocidade e não notaram sua presença alguns metros antes da paragem. Na hora, meu interlocutor disse que seu “espírito de polícia” falou mais alto: ele colocou a mão no “oitão” que sempre trazia consigo, e se dirigiu em direção ao ponto com passo acelerado. Em questão de segundos, enquanto um dos assaltantes recolhia os pertences das vítimas, ele engatilhou a arma e disparou em direção à moto. Dos três disparos, dois atingiram o alvo pelas costas. O “garupa” desabou para trás já agonizando, enquanto o “piloto” arrancou em fuga pela avenida vazia junto com as pessoas que corriam dos tiros. Meu interlocutor se aproximou do rapaz, abriu a viseira do seu capacete e, a sangue frio, acabou de descarregar o tambor do revólver. Outros três disparos na cara do assaltante completaram o serviço.

Antes do assassinato, o candidato já era razoavelmente conhecido na área pela sua atuação como “vigia do posto”. O incidente fez sua reputação ganhar considerável notoriedade entre os “polícias”, “vagabundos” e moradores da região, obrigando-o a “sumir” de lá por um tempo até as coisas se acalmarem. Foram os próprios PMs conhecidos do batalhão local que lhe recomendaram “meter o pé do bairro”, já que muita gente sabia quem cometera o assassinato e que Wellington trabalhava ilegalmente no posto e não tinha nem posse nem porte de arma de fogo. Em verdade, meu interlocutor afirmava evitar circular por certas áreas do subúrbio carioca particularmente à noite, pois ele dizia “ser manjado” por ter muitos amigos “polícias” e por ter, além disso, outros três homicídios em seu currículo. Ele não respondera judicialmente por nenhum deles, e suas vítimas, ele acreditava, não tinham sido reclamadas por quaisquer terceiros. Embora também afirmasse não ser “matador” nem algum tipo de “justiceiro”, Wellington asseverava que todos os mortos eram igualmente “vagabundos” que sabiam o que estavam fazendo. Além do assaltante na moto, o candidato matou ainda outros dois traficantes durante uma das “operações” de que participou ao lado de milicianos. Sua quarta vítima também fora um assaltante, executado com a complacência de “amigos polícias” que identificaram e prenderam “o cracudinho”15 15 Gíria para usuário de crack. que supostamente assaltara uma de suas amantes quando ela saía do trabalho no centro do Rio de Janeiro.

De volta ao quarto de Wellington, o segundo colete que ele me mostrou se tratava de um modelo que eu nunca havia segurado em mãos. Era igualmente preto, de material mais robusto e pesado, embora sendo relativamente “mole” e dotado de vários compartimentos onde armas, carregadores, radiotransmissores e outros objetos “táticos” poderiam ser acomodados. Ele contava ainda com outra abertura na região do tórax, para a colocação do que Wellington me explicou se tratar de uma “placa de cerâmica”. Perguntei a ele: “Porra, mano, esse aqui é igual da PM! Tu usava pra quê? Trocar tiro com bandido?”. O candidato demonstrou excitação com a minha pergunta, abrindo um sorriso que revelava a brancura profunda dos seus dentes em contraste com a cor da sua pele. Ele disse ainda mais orgulhoso: “Maninho, isso aqui é uma outra história”, afirmando que a peça era de fato um colete da PMERJ que lhe fora presenteado por um amigo “polícia”.

O motivo do presente dizia respeito à participação de Wellington em uma investigação policial ilegal que culminou com o “estouro” de uma boca de fumo. Não era raro, segundo ele, que os policiais “infiltrassem” pessoas de confiança em lugares de interesse dos agentes, para que elas pudessem recolher informações exclusivas que lhes fossem úteis. Essas pessoas não eram necessariamente “polícias”, mas sim indivíduos comuns que orbitavam em torno dos agentes em outros lugares de sua convivência – como era o caso de muitos “pi-lícias”. Quando foi convidado para “fazer troia”, Wellington já tinha saído do quartel e vivia basicamente dos “bicos” intermediados por PMs em empregos de “segurança patrimonial” ou em festas e eventos. Além da esfera do trabalho, a presença da polícia era sentida também nos bares, boates e bordéis que ele frequentava, e que contavam com a presença de agentes na figura de administradores, trabalhadores ou mesmo meros clientes. Como apontado anteriormente, esses lugares de polícia eram frequentados também por “milícias” e “pi-lícias” como Wellington, e que, eventualmente, participavam de alguns “esquemas” ligados à operação de mercados ilegais capitaneados por policiais.

