RESUMO
O artigo apresenta resultados de pesquisa sobre a criança como modelo na pedagogia teatral a partir da concretização, por Jacques Copeau e Suzanne Bing, de laboratórios da infância. Evidencia-se um desses laboratórios – o grupo de crianças do Club de Gymnastique Rythmique, considerado o embrião da École du Vieux Colombier – a fim de se ressaltar o papel de Bing e a importância da brincadeira infantil na pedagogia teatral de Copeau. Conclui-se que esse laboratório foi de extrema relevância para a preparação pedagógica de Copeau e Bing bem como para a abertura de horizontes de pesquisa, como a mímica e a imitação de animais, posteriormente aprofundados na École du Vieux Colombier.
Palavras-chave:
Infância; Pedagogia Teatral; Jacques Copeau; Suzanne Bing; Ator
RÉSUMÉ
L’article présente les résultats de recherches sur l’enfant comme modèle dans la pédagogie théâtrale à partir de la création, par Jacques Copeau et Suzanne Bing, de laboratoires de l’enfance. L’un de ces laboratoires - le groupe d’enfants du Club de Gymnastique Rythmique, considéré l’embryon de l’École du Vieux Colombier – est évoqué afin de souligner le rôle de Bing et l’importance du jeu de l’enfant dans la pédagogie de Copeau. On en conclut que ce laboratoire a été extrêmement pertinent pour la préparation pédagogique de Copeau et Bing ainsi que pour l’ouverture d’horizons de recherche, tels que le mime et l’imitation d’animaux, approfondis par la suite à l’École du Vieux Colombier.
Mots-clés:
Enfance; Pédagogie Théâtrale; Jacques Copeau; Suzanne Bing; Acteur
ABSTRACT
The article presents the results of research on the child as a model in the theatrical pedagogy from the concretization, by Jacques Copeau and Suzanne Bing, of childhood laboratories. One of these laboratories – the children’s group of the Club de Gymnastique Rythmique, which is considered as the embryo of the École du Vieux Colombier – is highlighted to emphasize the role of Bing and the importance of children’s play in Copeau’s theatrical pedagogy. It is concluded that this laboratory was extremely relevant for the pedagogical preparation of Copeau and Bing as well as for the opening of research horizons, such as mime and animal imitation, later deepened at the École du Vieux Colombier.
Keywords:
Childhood; Theatrical Pedagogy; Jacques Copeau; Suzanne Bing; Actor
Introdução
Para alguns, Jacques Copeau é o homem que liberou a cena de seus elementos decorativos, o diretor teatral do emblemático palco nu. Para outros, ele foi o fundador da escola na qual Etienne Decroux aprendeu as bases daquilo que seria ulteriormente a mímica corporal dramática. Também existem aqueles que o indicam como o homem que retirou o texto dramático dos atores e cobriu seus rostos com panos para que estes se expressassem somente através de seus corpos. Outros ainda o apontam como o propulsor do grande movimento de descentralização teatral ocorrido na França na primeira metade do século XX. Todas essas visões sobre Jacques Copeau são legítimas, mas deixam por vezes à sombra pessoas, esforços e experimentos que, ainda que esquecidos, foram essenciais no conjunto das grandes realizações e dos grandes princípios relegados por este e outros grandes mestres do teatro ocidental a nós, pessoas de teatro de hoje. Nesse sentido, um desses conjuntos de esforços e experimentos de Jacques Copeau, auxiliado por Suzanne Bing, caracteriza-se por uma fina atenção à brincadeira infantil em situações que aqui são designadas como laboratórios da infância.
E no que consistiu esses laboratórios? Resumidamente, tais laboratórios se caracterizaram como situações nas quais Suzanne Bing e Jacques Copeau experimentaram e observaram uma série de práticas teatrais com crianças. Práticas que, posteriormente, eles aplicariam em seus atores em formação na École du Vieux Colombier (1920-1924), e mesmo em atores profissionais, como no caso dos treinamentos da trupe dos Copiaus (1925-1929), assim que o diretor e sua trupe decidem fechar sua escola em Paris e partir para uma nova aventura teatral na Borgonha.
Neste artigo, será abordada uma dessas situações laboratoriais, um desses laboratórios da infância, aquele que consistiu em um curso de teatro e ginástica rítmica efetuado com um grupo de crianças no Clube de Ginástica Rítmica da Rua Vaugirard, em Paris, entre 1915 e 1916, por cerca de 6 meses. Quadro no qual Jacques Copeau e Suzanne Bing se iniciam na atividade pedagógica e experimentam exercícios teatrais inovadores, efetuando aquilo que Suzanne Bing resumiu como sua propedêutica1 1 Para saber mais sobre esses laboratórios da infância, recomendo a leitura de outros dois artigos de minha autoria: Quand le théâtre rejoint l’enfance: Apports de la Children’s School à la pédagogie de l’acteur au sein de l’École du Vieux-Colombier (Scalari, 2021b); Copeau e os laboratórios da infância: as brincadeiras de seus filhos, ou, melhor dizendo, le tout rond (Scalari, 2022). .
As questões centrais do presente artigo se formulam da seguinte maneira: que aprendizagens pedagógicas e que horizontes de pesquisa foram abertos para Copeau e Bing a partir da experiência deles com o grupo de crianças do Club de Gymnastique Rythmique da Rua Vaugirard entre 1915 e 1916? Qual a importância de Bing nessa experiência? Ao tentar nos aproximarmos de respostas ao longo do presente texto, poderemos ver que, muito embora o objetivo inicial de Copeau e Bing com o trabalho não tenha sido atingido, um conjunto de constatações e de práticas emergiram dessa situação laboratorial específica, mostrando que, em pesquisa artística, o fato de um objetivo não ser exatamente atingido não significa de maneira alguma uma perda, pois, como no caso aqui apresentado, a prática apresenta novos horizontes de pesquisa tão ou mais interessantes do que aqueles vislumbrados a priori. No fundo, o que podemos perceber, a partir desse decalque experiencial de Copeau e Bing em 1915-1916, é a maneira pela qual uma pedagogia teatral se origina e se distingue de demais entendimentos acerca de um mesmo problema, nesse caso, o da formação do ator e da consequente renovação do teatro.
Este texto é oriundo da pesquisa que efetuei em meu doutorado, cuja tese, intitulada L’enfant comme modèle dans la pédagogie théâtrale. Dans les approches de Jacques Copeau, Jacques Lecoq et Philippe Gaulier (Scalari, 2021aSCALARI, Rodrigo. L’enfant comme modèle dans la pédagogie théâtrale. Dans les approches de Jacques Copeau, Jacques Lecoq et Philippe Gaulier. 2021. Thèse (Doctorat en Études théâtrales) – Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, 25 jan. 2021a.), efetuada sob orientação de Josette Féral, foi defendida em janeiro de 2021 na Université Sorbonne Nouvelle – Paris III e financiada pelo Programa de Doutorado Pleno no Exterior da CAPES. Na pesquisa em questão, investiguei a forma por meio da qual a criança tornou-se um modelo, compreendido como um “instrumento especulativo” (Black, 1962BLACK, Max. Models and metaphors, studies in language and philosophy. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962.), a partir do qual três pedagogos teatrais – Jacques Copeau, Jacques Lecoq e Philippe Gaulier – repensam e reformulam questões no campo da formação do ator. A pesquisa caracterizou-se por um recorte etnográfico, com uma ida a campo a partir de uma formação prática do autor na École Philippe Gaulier, contando também com ampla pesquisa documental em material inédito sobre a École du Vieux Colombier disponível no Fonds Copeau da Biblioteca Nacional da França, com entrevistas com figuras envolvidas com as pedagogias estudadas e com pesquisa bibliográfica extensa.
Este artigo se inscreve no domínio dos Estudos Teatrais, mais especificamente no campo da Pedagogia Teatral, ainda que apresente interseções com a própria História do Teatro. Tendo o trabalho de Jacques Copeau como o centro desta reflexão, é importante ressaltar que a figura do diretor francês vem sendo retomada para se pensar os campos do Trabalho do Ator e da Pedagogia Teatral, quer esta última tenha por finalidade ou não a formação de atores. Nesse contexto, são remarcáveis as publicações: Copeau-Lecoq-Mnouchkine: une lignée théâtrale du jeu de l’acteur (Freixe, 2014FREIXE, Guy. La filiation Copeau, Lecoq, Mnouchkine: une lignée du jeu de l’acteur. Lavérune: Éditions l’Entretemps, 2014.) na França; Pedagogia Teatral e Cuidado de Si (Icle, 2010ICLE, Gilberto. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Baraúna, 2010.) no Brasil; Il progetto educativo del teatro di Jacques Copeau e l’Educazione ala Teatralitá (Miglionico, 2009MIGLIONICO, Marco. Il progetto educativo del teatro di Jacques Copeau e l’Educazione alla Teatralitá. Arona: Editore XY.IT, 2009.) e L’educazione ala Teatralità: il gioco dramático (Oliva, 2010OLIVA, Gaetano. Educazione alla Teatralità: Il gioco drammatico. Arona: Editore XY.IT srl, 2010.), os dois últimos na Itália.
Além dos livros mencionados, a pedagogia teatral de Copeau vem sendo também colocada em evidência em artigos de periódicos científicos no Brasil e no exterior. Assim, a improvisação teatral e a poética de atuação investigadas por Copeau no Vieux Colombier foram discutidas em publicações de Borba (2009)BORBA, Patrícia de. Aspectos da improvisação teatral na França. Urdimento -Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 2, n. 13, p. 113-121, 2009., Faleiro, Giannetti e Bertolli (2009)FALEIRO, José Ronaldo; GIANNETTI, Gabriela; BERTOLI, Naiara. Sobre a poética da atuação em Jacques Copeau. DAPesquisa, v. 4, n. 6, p. 163-169, 2009., Faleiro (2008)FALEIRO, José Ronaldo. Ginástica & jogo entre os primeiros alunos de copeau. In: CONGRESSO ABRACE, 5., 2008, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte, 2008., Freixe (2017)FREIXE, Guy. D. A improvisação e o jogo com máscara na formação do ator. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 184-193, 23 nov. 2017.. Sob o ponto de vista da influência de Copeau na América Latina e no Brasil, destacam-se ainda os artigos de Javier (1997)JAVIER, Francisco. Jacques Copeau e a America Latina. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 1, n. 1, p. 045-052, 1997. e de Riechel, Soler e Faleiro (2010)RIECHEL, Juliana; SOLER, Nathalia; FALEIRO, José Ronaldo. Jacques Copeau e sua influência na EAD e no moderno teatro brasileiro. DAPesquisa, v. 5, n. 7, p. 092-102, 2010.. Frequentemente relegado a um segundo plano, o trabalho de Suzanne Bing ao lado de Copeau foi devidamente colocado em evidência por Doyon (2019)DOYON, Raphaëlle. Suzanne Bing, collaboratrice de Jacques Copeau: enquête sur la constitution d’un patrimoine théâtral. In: GARRIC, J.-P. (Ed.). La construction des patrimoines en question(s): Contextes, acteurs, processus. Création, Arts et Patrimoines. Paris: Éditions de la Sorbonne, 2019. P. 9-42., que questiona o apagamento de Bing sob a perspectiva dos estudos de gênero.
