Resumo
O presente artigo discorre sobre as transformações socioespaciais na cidade de Boa Vista-Roraima após a chegada significativa de migrantes venezuelanos a partir de 2015. A metodologia documental é utilizada para expor o aumento de pessoas venezuelanas na cidade e a bibliográfica, para refletir sobre as políticas de controle desses corpos pelo Estado "acolhedor". Utiliza-se o método hermenêutico-dialético para discutir as relações de poder, alicerçando-se nas teorias de Bauman e Foucault. Apresenta-se o espaço urbano, sob a ótica de Lefebvre, como local de funcionamento das relações sociais cotidianas, questionando as mudanças espaciais. O objetivo é demonstrar como o Estado determina o nível de interação entre os residentes, reforçando a prática preconceituosa/xenofóbica sistêmica a partir do controle dos corpos "indesejáveis".
migração; mobilidade; direito humanitário; militarização; Operação Acolhida
Abstract
This article discusses the socio-spatial transformations undergone by the city of Boa Vista after the significant arrival of Venezuelan migrants from 2015 onwards. We use the documentary methodology to present the increase in the number of Venezuelans in the city, and the bibliographic methodology to reflect on the policies of control of these bodies by the "welcoming" State. In addition, we employ the dialectical hermeneutic method to discuss power relations based on Bauman’s and Foucault’s theories. Using Henri Lefebvre’s perspective, we present the urban space as a place where daily social relations function and we question spatial changes. The aim is to demonstrate that the State determines the level of interaction between residents, reinforcing the systemic prejudice/xenophobic practice based on the control of "unwelcome" bodies.
migration; mobility; humanitarian law; militarization; Operação Acolhida (Welcome Operation
Introdução
A mobilidade internacional venezuelana transformou-se, na última década (2015-2024), em um dos principais temas internacionais, principalmente na América do Sul, local de origem e de destino de boa parte dessas pessoas. Em virtude desse deslocamento, uma série de ações estatais nos locais de trânsito e destino passou a ser desenvolvida. Tais ações possuem efeito em todas as esferas de poder, alcançando, inclusive, as municipalidades. A proposta deste artigo é analisar a chegada dessas pessoas refugiadas e migrantes à cidade de Boa Vista-Roraima que é palco das principais medidas adotadas pelo governo brasileiro no âmbito da Operação Acolhida. Destarte, o artigo propõe avaliar as consequências dessas medidas no urbanismo local, a partir do prisma de controle dos corpos migrantes pelas diversas instituições.
A mobilidade venezuelana a partir de 2015
O agravamento da crise econômica e social na Venezuela fez com que o deslocamento de venezuelanos para os países vizinhos subisse consideravelmente a partir de 2015. O último relatório da Plataforma de Coordenação interagencial para refugiados e migrantes da Venezuela – R4V, datado de novembro de 2023, aponta que são aproximadamente 7.722.579 de venezuelanos vivendo fora do seu país (R4V, 2023a), em um movimento misto, compreendido pela comunidade internacional como sendo tanto de migração como de refúgio. Essa dupla alternativa de regularização traz consequências em termos dos enquadramentos regulatórios e da dinâmica de proteção a que essas pessoas deveriam fazer jus, mas que acabam, no caso em tela, recebendo tratamentos semelhantes, pelo fato de serem pessoas venezuelanas. Esse grande e complexo movimento, ocorrido em menos de uma década, já se configurou como o maior êxodo da história recente da América Latina, assim como também um dos maiores casos de mobilidade urbana com transições, majoritariamente, entre cidades (Acnur, 2020ACNUR (2020). Brasil torna-se o país com maior número de refugiados venezuelanos reconhecidos na América Latina. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/01/31/brasil-torna-se-o-pais-com-maior-numero-de-refugiados-venezuelanos-reconhecidos-na-america-latina/. Acesso em: 26 jan 2023.
https://www.acnur.org/portugues/2020/01/...
).
O Brasil, apesar de não ser o principal país de destino, abriga cerca de 510,1 mil migrantes e refugiados da Venezuela (R4V, 2023a). O País só perde para a Colômbia e o Peru que já receberam mais 2,88 milhões e 1,5 milhão de venezuelanos(as), respectivamente (ibid.). Em território brasileiro, mais de 132,6 mil venezuelanos já estão com a condição de refugiado reconhecida; 12,8 mil estão com a solicitação de reconhecimento da condição de refúgio aguardando sua avaliação ainda em aberto; e 471,2 mil estão com autorização de residência no País – dados de janeiro de 2017 a fevereiro de 2024 (Obmigra e OIM, 2024). Embora represente um instituto provido de proteção internacional, notadamente o non-refoulement, no âmbito da Operação, não se vislumbra distinção entre o tratamento conferido a pessoas providas com autorização de residência, solicitação de refúgio ou refugiadas já reconhecidas.
Os dados revelam também o quantitativo de pessoas, naturais da Venezuela, que estiveram em trânsito no território brasileiro, totalizando 1.059.778 entradas e 501.474 saídas. Nesse sentido, esse enorme quantitativo de circulação de pessoas gera a necessidade de medidas urbanísticas para recepção e controle, especialmente em Boa Vista-Roraima, visto que há demandas, por ser um espaço de trânsito, em números muito superiores ao que historicamente marcaram essa localidade (Rodrigues, 2006RODRIGUES, F. (2006). Migração transfronteiriça na Venezuela. Estudos Avançados. São Paulo, v. 20, n. 57, pp. 197-207.) e, também, de permanência.1 1 Os dados do Censo 2022 ainda estão sendo detalhados, mas foi relatado que há 80 mil pessoas venezuelanas residindo em Roraima, a imensa maioria em sua capital, Boa Vista. Segundo relatório do Acnur (2021), 12% da população do estado de Roraima seria de refugiados e migrantes venezuelanos; com uma aproximação atualizada dos números do Censo 2022 (IBGE, 2022), estima--se que esse valor seria próximo de 76 mil pessoas.
A Operação Acolhida
Diante disso, reconhecendo o contexto econômico de Roraima, estado fronteiriço e, portanto, porta de entrada principal dos migrantes venezuelanos, o Poder Executivo brasileiro federalizou o atendimento humanitário com o objetivo de lidar com a grande mobilidade migratória provocada pela situação da Venezuela. Assim, no intuito de organizar a chegada desse grande número de pessoas ao País, foi criada, em abril de 2018, a Operação Acolhida (Brasil, 2018b; Jarochinski Silva e Albuquerque, 2021JAROCHINSKI SILVA, J. C.; ALBUQUERQUE, E. B. F. (2021). Operação Acolhida: avanços e desafios. Refúgio, Migrações e Cidadania, Caderno de Debates 16, pp. 47-72.).
Segundo Jarochinski Silva (2022JAROCHINSKI SILVA, J. C. (2022). Brasil: antes e depois da operação acolhida: uma análise à luz do deslocamento forçado no Brasil (2017-2022). Brasília, DF, Agência da ONU para Refugiados - Acnur., p. 48), a Operação Acolhida possui três eixos principais: ordenamento da fronteira (eixo de entrada com o objetivo de organizar a chegada dos refugiados e imigrantes); acolhimento (oferecimento de abrigo emergencial para as pessoas classificadas, pela Operação, como em situação vulnerável); e interiorização (que é a realocação voluntária de venezuelanos em municípios brasileiros que não são do estado de Roraima).