O candidato me contou que aquela referida “troia” começou a ser planejada por um dos agentes que lhe era próximo – um “Charlie”16 16 “Charlie” faz referência a “Papa Charlie”, nome dado informalmente a qualquer policial civil de acordo com o jargão policial fluminense. de nome Jairo. O homem era inspetor em uma delegacia cuja jurisdição abarcava parte da área central da metrópole carioca, onde Wellington trabalhava na época como “segurança” de um bordel que, aos finais de semana, se transformava em uma “casa de swing”. Jairo e Wellington se conheceram no local, uma vez que ele e outros “polícias” eram clientes assíduos do estabelecimento. O PM que lhe presenteou o colete intermediou o contato mais próximo entre os dois por conta de uma investigação conjunta, que ocorria em sigilo por parte da Polícia Civil fluminense e da “P2” da PMERJ. Bocas de fumo localizadas dentro de um casarão antigo nas imediações de uma área boêmia do Rio tornaram-se alvo dos agentes, que observavam a movimentação do tráfico desde um apartamento ocupado pela polícia quase em frente ao imóvel, no primeiro andar de um prédio. Algumas pessoas já haviam sido identificadas e seus telefones grampeados, mas para “estourar” a boca em segurança, Jairo disse que precisava conhecer melhor o casarão por dentro. Interessava ao “Charlie” saber mais detalhes da estrutura física do imóvel, quantas bocas funcionavam no local, quantos varejistas trabalhavam no “movimento”, se eles andavam armados o tempo todo, quais armas eram utilizadas, etc.

Embora não fosse “polícia”, Wellington gozava de boa reputação entre os agentes por ser um homem cuja reputação fora construída com base em seu bom treinamento militar e “disposição” para efetuar qualquer “missão”. Para que fosse possível “infiltrar” alguém insuspeito no casarão, Jairo precisava de um “pé inchado” de confiança que reunisse todas essas características, e Wellington lhe parecia o auxiliar perfeito: “Daí, mano, o cara me convidou pra ajudar nas investigações. Porra, era muita responsabilidade! Eu comecei a ir lá igual um ‘viciado’. Deixei a barba e cabelo crescer, andava todo fodido. Palmeei o lugar, tudo certinho, e passei a ‘planta’ pro Jairo”. Claramente eufórico, meu interlocutor contava como era obrigado a comprar pinos de cocaína e fingir consumi-los no local, assim como faziam outros usuários. Ele inclusive teve que “cheirar” de fato uma vez, pois um dos traficantes resolveu “dar um tiro”17 17 Gíria para consumo de cocaína. junto com outro amigo que veio consumir a droga ao lado do candidato. Mesmo diante desses imponderáveis, as informações vitais que eram necessárias para concluir a investigação foram reunidas em poucas semanas.

Segundo meu interlocutor, seu desempenho como “infiltrado” fora tão satisfatório que ele foi colocado na “troia” que levou ao “estouro da boca”. Como o candidato já era conhecido dos varejistas, Wellington ficou dentro do prédio junto com um “P2” descaracterizado no dia da ação, sendo da responsabilidade dos dois homens monitorar o movimento dentro do prédio para avisar aos outros agentes qual seria o melhor momento para invadi-lo. Na rua onde funcionava a boca, outros “Charlies”, “Mikes”18 18 “Mike” faz referência a “Papa Mike”, nome dado informalmente a qualquer policial militar de acordo com o jargão policial fluminense. e agentes do programa “Segurança Presente”19 19 Segundo o seu sítio oficial, o “Segurança Presente” é um modelo de policiamento de proximidade que complementa a atuação da PMERJ. Ele tem como principal objetivo promover ações de segurança pública, que visam construir um ambiente mais seguro nas suas regiões de atuação – geralmente bairros comerciais e turísticos, com grande movimento de transeuntes. O efetivo é formado por PMs, agentes civis (egressos das Forças Armadas) e assistentes sociais, sendo o patrulhamento feito a pé, de bicicleta, de motocicleta e viaturas. O programa conta hoje com 40 unidades espalhadas pela capital e RMRJ, e é financiado a partir de convênios entre o Estado e o empresariado de cada uma das localidades que contam com a presença dos agentes. Para maiores informações sobre o programa, ver https://www.segurancapresente.rj.gov.br/. atuantes na região entocaram-se em veículos descaracterizados estacionados na rua, bem como no apartamento que fora usado durante a investigação. Wellington contava a história com enorme satisfação, dizendo que toda a ação fora iniciada ao seu sinal:

