RESUMO
Na abertura da icônica exposição China/Avant-Garde (1989, Pequim), a artista Xiao Lu disparou dois tiros contra sua instalação Dialogue e entregou a arma ao artista Tang Song, que mais tarde se tornaria seu namorado. A partir daquele momento, o mundo da arte atribuiu a peça a Tang Song e Xiao Lu. Duas décadas depois, Xiao Lu disputou a autoria exclusiva da obra de arte em um livro de memórias ficcionais, Dialogue (2010). Nesse texto, ela apresentou uma historiografia de sua arte, refletindo sobre a performance e desafiando a apropriação da obra por Tang Song. Este artigo explora a reescrita de Xiao Lu a respeito da história oficial da arte e seus fundamentos patriarcais por intermédio de uma lente feminista. Abarca leituras complementares, contraditórias e contrastantes da arte de Xiao Lu e oferece uma nova abordagem tanto à dimensão terapêutica como política do relato autobiográfico da artista.
Palavras-chave:
Xiao Lu; Performance; Feminismo; Arte Experimental Chinesa; Autoria.
RÉSUMÉ
Lors du vernissage de l'exposition emblématique China/Avant-Garde (1989, Pékin), l'artiste Xiao Lu tire deux coups de feu sur son installation Dialogue et tend l’arme à feu à l'artiste Tang Song, qui deviendra plus tard son couple. À partir de ce moment, le monde de l'art attribue la pièce à Tang Song et Xiao Lu. Deux décennies après l'événement, Xiao Lu a contesté qu’elle était l’unique auteure de l'œuvre d'art dans son mémoire fictif, Dialogue (2010). Dans ce texte, elle présente une historiographie de son art, réfléchit sur la performance et interpelle l'appropriation de l'œuvre par Tang Song. Cet article explore la réécriture par l'artiste de l'histoire officielle de l'art et de ses fondements patriarcaux à travers une perspective féministe. Il engage des lectures complémentaires, contradictoires et contraposées de l'art de Xiao Lu et propose une nouvelle approche qui aborde à la fois les dimensions thérapeutiques et politiques du récit autobiographique de l'artiste.
Mots-clés:
Xiao Lu; Performance; Féminisme; Art Expérimental Chinois; Titularité.
ABSTRACT
At the opening of the iconic exhibition China/Avant-Garde (1989, Beijing), the artist Xiao Lu fired two shots at her installation Dialogue and handed the gun to the artist Tang Song, who would later become her boyfriend. From that moment on, the artworld attributed the piece to Tang Song and Xiao Lu. Two decades after the event, Xiao Lu disputed the unique authorship of the artwork in a fictional memoir, Dialogue (2010). In this text, she presented a historiography of her art, reflecting on the performance and challenging Tang Song’s appropriation of the work. This article explores Xiao Lu’s re-writing of the official history of art and its patriarchal foundations through a feminist lens. It engages with complementary, contradictory, and contrasting readings of Xiao Lu's art and offers a new approach that addresses both the therapeutic and political dimensions of the artist's autobiographical account.
Keywords:
Xiao Lu; Performance; Feminism; Chinese Experimental Art; Authorship.
Xiao Lu: criação artística como um meio para se expressar
A forma de uma obra de arte, sua própria existência, é apenas a manifestação de uma demanda interna. Dependendo da sua psicologia em determinada situação, pode ser um poema ou o disparo de uma arma. […] É um mecanismo instintivo de sobrevivência. É onde você está na vida (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 4).
Em seu livro de memórias ficcionais Dialogue [Diálogo] (对话, 2010), Xiao Lu (肖鲁, Hanhzhou, 1962) descreve a criação artística como uma resposta a uma necessidade íntima que está ligada a um mecanismo instintivo de sobrevivência. Este artigo examina este livro de memórias, considerando-o como um meio de libertação, denúncia e empoderamento feminino. Concentrando-se no processo da artista de desenvolvimento da autoconsciência e sua reflexão sobre questões de identidade, explora o potencial catártico da produção artística e a estreita associação entre a experiência vivida e a prática criativa. A escrita de Xiao Lu surge de um desejo de mapear uma historiografia de sua própria obra de arte e, acima de tudo, uma necessidade de recuperar a autoria tanto da concepção quanto da performance de Dialogue - The gunshot incident [Diálogo - O incidente dos tiros] (1989), que se tornou um trabalho icônico na história da arte experimental na China.
Em seu livro de memórias ficcionais, Xiao Lu afirma que concebeu Dialogue (1988) em seu último ano como estudante do Departamento de Pintura a Óleo da Academia de Belas Artes de Zhejiang. Ela pretendia explorar “o diálogo entre homem e mulher - um diálogo sem diálogo, minha situação na vida real” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 60). Em resposta a sua sugestão, seu tutor aconselhou-a a pensar cuidadosamente sobre o formato da obra de arte. Esse problema foi resolvido logo após ela ter uma conversa com um “velho amigo da família”, Wei Bo, a partir de uma cabine telefônica (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 61). Durante essa conversa, Xiao Lu o acusou de abuso sexual e de ter arruinado sua vida. Ela recorda como “[...] assim que saí da cabine telefônica, uma imagem específica e artisticamente formada apareceu diante dos meus olhos: a cabine telefônica, uma conversa homem-mulher, um fone pendurado, um sinal de chamada... Tinha encontrado seu formato” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 62). Seu professor de arte, Shen Shentiang, ajudou-a durante o processo e apoiou sua escolha de usar uma cabine telefônica real. Também sugeriu que ela usasse fotografias em preto e branco em vez de pinturas (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010.). Xiao Lu decidiu colocar um espelho com uma cruz vermelha no centro de sua instalação para refletir a própria imagem. Recorda que o “Professor Song” disse a ela: “Este trabalho está limpo demais. Precisa ser fragmentado”, sugerindo que ela usasse uma arma para rachar o espelho sem quebrá-lo (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 69). Song pertencia a uma geração de professores jovens que haviam retornado dos estudos no exterior e incentivavam seus alunos a explorar linguagens artísticas experimentais e a transgredir os conceitos dominantes do realismo socialista (Shen Shentiang esteve nos Estados Unidos e Song na França). No entanto, para evitar possíveis obstáculos à apresentação de uma obra de arte conceitual e experimental, Xiao Lu concordou com o Departamento de Pintura a Óleo em apresentar uma pintura e instalação como seu projeto final (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 66). Em seu livro de memórias ficcionais, Xiao Lu investiga profundamente seus sentimentos de confusão e desconforto, além de sua dificuldade em se comunicar com os homens como as principais razões que a levaram a criar essa instalação:
Fiz Dialogue apenas porque, na época, eu me sentia muito reprimida, muito sufocada mesmo. Eu tinha um namorado, mas não conseguia conversar honestamente com ele sobre o meu passado. Eu guardava muitas coisas para mim. Mesmo vivendo juntos como um casal, eu me sentia como se fôssemos estranhos e não conseguia conversar com ele sobre nada. Eu sentia que não conseguia me comunicar com os homens. Dialogue era sobre isso (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc... ).
A criação artística a ajudou a processar e canalizar o trauma que não conseguia verbalizar como consequência do poder que seu abusador exerceu sobre Xiao Lu e sua vulnerabilidade.
O cerne do relato nas memórias ficcionais é sua performance Dialogue - The gunshot incident (Figura 1), que ocorreu na abertura da icônica exposição China/Avant-Garde (1989) no Museu Nacional de Arte em Pequim. Nela, Xiao Lu disparou dois tiros contra sua instalação Dialogue e depois entregou a arma a Tang Song. Por mais de uma década, o mundo da arte atribuiu o trabalho a ambos os artistas; no entanto, em Dialogue (2010), Xiao Lu explica que Tang Song não teve nada a ver com a concepção do trabalho e que tinha se apropriado indevidamente dele. Ela revela sua decisão de quebrar o silêncio depois de se separar de seu parceiro de 15 anos para narrar os eventos em seus próprios termos e afirmar a autoria exclusiva do trabalho.