Este artigo vem dar uma contribuição ao conjunto de pesquisas em torno da pedagogia teatral de Jacques Copeau, debruçando-se sobre vestígios de uma experiência específica, no sentido de elucidar como a criança, e mais especificamente um dado grupo de crianças, gerou horizontes de exploração técnicos que foram transportados posteriormente para a formação de atores adultos na École du Vieux Colombier. O texto ajuda a preencher uma lacuna nesse campo de estudos, pois, embora frequentemente mencionado como importante, o jogo da criança na pedagogia de Copeau e Bing não raro carece de exemplos concretos das situações laboratoriais que possibilitaram uma investigação específica sobre esse elemento. Como coloca Icle (2010, p. 53)ICLE, Gilberto. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Baraúna, 2010., “Copeau acreditava que a renovação se daria pelo lado de fora, ou seja, somente aqueles que não estivessem impregnados do teatro, poderiam salvá-lo”. Neste artigo, trato de uma dessas experiências efetuadas do lado de fora, onde Copeau e Bing puderam experimentar, com figuras não impregnadas pelos hábitos teatrais de sua época, práticas que, primeiramente de fora, adentram o universo do trabalho do ator, permanecendo ativas até os dias de hoje em escolas que se inscrevem na tradição das pesquisas do Vieux Colombier.
Embora este artigo esteja ancorado no campo dos Estudos Teatrais, ele pode ser lido numa interface com o que se denomina contemporaneamente culturas da infância (Ferreira; Hartmann; Machado, 2017FERREIRA, Taís; HARTMANN, Luciana; MACHADO, Marina Marcondes. Entre Escola e Universidade: dinossauros e caderninhos por uma dramaturgia encarnada. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 45-70, 2017.) e em diálogo com o campo dos Childhood Studies / Children’s Studies (Brooklyn College /CUNY).
Suzanne Bing - da inspiração ao ato
Sabemos que a história do teatro silenciou muitas vezes sobre as grandes mulheres que criaram as condições para que grandes homens do teatro desenvolvessem seus trabalhos, suas estéticas, suas metodologias etc. Uma dessas mulheres, sem a qual possivelmente a emblemática École du Vieux Colombier não teria sequer existido, atendia pelo nome de Suzanne Bing.
Bing já pertencia ao mundo do teatro antes de entrar em contato com o Vieux Colombier. Entre 1905 e 1907 ela segue com êxito uma formação no Conservatoire de Musique et Déclamation, em Paris. Alguns anos depois, morando em Berlim com seu marido Edgard Varèse, ela trabalha em produções de Max Reinhardt. Em junho de 1913, Bing faz uma audição para o Théâtre du Vieux Colombier, e Copeau, “impressionado pela qualidade de sua voz e pela discrição de sua atuação” (Copeau, 1991, p. 568COPEAU, Jacques. Journal: 1901-1948. Paris: Seghers, 1991. v. 1., tradução minha)2 2 No original em francês: “frappé par la qualité de sa voix, la discrétion de son jeu”. , decide contratá-la para sua companhia. Bing atinge desde então uma importância que somente nomes como Charles Dullin ou Louis Jouvet possuíam na trupe de Copeau. Para além de suas qualidades como atriz, ela foi a figura que mais profundamente se envolveu no ramo pedagógico idealizado por Copeau, a parte mais valiosa de seu projeto de renovação teatral. A pesquisadora Raphaëlle Doyon lança luz sobre a natureza da relação entre Copeau e Bing, que perdurou por vários anos após a abertura do Vieux Colombier: “seres emocionalmente investidos, igualmente e alternadamente num caso de amor profissional, pedagógico e pessoal” (Doyon, 2016DOYON, Raphaëlle. Copeau-Bing, un cas d’école? Communication effectuée à l’occasion des Journées d’études ‘Couples en création dans les arts de la scène et au-delà XXe-XXIe s.’. Paris: MSH Paris Nord, Université Paris 8 - Vincennes-Saint Denis, 6 fev. 2016.)3 3 No original em francês: “des êtres émotionnellement investis, indifféremment et tour à tour dans une histoire d’amour professionnel, pédagogique et personnel”. . Copeau, por sua vez, reconhece a fé, a inteligência e a abnegação de Bing, destacando o papel que ela desempenhou na criação de sua escola:
Quando, em 1921, propus a criação de uma Escola do Vieux Colombier paralelamente ao teatro, para nela cultivar uma nova geração de atores, pedi a Suzanne Bing que me ajudasse. Sem ela, o projeto que eu tinha elaborado provavelmente nunca teria se concretizado. Por mais de dez anos, ela assumiu a parte mais pesada de uma tarefa ingrata. Ela sacrificou em grande parte sua própria carreira como intérprete e gastou suas forças até o limite. Através de suas experiências, incansavelmente repetidas e desenvolvidas, ela me proporcionou os elementos de um método para a educação de jovens atores (Copeau, 1999, p. 32COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)4 4 No original em francês: “Lorsque je me suis proposé, en 1921, de créer à côté du théâtre une École du Vieux Colombier et d’y élever une génération nouvelle de comédiens, c’est à Suzanne Bing que j’ai demandé de me venir en aide. Sans elle, le projet que j’avais formé n’eût sans doute jamais abouti. Elle a assumé, depuis plus de dix ans, la plus lourde part d’une tâche ingrate. Elle y a, dans une grande mesure, sacrifié sa propre carrière d’interprète, et dépensé ses forces jusqu’à leur extrême limite. Par ses expériences, inlassablement reprises et développées, elle m’a fourni les éléments d’une méthode pour l’éducation des jeunes comédiens”. .
Se Copeau se inspira nos jogos infantis e retoma continuamente as experiências – observações e cursos de teatro – que efetuou com crianças em seus projetos e conferências sobre a Escola do Vieux Colombier, coube a Suzanne Bing verificar essas intuições na prática através de ações pedagógicas cujo objetivo expresso era observar os benefícios desses jogos infantis para a formação do ator. Copeau era um visionário que encontrou na criança o poder de reformar o teatro. Entretanto, por se encontrar frequentemente muito ocupado para concretizar cada uma das visões que lhe chegavam, quando se tratou de passar do pensamento ao ato, ele delegou muitas tarefas aos que o rodeavam. Coube então a Bing passar da observação à ação pedagógica com crianças em duas ocasiões específicas: a primeira, sobre a qual este texto se debruça, acontece em Paris em 1916, no Clube de Ginástica da Rua Vaugirard; a segunda, em Nova York em 1918, em uma escola para crianças de orientação montessoriana. Embora nessas duas situações Copeau tenha observado e mesmo conduzido sessões de trabalho com as próprias crianças, foi Suzanne Bing que assegurou a regularidade dessas experiências, não somente por ter tomado para si a responsabilidade de ministrar a maioria dos cursos de teatro para as crianças envolvidas, mas também por ter metodicamente tomado notas preciosas sobre essas pesquisas para em seguida entregar os registros por ela efetuados a Copeau. Esse material então formou a base para experiências que ulteriormente apareceriam tanto nos textos teóricos de Copeau sobre suas pesquisas pedagógicas quanto nas práticas da École du Vieux-Colombier.
Em ambas as experiências há uma linha tênue entre a intenção de formar crianças para o teatro e o objetivo de estudá-las para o treinamento de atores adultos. Thomas John Donahue (2008, p. 110)DONAHUE, Thomas John. Jacques Copeau’s friends and disciples: the Théâtre du Vieux-Colombier in New York city, 1917-1919. New York: P. Lang, 2008. observa que, na experiência de 1916, Copeau estava principalmente interessado nos resultados artísticos e profissionais das aulas de teatro para crianças, isto é, na ideia de formar atores desde a infância. Suzanne Bing, por outro lado, foi notadamente mais sensível ao processo, o que abriu o horizonte desses trabalhos com crianças para, a partir disso, refletir e estruturar a formação de atores adultos. Em qualquer caso, a primeira perspectiva não pôde ser alcançada, e é com jovens atores que os resultados dessas pesquisas sobre a criança serão explorados mais tarde. A transferência dessa rica experiência com crianças para o trabalho com atores aprendizes concretamente será feita por Suzanne Bing. Como veremos a seguir, seu trabalho com crianças deixou profundas marcas nas práticas da improvisação e da mímica na École du Vieux Colombier, dois grandes horizontes de pesquisa sobre a atuação abertos por essa escola emblemática no século XX.