Em sua etapa de recepção, realizada na cidade de fronteira de Pacaraima e na capital Boa Vista, há uma estrutura de atendimento para realizar a recepção, assim como também identificação, fiscalização sanitária, imunização, regularização migratória e triagem de todos aqueles que chegam do país vizinho. Depois dessa primeira ação, as pessoas em situação de vulnerabilidade que tiverem interesse, poderão solicitar o serviço de acolhimento em um dos abrigos emergenciais oferecidos pela Operação. E, finalmente, também é oferecido um apoio com translado (a partir de determinados critérios relacionados ao destino) para aqueles que desejam continuar viagem para outros estados brasileiros através do processo de interiorização (Jarochinski Silva e Albuquerque, 2021JAROCHINSKI SILVA, J. C.; ALBUQUERQUE, E. B. F. (2021). Operação Acolhida: avanços e desafios. Refúgio, Migrações e Cidadania, Caderno de Debates 16, pp. 47-72.; Brasil, 2023b).
Essa grande força-tarefa humanitária é de responsabilidade do Estado Brasileiro, porém, sua atuação, além das muitas instituições governamentais, conta com diversas parcerias de organismos intergovernamentais da Organização das Nações Unidas (ONU), tais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e a Organização Internacional para Migrações (OIM), entre outros, bem como mais de uma centena de Organizações da Sociedade Civil (Brasil, 2023a).
Foi, a partir dessa junção de diferentes atores, que se iniciou essa grande operação humanitária no Brasil e nas Américas. São inúmeros acordos de cooperação, termos de fomento e termos de colaboração entre esses diversos agentes, visando à promoção de políticas e ações de assistência emergencial para acolhimento das pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório oriundo da Venezuela (Brasil, 2018b). Diz-se, entre os setores militares, que a Operação Acolhida é humanitária (por visar receber os imigrantes vulneráveis), conjunta (por envolver a marinha, a aeronáutica e o exército) e interinstitucional (por envolver diferentes atores), com objetivo de conciliar interesses e coordenar esforços (Oliveira, 2018OLIVEIRA, G. A. G. de (2018). Use of the Brazilian Military Component in the Face of Venezuela's Migration Crisis. Military Review. Disponível em: https://www.armyupress.army.mil/Portals/7/Army-Press-Online Journal/documents/Alberto-Brazilian-Venezuela.pdf. Acesso em: 15 fev 2023.
https://www.armyupress.army.mil/Portals/...
, p. 6).
O início do abrigamento em Boa Vista
Antes da federalização do atendimento humanitário, em 2018, Pacaraima e Boa Vista já recebiam, desde 2015, um número significativo de migrantes venezuelanos em situação de extrema vulnerabilidade que, por não terem outra opção, passaram a viver espalhados pelas cidades em situação de rua, ocupando espaços públicos como praças, rodoviária e calçadas. Nesse ínterim, a população local começou a questionar a movimentação, alegando “falta de segurança”, “sujeira” e “depredação” da cidade e jornais locais começaram a noticiar a situação dos imigrantes, com críticas e questionamentos sobre a atuação do poder público (Ramos, 2017RAMOS, M. (2017). Imigração de venezuelanos leva prefeita de Boa Vista a pedir socorro em Brasília. Época, coluna Expresso, 17 ago. Disponível em: https://epoca.globo.com/politica/expresso/noticia/2017/08/imigracao-de-venezuelanos-leva-prefeita-de-boa-vista-pedir-socorro-em-brasilia.html. Acesso em: 7 fev 2024.
https://epoca.globo.com/politica/express...
).
Com a efetivação do plano de resposta federal, vê-se um primeiro amparo para tirar as pessoas da rua, a partir do abrigamento emergencial. Nesse sentido, os abrigos emergenciais não são soluções permanentes nem devem ser vistos como tal. São uma opção temporária e emergencial, utilizada em casos extremos, com o objetivo de controlar a ordem pública local e de minorar o sofrimento humano a partir da garantia de direitos humanos básicos à população afetada, por meio do fornecimento de proteção e assistência básica. Contudo, ao mesmo tempo, também servem para monitorar e regular os possíveis passos desses migrantes no novo território.
Com isso, evidenciaram-se, na paisagem visual de Boa Vista, a adaptação de alguns espaços e a construção de outros, especificamente pensados para os abrigos emergenciais. Contudo, percebe-se que o discurso de “acolhimento” veio acompanhado de muito esforço para manter os corpos migrantes em espaços controlados, como os abrigos emergenciais,2 2 Abrigos emergenciais ofertados pela Operação Acolhida, como espaços seguros para dormir, que fornecem alimentação, itens básicos de higiene e cuidados específicos, com o objetivo de controlar a ordem pública local e minorar o sofrimento humano, a partir da garantia de direitos humanos básicos à população afetada. e em outros espaços adaptados ou construídos, como o Posto de Recepção e Apoio – PRA.3 3 O PRA é um espaço de acolhimento criado pela Operação Acolhida, que oferta serviços de pernoite e alimentação para a população refugiada e migrante que não é acolhida nos abrigos oficiais (OIM Brasil, 2022).
Estes, embora ofereçam um teto, podem ser classificados como higienistas, já que foram desenvolvidos para retirar as pessoas dos espaços públicos, com destaque para a praça Simón Bolívar, que passou, inclusive, a ter seu acesso limitado para a população em geral, por meio da construção de cercas e portões (Figura 1).
– Foto da praça reformulada e reaberta em janeiro de 2019 após passar cerca de 10 meses fechada
Experiências como esta evidenciam que o objetivo não é só abrigar, mas também controlar a utilização, por essa população migrante, de outros espaços. A estética da praça Simón Bolívar intensifica ainda mais a contradição presente nos termos abordados pelo discurso de acolhimento. Após sua reforma, um monumento com a expressão "Bienvenidos a Boa Vista" foi modificado e passou a ficar mais visível na praça. Isso também se reflete no tensionamento vivido por parte das denominadas ocupações espontâneas, isto é, espaços abandonados que foram ocupados com o objetivo de moradia dessa população migrante. Por mais que existam ações voltadas a esses espaços, o objetivo prioritário é a retirada dessas pessoas, alegando-se, com razão, que são espaços não adequados. Entretanto, nesses processos de negociação, não se vislumbrou a melhor utilização desses espaços, os quais se consolidam, pelas mais variadas razões, como espaços que não são para os migrantes.
Assim, aos poucos, a paisagem visual de Boa Vista revelou as políticas higienistas e os muitos esforços para manter os corpos migrantes em espaços controlados e com convivência controlada com o restante da sociedade, pois são instituições hierarquizadas e de controle por excelência, nas quais há horário máximo para ingresso. Nesse contexto, o Estado exerce sua noção de hospitalidade ao estabelecer uma distância essencial entre o anfitrião e o hóspede, ou seja, entre as(os) brasileiras(os) e as(os) venezuelanas(os). O "espaço público" revela-se, na verdade, um espaço de práticas discriminatórias, no qual determinados indivíduos são categorizados como "indesejados" (Vasconcelos, 2021VASCONCELOS, I. (2021). "Desejáveis" e "indesejáveis": diferencialidades e paradoxos no acolhimento de venezuelanos/as em Roraima e no Amazonas. Tese de doutorado. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos., p. 141) ou como os que podem vir a ser descartados (Bauman, 2005)BAUMAN, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. São Paulo, Companhia das Letras..