Tanto em sua instalação Dialogue quanto na performance Dialogue - The gunshot incident, Xiao Lu exorciza o trauma do abuso sexual. Por exemplo, nas memórias ficcionais, ela relata como, após a performance, enviou a Wei Bo, o amigo de seus pais que abusou sexualmente dela, uma carta em que dizia: “Você ouviu os tiros? Você sabe o que me fez disparar aquela arma?”. Xiao Lu observa como, depois de enviar a carta, “Eu parecia estar me despedindo dos tiros e do meu passado também” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 113). Ao envolver o trauma pessoal na arte, a questão pessoal se torna uma questão coletiva e, portanto, política.
Este artigo explora a relação entre o pessoal e o político. Examina aspectos terapêuticos e políticos do relato biográfico de Xiao Lu a respeito de suas outras obras de arte, bem como textos e entrevistas com a artista, inclusive duas entrevistas que realizei com ela em 2008 e 2019. Assim, mergulha nas obras de arte e declarações de Xiao Lu ao longo de 11 anos, revelando o desenrolar de sua prática e seus processos de pensamento. Meu trabalho contribui para o corpus crítico existente ao apresentar releituras de reflexões críticas de outros historiadores e curadores de arte, revelando aspectos novos e mais sutis de sua produção artística. Sensível à desigualdade de posição e status das mulheres artistas na China, o artigo localiza esses discursos em conexão com o surgimento da arte de vanguarda e o início da construção da história da arte experimental na China. Considera o empoderamento de Xiao Lu como ilustrativo da luta das mulheres por seu próprio espaço em um sistema patriarcal que limita e fiscaliza sua liberdade e como um meio de dar visibilidade ao trabalho das mulheres artistas. Minha abordagem metodológica é transdisciplinar, entrelaçando os campos da história da arte, antropologia, sociologia e feminismo para discutir essas questões em relação às condições sociopolíticas em que a primeira geração de artistas experimentais chinesas surgiu na década de 1980.
Dialogue - The gunshot incident: afirmando a própria voz da artista
Xiao Lu se recorda de ter visto placas com o símbolo Sem retorno ao acessar o espaço da exposição China/Avant-Garde, que foi a primeira exposição de arte experimental e de vanguarda a ser exibida em um local oficial no país. Na noite anterior, decidiu desferir tiros contra sua instalação e pensou em revelar sua intenção aos organizadores. Sem conseguir falar com eles e, em retrospecto, ciente do fato de que não teria recebido permissão, optou por conduzir a performance de qualquer maneira (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc...
). A artista obteve a arma com seu amigo de infância, Li Songsong, e quando se deparou com um antigo colega, Ju Qing, pediu a ele que filmasse sua ação (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 87).
Xiao Lu explicou a detenção de Tang Song após os tiros e como, em estado de pânico, ela saltou para dentro de um ônibus. Depois de diversas viagens em diferentes rotas de ônibus, entregou-se à polícia (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 96-97; p. 99). Em seu depoimento aos policiais, descreveu sua ação como arte performática e devolveu a arma. Enquanto agências internacionais de notícias, como Associated Press, Reuters, Agence France Presse e United Press International, identificavam-na como autora da performance, a imprensa chinesa mencionou apenas que um homem e uma mulher tinham sido presos pela polícia (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 204). Gao Minglu, um dos curadores de China/Avant-Garde, disse que o local do evento foi fechado algumas horas depois de sua abertura e que as duas reaberturas seguintes em fevereiro foram de curta duração devido à sombra que a performance de Xiao Lu tinha lançado sobre a exibição. Foi até mesmo forçada a fechar devido a ameaças de bomba1 1 A exposição reabriu em 10 de fevereiro, mas foi fechada no dia 14 devido a ameaças de bomba. Reabriu novamente no dia 17 do mesmo mês, mas foi finalmente fechada no dia 19. . Os organizadores foram multados em 2.000 remimbis e proibidos de expor no Museu Nacional de Arte por dois anos (Tan, 2012TAN, Adele. Elusive Disclousures, Shooting Desire. Xiao Lu and the Missing Sex of Post-89 Performance Art in China. In: HOPFENER Birgit et al. (Ed.). Negotiating Difference Contemporary Chinese Art in the Global Context. Weimar: Verlag und Datenbank fur Geisteswissenschaften, 2012. P. 127-140., p. 129). A exposição foi a primeira mostra de arte experimental a ser exibida em uma instituição oficial, embora tenha sido censurada logo após a primeira apresentação devido aos tiros. Aliás, a arte de vanguarda da década de 1980 começou a adentrar em espaços institucionais, apesar do rigoroso controle do governo, durante um período de abertura promovido pelo presidente Deng Xiaoping.
Os artistas foram libertados da prisão três dias depois e se encontraram com Gao Minglu, que os convidou a participar de um seminário acadêmico para falar sobre o trabalho. Tang Song apresentou Xiao Lu a Li Xianting, cocurador da exposição e editor da revista de arte Zhongguo Meishu Bao. Ao chegarem ao departamento editorial, a artista estava com uma forte dor de cabeça e se deitou enquanto Tang Song conversava com Li Xianting. Teve outra dor de cabeça no dia seguinte na Academia Central de Belas Artes, onde também não conseguiu falar. Conforme se recorda com clareza, assim que perdeu a capacidade de se comunicar, Tang Song se tornou o único porta-voz da ação:
Todos queriam falar conosco sobre a arma. Lan Jun [(Lan Jun é o nome fictício do namorado do protagonista no romance] e eu nos sentamos em uma cama e encaramos todas aquelas pessoas. Minha mente estava perturbada por alguma coisa e eu não conseguia abrir a boca para nada. Baixei a cabeça. Lan Jun explicava o trabalho com uma franqueza amigável, suas implicações políticas, legais e estratégicas e assim por diante, um enorme volume de um vocabulário profundo, fazendo com que todos os presentes o ouvissem fascinados. Enquanto eu escutava todas aquelas coisas que não tinham nada a ver comigo, minha mente inteira se encheu de humilhação. […] Tinha perdido completamente minha língua (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 106).
Tornou-se amiga de Tang Song, que se ofereceu para escrever sobre a ação para Gao Minglu (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. ix) e sugeriu que partissem imediatamente para Hangzhou. Tang Song apropriou-se de seu trabalho e dos discursos que se seguiram sobre ele. Aliás, quando Li Xianting publicou o artigo Two gunshots: The curtain call of the new wave in art [Dois tiros: O fechamento da cortina da nova onda na arte] (1989), na revista Zhongguo Meishu Bao, escreveu que a ação tinha sido coautoria dos dois artistas (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 111). Xiao Lu lembra que seu professor a aconselhou a afirmar publicamente sua autoria exclusiva do trabalho, assim como sua mãe: “Ele se apaixonou por essa sua arma. […] Como você pode ser tão tola? Todo mundo no campus está dizendo que Lan Jun está usando você emocionalmente para usurpar seu trabalho”. No entanto, ela permaneceu em silêncio e essa incapacidade de se comunicar permitiu que ele reivindicasse o trabalho, porque ela estava apaixonada (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 113).
A exposição ocorreu em um momento em que a arte experimental estava começando a crescer na China e no contexto anterior ao massacre da Praça da Paz Celestial. Embora Xiao Lu tenha enfatizado que a origem de seu trabalho não estivesse vinculada aos eventos políticos da época (Xiao Lu apud Manonelles Moner, 2011MANONELLES MONER, Laia. Arte experimental en China, conversaciones con artistas. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2011., p. 191), é importante observar a progressiva repressão desencadeada pelo governo em resposta à crescente demanda de democracia por estudantes, trabalhadores e intelectuais. Em 19 de maio, os alto-falantes declararam lei marcial e, nas primeiras horas do dia 4 de junho de 1989, os tanques entraram na Praça da Paz Celestial (Moreno, 1992MORENO, Julia. China contemporánea (1916-1990). Madri: Istmo, 1992., p. 222). Após esse confronto histórico, a política do governo tornou-se mais repressora e os artistas testemunharam o desaparecimento do espírito utópico que havia caracterizado a década de 1980. A cena artística entrou em um novo período de inquietação, que forçou muitos artistas experimentais a trabalhar clandestinamente para evitar a repressão e a censura (Andrews; Minglu, 1995ANDREWS, Julia; MINGLU, Gao. The avant-garde's challenge to official art. In: DAVIS, Deborah S. et al. (Ed.). Urban Spaces in Contemporary China: The Potential for Autonomy and Community in Post-Mao China. Cambridge: Woodrow Wilson Center Press; Cambridge Press, 1995. P. 221-78., p. 237).