O embrião da École du Vieux Colombier
No entanto, este treinamento preliminar deveria dar bons frutos. Treinamento que, ao final da temporada 1913-1914, poderia ser considerado como tendo alcançado o máximo de eficiência. Eu digo: treinamento. Não: educação. Minha experiência naquela época me colocou no caminho de certos princípios da educação. Mas o único resultado realmente alcançado foi um vínculo criado entre meu jovem grupo e eu, a confiança que eles agora tinham em mim, a virtude educativa no sentido mais amplo, do trabalho, da vida juntos, sob a direção, sob a influência de uma única personalidade que, sem se poupar, deu-se em seu benefício. Senti, a partir de então, que havia ali um princípio real, vivo, capaz de gerar algo grande e duradouro. Eu havia engajado todo meu grupo por três anos [...]; estava pensando em passar o verão estudando os meios de montar a escola, quando a guerra começou (Copeau, 1979, p. 254-255COPEAU, Jacques. Registres III, Les Registres du Vieux-Colombier, 1. Paris: Gallimard, 1979., tradução minha)5 5 No original em francês: “Néanmoins cet entraînement préliminaire devait porter de bons fruits. Entraînement qui, au bout de la saison 1913-1914, pouvait être considéré comme ayant atteint un maximum de rendement. Je dis : entraînement. Non pas : éducation. Mon expérience me mettait, à cette époque, sur la voie de certains principes d’éducation. Mais le seul résultat véritablement acquis c’était un lien créé entre ma jeune troupe et moi, la confiance qu’ils m’accordaient désormais, la vertu éducative dans le sens plus large, de leur travail, de leur vie en commun, sous la direction, sous l’influence d’une personnalité unique qui, sans compter, se dépensait à leur profit. J’ai senti, dès lors, qu’il y avait là un principe réel, vivant, capable d’engendrer quelque chose de grand et durable. J’avais réengagé toute ma troupe pour trois ans, […] je pensais consacrer l’été à étudier les moyens de constituer l’école, quand la guerre éclata”. .
Para Jacques Copeau, a ideia de teatro está sempre ligada à de uma escola. O treinamento que ele conduziu com seus atores em Limon no verão de 1913 fortaleceu ainda mais essa convicção, e ele gostaria de ter continuado a trabalhar com eles na busca de uma renovação técnica e ética do ator, a partir de um aprofundamento mais radical em seu projeto de escola. O início da guerra em 1914 impediu-o de cumprir a tarefa em termos práticos logo após a primeira temporada de sua trupe. No entanto, suas ideias sobre a escola continuaram a se desenvolver, e se Copeau não foi capaz de formar seus próprios atores nesse momento, poderíamos dizer que ele aproveitou esse intervalo para se formar, e é nesse sentido que ele foi ao encontro de Edward Gordon Craig, Adolphe Appia e Émile Jaques-Dalcroze em 1915. Para Copeau, a necessidade da criação de uma escola tornou-se ainda mais forte depois de ver Jaques-Dalcroze trabalhar na Suíça, “Eu lhe escreverei um dia sobre a ‘Escola’, que é a primeira e mais importante das minhas preocupações atuais” (Copeau, 1999, p. 92COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)6 6 No original em francês: “Je vous écrirai quelque jour à propos de ‘l’École’, qui est le premier et le plus important de mes soucis présents”. , ele escreve para Craig em 6 de dezembro de 1915. Quando deixa Genebra para retornar a Paris, Copeau aceita um convite para uma experiência prática em um lugar que divulgava os métodos de Jaques-Dalcroze ao público parisiense, o Club de Gymnastique Rythmique, na 52 rue de Vaugirard, no 6º arrondissement da capital francesa. A proposta: ministrar aulas para crianças que como recreação, era a desculpa, misturaria ginástica rítmica e teatro. Ainda não era sua escola, mas, como ele admitiu a Jacques Rivière em uma carta, o embrião de sua escola7 7 Carta de Copeau a Jacques Rivière de 20 de fevereiro de 1916 (Copeau, 1999, p. 123). . No coração do embrião da École du Vieux Colombier encontrase então um grupo de crianças.
O caderno de Jacques Copeau. Primeiro passo.
Segunda-feira, 1º de novembro de 1915:
Em várias ocasiões, eu já havia tido conversas para criar um grupo de crianças no Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue de Vaugirard, que foi o primeiro rascunho de uma escola para o teatro. A grande dificuldade sempre foi o recrutamento de crianças. Na segunda-feira, 1º de novembro, às 14 horas, Paulet Thévenaz me apresentou a uma de suas amigas, Mme. de Manziarly [...], uma mulher russa de quarenta anos, envolvida em muito trabalho de caridade, e apaixonada pela causa das crianças. Mme de Manziarly nos aconselhou, a fim de facilitar o recrutamento, a não mencionarmos nossos reais objetivos8 8 Que seria o de recrutar as crianças para que integrassem a École du Vieux Colombier e recebessem uma educação teatral desde então. , e simplesmente abrir, na rue de Vaugirard, toda quinta-feira para começar, uma espécie de dispositivo onde as crianças seriam recreadas. Por meio desse leve subterfúgio, ela se encarregou de nos trazer uma dúzia de crianças. Posteriormente, será possível conversar com as mães sobre as aptidões de seus filhos, despertando assim seu interesse, e decidir sobre algumas delas (Copeau, 1999, p. 93COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)9 9 No original em francês: “Cahier de Jacques Copeau. Première démarche. Lundi 1er novembre 1915 : À plusieurs reprises déjà, j’avais eu des pourparlers pour créer au Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue de Vaugirard, un groupement d’enfants qui fût la première ébauche d’une école pour le théâtre. La grande difficulté a toujours été le recrutement même des enfants. Le lundi, 1er Novembre, à 2 heures, Paulet Thévenaz m’introduit chez une de ses amies, Mme de Manziarly […], femme de quarante ans, russe, intéressée dans beaucoup d’œuvres d’assistance, et passionnée pour la cause de l’enfant. Mme de Manziarly conseille, pour faciliter le recrutement, de ne point faire mention de nos véritables desseins, et d’ouvrir simplement, rue de Vaugirard, tous les jeudis pour commencer, une sorte de patronage où il serait question de récréer les enfants. Moyennant ce léger subterfuge, elle se charge de nous amener une douzaine de sujets. Par la suite, il sera possible de parler aux mamans des aptitudes de leurs petits, par-là de les intéresser, et d’en décider quelques-unes”. .
Segundo Copeau, ele aceita o convite para esse trabalho “para que algo exista” (Copeau, 1999, p. 93COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)10 10 No original em francês: “afin que quelque chose existe”. , em uma referência à impossibilidade de engajar essas crianças diretamente em um programa de profissionalização bem como à de trabalhar com sua própria companhia teatral durante a guerra. Mas se por um lado essa experiência preenche um certo vazio causado pelo conflito entre as potências europeias, por outro lado torna possível para Copeau experimentar um campo que lhe é caro, a brincadeira da criança. Como podemos a essa altura perceber, Copeau já estava há muito tempo interessado nas crianças. Ele tinha acabado de voltar da Suíça, onde tinha visto Jaques-Dalcroze trabalhando com suas crianças, e pode-se imaginar que essa experiência no clube de ginástica parisiense concretizava o que até então só havia sido um projeto. Com o exemplo do mestre suíço à sua disposição e curioso sobre as contribuições da rítmica para a formação do ator, Copeau decide empreender esse trabalho com crianças. O principal objetivo da experiência era encontrar uma possível ligação entre a ação rítmica Dalcroziana e os jogos infantis, pois, para Copeau, esta poderia ser a fonte de um novo método para formar o ator, seu método pessoal de trabalho. Em outras palavras, o trabalho no Clube de Ginástica era o campo prático onde ele poderia experimentar alguns dos jogos infantis que ele adorava, dos quais ele queria recuperar certos elementos para a formação do ator. Assim, ele coloca esses elementos em paralelo com a pesquisa em ginástica rítmica, que ele considera uma disciplina corporal fundamental para o ator desenvolver um senso de ritmo e de “interiorização da música nos órgãos” (Copeau, 1999, p. 166COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)11 11 No original em francês: “Intériorisation de la musique aux organes”. .
Esse experimento acontece entre novembro de 1915 e abril de 1916. As aulas eram semanais e se baseavam em um programa cuja sequência era definida previamente: 1. ginástica técnica, ministrada por Paulet Thévenaz; 2. solfejo, por Lily de Lanux; 3. ginástica rítmica, por Paulet Thévenas; 4. jogos, inicialmente a cargo de Mme. Thévenaz e depois confiados a Jacques Copeau e a Suzanne Bing. O grupo, que começou com oito participantes e cresceu até 28, incluía crianças entre 6 e 14 anos de idade. Jeanne de Lanux e Suzanne Bing são assistentes em todo o trabalho. Bing era, já naquela época, a figura chave nesse empreendimento pedagógico do Vieux Colombier. Enquanto Copeau vinha a cada 15 dias para observar e conduzir os exercícios, Bing não só se encarregou das aulas de jogos a partir da terceira sessão, mas também assumiu o papel de escriba, tomando notas de todo o trabalho realizado, tanto quando Copeau estava ausente como quando ele mesmo estava dando as aulas – “Graças a Suzanne eu poderei me ver trabalhando” (Fonds Copeau, tradução minha)12 12 No original em francês: “Grâce à Suzanne je vais pouvoir me voir travailler”. , escreve Copeau em seu Diário sobre a Escola do Vieux Colombier. Além disso, logo após a segunda sessão, Copeau registra no mesmo diário críticas a Paulet Thévenaz e Lily Lanux, em quem ele identifica “boa vontade” (Copeau, 1999, p. 95COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha), mas muita “moleza” (Copeau, 1999, p. 96COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999.), e, testemunhando sua cumplicidade com sua fiel colaboradora, acrescenta: “Só há Suzanne Bing que entende o que eu quero fazer, e que se entrega a mim com todas as suas forças” (Copeau, 1999, p. 96COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)13 13 No original em francês: “Il n’y a que Suzanne Bing qui comprenne ce que je veux faire, et qui se donne à moi de toutes ses forces”. .
Esse experimento com crianças feito por Copeau e Bing abrangeu propostas diversas, desde jogos de habilidades às mímicas de fábulas. Um plano de aula registrado no caderno de Copeau dá uma boa ideia das atividades pelas quais ele e Bing foram responsáveis:
Hoje, pela primeira vez, eu os conduzirei. Tudo muda. O contato acende neles algo que não tínhamos visto antes. Eles se sentem entusiasmados, exaltados. Eu os mantenho nessa suspensão.
1° Exercícios militares. Alinhamento e caminhada.
2° Jogo da bola. Jogar a bola no ar e pegá-la sem se mover, corpo reto, calcanhares juntos. Jogar a bola em círculo, de um para o outro, cada vez mais rápido. Na fila: o professor joga a bola, sem aviso prévio, tentando enganar a vigilância de cada um, um ou outro que deve pegá-la e se livrar dela imediatamente (atenção, faculdades acordadas, rapidez de decisão, habilidade de mãos e olhos).
Tudo isso muito rapidamente.
3° Agrupamento rápido e desagrupamento.
4° Sentar todos juntos quando bato uma palma.
Se levantar.
Pular.