O objetivo de obter controle e, supostamente, gerar proteção aos nacionais que antes residiam na cidade é evidenciado pela própria fala do contingente militar envolvido na ação, quando:
Um trabalho de expressiva relevância desempenhado pela Acolhida em prol da sociedade roraimense é a redução das ocupações espontâneas, na prática, invasões de propriedades públicas e privadas por venezuelanos em estado de extrema vulnerabilidade social [...]. (Daróz e Celestino, 2022DARÓZ, C.; CELESTINO, S. (2022). Operação Acolhida: a força-tarefa logística humanitária e o apoio aos migrantes venezuelanos. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército., p. 65; grifo nosso)
Outro agente com relevância na Operação destacou a existência de pressão para a retirada dessas pessoas do espaço, como apontado:
[...] A pressão de tirar aquela turma da rua é tão grande que você gasta sua energia e seus recursos iniciais para organizar a chegada, para botar a turma para vacinar, para tirar da rua de Pacaraima ou de Boa Vista, das praças, para separar indígenas de não indígenas, e por aí vai. (Kanaan, 2022KANAAN, G. F. (2022). “Entrevista com o Coronel Georges Feres Kanaan”. In: CASTRO, C.; MELLO, E.; SOUSA, C. S. (orgs.). Operação Acolhida: uma história oral. Rio de Janeiro, FGV Editora., p. 47; grifo nosso)
Esses discursos, com evidente viés securitário, são atrelados a ações que suspostamente se classificariam como de acolhimento e apontam para a tensão existente entre os distintos objetivos desejados pelas autoridades responsáveis por elas.
Importa, ainda, salientar o quantitativo de pessoas que são impactadas por essas medidas. Esses dados são atualizados constantemente, mas, no último recorte, em 6 de abril de 2024, os números apontam 7.031 pessoas vivendo em situação de extrema precariedade apenas na cidade de Boa Vista: 5.662 alocadas nos abrigos emergenciais da Operação Acolhida (Acnur, 2024ACNUR (2024). Perfil dos abrigos em Roraima. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTRhOWVlOTgtYTk2MS00YmY3LWEyY2YtMGM1Y2MzODFjMmVjIiwidCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9. Acesso em: 6 abr 2024.
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZ...
); 866 vivendo no Posto de Recepção e Triagem; 1.108 vivendo em ocupações espontâneas; e 503 pessoas em situação de rua, as quais persistem, apesar dos esforços em extinguir essas realidades (OIM, 2024).
Controle dos corpos migrantes
Como bem afirma Peixoto (2019PEIXOTO, J. (2019). Da era das migrações ao declínio das migrações? A transição para a mobilidade revisitada. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. Brasília, v. 27, n. 57, pp. 141-158., p. 143), “a ideia de que o mundo antigo era sedentário e o atual é móvel, é ilusória”. Defendendo que o lado mais forte desse binário apenas alterna ao longo do tempo, o autor conclui que foi o fortalecimento do Estado-Nação e a ideia de soberania, atrelada ao controle da mobilidade da população, que fizeram com que a mobilidade internacional passasse a ser vista, no final do século XIX, como um problema. E assim permanece em diversas perspectivas políticas e sociais, mesmo com a globalização, em que a aproximação entre pessoas, lugares e culturas é intensa por conta dos interesses mercadológicos. Tal postura reforça o preconceito contra os migrantes.
Os líderes governamentais frequentemente encaram a migração como um desafio a ser enfrentado, muitas vezes buscando maneiras de impedir que os migrantes deixem suas terras de origem. Infelizmente, essa abordagem reflete uma falta de compreensão da migração como uma faceta intrínseca do desenvolvimento humano. Através dela, as pessoas respondem às oportunidades que surgem de fatores ambientais, econômicos e políticos nas possíveis regiões de destino (Castles, 2010CASTLES, S. (2010). Entendendo a migração global. Uma perspectiva desde a transformação social. REMHU - Rev. Inter. Mob. Hum. Brasília, Ano XVIII, n. 35, pp. 11-43., p. 14). Dessa forma, vê-se uma sociedade fluida e que a todo tempo é estimulada a pensar para além de fronteiras, sendo incessantemente ensinada a encarar a migração com dificuldade e antipatia.
É, nesse sentido, que o acolhimento brasileiro vivenciado pelas e pelos migrantes da Venezuela evidencia contradições: discursos humanitários com ações opressoras, intervenções de segurança justificando o aviltamento de abrigadas(os). Diante das múltiplas facetas, interesses, disputas e relações presentes nas interações sociais da Operação Acolhida, revela “paradoxos de um duplo comprometimento entre acolher e manter ordem” (Vasconcelos, 2021VASCONCELOS, I. (2021). "Desejáveis" e "indesejáveis": diferencialidades e paradoxos no acolhimento de venezuelanos/as em Roraima e no Amazonas. Tese de doutorado. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos., p. 8), evidenciando questionáveis legitimações de interesses:
Essa posição dúbia da participação do Estado em ações humanitárias direcionadas à população migrante venezuelana, ora se apresentando como mecanismos de defesa dos direitos humanos, ora reforçando mecanismos de controle e restrição à mobilidade humana, foi observada em outras pesquisas sobre migração venezuelana em diferentes países, tais como Colômbia, Peru, Equador, Chile, Uruguai, México e Espanha (Louidor, 2018; Koechlin, 2018; Ramirez et al., 2019; Stefoni e Silva, 2018; Suárez e Trejo, 2018; Dekocker, 2018). Isso não significa que esse modelo de resposta humanitária seja uma prerrogativa apenas dos/as migrantes venezuelanos/as, dada a motivação específica do seu deslocamento, mas, ao contrário, como observaremos, é uma prática recorrente em diferentes contextos mundiais (Hirst, 2017). O que as distingue são as justificativas e formas de intervenções. (Ibid., p. 55)
Sendo assim, percebe-se que esse monitoramento político e administrativo dos não nacionais que entram no país possui interesses que vão desde o intuito genuíno de compilar dados para construir a melhor estratégia de prestação de assistência, até o de controlar de maneira mais eficiente os passos desses novos corpos e estabelecer os seus limites.
Contudo, basta um olhar mais crítico do nosso entorno para perceber que esse controle é realizado somente ou predominantemente naqueles corpos indesejados, os quais de modo invariável estão associados a vulnerabilidades econômicas, e que, por conta disso, são vistos como desnecessários (Bauman, 2005BAUMAN, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. São Paulo, Companhia das Letras.). Nesse contexto paradoxal de globalização e nacionalismo, o controle de entrada e da circulação de imigrantes promoveu uma nova estratificação social emergente – a hierarquia da mobilidade, como bem define Bauman (2012)BAUMAN, Z. (2012). Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro, Zahar..
Fica evidente que o nível de acesso à mobilidade depende do lugar social ocupado: enquanto alguns se movem de um lugar ao outro indiscriminadamente, outros, têm sua mobilidade limitada. Os entraves representados por rigorosos sistemas de controle de imigração, regulamentações de residência e políticas que buscam a migração zero, com impactos no controle do acesso aos espaços urbanos pela suposta busca de manutenção da ordem, têm sido reforçados, acentuando uma divisão mais nítida entre essas duas esferas (ibid., p. 80).
Dessa forma, os corpos migrantes, vistos como inferiores, tornam-se indesejáveis e, estrategicamente, criam-se lógicas de fronteira desiguais, para controlá-los: limitação da circulação na cidade, da integração com a sociedade local e a restrição no sentimento de pertencimento e uso dos espaços públicos como cidadãos. Essa estratégia é propositalmente para dificultar suas vidas no país, excluindo-os socialmente e tornando-os cada vez mais vulneráveis e, em consequência, manipuláveis.