Ao lado de muitos outros estudantes universitários, os estudantes da Academia de Belas Artes de Zhejiang também participaram dos movimentos que, a partir de abril de 1989, buscaram estabelecer diálogo com o governo. Tang Song tornou-se uma voz representativa e foi colocado na lista negra após os incidentes em Tiananmen. Por causa dessa complexa situação política, Xiao Lu começou a pensar em deixar o país e, graças à rede de contatos de sua família, conseguiu enviar seus documentos ao consulado australiano de Xangai. Seguindo o conselho de um conhecido, ela apresentou evidências da grande repercussão que Dialogue - The gunshot incident teve na mídia internacional. No dia seguinte, ela recebeu um visto de turista de três meses (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 118-19) e voou para Sydney em 14 de dezembro de 1989. Tang Song a seguiu 18 meses depois, entrando ilegalmente na Austrália vindo de Hong Kong. Nas memórias ficcionais, a artista narra sua nova vida em Sydney, sua felicidade, mas também os conflitos que teve com Tang Song, que apostou todo o dinheiro ganho por ela e os subsídios estatais que recebiam. Retornaram à China em 1997 e testemunharam o impacto da transformação econômica e urbana implementada por Deng Xiaoping. Os problemas do casal aumentaram devido ao desejo dela de ter filhos, o que não era compartilhado por Tang Song. Discutiam intensamente e ela começou a dialogar consigo mesma e a colocar seus pensamentos em ordem, escrevendo constantemente e se perguntando por que, ao longo de todos esses anos, não havia conseguido discutir abertamente seu trabalho Dialogue (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 158). A visita de Tang Song à Austrália por um período de quatro meses em 2001 foi um momento decisivo no processo de desenvolvimento da autoconsciência dela. Nas palavras da artista: “Quando Lan Jun partiu de repente, em 2001, foi o ponto de virada da minha vida. Fiquei adormecida por muitos anos e agora acordava lentamente. Eu, que tinha lutado contra enigmas e contradições, começava a encontrar uma saída. Muito gradativamente, essa mudança penetrou todo o meu corpo” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 159). Depois de 20 anos de silêncio, ela disse a Tang Song que havia atirado contra sua instalação em resposta ao abuso de Wei Bo, violando a ordem para “manter silêncio” ditada pelo “velho amigo da família”. Compartilhar a motivação subjacente à performance dos tiros ajudou-a a desafiar a opressão que sentia durante todos esses anos (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 162).
Na verdade, um ano antes de romper o relacionamento deles, Xiao Lu já havia começado a procurar seu próprio espaço. Quando foi para os Estados Unidos - após um convite de uma amiga de infância - Tang Song enviou-lhe instruções para um projeto colaborativo; no entanto, infeliz com seus trabalhos conjuntos anteriores, ela decidiu contra isso2 2 O curador da mostra Post-89' New Chinese Art, [Nova Arte Chinesa Pós-89] em Hong Kong e Mao Goes Pop [Mao é Pop] em Sydney convidou ambos os artistas para participar da exposição quando moravam em Sydney. Tang Song sugeriu que eles produzissem algo em conjunto, mas que ele seria o autor do conceito. Dessa maneira, ele enfatizava como um casal deve trabalhar em conjunto. . Nas palavras de Xiao Lu (2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 167): “Colaboração se trata de duas pessoas alcançando um entendimento comum, não uma obedecendo a outra. Se precisarmos colaborar, você termina sua parte em Hangzhou e eu termino minha parte em Nova York”. Rejeitar a ordem de seu parceiro e trabalhar de forma autônoma a ajudou a reconstruir sua autoconfiança. Na performance We are in New York [Estamos em Nova York] (2002), Xiao Lu levou um manequim à semelhança de Tang Song para um passeio pela cidade e fotografou a si mesma com ele no Memorial do 11 de setembro, na Ponte do Brooklyn e na Times Square. Ele tinha enviado o manequim a ela, mas não para esse fim. Em vez disso, Xiao Lu executou sua própria proposta, aparecendo em todos esses locais ao lado de seu parceiro, que se tornou uma sombra, um fantasma, um boneco. Sua resolução de conduzir essas ações de forma autônoma redundou numa discussão quando retornou a Hangzhou e conduziu um processo que acabaria por culminar na separação do casal.
Em seu romance, Xiao Lu narra os anos difíceis que passou com Tang Song e revela como ela ficava em silêncio quando seu parceiro se tornava a voz principal de seu trabalho. Ela só conseguiu articular sua história em voz alta quando não estava mais com ele. Foi precisamente sua determinação em explicar o que aconteceu que criou um ponto de virada em sua vida e seu trabalho. Dialogue foi vendido para o colecionador de arte Song He, embora tenha se deteriorado significativamente devido à má conservação. Quando os dois artistas receberam um pedido para reproduzi-lo, Xiao Lu expressou seu desejo de fazê-lo sozinha. Em resposta à sua afirmação de autoria única, Tang Song disse a ela que ele tinha sido a única voz para o trabalho. Xiao Lu respondeu-lhe
-
- Você deve saber que, durante todos esses anos, eu é que tenho falado sobre isso.
-
- Sim, você tem falado, e por quê? Porque eu não tenho.
-
- Diga o que quiser, você não pode mudar isso. Já está escrito na história.
-
- A história é escrita por pessoas e eu ainda não estou morta! Não se esqueça de que fiz esse trabalho, você sabe muito bem qual foi a sua parte nele’ (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 186).
Xiao Lu pertence a uma geração de mulheres que foram educadas no rígido sistema patriarcal da Revolução Cultural. As mulheres tinham que se submeter a pais, maridos e filhos em uma estrutura que reflete a máxima de Confúcio, “a falta de talento é uma virtude em uma mulher” (González Puy, 1995GONZÁLEZ PUY, Inma. Mujeres artistas en China. In: FISAC BADELL, Taciana (Ed.). Mujeres en China. Madri: Ediciones Cooperación al desarrollo, 1995. P. 163-196., p. 163). A antropóloga Su-Ling Welland (2018WELLAND, Sasha Su-Ling. Experimental China. Gender and Globalization in Chinese Contemporary Art. Durham; Londres: Duke University Press, 2018., p. 58-59) observa como o amigo da família que abusou de Xiao Lu, um pintor que tinha estudado com o pai dela na antiga União Soviética, disse à artista depois de estuprá-la: “Eu gostaria de pintar um retrato de você nua”. Essa frase cristaliza a conexão entre a agressão sexual e a tradição do nu feminino na arte, que constrói os corpos das mulheres como objetos a serem olhados.
No entanto, ela e outras mulheres de sua geração começaram a definir seus próprios caminhos na década de 1980, encontrando sua própria voz por meio da criação artística e desafiando narrativas oficiais através de seu questionamento da hegemonia. Xiao Lu pertence à primeira geração de mulheres que estudaram artes visuais e começaram a explorar a arte experimental em um ecossistema artístico masculino. Para seu projeto de graduação, ela decidiu apresentar uma obra de arte conceitual que desafiava o que era considerado como arte oficial no Departamento de Pintura a Óleo da Academia de Belas Artes de Zheijiang, do qual seu pai era o diretor e onde sua mãe também lecionava. Na abertura da China/Avant-Garde, ela destruiu sua própria instalação para exorcizar a violência do abuso sexual e o sentimento de desesperança que vivenciou quando sua própria família não a protegeu. Deu um passo à frente quando decidiu reivindicar sua autoria de Dialogue - The gunshot incident e confrontou seu ex-parceiro, bem como o contexto sociocultural que coloca as mulheres em uma posição submissa, no sistema de arte predominantemente masculino.