Saltar duas, três vezes. Bata as mãos e os pés juntos.
Idem, mas fazendo um som.
5° O gato e o rato velho. Leio para eles a fábula de La Fontaine, explico-lhes e os conduzo a fazer a mímica genericamente (Copeau, 1999, p. 99COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)14 14 No original em francês: “Aujourd’hui pour la première fois, je les prends. Tout change. Le contact allume en eux quelque chose qu’on n’avait pas encore vu. Ils se sentent emportés, exaltés. Je ne les laisse pas toucher terre. 1° Exercices Militaires. Alignement et marche. 2° Jeu de balle. Lancer la balle en l’air et la rattraper sans bouger de place, le corps droit, les talons réunis. Lancer la balle en cercle, de l’un à l’autre, de plus en plus vite. En ligne : le maître lance la balle, sans prévenir, en essayant de tromper la vigilance de chacun, à l’un ou à l’autre qui doit la rattraper et s’en dessaisir aussitôt (attention, facultés en éveil, promptitude de décision, adresse de main et d’œil). Tout cela très rapide. 3° Groupements et dégroupements rapides. 4° S’asseoir tous ensemble au claquement des mains. Se relever id. Sauter id. Sauter deux fois, trois fois. Frapper des mains, du pied ensemble. Id. en émettant un son. 5° Le chat et le vieux rat. Je leur lis la fable de La Fontaine, la leur explique, la leur fais mimer grosso modo”. .
A notável dualidade da personalidade de Copeau fica evidenciada nessas notas registradas nesse dia de trabalho com as crianças. Seu lado dominador se revela quando se trata de definir o objetivo desse trabalho: “instrumentos perfeitamente flexíveis e nuançados [...] que respondem ao pensamento do condutor e do mestre” (Copeau, 1999, p. 98COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)15 15 No original em francês: “des instruments parfaitement souples et nuancés. […] qui répondent à la pensée du chef et du maître”. . Para isso, a exigência de disciplina rigorosa em relação ao horário era uma condição sine qua non para Copeau. A exigência de disciplina também se estendeu a certas atividades pedagógicas propostas por Copeau, em particular os exercícios militares. Como observa Guy Freixe (2014, p. 27)FREIXE, Guy. La filiation Copeau, Lecoq, Mnouchkine: une lignée du jeu de l’acteur. Lavérune: Éditions l’Entretemps, 2014., “O modelo militar – estamos em guerra, não esqueçamos – é onipresente, tanto na disciplina como nos exercícios de ginástica que ele os faz executar” (tradução minha)16 16 No original em francês: “Le modèle militaire – on est en guerre, ne l’oublions pas – est omniprésent, dans la discipline comme dans les exercices de gymnastique qu’il leur fait faire”. . Mas se essa imagem nos parece bastante rígida, ela é contrabalançada pela figura de um Copeau que aparenta ter um gosto pela diversão e ter consciência de seu papel de facilitador como pedagogo, elementos necessários para que a criança entre plenamente em um estado lúdico capaz de carregá-la para a ficção nesses jogos: “É necessário que no momento em que os exercícios começam, a criança se sinta agarrada e levantada do chão por uma mão irresistível, na qual se possa ter total confiança, e que não solte este enlace até o final do jogo” (Copeau, 1999, p. 98-99COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)17 17 No original em francês: “Il faut qu’à l’instant où commencent les exercices l’enfant se sente saisi et soulevé de terre par une main irrésistible, dans laquelle on peut avoir toute confiance, et qui ne relâchera pas son étreinte avant la fin du jeu”. .
Entre os exercícios desenvolvidos com esse grupo de crianças, talvez tenha sido o de mímica das fábulas de La Fontaine o que gerou o maior número de desdobramentos. Esse trabalho foi retomado posteriormente pela Compagnie du Vieux Colombier em suas sessões de treinamento nos Estados Unidos, nas pesquisas sobre a improvisação na École du Vieux Colombier e nas sessões de trabalho dos Copiaus, na Borgonha, dez anos mais tarde. Em um texto de Marie-Hélène Dasté (1962, p. 53)DASTÉ, Marie-Hélène. ‘Mon père Jacques Copeau’. Europe Revue Mensuelle, n. 396-397, p. 53-61, 1962. sobre seu pai, a atriz lembra as longas noites que os filhos de Copeau passavam a seu redor ouvindo as fábulas de La Fontaine, tendo cada filho o direito de escolher a que mais queria ouvir. Mas foi inspirado pelos exercícios de Jaques-Dalcroze em torno de contos como Branca de Neve, trabalhos que consistiam em se contar verbalmente o conto e depois fazer as crianças improvisarem movimentos a partir do que tinham ouvido, que Copeau decidiu procurar o drama e a fisicalidade que poderiam emergir da ficção literária. Esse foi um dos principais caminhos seguidos na pesquisa sobre a mímica, posteriormente, na École du Vieux Colombier. Abaixo colocamos o primeiro registro dessa experiência pioneira, isto é, a primeira proposta a partir da qual esse trabalho de mímica de fábulas foi desenvolvido, registrado por Suzanne Bing:
O gato e o velho rato. A leitura os divertiu muito, eles entenderam bem as palavras que você lhes explicou, e todos eles tiveram um movimento de prazer quando você disse: ‘vamos tentar fazer isso. Antes de mais nada, como um gato anda?’ Eles apenas caminharam na posição de quatro, não foi o suficiente. ‘E como um cão anda?’ Então eles entendem a diferença, eles timidamente fizeram o cão andar um pouco forte. ‘E agora, como um gato anda?’ Eles tinham compreendido e alguns deles conseguiram uma caminhada silenciosa e alongada. ‘Por quê?’ A criança que melhor respondeu: ‘Para que não faça barulho’. – Sim, para que os ratos não ouçam. Com estas poucas palavras, eles já estavam no drama da fábula, e sozinha Etiennette fez um gato quase perfeito. Ela respondeu que o gato para, se ouve um barulho, mas ela parou sem pensar em ouvir; ela entende melhor quando você o mostra parando morto na posição em que ele estava, esticando seu ouvido. – Agora fazemos a fábula. O grande Jean é o gato, todos os outros são ratos. Seguimos os acontecimentos da fábula: eles se retiram para suas tocas. ‘Onde estão suas tocas?’ Todos escolhem a pequena sala atrás dos pilares e um menino vai para trás da cortina. O gato entra; você o faz lembrar que ele é o Átila, e ao mesmo tempo que não deve ser ouvido. Os ratos são aconselhados várias vezes a se esconderem melhor. Um banco é levado para o meio da sala no qual o gato pode ficar de pé e parecer suspenso. Ele sobe sobre o banco, a princípio, mal. – Ele o faz novamente, pulando para cima e para baixo em quatro pernas ao mesmo tempo e sem fazer barulho. Ele permanece assim até que você o permita descansar, suspenso como você indicou, por uma perna, com o resto de seu corpo e cabeça pendurados como um trapo. Os ratos: colocam o nariz no ar, mostram um pouco a cabeça; depois voltam para o ninho dos ratos, – com a pressa, o pânico que seu tom lhes comunica. Então eles vêm trotando em um semicírculo na frente do gato; este último, em um único salto, está no meio deles, que estão fugindo, ele persegue um deles, e nós paramos lá. Podia-se sentir todos eles em seus personagens (Bing apud Copeau, 1999, p. 99-100COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)18 18 No original em francês: ‘Le chat et le vieux rat’ La lecture les a amusés beaucoup, ils comprenaient bien les mots que vous leurs expliquiez, et ils ont eu tous un mouvement de plaisir quand vous avez dit : ‘on va essayer de faire ça. D’abord, comment marche un chat ?’. Ils ont tout simplement marché à quatre pattes, pas bien. ‘Et comment marche un chien ?’. Alors, ils comprennent la différence, ils ont timidement fait marcher le chien un peu plus fort. ‘Et maintenant comment marche un chat ?’. Ils avaient compris et quelques-uns ont réussi une marche silencieuse et allongée. ‘Pourquoi ?’. Celui qui a le mieux fait, répond: ‘pour ne pas faire de bruit. – Oui, pour que les souris n’entendent pas’. Avec ces quelques mots, ils étaient déjà dans le drame de la fable, et Étiennette toute seule a fait un chat presque réussi. Elle a bien répondu qu’il s’arrête s’il entend du bruit, mais elle s’arrêtait sans avoir pensé à entendre ; elle saisit mieux quand vous le lui représentez s’arrêtant net dans la position où il était, en tendant, en allongeant son oreille. – Maintenant on fait la fable. Le grand Jean est le chat, tous les autres des souris. On suit les péripéties de la fable : se retirent en leurs tanières. ‘Où sont vos tanières ?’. Tous choisissent la petite salle derrière les piliers et un garçon se glisse derrière le rideau. Entre le chat ; vous lui faites souvenir qu’il est l’Attila, et en même temps qu’on ne doit pas l’entendre. Les souris se font dire plusieurs fois de se mieux cacher. On porte un banc au milieu de la salle sur lequel puisse se tenir le chat pour sembler s’être suspendu. Il y grimpe, mal d’abord. – Il recommence, en bondissant de quatre pattes à la fois et sans bruit. Il reste ainsi jusqu’à ce que vous le permettiez de se reposer, suspendu comme vous le lui avez indiqué, par une patte, tout le reste du corps, et la tête, pendant comme une loque. Les souris: mettent les nez à l’air, montrent un peu la tête; puis rentrent dans leurs nids à rats, – avec la précipitation, la panique que votre ton leur communique. Puis viennent en trottinant se grouper en demi-cercle devant le chat; celui-ci d’un seul bond est au milieu d’elles qui se sauvent, il en poursuit une, on s’arrête là. On les sentait tous dans leur personnage. .