Para tanto, por meio do tratamento dado aos migrantes venezuelanos vulneráveis, domesticam seus costumes, regulam seu modo de viver e impõem regras para dormir, comer e sair em uma microfísica que dispõe o poder não como propriedade, mas como uma estratégia cujos efeitos sejam vistos não como “apropriação”, mas como disposições, técnicas, manobras e funcionamentos (Foucault, 1987FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Petrópolis, Vozes., p. 30).
É nesse sentido que se fala que a política de acolhimento brasileira, militarizada, buscou domesticar os corpos migrantes, tentando separá-los a todo custo da população local, com o discurso de necessidade de controle migratório e apoio humanitário; continuando a entender essa realidade como uma problemática de segurança nacional e efetivando ações nesse sentido. Tratando-os com desconfiança, essa política justifica a segregação urbana realizada como a melhor forma para garantir um bom atendimento e o melhor acesso a serviços essenciais, reforçando a segregação e a xenofobia da sociedade local e, consequentemente, a maior maneira de “domesticação” – mantendo-os em um único espaço controlável. Um exemplo evidente disso foi que, durante muito tempo, o atendimento de saúde desses migrantes abrigados era realizado pela própria Operação, sob a alegação de que, com isso, não se aumentaria a demanda do sistema local de saúde. A opção, justificada sob argumentos técnicos, evidencia, mais uma vez, dinâmicas de segregação, as quais são ainda mais evidentes nas ações de abrigamento.
Manter as dinâmicas de dependência desses migrantes facilita o seu controle. Assim, constrói essa relação de poder, estabelecendo diretrizes e “lógicas” discriminatórias e desiguais, excluindo socialmente esses corpos e moldando a memória dos locais por onde eles podem circular. E faz isso de tal maneira que as dinâmicas de controle são legitimadas naturalmente, maquiadas de assistência. Usando ferramentas sutis e silenciosas, torna o corpo menos político e cada vez mais útil para a produção. Essa lógica disciplinar é perceptível na lógica securitizadora4 4 Em nossa opinião, não se pode enquadrar toda a ação desenvolvida como securitizante, pois o controle não é exercido no sentido de criação de barreiras e impedimentos massivos de ingressos. da assistência aos migrantes venezuelanos, ao ofertar-lhes um abrigo emergencial ao mesmo tempo que estabelece inúmeras regras (hora de dormir, comer, tomar banho, sair e entrar) e vigilância constante.
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (Ibid., p. 164)
Destarte, para manter o controle e toda sua estrutura, as instituições precisam obter legitimidade, fundamentando-se de maneira clara na natureza e na razão. Assim, elas oferecerão, aos seus membros, um conjunto de analogias por meio das quais será possível explorar o mundo e justificar a naturalidade e a racionalidade dos papéis estabelecidos. Isso permite que a instituição mantenha uma forma contínua e identificável ao longo do tempo (Douglas, 1998DOUGLAS, M. (1998). Como as instituições pensam. São Paulo, Edusp., p. 131). Ou seja, o Estado está mais preocupado em fortalecer o seu domínio do que efetivamente cumprir os direitos humanos ratificados através das normas internacionais.
Dessa forma, na medida em que as instituições consigam estabelecer padrões e conceitos em conformidade com suas diretrizes, o seu poder vai se tornando cada vez menos questionado. É a partir de toda essa construção de pensamento que os indivíduos são controlados e disciplinados – como os corpos dóceis de Foucault:
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (Ibid., p. 164)
Com mais credibilidade, as instituições tornam-se cada vez mais detentoras da verdade, o que permite, inclusive, que, para esses corpos, o regime de controle seja o do estado de exceção (Agamben, 2000), o que viabiliza o controle na tomada de decisões.
Uma ideia reconfortante, porém falsa, sobre o pensamento institucional adquiriu recentemente certa aceitação. Trata-se do conceito de que as instituições apenas realizam o pensamento rotineiro, de baixo nível, do dia a dia. Andrew Schotter, que descreveu tão bem as instituições como máquinas para pensar, acredita que as decisões de menor importância são encaminhadas para um processamento institucional, enquanto a mente do indivíduo fica livre para ponderar questões importantes e difíceis (Schotter 1981, p. 149). Não há motivos para se acreditar em tão benevolente isenção. É mais provável que prevaleça o contrário. O indivíduo tende a deixar as decisões importantes para suas instituições, enquanto se ocupa com as táticas e os detalhes. (Douglas, 1998DOUGLAS, M. (1998). Como as instituições pensam. São Paulo, Edusp., p. 130)
Assim, entregando decisões muitas vezes complexas e determinantes “aos cuidados” das instituições, os indivíduos colocam-se à mercê dessa relação de poder e manipulação, corroborando a manutenção desse status quo violador, sem questionamento, perdendo sua capacidade de autodecisão, tornando-se dóceis e vistos como ideais, dentro da lógica de acolhimento e de governança migratória.
No mesmo sentido, podemos utilizar o conceito de biopoder, trazido por Foucault (1987)FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Petrópolis, Vozes., para interpretar a resposta brasileira. Como um exercício de poder que garante o funcionamento de uma determinada forma de vida, em seu sentido fisiológico, ou seja, a escolha de um determinado corpo para sobreviver, em detrimento de outros, o biopoder fica evidente ao pensarmos na lógica como o Estado Brasileiro opera com os migrantes, especialmente os mais vulneráveis, oriundos da Venezuela.
Com políticas específicas pensadas para privilegiar determinados corpos, os corpos “inúteis” economicamente, mas úteis como força de produção, são geograficamente pressionados para espaços de maior controle, nos quais se tornam mais domináveis. Nesses espaços controlados, os micropoderes a que estão submetidos (hora de comer, hora-limite para sair e entrar, pessoas abrigadas como integrantes de comitês organizadores exercendo “poder” regulador sobre seus próprios conterrâneos) tornam o contexto cada vez mais difícil e o eixo de interiorização (organizado pela própria Operação Acolhida) como saída mais promissora – mesmo para aceitar subempregos do outro lado do Brasil, condições precárias e bem longe de sua terra natal.
Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Esse investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (Ibid., p. 29)
Assim, mais submissos e manipuláveis, tornam-se mais suscetíveis a aceitar o lugar social que lhes resta na sociedade de acolhida, vagas em subempregos, exploração laboral ou até mesmo exclusão para incentivar a ida para outros países.
Contexto da conformação da cidade de Boa Vista
Para Lefebvre, o espaço e o tempo não são fatos da "natureza" ou da "cultura" e sim relacionais de forma dialética, sendo produto-produtor-re-produtor e
enquanto produto, por interação ou retroação, o espaço intervém na própria produção: organização do trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-primas e de energias, redes de repartição de produtos [...]. O conceito de espaço reúne o mental e o cultural, o social e o histórico. (Lefebvre, 2006LEFEBVRE, H. (2006). A produção do espaço. Disponível em: https://gpect.files.wordpress.com/2014/06/henri_lefebvre-a-produc3a7c3a3o-do-espac3a7o.pdf. Acesso em: 20 fev 2024.
https://gpect.files.wordpress.com/2014/0... , pp. 5-6)
Buscando olhar a conformação da cidade de Boa Vista, a partir dos processos lefebvriano de descoberta, produção e criação, e tomando a perspectiva do processo de descoberta, o território português toma conhecimento e tem a primeira ocupação para defesa com a instalação do forte São Joaquim, em 1775, na confluência do alto rio Branco com o rio Tacutu, e com isso ocorre a primeira mobilização de um contingente militar e de seus familiares para a região, chegando até a consolidação de áreas de estabelecimento militar na década de 1970.