“O lugar era uma confusão do caralho! Tinha a boca, mas já tinha gente morando junto com os ‘vagabundos’ e tudo. Deu uma confusão lá com uma mulher, e os dois bandidos que estavam armados na frente foram pros fundos do casarão. Eu pensei: ‘é agora’. Dei um toque no Jairo e os outros ‘polícias’ invadiram na hora. Todo mundo perdeu! Geral foi preso, pegaram droga, arma, dinheiro. Foi todo mundo pra delegacia dali mesmo. Acabou que até eu dei carteirada nos caras! É uma adrenalina do caralho! Quando invadiram e gritaram: “polícia, perdeu, filha da puta!”, eu e o colega que tava na “troia” já rendemos os ‘vagabundos’ também. Eles não esperavam, não teve nem reação!”.

Um ponto central nesta história – e que sempre chamou minha atenção nos mergulhos mais profundos que Wellington fazia nas comunidades policiais – era a maneira como ele lidava com o risco. Quando questionado se não tinha medo de correr tanto perigo “de graça”, o candidato afirmava ter aceitado “missões” como a referida “troia” não apenas por razões de cunho econômico, a exemplo dos potenciais benefícios de objetos de valor apreendidos ilegalmente de bandidos mortos ou presos. Tão importante quanto esse “esquema”, ele dizia, era conseguir vivenciar a adrenalina inscrita naquelas situações, uma vez que tais experiências só poderiam ser acessadas mediante a proximidade com “polícias de verdade” como Jairo e outros agentes. O caráter fortemente sedutor da “experiência do risco”, como argumenta Lyng (2005LYNG, S. (2005). "Edgework and the risk-taking experience". In: LYING, S. (org.). Edgework: the sociology of risk-taking. Nova York, Routledge., p. 5), é a razão apontada por sujeitos como Wellington para explicar sua atração por situações de alto risco tal qual esportes radicais ou profissões perigosas, uma vez que aqueles que “assumem esses riscos” tendem a relatar enorme prazer ao fazê-lo. No caso do meu interlocutor e outros “pi-lícias” que conheci, me pareceu existir também uma certa “dinâmica sensual” no próprio comportamento desviante (Katz, 1988KATZ, J. (1988). "Seductions and Repulsions of Crime". In: KATZ, J. Seductions of crime: moral and sensual attractions in doing evil. Nova York, Basic Books.), que recompensava esses sujeitos com a experiência de estarem “acima da lei” ou mesmo de “praticar o mal” (Topalli, 2005TOPALLI, V. (2005). "When being good is bad: an expansion of neutralization theory". Criminology. Ohio, v. 43, n. 3, pp. 797-836.). Assim como muitos “polícias” no Rio de Janeiro, os “pi-lícias” reproduzem um elemento crítico da identidade policial carioca ao desenvolverem uma “má reputação” diante de outros civis, dada, como vimos, a maneira como o medo alimenta a noção de “respeito” no seio dessas comunidades.