Subverter a narrativa oficial sobre a arte de vanguarda
O trabalho de Xiao Lu produziu uma polifonia de leituras. A historiadora de arte e curadora Inma González Puy (1995GONZÁLEZ PUY, Inma. Mujeres artistas en China. In: FISAC BADELL, Taciana (Ed.). Mujeres en China. Madri: Ediciones Cooperación al desarrollo, 1995. P. 163-196., p. 179) chama a atenção para a teia de privilégios e o sistema de justiça desigual que governava o mundo da arte. Ela observa como Xiao Lu e Tang Song foram libertados depois de alguns dias porque ela disparou uma arma que pertencia a um membro da família que tinha uma posição importante no partido e muitos contatos graças à sua condição social elitista.
Entre as muitas leituras de Dialogue - The gunshot incident, Li Xianting se destaca porque localiza o fato em um contexto político, fazendo da performance um presságio dos eventos da Praça da Paz Celestial (Li Xianting, 1993LI XIANTING. China’s new art, Post 1989. X-XXII. Sydney: Hanart Gallery, 1993., p. XIX). No entanto, Xiao Lu lamenta a atribuição de coautoria a Tang Song pelo influente crítico, conhecido nos círculos de arte como Big Brother (Lao Li). O artigo posterior de Li Xianting, Critical Historical Junctures in the 1980s [Encruzilhadas históricas fundamentais da década de 1980] (2005), continuou a nomear ambos os artistas como coautores (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 194). Apesar da nova tentativa de Xiao Lu para conversar com Li Xianting para esclarecer a questão da autoria, ele continuou a defender a coautoria em seus escritos seguintes. Em outubro, o crítico de arte publicou outro artigo no Meishu Tongmeng, no qual afirmou que foi Tang Song quem a levou a disparar a arma. Três dias depois, Xiao Lu afirmou publicamente sua autoria em três publicações diferentes e forneceu evidências visuais, apontando para o fato de que Tang Song a encorajou espontaneamente a disparar a arma uma segunda vez, como espectador e não como coautor conceitual3. Xiao Lu acusa o crítico de não querer que “[...] o criador deste trabalho seja inteiramente feminino. Em sua imaginação, as ações de uma mulher devem estar sujeitas à orientação de um homem” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 196). A crítica de arte Ji Hong saudou o relato de Xiao, enfatizando a necessidade de revisar a história em seu artigo sHE, tHEy, HE - Reflections prompted by Xiao Lu's Dialogue [Ele, Ela, Elu - Reflexões provocadas por Diálogo de Xiao Lu] (2005):
Fornecer à história uma explicação clara e honesta para que, na história da arte chinesa - ao contrário da história das belas artes e de outros tipos de história do passado -, o direito masculino de controlar o discurso nunca mais diminua e apague o valor da criatividade feminina na tentativa de continuar a manter o mito da grandeza masculina e da insignificância feminina (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 198).
Adele Tan também aborda o trabalho de Xiao Lu a partir de uma perspectiva de gênero e exprime o desejo de revisar a performance icônica, sobre a qual foi criada uma história monolítica, e considerar outras narrativas que estejam abertas a leituras femininas e feministas (Tan, 2012TAN, Adele. Elusive Disclousures, Shooting Desire. Xiao Lu and the Missing Sex of Post-89 Performance Art in China. In: HOPFENER Birgit et al. (Ed.). Negotiating Difference Contemporary Chinese Art in the Global Context. Weimar: Verlag und Datenbank fur Geisteswissenschaften, 2012. P. 127-140., p. 127). Tan observa as dificuldades de ser uma artista feminina em um contexto artístico patriarcal que não aceita que a autora de uma obra de arte tão poderosa seja uma mulher: “Xiao respondeu inequivocamente aos críticos que duvidavam de sua capacidade de produzir uma obra de força ‘masculina’ singular” (Tan, 2012TAN, Adele. Elusive Disclousures, Shooting Desire. Xiao Lu and the Missing Sex of Post-89 Performance Art in China. In: HOPFENER Birgit et al. (Ed.). Negotiating Difference Contemporary Chinese Art in the Global Context. Weimar: Verlag und Datenbank fur Geisteswissenschaften, 2012. P. 127-140., p. 131). É digno de nota que Gao Minglu (2005MINGLU, Gao. The Wall, reshaping contemporary Chinese art. New York; Pequim: The Buffalo Fine Arts Academy; The Millenium Art Museus, 2005., p. 253) tenha considerado Dialogue - The gunshot incident como a obra de arte mais violenta da China da década de 1980. Minglu, que teve um papel fundamental em tornar a arte de vanguarda visível no país, estabeleceu diálogo com a artista, visitou seu estúdio em Pequim em 2003 e, depois de ouvir seu lado da história, pediu que ela elaborasse um relato por escrito (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 188). No prólogo do romance de Xiao Lu, Gao Minglu apresenta as razões pelas quais Xiao Lu escolheu apresentar um relato ficcional (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., vi)4 4 No romance, os nomes reais das pessoas são substituídos por fictícios. Xiao Lu se torna Xiao Xiao, Tang Song recebe o nome de Lan Jun, Gao Minglu é mencionado como Gao Tianyu e, Li Xianting, como Song Li Wei. . No primeiro capítulo do romance, Xiao Lu inclui a correspondência que trocou com Gao Minglu sobre sua ação na abertura da China/Avant-Garde. Ela recebeu um e-mail em seu aniversário de 42 anos e as palavras dele a encorajaram a explicar a série de eventos para esboçar uma nova história:
[...] esta questão não é apenas uma disputa entre dois indivíduos, você e Lan Jun, sobre a questão da autoria, mas trata-se de demonstrar que, em qualquer momento da história, pode haver vários tipos de fatores coincidentes de distorção; uma revisão motivada por interesses individuais, exagero e reinterpretação pela mídia, a fabricação coletiva de boatos entre as grandes massas e assim por diante. [...] Entendo que ser mulher pode ter levado você a sacrificar a fama que certamente é sua no altar da emoção. Conforme diz em sua carta, este evento também é uma história sobre o feminismo. Especificamente, é uma história sobre ser mulher na China. Compreendo muito bem o que está dizendo, que ao ser mulher na China você talvez esteja em uma posição ainda melhor para entender a essência da criação histórica (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 5-6).
A correspondência entre Gao Minglu e Xiao Lu foi publicada na seção editorial do website da revista de arte de Pequim Meishu Tongment. Pouco depois de ter se tornado pública, dois artigos apareceram em resposta: A feminist misunderstanding [Um mal-entendido feminista] e The gunshot incident is over, history is over, what does it mean today? - Clarification depends on the facts, the history of art is still emotion [O incidente dos tiros acabou, a história acabou, o que isso significa hoje? - O esclarecimento depende dos fatos, a história da arte é emoção estática] (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 7). Xiao Lu se recorda de começar a receber telefonemas perguntando por que ela não tinha falado antes e acusando-a de ser rancorosa depois do rompimento com seu parceiro (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010.). Ela explica que muitos homens se opuseram à sua decisão de dizer a verdade e lê a desaprovação deles em relação ao contexto sociopolítico e cultural da seguinte maneira: “Li Xianting e outros críticos me disseram que, se eu tinha amado esse homem, por que eu deveria perturbar o passado?” (Xiao Lu apud Manonelles Moner, 2011MANONELLES MONER, Laia. Arte experimental en China, conversaciones con artistas. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2011., p. 192). Suas reflexões são ilustrativas da opressão sistemática do patriarcado às mulheres e da invisibilidade de suas narrativas. É importante observar que Gao Minglu considera a escolha dela por revelar seu lado da história como ilustrativa da realidade de ser mulher na China e que sua subversão da narrativa oficial da arte de vanguarda levou à construção pública da artista como uma “mulher vingativa”:
Tanto a reelaboração de Xiao Lu como seus tiros se transformaram em um caso controverso na história da arte contemporânea. Foi diferente porque inicialmente ela era uma heroína, enquanto agora era uma ‘mulher vingativa’. A reelaboração foi percebida como contraposição à história estabelecida da arte de vanguarda, contra a autoridade, até mesmo contra a sociedade patriarcal. Portanto, a reelaboração de Xiao Lu perdeu a simpatia anteriormente estendida a ela (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. xi).