O relato de Bing concentra uma série de princípios que mais tarde foram aprofundados na abordagem de Copeau. Antes de tudo, notamos que, apesar da influência de Jaques-Dalcroze na proposta de Copeau, este último começa desde então a estabelecer algumas diferenças que definiriam mais tarde sua identidade pedagógica. Em alguns dos exercícios que Copeau observou no Instituto Jaques-Dalcroze, o mestre rítmico procurava a posteriori os movimentos que corresponderiam às palavras faladas, numa relação bastante formal e descritiva, permanecendo às vezes no nível da narrativa ilustrada pelos movimentos, o que para Copeau era um “grande perigo: a introdução da literatura e, com ela, da pedantice estética” (Copeau, 1999, p. 83COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)19 19 No original em francês: “grand danger: l’introduction de la littérature et, avec elle, du pédantisme esthétique”. . Em outra direção, Copeau joga essas crianças no reino do drama, da composição física dos personagens, do teste de seus conflitos, em outras palavras, no reino da ação. Mesmo que ele leia a fábula, para que as crianças saibam o que vão brincar, também notamos no exercício a ausência de uma abordagem literária. Na conduta de Copeau, não se trata de recordar palavras lidas anteriormente, não se questiona o significado ou a moral transmitida pela fábula de La Fontaine. O que é importante sobre a fábula é a teatralidade que surge dela, através de uma entrada no drama, a transformação do espaço real em espaço imaginário – “Onde estão suas tocas?” – e a credulidade na vida do personagem – “Podia-se sentir todos eles em seus personagens”.
Entretanto, a exemplo de Jaques-Dalcroze, podemos observar na abordagem de Copeau um diálogo com as correntes pedagógicas inovadoras da época, onde o professor constrói o conhecimento de acordo com a vivência dos alunos, de modo a não lhes ensinar um conteúdo, mas os fazendo descobrir um saber. Assim, a tomada de consciência de um erro – “Eles apenas caminharam na posição de quatro, não foi o suficiente” – é gerada a partir de um questionamento aos alunos – “E como um cão anda?”; e, em vez de usar explicações teóricas ou de lhes mostrar simplesmente um como fazer, a busca pela correção é um convite à ação: “e agora como um gato anda?”.
Tudo isso, como aponta Suzanne Bing, acontece em uma atmosfera de prazer lúdico sentido pelas crianças ao aceitarem o desafio de dramatizar a fábula. Observamos que Copeau e Bing, artistas que já haviam feito uma série de espetáculos teatrais, estão na verdade buscando a própria essência do jogo, do drama encarnado, do instinto dramático responsável pela transmutação do eu em outro. Mas o exercício descrito na longa citação acima é também o primeiro passo para um novo campo de exploração que Copeau acaba de intuir como importante para o ator, o campo de observação e imitação de animais. Mais uma vez, é em oposição a algo que ele havia observado em Jaques-Dalcroze que Copeau quer empreender essa pesquisa.
Já percebi, particularmente com Dalcroze, que assim que apelamos a um sentimento (cansaço, alegria, tristeza, etc.) para provocar um movimento, para determinar uma mímica, o aluno imediatamente, e talvez inconscientemente, por necessidade, permite que o elemento intelectual predomine em sua ação, o jogo da fisionomia. Esta é a porta aberta para a literatura e para a cabotinagem. Acredito que para os exercícios mais simples, é a partir da observação dos animais que devemos nos inspirar. [...] Fazer o aluno observar os animais na natureza, depois na arte (Copeau, 1999, p. 101COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)20 20 No original em francês: “J’ai déjà remarqué, notamment chez Dalcroze, que l’élève, dès l’instant où on fait appel chez lui à un sentiment (fatigue, joie, tristesse, etc.) pour provoquer un mouvement, déterminer une mimique, aussitôt, et peut-être inconsciemment, par besoin, il laisse prédominer dans son action l’élément intellectuel, le jeu de physionomie. C’est la porte ouverte à la littérature et au cabotinage. Je crois que pour les exercices les plus simples, c’est de l’observation des animaux qu’il faudra nous inspirer. […] Faire observer par l’élève les animaux dans la nature, puis dans l’art. Lui faire dessiner, découper des silhouettes d’animaux, inventer des accessoires […]”. .
E novamente:
E mais tarde esta mímica da observação e a experiência de nossos exercícios será de grande ajuda para o artista na representação mais ou menos forçada e caricatural dos personagens da comédia (Copeau, s/dCOPEAU, Jacques. Fonds Copeau, 7 Boîtes non cataloguées concernant l'École du Vieux Colombier”. Paris: Bibliothèque Nationale de France (BNF). s/d. (site Richelieu)., tradução minha)21 21 No original em francês: “Et plus tard cette mime de l’abservation [sic] et l’expérience de nos exercices seront d’un grand secours à l’artiste pour la représentation plus ou moins forcée et caricaturée des personnages de la comédie”. .
A partir de observações do trabalho de Jaques-Dalcroze, Copeau percebe que o trabalho direto sobre a expressão física dos sentimentos, na maioria das vezes, nada mais desencadeia do que clichês mentais ilustrados por movimentos. Dizer às crianças para agirem felizes ou com raiva, por exemplo, conduzia-as a meros exageros fisionômicos. Mesmo que Copeau visse na imitação de animais um potencial para a construção de personagens caricaturados em sua nova comédia improvisada, a recriação contemporânea da Commedia dell’Arte que ele vislumbrava fazer, imitar animais, é acima de tudo um desvio criativo para o ator chegar a emoções, ou a estados que são menos racionais e não psicológicos, mais instintivos e orgânicos. A intuição de Copeau sobre a imitação de animais encontra paralelos na prática de vários mestres do teatro do século XX, até mesmo Stanislavski experimentou nesse campo22 22 Como no exemplo do exercício dos dois escorpiões dado por Bogdan Korzeniewski (Barba, 2004, p. 92). .
No que diz respeito aos pedagogos diretamente influenciados por Copeau, essa abordagem foi adotada por Jacques Lecoq e Philippe Gaulier e incluída no programa pedagógico de suas escolas, até os dias de hoje. O caminho que passa pela observação, imitação e humanização do animal é hoje amplamente conhecido nas muitas escolas que pertencem à linhagem que remonta a Copeau. Poucos sabem que esse trabalho deriva da exploração de Copeau com as crianças do Clube de Ginástica entre 1915 e 1916.
O gato e o velho rato. [...] você volta com mais detalhes e, individualmente, chama atenção para o andar dos animais, mostra-lhes fotos de ratos, a maneira como eles abanam a cabeça. Você corrige os movimentos correspondentes ao texto, dividindo-os em grupos iguais de ratos escondidos uns de frente para os outros. [...] Então você lhes mostra que não importa o quanto se imita perfeitamente os animais, você nunca conseguirá fazer parecer que você é um, mesmo que você ande de quatro, então vamos agora fazer a mesma coisa, mas de pé. Agora precisamos apenas dar a impressão de um gato, de sua caminhada alongada, de seu passeio pela sala de jantar, de um barulho que ouve, de suas mãos reunidas como patas dianteiras, prontas para atacar, da armadilha que prepara para os ratos, penduradas no meio da sala. [...] (Bing apud Copeau, 1999, p. 104COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)23 23 No original em francês: “Le chat et le vieux rat. […] vous revenez avec plus de détails, et, individuellement, sur la démarche des bêtes, et leur montrez des images, des souris, la façon dont elles agitent leur tête. Vous réglez avec précision les mouvements correspondant au texte, les partageant en groupes égaux de souris cachés l’un en face de l’autre. […] Puis vous leur montrez qu’aussi parfaitement qu’on imite des bêtes, on n’arrivera jamais à faire croire qu’on est une, même en allant à quatre pattes, alors qu’on va faire la même chose, mais sur ses pieds. Il faut maintenant donner l’impression d’un chat, de sa démarche allongée, de sa promenade autour de la salle à manger, d’un bruit qu’il entend, les mains ramassées comme des pattes de devant, prêtes à bondir, du piège qu’il prépare aux souris, pendu au milieu de la salle. […]”. .
Mas, então, qual é a importância das crianças nesse tipo de experimentação efetuada por Copeau e Bing? Por que eles fizeram exercícios primeiro com crianças e não com adultos? Essas questões se prestam as mais diversas especulações. Entretanto, algumas das notas de Copeau sobre uma sessão de trabalho com adultos, em paralelo com seu trabalho com crianças, revelam que o tipo de questões levantadas, paradoxalmente, parece ser mais primário em comparação com o trabalho realizado com crianças.
O trabalho é […] um pouco desorganizado. [...] Eu peno, tentando fazer contato, para criar uma atmosfera onde a desconfiança individual se derreta. [...] Conversas. Exercícios destinados a forçá-los a desconsiderar todas as suas habilidades de atuação, a abordar um texto com humildade [...]. Isto é a coisa mais difícil. Impedir que eles façam de forma premeditada, para tentar me impressionar. Aproximar o texto modestamente, já que temos tempo. Transformá-los numa tabula rasa, fazê-los abdicar de procedimentos prontos, à mão, que você tira de seu saco de truques (Copeau, 1999, p. 116COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)24 24 No original em francês: “Le travail s’en ressent. Il est un peu désordonné. […] Je paye surtout de ma personne, cherchant à prendre contact, à créer une atmosphère où se fondent les défiances individuelles. […] Conversations. Exercices tendant à les forcer de faire abstraction de tous leurs moyens de comédiens, d’aborder un texte avec humilité […]. C’est ce qu’il y a de plus difficile. Les empêcher de réaliser d’emblée, de chercher à m’épater. Épeler modestement, puisqu’on a le temps. Table rase de procédés tout faits, à portée de la main, qu’on sort de son sac à malices”. .
Esse trabalho, realizado “de forma quase elementar” (Copeau, 1999, p. 128COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)25 25 No original em francês: “d’une façon presque élémentaire”. , como Copeau diria mais tarde, também revela a cultura teatral com a qual ele estava lidando. Pode ser que esses atores do início do século XX, acostumados demais aos efeitos externos contra os quais Copeau invariavelmente luta, não fossem capazes ainda, sem alguma resistência, de se entregar totalmente ao tipo de experimentos que Copeau e Bing realizavam com crianças. Como Claude Sicard nos lembra, “a exigência de disciplina física total, de impregnar-se do personagem, do ser, da coisa, do animal... Vemos isso sendo feito hoje, mas na época não era em absoluto comum” (Sicard apud Mignon et al., 2000, pt. 1/4; 43'MIGNON, Paul-Louis et al. Jacques Copeau: après-midi d’étude du 26 novembre 1999. Paris: Bibliothèque nationale de France, 2000. (Registro sonoro)., tradução minha)26 26 No original em francês: “l’exigence d’une discipline physique totale, s’imprégner du personnage, de l’être, de la chose, de l’animal… On voit aujourd’hui se faire, mais à l’époque cela ne se faisait pas du tout”. . Além disso, é preciso considerar que, em 1915, Copeau e Bing eram dois professores iniciantes, eles ainda não tinham a maestria sobre um conhecimento pedagógico ou o domínio de seus próprios métodos, eles ainda os estavam procurando.