Seja como for, mesmo sem ser “Charlie” ou “Mike”, Wellington me narrou a história da “troia” em primeira pessoa, como se fosse um “polícia de verdade”. Ele se colocara ativamente como parte de toda a ação, participando da fase de investigação dos traficantes, da operação tática de “estouro” da boca e do seu desfecho ao render os bandidos e dar-lhes, ainda por cima, uma “carteirada”. Em termos práticos, ele de fato tivera papel importante em todo aquele processo, embora tenha assumido, como disse, uma posição de risco muito maior do que os agentes ao ser “infiltrado” sozinho num ambiente absolutamente hostil. Mas ele não enxergava aquilo enquanto um problema, mas sim sob o prisma de uma confirmação de que ele era não apenas digno da confiança de outros “polícias”, mas também que sua “vocação” para aquele tipo de ação estava publicamente comprovada. No entanto, conquanto ainda aprisionado numa condição liminar enquanto mero “pi-lícia”, as experiências em primeira pessoa sobre a vida de polícia do candidato aconteciam de maneira intermitente. Apenas em certas situações ele conseguia experimentar todo o potencial investido sobre aqueles que conseguiam “ser policial” de fato, ao participar, mesmo que assumindo uma posição secundária, do mercado de reputações construído em torno das comunidades policiais. Mesmo assim, submeter-se a situações como aquela da “troia” era uma maneira de Wellington dar vazão ao seu desejo de “ser polícia” mesmo sem “ser polícia”, muito embora os custos sociais pela mobilização dessa identidade fossem potencialmente altos.

Apontamentos finais: um jogo de espelhos

Uma das primeiras coisas que me chamaram a atenção em meu campo foi a autodenominação dos candidatos enquanto “futuros polícias”. Geralmente, meus interlocutores falavam que estavam tentando o “concurso da polícia” ou fazendo “prova pra polícia” a fim de tornar-se “polícia” e não policiais, PMs, agentes, “praças” ou soldados. Foi tentador de início pensar como tal peculiaridade talvez indicasse o papel exclusivo exercido pela corporação na conformação das (futuras) identidades profissionais dos candidatos. Assim como eles, os PMs com os quais conversei também falavam coloquialmente “polícia” para se referir tanto à instituição quanto aos agentes. Ao menos em termos discursivos, candidatos e policiais soavam minimizar as particularidades que os individualizavam em prol dessa condição profissional maior, já que “a polícia” (instituição), da perspectiva nativa, era uma instituição formada por diferentes “polícias” (agentes).

No entanto, conforme o tempo passava, o exame mais atento dessas representações foi me mostrando que elas não espelhavam por igual aquilo que os candidatos compreendiam enquanto “a polícia”. Não se tratava de imagens refletidas a partir de espelhos completamente planos, mas sim de superfícies irregulares ora mais côncavas, ora mais convexas, e que sempre produziam, por conta disso, diferenças na maneira como essas representações apareciam. Por vezes, quando os candidatos conversavam entre si acerca do tipo de “polícia” que eles seriam quando adentrassem “a polícia”, esses espelhos eram colocados uns frente aos outros, de maneira a multiplicar, rumo ao infinito, a reflexão dessas imagens. Afirmar-se, portanto, reflexo da corporação me parecia dizer muito mais sobre as diferenças em relação à compreensão nativa sobre “a polícia” do que qualquer outra coisa, em especial quanto à suposta completa diluição da individualidade e subjetividade desses sujeitos na imagem de uma força policial como a PMERJ.

A dinâmica desse “jogo de espelhos”, com efeito, se desdobra também na dialética reflexiva criada em torno de outras duas identidades que aparecem associadas ao “polícia”. Em primeiro lugar, o “milícia” merece destaque como um desses possíveis “reflexos” por esses sujeitos participarem ativamente da dinâmica sugerida por esse “jogo”. Como vimos, as representações nativas sobre os milicianos também não espelham imagens sempre semelhantes, embora elas estabeleçam entre si algumas ligaduras importantes. Essas imagens não dividem meus interlocutores em dois grandes grupos de posicionamento estanque definidos como aqueles que “aderem” ou “rejeitam” os paramilitares. Dentro da lógica da “taxonomia moral” que sugeri, a oposição estabelecida entre “milícias” e “traficantes”, mesmo que construída em termos “ideais”, tende a colocar os primeiros ao lado dos “polícias” nesse espectro político. Porém, meus interlocutores percebem claramente que alguns dos elementos mobilizados tradicionalmente como parte da identidade mítica dos paramilitares já não correspondem às práticas de muitas quadrilhas. Como mostrado, percebi um processo de poluição em curso sobre a identidade paramilitar na fala de alguns interlocutores, sobretudo pela relação crescente desses grupos com os mercados ilegais da droga. Como chamou minha atenção um candidato logo em nossas primeiras conversas: “OK, mas de que milícia tu tá falando?”.