Dentro dessa intencionalidade de defesa, há o projeto político de povoamento da região com características mais urbanas, constituído a partir da criação do Território Federal do Rio Branco (1943),5 5 Posteriormente Território Federal do Roraima (1962) e, por fim, Estado de Roraima (1988). o qual viria a ser lugar para a implementação de um projeto vitorioso de um concurso para a elaboração de um Plano Urbanístico, cujo vencedor foi o do engenheiro Darcy Aleixo Derenusson. Esse projeto estava alinhado com a construção de novas cidades no território brasileiro, como Belo Horizonte e Goiânia, cidades planejadas, que tinham como foco a modernização pela urbanização, prevendo infraestruturas como construção de largas vias para automóveis, saneamento e distribuição elétrica, como apontam Moraes e Gomes Filho (2000, pp. 147-149).
O projeto de Derenusson para a cidade de Boa Vista segue as matrizes da escola modernista internacional, com elementos do modelo cidade-jardim e tendo o automóvel como peça central para a circulação nessa nova cidade. O processo de construção da paisagem e monumentalidade presente no projeto pode ser visto como o que Lefevbre (2006) descreveria como processo de criação. Choay (1979CHOAY, F. (1979). O urbanismo. Utopias e realidades. Uma antologia. São Paulo, Perspectiva., pp. 219-228) analisa as correntes urbanísticas que buscam responder e organizar os agrupamentos humanos nas cidades do século XX, ao descrever o Urbanismo de Ebenezer Howard para as cidades-jardins. Choay elenca as principais características que também encontramos no projeto de urbano de Boa Vista: a forma circular, o grande boulevard/praça arborizado que se irradia do centro da circunferência, o anel central do projeto em que se encontram os edifícios públicos e equipamentos de lazer e cultura, com concêntricas e largas avenidas que demarcam as bordas do projeto, bem como com avenidas que cortam a cidade para conectar todos os anéis ao centro e, por fim, instalações industriais periféricas.
[…] implantação de um plano urbanístico para a cidade fundado nos princípios de saneamento, embelezamento e circulação, tão em voga no Brasil na primeira metade do século XX, como parte de uma política de desenvolvimento para os Territórios Federais recém-criados […]. A concepção do Plano de Boa Vista não foi diferente do Plano de Belo Horizonte, ao reservar uma área privilegiada para a implantação de edifícios monumentais da Administração Pública, tomar partido de linhas retas, avenidas largas e perspectivas convergindo para o centro. (Moraes e Gomes Filho, 2009, pp. 148 e 156)
Respondendo ao anseio por ordenamento, o novo projeto fortalecia a ideia de que os melhores espaços da cidade, espaços centrais alinhados como projeto de cidade-jardim, fossem ocupados pelos agentes estatais numa dinâmica que ainda hoje reforça a presença de diversas áreas institucionais incrustadas em espaços privilegiados.
Essa preferência para as entidades estatais também se refletiu na seleção dos melhores espaços de moradia para os indivíduos que faziam parte dessa elite estatal, espaços estes em áreas centrais de fácil acesso a serviços e infraestrutura urbana. A periferia da cidade era concedida para os não inseridos em condição privilegiada nesse processo, entendendo periferia como a parte não compreendida no projeto urbano inicial, sendo ela não contemplada com serviços como saneamento e iluminação pública, reivindicação que se estende até os diais atuais. Além disso, evidenciou-se uma lógica de expansão do território a partir do reforço da presença das Forças Armadas no núcleo urbano, tanto em bairros formados apenas para os membros dessas Forças, como nos diversos espaços para abrigamento de pelotões e estruturas militares.
Boa Vista foi se firmando como um centro urbano administrativo e polo militar, com infraestrutura administrativa de órgãos ligados ao governo federal e aos pelotões militares, quase todos sediados nela a partir de 1970. Sendo assim, a cidade passa a sediar essa infraestrutura militar tanto do exército como da aeronáutica, gerando uma rotatividade de tropas e, consequentemente, um aumento da mancha urbana (Silva, 2009SILVA, P. R. F. (2009). Boa Vista: gênese espontânea e gênese induzida. Acta Geográfica. Boa Vista, v. 1, n. 5, pp. 63-71.).
Na década de 1970, foi observada uma expansão notável da região periférica, isso é, áreas que estavam na margem do projeto urbano da cidade, principalmente devido à instalação do 6º Batalhão de Engenharia de Construção (6º BEC). Essa estrutura militar passou a ocupar uma vasta extensão de terras no bairro conhecido como Mecejana, periferia esta que hoje é entendida como área central, conforme o crescimento e o espraiamento da cidade, relegando o título de periferia para bairros mais distantes e que ainda se encontram sem acesso a infraestruturas como saneamento e abastecimento elétrico. No final dessa mesma década, novos conjuntos habitacionais emergiram, resultando em um considerável crescimento dos bairros Aparecida, São Pedro, São Francisco, 31 de março e Canarinho (Oliveira, 2010OLIVEIRA, R. da S. (2010). Do rio ao traçado urbano, e novamente ao rio (alguns apontamentos para pensar a cidade de Boa Vista/RR). Acta Geográfica. Boa Vista/RR, v. 2, n. 3, pp. 93-106.). Percebe-se, aqui, o aumento do perímetro do que hoje se entende como área central da cidade de Boa Vista.
Além da ocupação militar, outro fator motivador de novos desenhos urbanos e tensionamentos foi o garimpo. Embora o garimpo de diamantes em Roraima existisse desde o final da década de 1930, seu auge foi marcado nos últimos anos da década de 1980 com destaque para a exploração de ouro, além de diamantes. Esse crescimento ocorreu especialmente durante a transição do status de território federal para estado, resultando no aumento das tensões entre indígenas e garimpeiros. A chegada em massa de garimpeiros a Roraima também teve impactos na organização espacial da capital, em grande parte incentivada pelas autoridades públicas. Prova desse apoio das autoridades é o Monumento ao Garimpeiro, localizado no centro da praça de onde irradiam as principais avenidas (ibid.).
No que diz respeito aos processos migratórios relativos à formação da cidade de Boa Vista, ela é uma localidade que historicamente se apresentou como destino para um número significativo de migrantes nacionais, oriundos principalmente dos estados das regiões Norte e Nordeste, podendo-se citar, em especial, os estados do Maranhão e do Pará (Rodrigues e Vasconcelos, 2012RODRIGUES, F. S.; VASCONCELOS, I. S. (2012). Migração, gênero e empoderamento das migrantes na Pan-Amazônia. In: SEMINÁRIO SOCIEDADE E FRONTEIRAS: AS FRONTEIRAS DA INTERDISCIPLINARIDADE E A INTERDISCIPLINARIDADE DAS FRONTEIRAS. Anais. Boa Vista, EDUFRR, pp. 339-364.).
Como traz Ramalho (2012RAMALHO, P. O. (2012). Lugar de memória: o plano urbanístico de Boa Vista-RR. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional., p. 47), Boa Vista identificava-se, já nos relatos da expedição de Hamilton Rice de 1924, como conformada por uma população formada por portugueses, brasileiros, “mestiços, índios e negros, esses poucos, vindos da República Cooperativista da Guiana” que, naquele tempo, ainda era uma colônia britânica, pois a independência só seria proclamada em 1966.