Gao Minglu e Xiao Lu começaram a se corresponder, refletindo sobre a criação artística e o potencial terapêutico da arte. As cartas foram publicadas no website Meishu Tongmeng (20 de abril de 2004). Três dias depois, Xiao Lu publicou uma versão preliminar do texto Explanation of the gunshot work Dialogue at the National Art Museum of China, Beijing, 1989 [Explicação da obra Diálogo - tiros no Museu Nacional de Arte da China, Pequim, 1989]. Uma segunda versão desse artigo foi publicada na mesma plataforma em outubro de 2004, no Second Artists’ Colloquium [Segundo Colóquio de Artistas]. Em 2005, houve uma terceira versão na revista Tianya (Horizon) (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 205). Gao Minglu (2006)MINGLU, Gao. The Sound of Gunshots, Half a Life’s Dialogue: On Xiao Lu’s ‘Dialogue’. Xiao Lu website, 2006. Disponível em: http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp?id=59 Acessado em: 10 abr. 2019.
http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp...
analisa a obra de arte sob vários ângulos, retrospectivamente e em uma época em que a arte contemporânea chinesa estava se expandindo para a arena internacional. Afirma ele: “Ambos os tiros foram direcionados ao espelho entre as duas cabines telefônicas e Xiao Lu se enxergava nele. Isso quer dizer que Xiao Lu disparou contra si mesma, cometendo um suicídio simbólico. Essa é a tragédia de uma mulher e de uma sociedade”. Outra interpretação relevante que Gao Minglu (2006)MINGLU, Gao. The Sound of Gunshots, Half a Life’s Dialogue: On Xiao Lu’s ‘Dialogue’. Xiao Lu website, 2006. Disponível em: http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp?id=59 Acessado em: 10 abr. 2019.
http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp...
oferece diz respeito à relação entre movimentos artísticos e democracia: “[...] imediatamente depois de 4 de junho, o tiro de Xiao Lu foi chamado por pessoas conservadoras nas obras de arte de ‘os primeiros tiros de Tiananmen’, assim como a exposição China/Avant-Garde foi descrita - após 4 de junho - como ‘a pequena Praça da Paz Celestial’” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. viii).
Até mesmo Gao Minglu (2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 43) recorre ao processo de empoderamento de Xiao Lu para refletir sobre a necessidade de repensar a história da arte contemporânea na China a partir da perspectiva de gênero, uma visão que não era levada em consideração nos círculos de arte durante as décadas de 1980 e 1990. Em 2006, ele revisita a obra e argumenta que é um desafio para os críticos, alertando para os perigos da simplificação e do reducionismo. Gao Minglu apoia abertamente a reescrita da história da arte que ajudou a construir e se envolve nessa revisão, iniciando uma reavaliação de sua própria prática como historiador de arte. Devido a esse compromisso com Xiao Lu e outras artistas mulheres, destaca a necessidade de encontrar novos paradigmas que vão além do feminismo ocidental.
Apesar da humilhação geral, outros homens (Huang Rui) apoiaram a determinação de Xiao Lu de falar. Huang Rui - artista e coorganizador do Festival de Artes de Dashanzi (2004) juntamente com o artista Dai Guangyu e o historiador da arte Thomas J. Berghuis - convidou Xiao Lu para participar da exposição Language Without Borders 2004: Volume control [Linguagem sem fronteiras 2004: Controle de volume], e disse a ela: “[...] durante tantos anos você não disse nada em público sobre Dialogue. Para esta exposição, deve falar com sua própria voz” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 8). Em resposta ao convite, Xiao Lu apresentou a série Fifteen gunshots... from 1989 to 2003 [Quinze tiros… de 1989 a 2003] (2003) (Figura 2), uma recriação de sua instalação Dialogue de 1989, e também apresentou A dialogue about Dialogue [Diálogo sobre Diálogo], na Exposição de Arte Moderna Chinesa (2004).
A determinação em reivindicar sua autoria exclusiva pode ser lida sob a premissa feminista que postula que o pessoal é político. Assim, quando o trauma pessoal é tornado público - por meio da prática criativa -, as fronteiras entre experiências individuais e coletivas são borradas, sendo esse um passo fundamental para confrontar e transformar a violência sistêmica dos sistemas patriarcais.
Resistência social e resistência feminina
Gao Minglu fala de uma “resistência social e uma resistência feminina” quando se refere à vontade de articular aquilo que foi silenciado, tornado invisível, por meio da produção artística, entrelaçando, em última análise, a experiência vivida com a criação artística. Consequentemente, ao estabelecer essa relação entre o íntimo e o coletivo, o âmbito pessoal adquire uma dimensão política. Segue-se que a arte funciona como um modo de dar forma a emoções e conflitos, mas também se torna uma ferramenta para se expressar a fim de compartilhar eventos e desenvolver o pensamento crítico.
Dialogue (2010) pode ser compreendido como o manifesto da artista que questiona a construção de uma narrativa oficial da história das vanguardas chinesas, a partir de uma revisão da performance Dialogue - The gunshot incident, que agora é uma obra de arte experimental canônica na China. No entanto, a desconstrução da narrativa oficial começou alguns anos antes, com as ações Fifteen gunshots... from 1989 to 2003 (2003) e A dialogue about Dialogue no Festival de Artes (2004). Em Dialogue, a artista apresenta os processos de pensamento subjacentes a todas essas obras e considera o papel dos críticos de arte e seu próprio papel na geração de malentendidos e das dificuldades que encontrou quando decidiu reescrever sua história. Agora vou delinear o processo de empoderamento de Xiao Lu, concentrando-me tanto em sua obra de arte quanto em seu livro de memórias ficcionais. O ponto de partida é Fifteen gunshots... from 1989 to 2003 (19 de outubro, Pequim) (Figura 3), no qual a artista apresenta uma série de quinze fotografias de si mesma disparando uma arma, um tiro para cada um dos anos em que manteve seu relacionamento com Tang Song. Curiosamente, nesse trabalho ela revisita a mesma estratégia performativa para colocar em prática um ritual de libertação. A primeira vez estava relacionada ao abuso sexual, enquanto agora ela exorciza o complexo relacionamento de quinze anos com seu ex-parceiro:
Xiao Lu. (2003). Fifteen gunshots… from 1989 to 2003. Detalhe [Performance]. Pequim. Fonte: Cortesia da artista.
Levantei a arma de novo para o trabalho Fifteen gunshots… from 1989 to 2003. Mas desta vez não foi tão confuso levantá-la como tinha sido quinze anos antes. As grandes mudanças que surgiram em frente aos meus olhos tinham uma força resoluta. Um tiro por ano, quinze tiros ao todo. Nos meses e anos de quinze anos da minha juventude o que eu havia perdido era tempo, o que eu havia ganho era a coragem de uma mulher para enfrentar seu passado, bem como a força para se regenerar (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 188).
Esse vínculo entre destruição e criação pode ser relacionado com a série Les Tirs (1961-1970), de Niki de Saint Phalle (1930-2002), na qual a jovem artista franco-americana, que na época estava nos estágios iniciais de sua carreira artística, também exorcizou a violência sistêmica e o abuso sexual de seu pai ao atirar contra sua própria obra de arte. Ambas as artistas entendem a arte como uma maneira de canalizar o desconforto e apresentálo de volta à sociedade, adotando um papel ousado, conflituoso e ativo. Xiao Lu e Niki de Saint Phalle pertencem a diferentes ambientes culturais e gerações distintas; no entanto, compartilham um compromisso de usar a criação para denunciar o abuso na esfera pública, sublimando seu trauma pessoal e envolvendo o público.