Por outro lado, vários dos relatos de Copeau e Bing sobre o trabalho com crianças corroboram a disponibilidade e o entusiasmo com que estas últimas recebiam suas propostas, que eram bastante inovadoras no campo do teatro. Entretanto, as razões pelas quais Copeau decidiu empreender essa experiência não se limitam à hipotética facilidade de trabalhar com crianças. De fato, esse trabalho representou um laboratório que foi ao mesmo tempo uma experiência em certos princípios musicais e em jogos infantis, mas também um aprendizado na prática pedagógica por Bing e Copeau. Embora essas crianças fossem as cobaias de uma experiência, não é menos verdade que Copeau e Bing também se colocaram à prova, com o objetivo de encontrar seu próprio caminho pedagógico e abordagem metodológica, como Suzanne Bing admitiu ao pesquisador Maurice Kurtz, 35 anos após esse trabalho no Clube de Ginástica:
O Patrão27 27 Patrão era o apelido de Jacques Copeau em sua trupe do Vieux Colombier. não se explica para mim, não se explica a si mesmo. Mas não é difícil entender que este trabalhador esforçado, que desde antes do Vieux-Colombier se entregou à tarefa de educar atores, está aproveitando este tempo de lazer forçado (!) para colocar dois elementos essenciais em suas mãos, um grupo de crianças e uma educação musical, para, a partir do zero, considerar, sentir por onde ele vai ‘pegar seu trabalho’, e que ele está me convidando para uma experiência. As crianças não eram, portanto, alunos, muito menos alunos-atores: éramos nós que éramos alunos-professores, que fazíamos algo como nossa propedêutica (Bing apud Copeau, 1999, p. 113-114COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)28 28 No original em francês: “Le Patron ne m’explique pas, ne s’explique pas. Mais il n’est pas difficile de comprendre que ce travailleur acharné, qui dès avant le Vieux-Colombier s’est donné pour tâche l’éducation du comédien, met à profit ce temps de loisir (!) forcé pour s’en mettre sous les yeux, entre les mains, deux éléments essentiels, un groupe d’enfants, un enseignement musical, afin, partant de zéro, de considérer, de palper par quel bout il va “prendre son ouvrage “, et qu’il me convoque à une expérience. Les enfants n’étaient donc pas des élèves, à plus forte raison des élèves-comédiens: c’est nous qui étions des élèves-professeurs, qui faisons quelque chose comme notre propédeutique”. .
O testemunho de Bing mostra o caráter laboratorial do trabalho com essas crianças. Foi nesse laboratório que eles puderam se preparar para abordar os atores mais tarde, a fim de realizar a renovação dramática prevista por Copeau. Podemos ver que, se por um lado a criança é tomada como modelo no sentido de um objeto de referência (Caplat, 2008, p. 5-6CAPLAT, Guy. Modèles et métamodèles. Lausanne (Suisse): Presses polytechniques et universitaires romandes, 2008., tradução minha)29 29 No original em francês: “objet de référence”. , cujas qualidades se “tenta reproduzir”, por outro ela é um modelo como instrumento especulativo (Black, 1962, p. 237BLACK, Max. Models and metaphors, studies in language and philosophy. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962., tradução minha)30 30 No original em inglês: “speculative instrument”. , sobre o qual Copeau e Bing experimentam hipóteses e do qual extraem certos conhecimentos.
Quanto ao objetivo principal dessa experiência – encontrar uma ligação entre a ginástica rítmica e as brincadeiras infantis –, que seria o próprio protótipo do novo método procurado por Copeau, as ligações encontradas são mais evidentes em termos de fundamentos do que em termos formais. Podemos reconhecer na abordagem de Copeau e Bing com as crianças alguns exercícios inspirados em Jaques-Dalcroze: o uso de uma história ou de um conto para ligar exercícios rítmicos, agrupamentos e desagrupamentos rápidos, músicas em roda etc. Em um livro de memórias31 31 Esse livro de memórias se tornaria mais tarde o projeto de Copeau para sua escola. Ver: Copeau (1999, p. 124). que ele começou a escrever dois meses depois de iniciar esse trabalho, Copeau projeta o ensino da ginástica rítmica na Escola do Vieux Colombier, mantendo a esperança de encontrar essa ligação com a brincadeira da criança.
Em algum ponto de encontro da ginástica e do jogo natural pode estar o segredo do qual nosso método surgirá. Em algum ponto da expressão rítmica, a expressão falada pode nascer de si mesma, fatalmente, – primeiro o grito, a exclamação, depois a palavra. Em algum momento do jogo improvisado, da improvisação encenada, da improvisação dramática, o drama em sua novidade, em sua jovialidade, nos aparecerá. E estas crianças, em relação às quais nos cremos os mestres, serão, sem dúvida, nossas mestras, algum dia (Copeau, 1999, p. 135COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)32 32 No original em francês: “En quelque point de rencontre de la gymnastique avec le jeu naturel se trouve peut-être le secret d’où jaillira notre méthode. À quelque moment de l’expression rythmique naîtra peut-être d’elle-même, fatalement, l’expression parlée, – le cri d’abord, l’exclamation, puis la parole. À quelque degré du jeu improvisé, l’improvisation jouée, l’improvisation dramatique, le drame dans sa nouveauté, dans sa verdeur, nous apparaîtra. Et ces enfants, dont nous nous croyons les maîtres, seront sans doutes les nôtres, un jour”. .
O objetivo central não só atesta a vocação pedagógica de Copeau, mas, também, aponta para uma intuição precoce e importante do diretor. A ginástica rítmica, baseada em elementos musicais concretos como tempo, ritmo e métrica, em diálogo com o jogo da criança, visto como um núcleo de espontaneidade, liberdade e invenção, criaria as condições para a descoberta de um método; o cerne seria a capacidade de dar uma medida através de regras exteriores e matemáticas provenientes da música aos impulsos naturais vindos do jogo da criança. “Vejo esta ligação com a música, este adjuvante musical, na educação do ator. Internalização da música para os órgãos, para todas as faculdades do intérprete, para obter precisão e liberdade” (Copeau, 1979, p. 352COPEAU, Jacques. Registres III, Les Registres du Vieux-Colombier, 1. Paris: Gallimard, 1979., tradução minha)33 33 No original em francês: “Cette liaison avec la musique, cet adjuvant musical, moi je le vois dans l’éducation du comédien. Intériorisation de la musique aux organes, à toutes les facultés de l’exécutant, pour obtenir la précision et la liberté”. , revela Copeau alguns meses após a experiência com as crianças no Clube de Ginástica. O que podemos notar aqui é a intenção de construir um método a partir da resolução de um problema que preocupa muitos pesquisadores do trabalho do ator durante todo o século XX: o do equilíbrio entre precisão e espontaneidade. Mas encontrar essa fusão entre as precisas leis musicais e o livre fluxo da brincadeira da criança é uma missão inacabada no percurso de Copeau. E isto é exatamente o que Suzanne Bing diria anos mais tarde.
O Patrão não me apresentou a teoria de Jaques-Dalcroze, só mais tarde ele me confiou os dois volumes do método. Mas era natural que o Patrão esperasse que um ensino musical que tomasse o corpo humano como seu meio fosse o próprio ensino do ator: o da linguagem do criador poético. Entretanto, a Ginástica Rítmica é exatamente o oposto: a linguagem musical (Arte dos sons) existente antes e fora do aluno, é proposta a ele de fora (piano). Sua participação corporal é equivalente a uma notação, uma tradução (a palavra é de Gide) da linguagem musical de acordo com uma gramática previamente estabelecida. [...] Na experiência real, nenhum contato pôde, a qualquer momento, ser estabelecido entre esta linguagem feita de uma convenção estrangeira e a improvisação livre, criada pela brincadeira da criança, a música interior deste jogo, poder-se-ia dizer. Ali, o ritmista se encontra desorientado (Bing apud Copeau, 1999, p. 114COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)34 34 No original em francês: “Le Patron ne m’a pas fait connaître la théorie de Jaques-Dalcroze, plus tard seulement il me confie les deux volumes de la méthode. Mais il était naturel que le Patron s’attendît à ce qu’un enseignement musical qui prenait pour moyen le corps humain fût l’enseignement même propre au comédien : celui du langage du créateur poétique. Or, la Gymnastique rythmique est exactement l’inverse : le langage musical (Art des sons) existant préalablement et extérieurement à l’élève, lui est proposé du dehors (piano). Sa participation corporelle équivaut à une notation, traduction (le mot est de Gide) du langage musical selon une grammaire convenue d’avance. […] À l’expérience, aucun contact n’a pu, à aucun moment, s’établir entre ce langage fait d’une convention étrangère, et la libre improvisation, créé, proposée par le jeu de l’enfant, la musique intérieure de ce jeu, pourrait-on dire. Là, le rythmicien est désorienté”. .
Entretanto, em termos da relação entre precisão e espontaneidade, o reconhecimento do problema é seguramente mais importante do que sua hipotética resolução. Além disso, não podemos tomar a declaração de Suzanne Bing como uma verdade aplicável fora do escopo de sua experiência com esse grupo de crianças. Sabemos que o próprio Jaques-Dalcroze também pesquisou a brincadeira da criança e que no coração da ginástica rítmica se encontra também essa busca de equilíbrio entre os dois elementos. Foi de fato para encontrar espontaneidade na rigidez do ensino musical tradicional que Jaques-Dalcroze criou sua Gymnastique Rythmique. Embora Copeau tenha criticado certos aspectos do trabalho de Jaques-Dalcroze, seus elogios ao mestre suíço também abundaram quando este último trabalhava com crianças em Genebra. As críticas de Bing a Jaques-Dalcroze se baseiam menos na falta de conexão entre a brincadeira infantil e a Ginástica Rítmica de Dalcroze do que na busca de um caminho específico resultante de sua colaboração com Copeau. Entretanto, se olharmos para os fundamentos, ou seja, para noções básicas como a experiência antes da elaboração, a importância do silêncio para que algo brote, o objetivo de educar tanto a mente quanto o corpo, veremos que Copeau manterá esses princípios mesmo quando ele propuser exercícios que são completamente diferentes da Ginástica Rítmica Dalcroziana.