A população de Boa Vista conforma-se com esses processos migratórios, em que, é importante salientar, também há o componente internacional. Neste, a migração fronteiriça é a mais significativa, pois o estado de Roraima configura-se como um ponto de passagem e destino para os migrantes. Esse movimento ocorre no cotidiano, tanto nas cidades fronteiriças quanto em Boa Vista, especialmente em função de ela ser a maior cidade próxima das regiões fronteiriças entre Brasil, Venezuela e Guiana. É evidente que o trânsito de pessoas e de bens nas fronteiras entre o Brasil e a Venezuela, bem como entre o Brasil e a Guiana, é uma constante (Rodrigues e Vasconcelos, 2012RODRIGUES, F. S.; VASCONCELOS, I. S. (2012). Migração, gênero e empoderamento das migrantes na Pan-Amazônia. In: SEMINÁRIO SOCIEDADE E FRONTEIRAS: AS FRONTEIRAS DA INTERDISCIPLINARIDADE E A INTERDISCIPLINARIDADE DAS FRONTEIRAS. Anais. Boa Vista, EDUFRR, pp. 339-364.).
Como trazem Rodrigues e Vasconcelos (ibid.), a cidade de Boa Vista foi, ao longo de sua história, atravessada por diversos movimentos migratórios de origens e motivações distintas. Podemos então perceber que, apesar de se fazerem presentes no cotidiano, essas dinâmicas parecem ser pouco abordadas pelo discurso urbanístico e legislador.
Evidencia-se que a mobilidade, por mais que seja fundamental para o processo de crescimento urbano e de desenvolvimento da cidade, nunca se constituiu numa força política capaz de garantir o protagonismo do cidadão como agente e sujeito de direitos, mas como um “objeto” a ser controlado. Nesse sentido, esse modus operandi é parte de um funcionamento social e político mais amplo, como aponta Becker (2006)BECKER, B. K. (2006). Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. 2 ed. Rio de Janeiro, Garamond., visto que existiram várias estratégias territoriais que implementaram a ocupação regional, naquilo que Lefebvre (2006)LEFEBVRE, H. (2006). A produção do espaço. Disponível em: https://gpect.files.wordpress.com/2014/06/henri_lefebvre-a-produc3a7c3a3o-do-espac3a7o.pdf. Acesso em: 20 fev 2024.
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conceituou como “a produção do espaço” pelo Estado. Segundo o autor, após a construção do território, fundamento concreto do Estado, este passa a produzir um espaço político, o seu próprio espaço, para exercer o controle social, por meio de normas, leis e hierarquias (Becker, 2006BECKER, B. K. (2006). Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. 2 ed. Rio de Janeiro, Garamond. p. 26).
Para efetivar esse propósito, o Estado estabelece uma intrincada rede de controle duplo sobre o território – tanto técnico quanto político – formada por diversos tipos de conexões e redes. Essa complexa estrutura é imbuída de monitorar os fluxos e os estoques populacionais de maneira eficiente e de atender aos interesses políticos dominantes, enquanto encontra nas cidades sua base logística primordial para a implementação de suas ações (Becker, 2006BECKER, B. K. (2006). Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. 2 ed. Rio de Janeiro, Garamond.).
Nesse sentido, Staevie (2012)STAEVIE, P. M. (2012). Configuração urbana, racionalidades socioeconômicas e migrações em Boa Vista-RR: um debate sobre a urbanização de uma capital periférica da Amazônia brasileira. In: CONGRESSO HISTÓRICO INTERNACIONAL: AS CIDADES NA HISTÓRIA: POPULAÇÃO. Guimarães/PT, Câmara Municipal de Guimarães, pp. 143-160. aponta que, na década de 1990, em Boa Vista, na “zona oeste, aproximadamente 85% dos residentes são migrantes, que residem em áreas doadas pelo poder público, numa clara política de criação de currais eleitorais”, sendo esses moradores aproximadamente 80% da população total da cidade, e que “as ocupações irregulares são constantes no município, por vezes incentivadas por lideranças políticas que possuem interesses particulares nessas ocupações” (ibid., p. 153).
Nos últimos anos, Boa Vista adquiriu maior destaque em função da dinâmica da mobilidade humana internacional mais intensa, uma vez que a chegada de pessoas venezuelanas pelo Brasil perpassa, quase que obrigatoriamente, o seu espaço. Esse é o motivo pelo qual a maior parte das estruturas de recepção, acolhimento e governança migratória está instalada na cidade. Entretanto, como anteriormente apontado, essa mobilidade é marcada pelo desejo de controle em todas as suas fases. Ela implementa, em seu cotidiano, um projeto que contempla, além da estrutura reforçada de controle de fronteiras e integração, algo que internacionalmente se consolidou a partir da década de 1990, que é a função de controlar a passagem, por meio da burocratização da solicitação de proteção internacional, como forma de estimular a permanência da população não nacional em seus países de origem ou em países terceiros (Zuzarte, 2023ZUZARTE, A. (2023). As fronteiras da cidade: a integração de refugiados no espaço urbano. Rio de Janeiro, Editora da PUC-Rio.).
Seguindo com os apontamentos de Zuzarte, os países, especificamente rotulados como desenvolvidos, adotaram medidas protetivas tanto para dificultar o acesso às suas fronteiras quanto para a integração dos que conseguissem atravessá-las. Nas nações de origem e em países de trânsito, como é o caso da América Latina em relação aos Estados Unidos e Canadá, foram estabelecidos campos de caráter emergencial, com o propósito de oferecer proteção a populações deslocadas, visando contê-las naquele espaço e evitando, dessa forma, que elas cheguem a esses dois países.
Dessa forma, as ações desenvolvidas em Boa vista ganham destaque pela migração internacional, que passa a gerenciar essa mobilidade e suas implicações, com abrigos pautados em standards internacionais e financiados por países do Norte Global. Assim, estratégias como a construção de campos de refúgio, ou, no caso de Boa Vista, os chamados abrigos, foram esforços de contenção, conforme Zuzarte (ibid.) salienta, sob o pretexto de “ajuda”, utilizados como empecilhos à chegada às fronteiras dos países do Atlântico Norte (destino desejado pela maioria). Para o autor, a presença e circulação dessas pessoas passam a ser controladas e toleradas, divergindo do mote anterior, que buscava a integração dos recém-chegados ao país-destino.
Pode-se questionar se são ou não esses os paradigmas que estruturam a resposta brasileira, a qual se orgulha de seguir os parâmetros internacionais e de receber o selo de boa prática. Em termos urbanísticos, a dinâmica da migração venezuelana traz outro contexto para a cidade de Boa Vista, pois, desde 2015, quase um milhão de pessoas entrou no Brasil atravessando as fronteiras do estado de Roraima, em sua maioria pela fronteira em Pacaraima (STI, 2024STI (2024). Sistema de Tráfego Internacional. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/microdados/1733-obmigra/dados/microdados/401206-sti. Acesso em: 15 maio 2024.
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). No caso de Boa Vista, com a chegada massiva da população venezuelana, mais intensamente a partir de 2017, a cidade transformou-se. Em particular, as praças e os canteiros públicos começaram a ser ocupados, tendo em vista não haver inicialmente um local apropriado para a recepção dessa população. As estruturas de abrigamento da Operação Acolhida são, então, organizadas, visando à retirada dessas pessoas da situação de rua, alcançando a marca de atendimento de mais de 45 mil pessoas6
6
Não foi possível identificar dados atuais de 2023, estima-se, no entanto, que sejam maiores. Os dados disponibilizados são referentes ao total geral até 2022, conforme informado na literatura.
(Jarochinski Silva, 2022JAROCHINSKI SILVA, J. C. (2022). Brasil: antes e depois da operação acolhida: uma análise à luz do deslocamento forçado no Brasil (2017-2022). Brasília, DF, Agência da ONU para Refugiados - Acnur.). Com impacto significativo na dinâmica urbana, os abrigos emergenciais e as instalações de recepção e apoio ficam concentrados longe das áreas mais valorizadas da cidade, mesmo que ainda inseridos dentro de um perímetro urbano.