Xiao Lu observa como em 2003 ela pegou uma arma de fogo outra vez para afirmar publicamente que era a única autora de Dialogue: “Uma disputa sobre quem deveria ser reconhecido como seu autor trouxe alguma luz a uma história pouco conhecida. A história começa com uma arma” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 5), e em 12 de abril de 2004 ela publicou um texto, Fiftenn gunshots... from 1989 to 2003 no website Meishu Tongmeng (arts.tom.com) (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 205). A artista reconhece suas dificuldades em articular sua própria narrativa; no entanto, a poesia e a escrita tornaram-se fundamentais em seu processo de autoafirmação e estão integradas à sua obra de arte e publicadas em plataformas de arte especializadas. As palavras também são fundamentais em sua performance A dialogue about Dialogue, apresentada no evento de encerramento da exposição Language Without Borders 2004: Volume Control (2004). Na época, a artista exibiu uma reconstrução de sua instalação Dialogue e leu um poema5 5 Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=78&Classid1=18. Acesso em 12 de maio de 2021. . O poema está saturado de emoções e explica como sua incapacidade de explicar o disparo da arma permitiu que Tang Song se tornasse o porta-voz do trabalho. Ela conseguiu oferecer sua verdade ao mundo da arte apenas quando encontrou suas próprias palavras como artista. Depois de ler seu poema, Xiao Lu cortou simbolicamente algumas mechas de seu cabelo comprido (intocado durante 15 anos) e as ofereceu a 20 pessoas da plateia, juntamente com manuscritos de sua correspondência com Gao Minglu e outras publicações relevantes acerca de sua performance de 1989. A reconstrução desse trabalho desempenha um papel fundamental no processo de desenvolvimento de autoconsciência da artista e demonstra sua determinação em esclarecer as coisas. Conforme observa Adele Tan (2012TAN, Adele. Elusive Disclousures, Shooting Desire. Xiao Lu and the Missing Sex of Post-89 Performance Art in China. In: HOPFENER Birgit et al. (Ed.). Negotiating Difference Contemporary Chinese Art in the Global Context. Weimar: Verlag und Datenbank fur Geisteswissenschaften, 2012. P. 127-140., p. 131), o trabalho não alcançou o mesmo nível de visibilidade que o evento do disparo da arma em 1989: “A performance de Dashanzi, ao contrário do pandemônio quinze anos antes, foi um caso estranhamente silenciado, sem cobertura da mídia”.
Juntamente com as convenções patriarcais desafiadoras sobre a autoria artística, Xiao Lu questionou as noções tradicionais de maternidade e de casamento em sua arte performática. O papel tradicional das mulheres na China influenciou a jovem artista até que conseguisse se libertar de clichês pré-estabelecidos. Ela aborda essas questões a partir de uma perspectiva autobiográfica em duas de suas obras, Sperm [Esperma] (Jingzi, 2006) (Figura 4) e Wedlock [Casamento] (2009). Em sua instalação e performance Sperm, produzida para o projeto de arte Long March Project-Yan'an [Projeto Longa Marcha-Yan’an] e encomendada por Lu Jie, ela pedia aos homens dispostos a participar que deixassem um frasco com esperma no freezer localizado no Fórum sobre Educação em Arte de Yan’an para que ela pudesse passar por inseminação artificial aos 44 anos de idade. No entanto, essa tentativa de coletar esperma em Yan'an fracassou6 6 Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=85&Classid1=17. Acesso em 12 de maio de 2021. . Nessa obra, Xiao Lu (2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 154) considera a reprodução assistida para se tornar mãe sem a necessidade de estar em um relacionamento com um homem, aludindo aos anos que viveu com Tang Song, durante os quais ele não queria que eles tivessem filhos. Em suas performances e no romance, ela pondera sobre seu relacionamento com os homens, denuncia o abuso sexual e fornece pistas de como ele a pressionou a fazer um aborto em duas ocasiões. Quando o casal voltou para a China, ela sugeriu que tivessem um filho, mas ele foi evasivo. Na verdade, ele chegou a levar sua posição ao extremo ao propor a performance Sterilization Project [Projeto Esterilização], na qual os dois artistas passariam por uma cirurgia para se tornarem estéreis. Xiao Lu rejeitou essa proposta, apesar da exigência de parte dele de que ela sacrificasse seu desejo de tornar-se mãe em nome da arte (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 163).
Portanto, Sperm pode ser considerado como uma contraproposta a Sterilization Project, e no qual Xiao Lu questiona o mito do amor romântico em termos de maternidade e da ideia de um casamento idílico. Em Sperm, a artista subverte o relacionamento tradicional, situando o homem em um papel passivo, como doador de esperma, e concedendo à mulher um papel ativo. Xiao Lu transgride a norma estabelecida e propõe novos espaços de liberdade reprodutiva para as mulheres. Seu trabalho Wedlock (2009), em que a artista se casa consigo mesma (Figura 5), segue a mesma linha; foi apresentado na exposição Twenty Years Anniversary of the China/AvantGarde Exhibition [Aniversário de Vinte anos da Exposição China/AvantGarde] (5 de fevereiro de 2009) e sob curadoria de Gao Minglu no Museu de Arte Mural de Pequim.
A performance começa com uma limusine nupcial chegando ao museu ao som de música funerária tradicional chinesa; quatro jovens carregam um caixão preto até a entrada do museu. Xiao Lu sai do caixão usando um vestido de noiva e a música muda para uma melodia nupcial tradicional enquanto ela entra na instituição de arte. Guo Qiang é responsável por realizar a cerimônia de casamento e a artista, sua irmã mais nova e Gao Minglu participam dos discursos formais. Finalmente, a performance termina quando a noiva liberta pombas depois de se casar consigo mesma (Figura 6). O casamento se transforma em um funeral e a noiva não espera por seu noivo para conduzir o ritual. A oficialização do compromisso está saturada de ironia, bem como liturgia e parateatralidade. Observa a artista: “Existe um antigo ditado na China que afirma que o casamento é o túmulo do amor. Assim, usei essa imagem do caixão para sair do túmulo e me casar comigo mesmo. As pombas são um símbolo de liberdade” (Xiao Lu apud Manonelles Moner, 2011MANONELLES MONER, Laia. Arte experimental en China, conversaciones con artistas. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2011.).
Conforme vimos, a determinação de se expressar conforme veiculado nos trabalhos analisados pode ser entendida em termos de “resistência social e resistência feminina”. No entanto, conforme observam Gao Minglu, Inma González Puy e Liao Wen, há uma diferença entre essas obras de arte e a arte feminista ocidental. Elas concordam que, embora as exposições reúnam a produção de mulheres artistas, não existe nenhum sentido de uma luta coletiva em seu trabalho (González Puy, 1995GONZÁLEZ PUY, Inma. Mujeres artistas en China. In: FISAC BADELL, Taciana (Ed.). Mujeres en China. Madri: Ediciones Cooperación al desarrollo, 1995. P. 163-196., p. 165). Assim, esses autores coincidem em sua visão de que não é adequado falar sobre arte feminista na China (entendida em termos ocidentais), porque o contexto social e cultural nacional precisa ser considerado.
A relação entre experiência individual e coletiva é multifacetada. A geração de Xiao Lu foi educada para conceber a arte como instrumento para comunicar sentimentos coletivos que deveriam estar a serviço da revolução. Isso explica por que é tão importante para Xiao Lu abordar questões pessoais como mulher e como artista. Xiao Lu subverte o papel que se espera dela e ousa ocupar um espaço oficial simbólico, o Museu Nacional de Arte, em 1989. Além disso, ela continua a desafiar a dominação masculina ao apresentar sua obra em espaços públicos, onde sua experiência pessoal pode ser vinculada à de uma geração de mulheres. Estabelece a conexão com o coletivo ao se envolver diretamente com o público. Ao exibir seu trabalho e realizar apresentações públicas em museus, instituições e galerias de arte, permite que esses locais se tornem espaços onde narrativas tradicionalmente omitidas possam ser ouvidas.
Individual e Coletivo
Além de utilizar sua própria experiência na construção de Wedlock e Sperm, seu contato com artistas como Li Xinmo e Lan Jing foi essencial para que usasse a experiência individual como metáfora para o coletivo. Fundaram o grupo Bald Girls e o constituíram em uma cerimônia simbólica em 3 de março de 2012 ao raspar o cabelo enquanto anunciavam o nascimento de seu grupo no Centro Ibéria de Arte Contemporânea em Pequim (Figura 7). Xiao Lu explica que sua relação com as Bald Girls a transformou e abriu uma janela para investigar os direitos das mulheres e o trabalho colaborativo:
Xiao Lu, Li Xinmo e Lan Jing (2012). The Bald Girls [Performance]. Pequim. Fonte: Cortesia da artista.