Considerações Finais
Neste artigo busquei demonstrar como a experiência de Copeau e Bing com um grupo de crianças foi rica no sentido de abrir horizontes de pesquisa sobre o trabalho do ator posteriormente aprofundados na École du Vieux Colombier, bem como procurei reestabelecer, a partir desse caso específico, a importância de Suzanne Bing na empreitada pedagógica de Copeau. Nesse sentido, podemos reconhecer que, embora o objetivo original, de encontrar a ligação entre o jogo da criança e a Rítmica de Dalcroze, não tenha sido alcançado pela dupla de pesquisadores, em outros aspectos essa experiência foi fundamental.
Como verdadeiros pesquisadores, Copeau e Bing não só procuraram confirmar sua intuição inicial, mas também se deixaram surpreender por suas descobertas, razão pela qual a mímica das fábulas e a imitação dos animais abriram horizontes importantes em sua pedagogia. No entanto, as contribuições dessa experiência não se limitam a esses dois horizontes.
Podemos reconhecer dentro dessa experiência o teste de um certo número de pequenas atitudes de trabalho e o resultado de descobertas empíricas úteis para a dupla de colaboradores do Vieux Colombier. Por exemplo, foi nessa experiência que Suzanne Bing pela primeira vez explicou aos alunos a importância de roupas apropriadas para a atividade física e de tirar os sapatos para ficarem mais confortáveis na atividade teatral (Copeau, 1999, p. 96COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999.). Disciplina e pontualidade também eram aqui reforçadas. O poder dos jogos para estimular a imaginação se torna evidente para Bing quando três garotas arrastam uma corda atrás delas como se fosse uma cobra, “[...] elas parecem adorar este jogo (eu me lembro de estar muito animada, com muita imaginação [...]) o objeto ganha vida, parece galopar por si só”, observa Bing (apud Copeau, 1999, p. 97COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha) 35 35 No original em francês: “elles semblent adorer ce jeu (je me rappelle comme m’étant moi-même beaucoup excitée, avec une grande part d’imagination […]) l’objet s’anime, semble galoper seul”. .
No mesmo sentido, o estado de jogo da criança, tão próximo do “humor do improvisador” (Copeau, 1999, p. 109COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999.)36 36 No original em francês: “L’humeur de l’improvisateur”. , que Copeau reconhece em palhaços, também é procurado e frequentemente encontrado quando o diretor propõe jogos: “Ao me aproximar deles, observo um pequeno êxtase de prazer, uma espécie de leve agitação na hora, e que eles não deixam de se divertir durante toda a aula” (Copeau, 1999, p. 115COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)37 37 No original em francês: “au moment où je me rapproche d’eux, j’observe un petit frisson de plaisir, une sorte de léger trépignement sur place, et qu’ils ne cessent de s’amuser pendant toute la leçon”. , escreve Copeau em seu caderno sobre a Escola do Vieux Colombier. Foi também a partir das discussões entre Copeau e Jouvet sobre essa experiência que nasceu a ideia de “manter as crianças longe do texto” (Copeau, 1999, p. 118COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)38 38 No original em francês: “garder les enfants à l’écart du texte”. , ideia retomada posteriormente com os atores adultos a fim de descobrir “o que eles sabem fazer” (Copeau, 1999, p. 118COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)39 39 No original em francês: “ce qu’ils savent faire”. sem o texto teatral, reforçando assim a importância da ruptura de Copeau com a literatura dramática em situação pedagógica, a fim de pesquisar novas possibilidades de improvisação. Além disso, como esboço da École du Vieux Colombier, essa experiência permitiu que Bing e Copeau mergulhassem no campo pedagógico, o que se constituiu, como Bing resumiu, em sua “propedêutica” (Bing apud Copeau, 1999, p. 114COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha).
Se Copeau vislumbrava a colaboração de crianças em seu projeto teatral desde o início do Théâtre du Vieux Colombier, após esse trabalho em 1915-1916 ele voltaria constantemente a essa ideia. Ele gostaria de levar as crianças para o interior, perto da natureza, tê-las diariamente, criar condições favoráveis para trabalhar com elas, dando-lhes o status de estudantes de internato. Pleno dessa esperança, Copeau declara: “Ao agrupar no Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue Vaugirard, algumas crianças, meninos e meninas, os primeiros exercícios nos deram a certeza de que, conduzidos metodicamente, produziriam todos os resultados esperados” (Copeau, 1999, p. 128COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999., tradução minha)40 40 No original em francês: “En groupant au Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue Vaugirard, quelques enfants, garçons et filles, dont les premiers exercices nous donnent la certitude que, poussés méthodiquement, ils produiraient tous les résultats attendus”. . Entretanto, não haverá crianças na École du Vieux Colombier, criada quatro anos mais tarde em Paris. O que, de forma alguma, anula a importância que a criança e a brincadeira infantil tiveram na elaboração pedagógica para a formação de um novo ator empreendida pelo fundador do Vieux Colombier.
Notas
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1
Para saber mais sobre esses laboratórios da infância, recomendo a leitura de outros dois artigos de minha autoria: Quand le théâtre rejoint l’enfance: Apports de la Children’s School à la pédagogie de l’acteur au sein de l’École du Vieux-Colombier (Scalari, 2021bSCALARI, Rodrigo. Quand le théâtre rejoint l’enfance: Apports de la Children’s School à la pédagogie de l’acteur au sein de l’École du Vieux-Colombier. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, Belo Horizonte, v. 11, n. 23, p. 159-174, 13 dez. 2021b.); Copeau e os laboratórios da infância: as brincadeiras de seus filhos, ou, melhor dizendo, le tout rond (Scalari, 2022SCALARI, Rodrigo Cardoso. Copeau e os laboratórios da infância: as brincadeiras de seus filhos, ou, melhor dizendo, le tout rond. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.).
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2
No original em francês: “frappé par la qualité de sa voix, la discrétion de son jeu”.
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3
No original em francês: “des êtres émotionnellement investis, indifféremment et tour à tour dans une histoire d’amour professionnel, pédagogique et personnel”.
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4
No original em francês: “Lorsque je me suis proposé, en 1921, de créer à côté du théâtre une École du Vieux Colombier et d’y élever une génération nouvelle de comédiens, c’est à Suzanne Bing que j’ai demandé de me venir en aide. Sans elle, le projet que j’avais formé n’eût sans doute jamais abouti. Elle a assumé, depuis plus de dix ans, la plus lourde part d’une tâche ingrate. Elle y a, dans une grande mesure, sacrifié sa propre carrière d’interprète, et dépensé ses forces jusqu’à leur extrême limite. Par ses expériences, inlassablement reprises et développées, elle m’a fourni les éléments d’une méthode pour l’éducation des jeunes comédiens”.
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No original em francês: “Néanmoins cet entraînement préliminaire devait porter de bons fruits. Entraînement qui, au bout de la saison 1913-1914, pouvait être considéré comme ayant atteint un maximum de rendement. Je dis : entraînement. Non pas : éducation. Mon expérience me mettait, à cette époque, sur la voie de certains principes d’éducation. Mais le seul résultat véritablement acquis c’était un lien créé entre ma jeune troupe et moi, la confiance qu’ils m’accordaient désormais, la vertu éducative dans le sens plus large, de leur travail, de leur vie en commun, sous la direction, sous l’influence d’une personnalité unique qui, sans compter, se dépensait à leur profit. J’ai senti, dès lors, qu’il y avait là un principe réel, vivant, capable d’engendrer quelque chose de grand et durable. J’avais réengagé toute ma troupe pour trois ans, […] je pensais consacrer l’été à étudier les moyens de constituer l’école, quand la guerre éclata”.
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6
No original em francês: “Je vous écrirai quelque jour à propos de ‘l’École’, qui est le premier et le plus important de mes soucis présents”.
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Carta de Copeau a Jacques Rivière de 20 de fevereiro de 1916 (Copeau, 1999, p. 123COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999.).
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8
Que seria o de recrutar as crianças para que integrassem a École du Vieux Colombier e recebessem uma educação teatral desde então.
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9
No original em francês: “Cahier de Jacques Copeau. Première démarche. Lundi 1er novembre 1915 : À plusieurs reprises déjà, j’avais eu des pourparlers pour créer au Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue de Vaugirard, un groupement d’enfants qui fût la première ébauche d’une école pour le théâtre. La grande difficulté a toujours été le recrutement même des enfants. Le lundi, 1er Novembre, à 2 heures, Paulet Thévenaz m’introduit chez une de ses amies, Mme de Manziarly […], femme de quarante ans, russe, intéressée dans beaucoup d’œuvres d’assistance, et passionnée pour la cause de l’enfant. Mme de Manziarly conseille, pour faciliter le recrutement, de ne point faire mention de nos véritables desseins, et d’ouvrir simplement, rue de Vaugirard, tous les jeudis pour commencer, une sorte de patronage où il serait question de récréer les enfants. Moyennant ce léger subterfuge, elle se charge de nous amener une douzaine de sujets. Par la suite, il sera possible de parler aux mamans des aptitudes de leurs petits, par-là de les intéresser, et d’en décider quelques-unes”.
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10
No original em francês: “afin que quelque chose existe”.
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No original em francês: “Intériorisation de la musique aux organes”.
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No original em francês: “Grâce à Suzanne je vais pouvoir me voir travailler”.
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No original em francês: “Il n’y a que Suzanne Bing qui comprenne ce que je veux faire, et qui se donne à moi de toutes ses forces”.
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14
No original em francês: “Aujourd’hui pour la première fois, je les prends. Tout change. Le contact allume en eux quelque chose qu’on n’avait pas encore vu. Ils se sentent emportés, exaltés. Je ne les laisse pas toucher terre. 1° Exercices Militaires. Alignement et marche. 2° Jeu de balle. Lancer la balle en l’air et la rattraper sans bouger de place, le corps droit, les talons réunis. Lancer la balle en cercle, de l’un à l’autre, de plus en plus vite. En ligne : le maître lance la balle, sans prévenir, en essayant de tromper la vigilance de chacun, à l’un ou à l’autre qui doit la rattraper et s’en dessaisir aussitôt (attention, facultés en éveil, promptitude de décision, adresse de main et d’œil). Tout cela très rapide. 3° Groupements et dégroupements rapides. 4° S’asseoir tous ensemble au claquement des mains. Se relever id. Sauter id. Sauter deux fois, trois fois. Frapper des mains, du pied ensemble. Id. en émettant un son. 5° Le chat et le vieux rat. Je leur lis la fable de La Fontaine, la leur explique, la leur fais mimer grosso modo”.