Além desses abrigos emergenciais estabelecidos pela Operação Acolhida, há uma série de espaços, públicos e privados, as Ocupações Espontâneas, que existem em virtude da incapacidade da resposta estatal em conferir abrigamento para todos que necessitam.
Não se deixa de reconhecer a relevância do abrigamento dessas pessoas, as quais estão em uma condição melhor do que se estivessem nas ruas, pois, além de um teto, possuem atendimento para algumas demandas, principalmente, de alimentação. O que se contesta é a estrutura desse modelo, a qual está estabelecida sobre uma lógica de instituição disciplinar, controlando os corpos.
A resposta humanitária articulada no norte do Brasil evidencia um movimento híbrido dos dois intentos. Concomitantemente a todos os mecanismos de controle estabelecidos na fronteira, a Operação articulou uma estratégia de interiorização que tem, entre seus objetivos, garantir a sustentabilidade do sistema de abrigamento, mas também dispersar, para outros estados, o contingente populacional migrante que começou a utilizar a estrutura urbana da cidade, com o objetivo de evitar tensões na fronteira e nas regiões próximas a ela, além de atender aos anseios de setores econômicos demandantes de mão de obra.
A publicidade é de que a interiorização se propõe a integrar essa população migrante em outras partes do Brasil, dando novas oportunidades para a reconstrução de sua vida, através de vagas de trabalho, reunificação familiar ou reunião social e até com apoio institucional. A relação entre interiorização e abrigamento é notória, como os próprios operadores da Acolhida revelam:
O segundo erro é não tratar o abrigo temporário como temporário. Então, o que acontece? Nós, intencionalmente, não estabelecemos um tempo máximo para permanecer no abrigo. Por quê? Se leva tanto esforço, tanto tempo para tirar da rua, aí o cara vai ficar três meses e vai voltar para a rua?! Então, a gente tem que investir na interiorização. Tem mais gente chegando. Construir mais abrigos é a solução? Não, não é. (Kanaan, 2022KANAAN, G. F. (2022). “Entrevista com o Coronel Georges Feres Kanaan”. In: CASTRO, C.; MELLO, E.; SOUSA, C. S. (orgs.). Operação Acolhida: uma história oral. Rio de Janeiro, FGV Editora., p. 47)
Esse trecho é revelador de que o desígnio político foi desafogar os espaços e serviços públicos que não conseguiam mais responder ao número populacional. Não se trata aqui, assim como no caso da análise sobre o abrigamento, de não reconhecer os méritos de medidas adotadas, mas de problematizar a escolha por determinados modelos e de pensar nas suas consequências, buscando melhorá-las, jamais no sentido de reforçar o não atendimento dessa população.
Em paralelo a essa estratégia de interiorização, vê-se também, na própria estrutura montada para “acolher” os imigrantes, respostas intencionalmente passageiras, como, por exemplo, os espaços de abrigamento temporários. Com estruturas precárias, com a justificativa de serem montadas para a permanência de curta duração, a Operação Acolhida já está no seu sexto ano e sem perspectiva de encerramento. A manutenção desses espaços de abrigo emergenciais como provisórios afeta, também, a inserção desse espaço na urbanização de Boa Vista, o que faz com que esses espaços permaneçam sem serem contemplados por políticas públicas urbanísticas.
Mudanças na cidade e Operação Acolhida
O fato de o abrigo continuar a ser visto como temporário faz com que haja maiores dificuldades para esses espaços serem contemplados em ações para a promoção de serviços públicos, tais como transporte público, educação e saúde. A título de exemplo, a pesquisa realizada pelo programa Moverse (ONU Mulheres, UNFPA e Acnur, 2022) revelou que da população abrigada, na época da pesquisa, pouco mais de 35,6% possuíam matrícula em escola ou creches, revelando a dificuldade de inserção dessa população em políticas que deveriam ser obrigatórias, mas que, muitas vezes, encontram desafios como o próprio tempo de permanência dentro dos abrigos emergenciais, que teve, na primeira coleta da pesquisa, uma média de sete meses.
Como espaços que garantem a proteção mínima básica para a população migrante que adentra o Brasil, em situação socioeconômica vulnerável, os abrigos emergenciais realizam a importante função de ofertar um teto, assim como de ser o espaço de oferecimento de alimentação e de ações das entidades que lá têm acesso, mas não há como negar que também se tornam ambientes eficazes para controlar esses migrantes e segregá-los de outros espaços da comunidade.
Em alguns casos, há que se problematizar certas situações, como alguns episódios de maior disciplinamento desses migrantes abrigados que vieram a público, para avaliar se não é a situação descrita por Zuzarte (2023ZUZARTE, A. (2023). As fronteiras da cidade: a integração de refugiados no espaço urbano. Rio de Janeiro, Editora da PUC-Rio., p. 19) na qual “Ao se colocarem fora da ordem planejada, esses indivíduos tornaram-se alvos de respostas punitivas e disciplinares, a fim de reinseri-los nos espaços apropriados para sua existência enquanto fora de seu local de origem”.
Nesse contexto, os espaços públicos da cidade de Boa Vista, quando ocupados por essa população migrante, passam a ser espaços de disputa pelo poder local, que os reivindica sob a alegação de que a presença desses migrantes exclui a população local, anteriormente estabelecida, o que evidencia que os migrantes internacionais não são pensados como pertencentes ao espaço. No caso da praça Simón Bolívar, eles foram retirados sob a justificativa de reforma da praça, mas foram inseridos em espaços apropriados para sua existência, separados e fora do campo de convivência mais efetiva, sem que se ofertasse a convivência novamente em condições adequadas, nessa praça, já que hoje praticamente não há circulação de pessoas em sua área.
Compreendendo que a disputa pelos espaços públicos não é uma questão exclusiva das pessoas refugiadas ou migrantes e atravessa as cidades contemporâneas ao redor do mundo, no caso específico de Boa Vista, as praças são elementos marcantes na dinâmica da cidade, sendo historicamente espaços de orgulho e fruição social. Com o início da migração internacional mais numerosa, a disputa por esse espaço ganha outros contornos e se apresenta de forma recorrente nas mídias e em diálogos com a população local, sendo o caso mais emblemático a praça Simón Bolívar.
Essa praça localizada em um encontro de avenidas e rodovias de grande circulação, as vias que ligam Manaus, Venezuela e Guiana, com letreiros de boas-vindas em português, inglês e espanhol, concentrou grande parte da população recém-chegada, atingindo mais de mil pessoas no ano de 2018 (Costa, 2018COSTA, E. (2018). Levantamento aponta que 10 das 15 cidades de Roraima têm venezuelanos em situação de rua. G1 RR 27 jul. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/levantamento-aponta-que-10-das-15-cidades-de-roraima-tem-venezuelanos-em-situacao-de-rua.ghtml. Acesso em: 30 jun 2023.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
).
Com isso, as percepções de mudanças estruturais ou estéticas no espaço público decorrente da migração foram estabelecidas, tornando perceptíveis algumas escolhas políticas que geram segregação. Aparentemente, mudanças que podem parecer sutis, como a implantação de tapumes, surtem efeitos espaciais visíveis de gentrificação, simbolicamente afirmando a violência estatal no controle daqueles corpos que estavam sendo expulsos dos espaços, os quais, teoricamente, são públicos.