Antes, eu sempre me preocupava com minhas próprias experiências pessoais, mas depois de Bald Girls comecei a prestar mais atenção às vidas e experiências de outras mulheres. Meus trabalhos não eram mais exclusivamente baseados na minha própria situação. Essa foi a transformação. […] Anteriormente, minha obra era sobre externalizar o interno. Agora talvez eu esteja internalizando o externo e depois externalizando-o novamente (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc... ).
O grupo se envolve com a realidade das mulheres na China. Porém, seu trabalho não foi censurado, apesar de explicitamente utilizar uma frase sobre os direitos das mulheres em uma exposição de mulheres artistas. Chamaram a atenção para o status feminino marginal no mundo da arte e Xiao Lu enfatizou a necessidade de defender o feminismo na China (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc...
). Seu posicionamento também é perceptível em seu trabalho What is Feminism? [O que é feminismo?] (2012), apresentado na Osmanthus-Rain Villa em Hangzhou, no qual convidou o público a escrever o que entende como feminismo:
A palavra inglesa ‘Feminismo’ é traduzida para o chinês como Nüquanzhuyi (女 权主义) - que significa ‘Direi-tismos-das-mulheres’- ou Nüxingzhuyi ( 女性主 义) - que significa ‘Feminismo’. No entanto, na China, em geral se evita o uso de Nüquanzhuyi (女 权主义). Por quê? Fiz o trabalho What is feminism com essa pergunta em mente, solicitando ao público que deixassem algumas palavras por escrito sobre What is Feminism no livro de assinaturas7 7 Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=88&Classid1=30. Acesso em 12 de maio de 2021. .
Xiao Lu reflete sobre os diferentes significados e interpretações associados aos feminismos e revela que fazia as mesmas perguntas a si mesma. Ela observa que, ao trabalhar com as Bald Girls, começou a ler livros feministas, observando seu desejo de ir além dos rótulos (Xiao Lu, 2019XIAO LU. Entrevista com a autora, gravada em áudio. Comunicação pessoal. Pequim, 3 de setembro de 2019.). A maioria das artistas chinesas não se identifica com a diferença de gênero; portanto, seu trabalho não pode ser considerado da mesma maneira que o das feministas euro-americanas. Xiao Lu fala sobre seu entusiasmo quando apresentada ao feminismo pela curadora Xu Juan e pelas artistas Li Xinmo e Lan Jing. Ainda assim, ela revela: “Fui à livraria para comprar todos os livros que pudesse encontrar sobre feminismo, mas também entendi que não posso criar uma obra conforme as definições desses livros” (Xiao Lu, 2019XIAO LU. Entrevista com a autora, gravada em áudio. Comunicação pessoal. Pequim, 3 de setembro de 2019.). Xiao Lu sustenta que, em vez de ser fundamentado em conceitos ou teoria, seu trabalho emerge de sentimentos, como uma forma de exteriorizar um impulso íntimo e pessoal. Por isso, apesar de se apresentar como feminista, defende as diferenças entre “a questão social do feminismo e a da criação artística” (Xiao Lu, 2019XIAO LU. Entrevista com a autora, gravada em áudio. Comunicação pessoal. Pequim, 3 de setembro de 2019.). No entanto, outra questão que precisa ser considerada é se é possível separar isso de maneira tão clara, uma vez que sua perspectiva feminista - consciente ou inconsciente - indubitavelmente permeia sua prática artística. Nas duas entrevistas que realizei com a artista em 2008 e 2019, observei uma autoconfiança e um empoderamento crescentes por intermédio de suas performances, da redação de artigos e de suas memórias ficcionais. No caso dela, a teoria se desenvolve a partir de sua prática, seu uso do corpo e da voz. Da mesma forma, sua concordância em ser entrevistada ilustra uma vontade de falar e compartilhar com historiadores de arte chineses e estrangeiros, afirmar a necessidade de reescrever a história.
Apesar de compartilhar algum terreno em comum com o feminismo no mundo ocidental, o feminismo chinês pode variar significativamente, daí a importância do contexto socio-histórico. A socióloga Amelia Sáiz López observa que os estudos das mulheres na China remontam à década de 1980, apesar do fato de que o movimento de 4 de maio de 1919 tenha pela primeira vez reivindicado um espaço para as mulheres em uma sociedade heteropatriarcal. Sáiz López (2009)SÁIZ LÓPEZ, Amelia. Mujeres y género en la sociedad china contemporània). In: JULIÀ-MUNÉ, Joan (Ed.). Visions de la Xina: cultura multimillenària). Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs de la Diputació de Lleida, 2009. P. 169-190. observa que, na década de 1980, foram criadas organizações de mulheres para defender seus direitos e transformar a sociedade. A virada para os “estudos das mulheres” na China, no entanto, enfatizou a importância de não confiar demais nas premissas feministas eurocêntricas. Entendeu-se ser essencial adaptar o conhecimento ocidental ao contexto chinês para garantir que as mulheres chinesas tenham sua própria voz e expressem sua própria subjetividade em um contexto global (Sáiz López, 2009SÁIZ LÓPEZ, Amelia. Mujeres y género en la sociedad china contemporània). In: JULIÀ-MUNÉ, Joan (Ed.). Visions de la Xina: cultura multimillenària). Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs de la Diputació de Lleida, 2009. P. 169-190., p. 184).
Em Dialogue, Xiao Lu se refere à obra O Segundo Sexo (1949), de Simone de Beauvoir (Beauvoir, 2005BEAUVOIR, Simone de. El segundo sexo. Madrid: Ediciones Cátedra, 2005.), em que a pensadora francesa fala da condição da mulher na sociedade ocidental e observa como a cultura e a sociedade transformam a mulher um Outro para o homem. Ela observa: “Simone de Beauvoir escreve em O segundo sexo: ‘não se nasce mulher, torna-se mulher’. Bem, na minha experiência, as mulheres nascem. O caráter materno inato das mulheres confere a elas uma faculdade de autossacrifício” (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 204). É importante observar como a artista explica que, durante a primeira parte de sua vida, ela vivia exclusivamente para os homens e dependia de seu reconhecimento (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc...
), o que está de acordo com o contexto patriarcal discutido acima. No entanto, por meio do processo criativo, essas ideias preconcebidas sobre a natureza das mulheres em relação ao autossacrifício são descartadas na medida em que são libertadas de imperativos sociais pré-estabelecidos. A jornada da artista se materializa nos 15 tiros que ela dispara para cada um dos anos que passou com Tang Song, e sua primeira reivindicação pública de autoria exclusiva quando ela exibiu a recriação da instalação Dialogue. Com Sperm e Wedlock, questiona o antigo modelo de família normativa. Finalmente, em seu livro de memórias ficcionais, Dialogue, reflete e reconstrói sua narrativa pessoal, entrelaça experiências vividas e artísticas e fala para reivindicar sua autoria, escrevendo a história sob outro prisma.
A prática artística permite que Xiao Lu esteja em sintonia com suas próprias necessidades e se livre dos imperativos sociais e da necessidade de ser reconhecida pelos outros. Em 2008, quando perguntei a Xiao Lu sua opinião sobre o desenvolvimento das mulheres artistas chinesas nas três últimas décadas, ela respondeu que na China o poder é controlado por homens, que têm mais oportunidades de exibir seu trabalho e receber a atenção dos críticos. Xiao Lu estabelece ligações entre o empoderamento das mulheres e dos artistas na China: “Meu caso demonstra o progresso das mulheres, desde ficar quieta até falar e enfrentar a realidade para que minhas capacidades sejam reconhecidas. Esse é o progresso que as mulheres alcançaram nas últimas três décadas: emancipação” (Manonelles Moner, 2011MANONELLES MONER, Laia. Arte experimental en China, conversaciones con artistas. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2011., p. 194).
Conforme descrevi, e conforme é observado por Gao Minglu, uma das consequências dessa decisão foi que Xiao Lu foi rotulada como “mulher má” por uma elite da arte chinesa majoritariamente masculina. Xiao Lu desafia a ordem hegemônica de uma sociedade patriarcal e subverte a narrativa oficial da arte experimental. Nas palavras da artista, “Na China, o mundo dos críticos consiste exclusivamente de homens e são eles que têm autoridade para falar. Então, quando uma mulher enfrenta um problema, ela não tem para onde recorrer, ninguém vai ouvi-la” (Merlin, 2018MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu. Acessado em: 6 abr. 2019.
https://www.tate.org.uk/research/researc...