Em conjunto com o “polícia” e o “milícia”, uma terceira imagem produzida por esse “jogo de espelhos” é o “pi-lícia”, dada a condição liminar entre “pé inchado” e “polícia” refletida em alguns interlocutores em meu campo, a exemplo de Wellington. Curiosamente, meu interlocutor nunca se valera de tal categoria, nem tampouco admitiu conhecê-la quando perguntado. Mas ouvindo atentamente o conteúdo das suas histórias sobre a vida de polícia, tive poucas razões para acreditar que ele de fato não a conhecesse. Em minha leitura, sua suposta ignorância era uma forma de, talvez, responder ao estigma que percebi nas falas de “polícias de verdade” sobre esses liminoides, que sempre reforçavam os resquícios de “impureza” da sua identidade civil.20 20 Pelos limites do artigo, a perspectiva dos “polícias” sobre sua relação com os “pi-lícias” não pôde ser aqui mais bem trabalhada. Sobre isso, ver Rodrigues (2024, no prelo). Outro candidato muito próximo a mim, ecoando uma frase do seu pai – um subtenente reformado da PMERJ – conseguiu sintetizar alguns desses significados nativos ao dizer que o “pi-lícia” era “aquele que queria ‘gozar com o pau do polícia’”. O significado da analogia, em outras palavras, era que o principal motivo de esses sujeitos orbitarem em torno dos agentes policiais era tirar proveito desta proximidade em benefício próprio.

Mas tais relações, como procurei demonstrar, apresentam uma série de nuances que escapam dessa definição nativa mais apressada. Pelas histórias que ouvi, principalmente da boca de Wellington, era comum perceber como “polícias” e “pi-lícias” negociavam mercadorias de diferentes ordens a todo momento, fazendo de um candidato como ele alguém que não se limitava a querer “gozar com o pau do polícia”, por um lado, nem tampouco um sujeito que se afirmava “polícia na prática, só faltando passar no concurso”, por outro. A meu ver, para usufruir mesmo que indiretamente das “vantagens” ligadas aos “ser polícia”, o “pi-lícia” se vê obrigado a oferecer algo em troca na relação com esses agentes. O “polícia” não é simplesmente alguém vampirizado pelos sujeitos que o cercam. Pelo contrário: sua condição profissional, por vezes, permite a ele instrumentalizar pessoas que lhe são próximas em prol da realização dos seus objetivos particulares. E isso envolve não apenas a constituição de diferentes mercados reputacionais fortemente territorializados em bairros pobres do Rio de Janeiro, mas também a articulação de “esquemas” através dessas comunidades morais com base nas relações de confiança e segredo estabelecidas entre esses homens.

Como no caso da “troia”, Wellington foi colocado em uma situação de maior fragilidade quando comparado aos agentes participantes da investigação, uma vez que o “pi-lícia” não somente se “infiltrou” sozinho na boca de fumo durante semanas, como também foi colocado na “linha de frente” da “operação” que levou à prisão dos traficantes. O candidato tinha plena consciência da sua posição inferior na hierarquia dessas comunidades, ao admitir que o comando dos “esquemas” que emergiam daí geralmente ficava a cargo dos “polícias”. No entanto, mesmo consciente disso, meu interlocutor afirmava ter prazer em executar as eventuais “missões” para as quais era designado, para além dos “bicos de segurança” que fazia. Sua satisfação se relacionava não apenas ao fato de elas abrirem portas para o usufruto de dinheiro e status em lugares onde a polícia era lida como um “centro de poder local”. Da mesma forma, tão importante quanto isso é o fato de ele gozar dessas experiências, a exemplo de “fazer troia” em um casarão abandonado, invadir favelas, ou mesmo fazer orgias com prostitutas em um bordel. Os “pi-lícias” não enxergam tal posição subalterna como um estigma, mesmo que isso aparente ser um ônus a ser pago pela instrumentalização que muitos deles sofrem nas mãos dos “polícias”. Mesmo tratando-se de uma relação de troca hierárquica, ela é, ainda sim, uma via de mão dupla por permitir que surjam daí inúmeras relações sociais entre eles.