A intervenção de cercar a praça, inicialmente vendida como um projeto de revitalização, resultou em eficaz ocultação da condição enfrentada por esses migrantes, eclipsando essa situação aos olhos do restante da população residente em Boa Vista. No entanto, essa ação de suprimir visualmente o problema revela-se mais rapidamente do que abordar a vulnerabilidade enfrentada por esse grupo. A restrição do acesso foi uma ação imediata, enquanto as medidas para atenuar as vulnerabilidades do grupo foram implementadas de maneira gradual. Essas ações, por sua vez, foram atribuídas a outro ente governamental, a União, em um processo que revela uma dinâmica tensionada de diálogo entre diferentes esferas de governo. No contexto da estrutura federativa brasileira, a responsabilidade pelo atendimento dessa população deveria ser compartilhada entre União, estados e municípios.
A forma de resolução do que foi noticiado como problema foi aparato valorizador do ambiente, o qual serviu como cerceador, impedindo que aquela população retornasse a vivenciar aquele espaço. Ou seja, com a promessa de trazer melhorias em prol do interesse público, o Estado, que deveria proporcionar a efetivação do direito à cidade e sua livre circulação, é o primeiro violador, estabelecendo, por meio de grades e fiscalização contínua, aqueles que têm o direito de entrar e quando podem fazê-lo.
Nisto também reside em parte a opção pelo modelo de abrigo emergencial, os quais servem como “dispositivos de segregação espacial a demarcar a posição de não pertencimento daqueles que abrigam” (Zuzarte, 2023ZUZARTE, A. (2023). As fronteiras da cidade: a integração de refugiados no espaço urbano. Rio de Janeiro, Editora da PUC-Rio., p. 26). Os abrigos emergenciais, como os campos de refugiados estudados por Agier (2017)AGIER, M. (2017). Um mundo de campos: a fábrica de indesejados. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, edição 118, maio. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-fabrica-de-indesejados. Acesso em: 10 de ago 2023.
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, são espaços que operam em um regime excepcional e, com isso, “permitem assim descartar, retardar ou suspender qualquer reconhecimento de uma igualdade política entre seus ocupantes e os cidadãos ordinários” (n.p.). Cumpre-se, desse modo, um papel de humanitário, ao mesmo tempo que se reforça a desigualdade dos seus ocupantes em relação à população que já residia naquele espaço. Nesses momentos, os corpos disciplinados são, disfarçadamente, violentados. Segregados, ficam ainda mais vulneráveis e aceitam o que as instituições permitem e reforçam cada vez mais a discriminação exercida por parte da população local.
Considerações finais
Neste artigo, foram apresentados o histórico do surgimento da Operação Acolhida e a alteração espacial da cidade de Boa Vista, especialmente a praça Simón Bolívar, a partir de 2015. Como um exemplo das transformações espaciais após a chegada dos migrantes venezuelanos, a organização geográfica, proposital, dos abrigos emergenciais demonstrou um Estado estrategicamente controlador dos corpos migrantes “indesejados”, excluindo-os de alguns espaços da cidade.
Com isso, pode-se observar, tomando a afirmação de Lefebvre (1991LEFEBVRE, H. (1991). The production of space. Oxford, Blackwell Publishing., p. 31), que se “toda sociedade [...] produz um espaço, seu próprio espaço”,7 7 Tradução livre do original: “every society – and hence every mode of production with its subvariants (i.e. all those societies which exemplify the general concept) – produces a space, its own space.” no caso da cidade de Boa Vista, identifica-se o hibridismo, pois encontra-se a lógica de um espaço humanitário e de trânsito transfronteiriço que é, ao mesmo tempo, militarizado.
O ordenamento urbano rígido e marcado pela presença das forças armadas ocupa grandes áreas da cidade e representa um controle, disciplina e ordem e, ao mesmo tempo, um espaço de resposta humanitária. Entretanto, mesmo dentro dessa rigidez, é no território que a vida cotidiana acontece, que expressões e apropriações tomam forma e reconfiguram o espaço urbano. Assim, há a adaptação da cidade, seja em apropriações, como pinturas e grafites (mesmo contra as regras), seja no caso de placas públicas que já trazem o idioma espanhol, confirmando-se, institucionalmente, a necessidade de se comunicar com essa população e de reconhecer que ela está no espaço e a ele pertence.
Entretanto, esse reconhecimento não impediu a construção de ações para o controle dos corpos, o qual ocorre tanto nas dinâmicas da cidade de Boa Vista, como nos espaços de abrigamento emergencial da resposta humanitária, ao juntar os corpos indesejáveis e limitá-los em sua inserção na sociedade boa-vistense. Essa dinâmica de exclusão e de controle da inserção também se dá para outros grupos e ocorre em outras cidades brasileiras, com esses grupos permanecendo marginalizados, pois impactados pela regulação policial e pela exclusão da cidadania (Zuzarte, 2023ZUZARTE, A. (2023). As fronteiras da cidade: a integração de refugiados no espaço urbano. Rio de Janeiro, Editora da PUC-Rio.). No caso de Boa Vista, os refugiados e migrantes são esses marginalizados, contrariando a denominação acolhedora das políticas públicas construídas para esse público.
Referências
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Notas
-
1
Os dados do Censo 2022 ainda estão sendo detalhados, mas foi relatado que há 80 mil pessoas venezuelanas residindo em Roraima, a imensa maioria em sua capital, Boa Vista. Segundo relatório do Acnur (2021)ACNUR (2021). Integração de venezuelanos refugiados e migrantes no Brasil. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/05/5-pages-Integration-of-Venezuelan-Refugees-and-Migrants-in-Brazil-pt.pdf. Acesso em: 6 abr 2024.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte... , 12% da população do estado de Roraima seria de refugiados e migrantes venezuelanos; com uma aproximação atualizada dos números do Censo 2022 (IBGE, 2022IBGE (2022). Censo 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/. Acesso em: 23 abr 2024.
https://censo2022.ibge.gov.br/... ), estima--se que esse valor seria próximo de 76 mil pessoas. -
2
Abrigos emergenciais ofertados pela Operação Acolhida, como espaços seguros para dormir, que fornecem alimentação, itens básicos de higiene e cuidados específicos, com o objetivo de controlar a ordem pública local e minorar o sofrimento humano, a partir da garantia de direitos humanos básicos à população afetada.
-
3
O PRA é um espaço de acolhimento criado pela Operação Acolhida, que oferta serviços de pernoite e alimentação para a população refugiada e migrante que não é acolhida nos abrigos oficiais (OIM Brasil, 2022OIM BRASIL (2022). OIM entrega kits de higiene para população refugiada e migrante venezuelana no Posto de Recepção e Apoio, em Boa Vista. Disponível em: https://brazil.iom.int/pt-br/news/oim-entrega-kits-de-higiene-para-populacao-refugiada-e-migrante-venezuelana-no-posto-de-recepcao-e-apoio-em-boa-vista-0. Acesso em: 26 fev 2023.
https://brazil.iom.int/pt-br/news/oim-en... ). -
4
Em nossa opinião, não se pode enquadrar toda a ação desenvolvida como securitizante, pois o controle não é exercido no sentido de criação de barreiras e impedimentos massivos de ingressos.
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5
Posteriormente Território Federal do Roraima (1962) e, por fim, Estado de Roraima (1988).
-
6
Não foi possível identificar dados atuais de 2023, estima-se, no entanto, que sejam maiores. Os dados disponibilizados são referentes ao total geral até 2022, conforme informado na literatura.
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7
Tradução livre do original: “every society – and hence every mode of production with its subvariants (i.e. all those societies which exemplify the general concept) – produces a space, its own space.”
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Set 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
-
Recebido
27 Abr 2024 -
Aceito
31 Maio 2024