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No original em francês: “des instruments parfaitement souples et nuancés. […] qui répondent à la pensée du chef et du maître”.
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16
No original em francês: “Le modèle militaire – on est en guerre, ne l’oublions pas – est omniprésent, dans la discipline comme dans les exercices de gymnastique qu’il leur fait faire”.
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17
No original em francês: “Il faut qu’à l’instant où commencent les exercices l’enfant se sente saisi et soulevé de terre par une main irrésistible, dans laquelle on peut avoir toute confiance, et qui ne relâchera pas son étreinte avant la fin du jeu”.
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18
No original em francês: ‘Le chat et le vieux rat’ La lecture les a amusés beaucoup, ils comprenaient bien les mots que vous leurs expliquiez, et ils ont eu tous un mouvement de plaisir quand vous avez dit : ‘on va essayer de faire ça. D’abord, comment marche un chat ?’. Ils ont tout simplement marché à quatre pattes, pas bien. ‘Et comment marche un chien ?’. Alors, ils comprennent la différence, ils ont timidement fait marcher le chien un peu plus fort. ‘Et maintenant comment marche un chat ?’. Ils avaient compris et quelques-uns ont réussi une marche silencieuse et allongée. ‘Pourquoi ?’. Celui qui a le mieux fait, répond: ‘pour ne pas faire de bruit. – Oui, pour que les souris n’entendent pas’. Avec ces quelques mots, ils étaient déjà dans le drame de la fable, et Étiennette toute seule a fait un chat presque réussi. Elle a bien répondu qu’il s’arrête s’il entend du bruit, mais elle s’arrêtait sans avoir pensé à entendre ; elle saisit mieux quand vous le lui représentez s’arrêtant net dans la position où il était, en tendant, en allongeant son oreille. – Maintenant on fait la fable. Le grand Jean est le chat, tous les autres des souris. On suit les péripéties de la fable : se retirent en leurs tanières. ‘Où sont vos tanières ?’. Tous choisissent la petite salle derrière les piliers et un garçon se glisse derrière le rideau. Entre le chat ; vous lui faites souvenir qu’il est l’Attila, et en même temps qu’on ne doit pas l’entendre. Les souris se font dire plusieurs fois de se mieux cacher. On porte un banc au milieu de la salle sur lequel puisse se tenir le chat pour sembler s’être suspendu. Il y grimpe, mal d’abord. – Il recommence, en bondissant de quatre pattes à la fois et sans bruit. Il reste ainsi jusqu’à ce que vous le permettiez de se reposer, suspendu comme vous le lui avez indiqué, par une patte, tout le reste du corps, et la tête, pendant comme une loque. Les souris: mettent les nez à l’air, montrent un peu la tête; puis rentrent dans leurs nids à rats, – avec la précipitation, la panique que votre ton leur communique. Puis viennent en trottinant se grouper en demi-cercle devant le chat; celui-ci d’un seul bond est au milieu d’elles qui se sauvent, il en poursuit une, on s’arrête là. On les sentait tous dans leur personnage.
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19
No original em francês: “grand danger: l’introduction de la littérature et, avec elle, du pédantisme esthétique”.
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20
No original em francês: “J’ai déjà remarqué, notamment chez Dalcroze, que l’élève, dès l’instant où on fait appel chez lui à un sentiment (fatigue, joie, tristesse, etc.) pour provoquer un mouvement, déterminer une mimique, aussitôt, et peut-être inconsciemment, par besoin, il laisse prédominer dans son action l’élément intellectuel, le jeu de physionomie. C’est la porte ouverte à la littérature et au cabotinage. Je crois que pour les exercices les plus simples, c’est de l’observation des animaux qu’il faudra nous inspirer. […] Faire observer par l’élève les animaux dans la nature, puis dans l’art. Lui faire dessiner, découper des silhouettes d’animaux, inventer des accessoires […]”.
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21
No original em francês: “Et plus tard cette mime de l’abservation [sic] et l’expérience de nos exercices seront d’un grand secours à l’artiste pour la représentation plus ou moins forcée et caricaturée des personnages de la comédie”.
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22
Como no exemplo do exercício dos dois escorpiões dado por Bogdan Korzeniewski (Barba, 2004, p. 92BARBA, Eugênio. Le canoë de papier: traité d’anthropologie théâtrale. Traducão Éliane Deschamps-Pria. Saussan: l’Entretemps éd, 2004.).
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23
No original em francês: “Le chat et le vieux rat. […] vous revenez avec plus de détails, et, individuellement, sur la démarche des bêtes, et leur montrez des images, des souris, la façon dont elles agitent leur tête. Vous réglez avec précision les mouvements correspondant au texte, les partageant en groupes égaux de souris cachés l’un en face de l’autre. […] Puis vous leur montrez qu’aussi parfaitement qu’on imite des bêtes, on n’arrivera jamais à faire croire qu’on est une, même en allant à quatre pattes, alors qu’on va faire la même chose, mais sur ses pieds. Il faut maintenant donner l’impression d’un chat, de sa démarche allongée, de sa promenade autour de la salle à manger, d’un bruit qu’il entend, les mains ramassées comme des pattes de devant, prêtes à bondir, du piège qu’il prépare aux souris, pendu au milieu de la salle. […]”.
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24
No original em francês: “Le travail s’en ressent. Il est un peu désordonné. […] Je paye surtout de ma personne, cherchant à prendre contact, à créer une atmosphère où se fondent les défiances individuelles. […] Conversations. Exercices tendant à les forcer de faire abstraction de tous leurs moyens de comédiens, d’aborder un texte avec humilité […]. C’est ce qu’il y a de plus difficile. Les empêcher de réaliser d’emblée, de chercher à m’épater. Épeler modestement, puisqu’on a le temps. Table rase de procédés tout faits, à portée de la main, qu’on sort de son sac à malices”.
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25
No original em francês: “d’une façon presque élémentaire”.
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26
No original em francês: “l’exigence d’une discipline physique totale, s’imprégner du personnage, de l’être, de la chose, de l’animal… On voit aujourd’hui se faire, mais à l’époque cela ne se faisait pas du tout”.
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27
Patrão era o apelido de Jacques Copeau em sua trupe do Vieux Colombier.
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No original em francês: “Le Patron ne m’explique pas, ne s’explique pas. Mais il n’est pas difficile de comprendre que ce travailleur acharné, qui dès avant le Vieux-Colombier s’est donné pour tâche l’éducation du comédien, met à profit ce temps de loisir (!) forcé pour s’en mettre sous les yeux, entre les mains, deux éléments essentiels, un groupe d’enfants, un enseignement musical, afin, partant de zéro, de considérer, de palper par quel bout il va “prendre son ouvrage “, et qu’il me convoque à une expérience. Les enfants n’étaient donc pas des élèves, à plus forte raison des élèves-comédiens: c’est nous qui étions des élèves-professeurs, qui faisons quelque chose comme notre propédeutique”.
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29
No original em francês: “objet de référence”.
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30
No original em inglês: “speculative instrument”.
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Esse livro de memórias se tornaria mais tarde o projeto de Copeau para sua escola. Ver: Copeau (1999, p. 124)COPEAU, Jacques. Registres VI, L’École du Vieux-Colombier. Paris: Gallimard, 1999..
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32
No original em francês: “En quelque point de rencontre de la gymnastique avec le jeu naturel se trouve peut-être le secret d’où jaillira notre méthode. À quelque moment de l’expression rythmique naîtra peut-être d’elle-même, fatalement, l’expression parlée, – le cri d’abord, l’exclamation, puis la parole. À quelque degré du jeu improvisé, l’improvisation jouée, l’improvisation dramatique, le drame dans sa nouveauté, dans sa verdeur, nous apparaîtra. Et ces enfants, dont nous nous croyons les maîtres, seront sans doutes les nôtres, un jour”.
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33
No original em francês: “Cette liaison avec la musique, cet adjuvant musical, moi je le vois dans l’éducation du comédien. Intériorisation de la musique aux organes, à toutes les facultés de l’exécutant, pour obtenir la précision et la liberté”.
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34
No original em francês: “Le Patron ne m’a pas fait connaître la théorie de Jaques-Dalcroze, plus tard seulement il me confie les deux volumes de la méthode. Mais il était naturel que le Patron s’attendît à ce qu’un enseignement musical qui prenait pour moyen le corps humain fût l’enseignement même propre au comédien : celui du langage du créateur poétique. Or, la Gymnastique rythmique est exactement l’inverse : le langage musical (Art des sons) existant préalablement et extérieurement à l’élève, lui est proposé du dehors (piano). Sa participation corporelle équivaut à une notation, traduction (le mot est de Gide) du langage musical selon une grammaire convenue d’avance. […] À l’expérience, aucun contact n’a pu, à aucun moment, s’établir entre ce langage fait d’une convention étrangère, et la libre improvisation, créé, proposée par le jeu de l’enfant, la musique intérieure de ce jeu, pourrait-on dire. Là, le rythmicien est désorienté”.
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No original em francês: “elles semblent adorer ce jeu (je me rappelle comme m’étant moi-même beaucoup excitée, avec une grande part d’imagination […]) l’objet s’anime, semble galoper seul”.
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No original em francês: “L’humeur de l’improvisateur”.
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No original em francês: “au moment où je me rapproche d’eux, j’observe un petit frisson de plaisir, une sorte de léger trépignement sur place, et qu’ils ne cessent de s’amuser pendant toute la leçon”.
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No original em francês: “garder les enfants à l’écart du texte”.
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No original em francês: “ce qu’ils savent faire”.
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No original em francês: “En groupant au Club de Gymnastique Rythmique, 52, rue Vaugirard, quelques enfants, garçons et filles, dont les premiers exercices nous donnent la certitude que, poussés méthodiquement, ils produiraient tous les résultats attendus”.
Referências
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Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
11 Abr 2022 -
Aceito
15 Ago 2022