Por conta disso, as histórias reunidas ao longo do meu trabalho me fazem pensar que esse “jogo de espelhos” construído em torno das categorias “polícia”, “pi-lícia” e “milícia” reflete imagens de conteúdo e apelo fundamentalmente morais. Aquilo que reproduz ou distorce a “imagem ideal” de cada uma dessas categorias são os posicionamentos assumidos pelos sujeitos diante de situações experenciadas em seu cotidiano, onde os valores e interesses em jogo dependem do contexto a ser observado. Dentro dessa dinâmica, um “pi-lícia” pode ser ora estigmatizado, ora prestigiado por um “polícia”, ou mesmo as ações de um “milícia” podem aproximá-lo ou afastá-lo daquilo que meus interlocutores espelham sobre si como “a polícia”. Sob a perspectiva de Eilbaum (2012)EILBAUM, L. (2012). “O bairro fala”: conflitos, moralidades e justiça no conurbano bonaerense. São Paulo, Hucitec., as imagens refletidas por esse “jogo de espelhos” evocam moralidades situacionais que escapam de quaisquer estruturas sociais totalizantes. Não há, portanto, um mesmo princípio universal capaz de orientar todos esses conteúdos da mesma maneira.

Diante disso, duas questões correlatas se apresentam como apontamentos finais, embora não conclusivos: 1) os dados trabalhados neste artigo corroboram a necessidade de se pensar os mercados ilegais urbanos na RMRJ para além de categorias crescentemente estéreis, e que cada vez mais perdem seu potencial analítico do ponto de vista empírico. Mais do que definir a identidade de grupos armados e territórios como “do tráfico” ou “da milícia”, a dinâmica dos ilegalismos sugere perceber o caráter circular e transversal do poder nesta geopolítica do crime, de maneira a delinear comunidades políticas instáveis, e que se orientam por acordos fundados em moralidades fundamentalmente situacionais; 2) é preciso compreender as forças policiais como parte inerente e capital desta mesma problemática. As polícias, e sobretudo a PMERJ no tocante ao Rio de Janeiro, são força motriz não apenas da distribuição desigual da violência letal na metrópole no tempo e no espaço. Elas se apresentam também (e cada vez mais) enquanto força motriz a disputar os sentidos da vida urbana para uma parcela significativa da juventude periférica, que enxerga a carreira policial enquanto projeto emancipador da sua condição precária em termos não apenas materiais, mas também simbólicos. Nos moldes ensaiados por Prata (2019)PRATA, A. (2019). Enquanto o mar quebrava na praia, os jagunços faziam o trabalho sujo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2019/11/minhaarmaminhasregras.shtml Acesso em: 14 nov 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/an...
e Feltrán (2021)FELTRÁN, G. (2021). A política como violência. Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política. Campos dos Goytacazes, v. 17, n. 2, pp. 228-257., “ser policial” para Wellington e muitos outros jovens com os quais convivi é vislumbrar também a dimensão política do “tornar-se jagunço”, notadamente em resposta a uma demanda ressentida e frustrada por direitos e integração no âmbito de uma sociedade de consumo periférica e profundamente desigual.

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Notas

  • 1
    Um “esquema” descreve o arranjo de relações de caráter pessoal voltadas para a operação de algum mercado encravado nas dobras do legal-ilegal. Na ausência de mecanismos formais de regulação e produção de previsibilidade, bem como pela sua interface com dinâmicas criminais, um “esquema” imprescinde de mecanismos regulatórios baseados na confiança e no segredo entre os seus partícipes para que possa se realizar. Sobre isso, ver Costa e Oliveira (2014)COSTA, G. V. L. da; OLIVEIRA, G. F. (2014). Esquemas de fronteira em Corumbá (MS): Negócios além do legal e do ilegal. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, pp. 207-232. e Rodrigues (2022)RODRIGUES, E. de O. (2022). Sociedade dos esquemas: uma etnografia sobre candidatos à carreira policial militar no subúrbio carioca. Tese de doutorado. Niterói, Universidade Federal Fluminense..
  • 2
    Durante o período do campo, o “cursinho preparatório” onde fiz inicialmente minha observação participante oferecia grade de disciplinas baseada no exame intelectual dos últimos concursos para “soldado” realizados até então (2010 e 2014). Neles, a PMERJ exigiu conhecimentos teóricos nas seguintes disciplinas: língua portuguesa instrumental, redação, história, geografia, sociologia, legislação de trânsito, direitos humanos e informática. Por ser licenciado em geografia e doutorando em antropologia na época, meu contato inicial com os candidatos se desenvolveu a partir da minha posição enquanto “monitor informal” das disciplinas do campo das “humanidades”.
  • 3
    “Vida de polícia” é uma categoria nativa do universo policial do Rio de Janeiro, e que ouvi da boca de PMs e candidatos ao longo do meu campo. Ela descreve as peculiaridades relativas à rotina diária do trabalho policial e características mais gerais do estilo de vida dos agentes relacionados aos seus riscos e oportunidades. Histórias sobre a “vida de polícia” normalmente mobilizam elementos centrais da “subcultura policial” (Reiner, 2004REINER, R. (2004). A política da polícia. São Paulo, Edusp.) muito ligados ao senso de missão policial, o desejo de ação, a divisão “nós/eles” entre policiais e civis, visões conservadoras e autoritárias de mundo, etc.
  • 4
    Referência ao revólver calibre .38 milímetros.
  • 5
    Embora tradicionalmente a idade limite para o concurso de “soldado PM” fosse 30 anos, havia uma disputa jurídica na época do campo por conta das contestações ao PL n. 346/19, de autoria da deputada estadual Martha Rocha, que modificou a idade máxima de ingresso na carreira para 35 anos. Mesmo aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o projeto foi vetado pelo então governador Wilson Witzel a pedido da própria PMERJ. Ainda em 2019, a Alerj derrubou o veto do governador, que tentou durante meses anular a lei e manter a idade máxima em 30 anos. Pela insegurança jurídica da situação, alguns candidatos como Wellington decidiram tentar a prova e, caso desclassificados pela idade, seus empossamentos poderiam ser disputados, teoricamente, na justiça. Em todo caso, no concurso seguinte para “soldado”, realizado em 2024, a questão foi pacificada com a idade máxima fixada pelo edital em 32 anos.
  • 6
    O salário inicial de um “soldado da PMERJ”, na época do campo, era de R$3.452,55 brutos.
  • 7
    A “sacanagem”, no universo da PMERJ, é uma outra categoria nativa que descreve as práticas ilegais cometidas pelos agentes para auferir renda.
  • 8
    Outra categoria nativa do universo da PMERJ, usada pejorativamente para designar agentes que não assumem funções mais operacionais do trabalho policial, como aquelas ligadas ao trabalho nas ruas. Ser “água de salsicha” é ser um “polícia que não fede nem cheira”, o oposto do PM corajoso e valente, o “polícia brabo” ou mesmo o “polícia pica das galáxias”.
  • 9
    Esses lugares particulares, que denominei lugares de polícia, são espaços que não correspondem ao sentido estritamente geográfico do termo, mas sim, como defende Massey (1991)MASSEY, D. (1991). A Global Sense of Place. Marxism Today. Londres, v.1, pp. 24-29., a um recorte particularizado no espaço que agrega certa “constelação de relações sociais” acerca de experiências compartilhadas entre os sujeitos – inclusive sobre o que é “ser polícia”. Da mesma forma, nos lugares de polícia a territorialidade policial não é exercida exclusivamente pelos papéis que os agentes assumem quando em serviço. Trata-se, por outro lado, de espaços onde a presença de policiais enquanto seus moradores ou frequentadores assíduos implica algum controle sobre a circulação local de mercadorias, pessoas e informações. Para um debate metodológico sobre a construção analítica da categoria, ver Rodrigues (2023)RODRIGUES, E. de O. (2023). Police places: ethnographic notes about other police territorialities in the suburbs of Rio de Janeiro. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology. Florianopolis, v. 20..
  • 10
    Ainda na chave analítica sugerida por Mizrahi (2018)MIZRAHI, M. (2018). "O Rio de Janeiro é uma terra de homens vaidosos": mulheres, masculinidade e dinheiro junto ao funk carioca. Cadernos Pagu. Campinas, v. 52, pp.185-215., a noção de “pessoa masculina” no universo policial militar parece manter, nesse sentido, íntima relação com os apontamentos da autora sobre as interseções entre as masculinidades do universo do funk, do tráfico e da própria contravenção, ou mesmo com outras “masculinidades violentas” estudadas por Ceccheto (2004)CECCHETO, F. (2004). Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro, Editora FGV. em relação ao universo dos lutadores de jiu-jitsu, ou mesmo Monteiro (2003)MONTEIRO, R. de A. (2003). “Torcer, lutar, ao inimigo massacrar”: Raça Rubro-Negra: uma etnografia sobre futebol, masculinidade e violência. Rio de Janeiro, FGV. em relação às torcidas de futebol. Uma parte importante dos candidatos que conheci, inclusive, transitava com frequência por esses outros dois universos culturais no Rio de Janeiro, ou mesmo tinha passagem pelo “mundo do crime” enquanto ex-traficantes ou assaltantes.
  • 11
    Em meu campo, assim como no caso do “polícia”, meus interlocutores fossem eles civis ou policiais se referiam aos integrantes de grupos de milicianos simplesmente como alguém que era “milícia”.
  • 12
    Categoria nativa usada por PMs para se referir a pessoas que, supostamente, possuem algum envolvimento com o uso ou comércio de drogas ilícitas. Sobre isso, ver Cruz e Costa (2021)CRUZ, F. N.; COSTA, P. A. (2021). É tudo ganso? A (in) distinção entre usuários e traficantes de drogas e seus limites na perspectiva dos policiais militares do Rio de Janeiro. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro, v. 14, pp. 243-261..
  • 13
    Serviço reservado da PMERJ, responsável pelo setor de “inteligência”.
  • 14
    Alcunha para alcaguete.
  • 15
    Gíria para usuário de crack.
  • 16
    “Charlie” faz referência a “Papa Charlie”, nome dado informalmente a qualquer policial civil de acordo com o jargão policial fluminense.
  • 17
    Gíria para consumo de cocaína.
  • 18
    “Mike” faz referência a “Papa Mike”, nome dado informalmente a qualquer policial militar de acordo com o jargão policial fluminense.
  • 19
    Segundo o seu sítio oficial, o “Segurança Presente” é um modelo de policiamento de proximidade que complementa a atuação da PMERJ. Ele tem como principal objetivo promover ações de segurança pública, que visam construir um ambiente mais seguro nas suas regiões de atuação – geralmente bairros comerciais e turísticos, com grande movimento de transeuntes. O efetivo é formado por PMs, agentes civis (egressos das Forças Armadas) e assistentes sociais, sendo o patrulhamento feito a pé, de bicicleta, de motocicleta e viaturas. O programa conta hoje com 40 unidades espalhadas pela capital e RMRJ, e é financiado a partir de convênios entre o Estado e o empresariado de cada uma das localidades que contam com a presença dos agentes. Para maiores informações sobre o programa, ver https://www.segurancapresente.rj.gov.br/.
  • 20
    Pelos limites do artigo, a perspectiva dos “polícias” sobre sua relação com os “pi-lícias” não pôde ser aqui mais bem trabalhada. Sobre isso, ver Rodrigues (2024RODRIGUES, E. de O. (2024). Fake officers/real police: what are pi-lícias doing in the streets of Rio de Janeiro? The Cambridge Journal of Anthropology. Cambridge (no prelo)., no prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2023
  • Aceito
    22 Abr 2024
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