). Xiao Lu dá um passo e dá início a uma nova era artística com a ajuda de Gao Minglu, da crítica de arte Ji Hong e de curadores e artistas como Huang Rui.
Conclusão
Xiao Lu enfatiza o poder catártico de escrever Dialogue, que se tornou um exercício para ponderar, digerir, expulsar e reparar seu desconforto. Também é fundamental enfatizar a capacidade transformadora da palavra - escrita, pronunciada e compartilhada - e sua capacidade de transcender a esfera do individual e entrar no reino do coletivo, para lembrar o que Carol Hanish compreende acerca do pessoal como político. No entanto, a obra de Xiao Lu deve ser lida no contexto chinês, considerando suas reapropriações dos movimentos feministas. A artista explica como perdeu a voz durante os anos que passou com Tang Song, mas também como, após a separação, decidiu falar. O ápice desse processo seria a escrita de Dialogue e suas diferentes performances que integraram a poesia e o uso da linguagem escrita.
Sua amiga Elsa, que conheceu em sua chegada à Austrália, encorajou-a a escrever sobre o que acontecera na forma de um livro de memórias ficcionais, como Elsa fizera em um período de depressão. Xiao Lu começou a escrever no inverno de 2004 e terminou em 2009, com a ajuda de Elsa e seu amigo Archibald Mckenzie, que traduziria o livro em inglês. O processo de escrita é fundamental. Ela usa a primeira pessoa do singular o tempo inteiro, mas alterna para a terceira pessoa para narrar o abuso sexual cometido pelo “velho amigo da família” e sente constrangimento, dor, alienação e a sensação de estar à deriva (Xiao Lu, 2010XIAO LU. Dialogue. China: Hong Kong University Press, 2010., p. 39). A artista explica sua dificuldade em escrever sobre o trauma e o único meio disponível para falar sobre ele foi o distanciamento que a narrativa em terceira pessoa proporcionou (Xiao Lu, 2019XIAO LU. Entrevista com a autora, gravada em áudio. Comunicação pessoal. Pequim, 3 de setembro de 2019.). As diferentes vozes e perspectivas permitem que ela narre o que é impossível articular, explicar o que foi silenciado. A palavra falada, a escrita e a comunicação são essenciais no processo de empoderamento de Xiao Lu.
Xiao Lu reivindica uma genealogia feminina, lembrando como sua própria mãe lhe perguntou por que ela permitiu que a autoria de sua obra de arte fosse usurpada. Perdeu contato com sua progenitora e somente o recuperou anos depois, quando estava pronta para explicar as dificuldades que havia enfrentado. Da mesma forma, suas amigas a ajudam a se separar de Tang Song; Wu Ling a ajudou durante o processo de separação, Wen Hui a encorajou a se socializar, Elsa a escrever o romance e, o coletivo Bald Girls, a desenvolver a autoconsciência. Suas amigas estabeleceram uma rede de apoio para garantir que o pessoal pudesse se conectar com o coletivo. O trabalho de Xiao Lu transcende uma experiência individual catártica e se concentra, como observa Gao Minglu, em uma “resistência social e uma resistência feminina”. A reescrita que Xiao Lu faz da história obriga historiadores e críticos de arte a revisarem as narrativas que construíram e continuam a construir. Isso é um desafio e uma responsabilidade compartilhados por aqueles envolvidos na escrita da história da arte contemporânea.
Concluindo, Xiao Lu, em sua produção simbólica e no trabalho literário e performativo, encontra e compartilha sua própria voz, conecta-se com as experiências de outras mulheres e torna visível o que foi omitido das narrativas oficiais. Esse processo criativo proporciona à artista uma nova estrutura para interpretar sua própria vida e sua obra de arte, bem como a possibilidade de transformar a realidade. Xiao Lu propõe subverter a grande narrativa oficial da arte de vanguarda e re-narrar a História da Arte a partir da primeira pessoa do singular, questionando a autoridade patriarcal e reivindicando novas leituras e reflexões críticas8 8 Agradecimentos: gostaria de agradecer à Faculdade de História e Geografia da Universidade de Barcelona por seu apoio à publicação deste artigo. .
Notas
-
1
A exposição reabriu em 10 de fevereiro, mas foi fechada no dia 14 devido a ameaças de bomba. Reabriu novamente no dia 17 do mesmo mês, mas foi finalmente fechada no dia 19.
-
2
O curador da mostra Post-89' New Chinese Art, [Nova Arte Chinesa Pós-89] em Hong Kong e Mao Goes Pop [Mao é Pop] em Sydney convidou ambos os artistas para participar da exposição quando moravam em Sydney. Tang Song sugeriu que eles produzissem algo em conjunto, mas que ele seria o autor do conceito. Dessa maneira, ele enfatizava como um casal deve trabalhar em conjunto.
-
3
Ela publicou suas declarações no website Meishu Tongmeng: Xiao Lu's Supplementary Account of the work Dialogue, Shot at the Chinese National Art Museum, Beijing; vídeo Xiao Lu Shooting the work Dialogue in 1989, fornecido por Lü Nin, e Account of the Work Dialogue, Shot at the Chinese National Art Museum, Beijing in 1989 (versão revisada).
-
4
No romance, os nomes reais das pessoas são substituídos por fictícios. Xiao Lu se torna Xiao Xiao, Tang Song recebe o nome de Lan Jun, Gao Minglu é mencionado como Gao Tianyu e, Li Xianting, como Song Li Wei.
-
5
Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=78&Classid1=18. Acesso em 12 de maio de 2021.
-
6
Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=85&Classid1=17. Acesso em 12 de maio de 2021.
-
7
Consulte a página web de Xiao Lu: http://www.xiaoluart.com/en/showpro.asp?id1=88&Classid1=30. Acesso em 12 de maio de 2021.
-
8
Agradecimentos: gostaria de agradecer à Faculdade de História e Geografia da Universidade de Barcelona por seu apoio à publicação deste artigo.
Referências
- ANDREWS, Julia; MINGLU, Gao. The avant-garde's challenge to official art. In: DAVIS, Deborah S. et al. (Ed.). Urban Spaces in Contemporary China: The Potential for Autonomy and Community in Post-Mao China. Cambridge: Woodrow Wilson Center Press; Cambridge Press, 1995. P. 221-78.
- BEAUVOIR, Simone de. El segundo sexo Madrid: Ediciones Cátedra, 2005.
- GONZÁLEZ PUY, Inma. Mujeres artistas en China. In: FISAC BADELL, Taciana (Ed.). Mujeres en China Madri: Ediciones Cooperación al desarrollo, 1995. P. 163-196.
- LI XIANTING. China’s new art, Post 1989 X-XXII. Sydney: Hanart Gallery, 1993.
- MANONELLES MONER, Laia. Arte experimental en China, conversaciones con artistas Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2011.
- MERLIN, Monica; XIAO LU. Interview of Xiao Lu by Monica Merlin, February 2013, Beijing. TATE: Women Artists in Contemporary China Series of interviews with Chinese women artists, fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu Acessado em: 6 abr. 2019.
» https://www.tate.org.uk/research/research-centres/tate-research-centreasia/women-artists-contemporary-china/xiao-lu - MINGLU, Gao. The Wall, reshaping contemporary Chinese art New York; Pequim: The Buffalo Fine Arts Academy; The Millenium Art Museus, 2005.
- MINGLU, Gao. The Sound of Gunshots, Half a Life’s Dialogue: On Xiao Lu’s ‘Dialogue’. Xiao Lu website, 2006. Disponível em: http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp?id=59 Acessado em: 10 abr. 2019.
» http://www.xiaoluart.com/en/shownews.asp?id=59 - MORENO, Julia. China contemporánea (1916-1990) Madri: Istmo, 1992.
- SÁIZ LÓPEZ, Amelia. Mujeres y género en la sociedad china contemporània). In: JULIÀ-MUNÉ, Joan (Ed.). Visions de la Xina: cultura multimillenària). Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs de la Diputació de Lleida, 2009. P. 169-190.
- TAN, Adele. Elusive Disclousures, Shooting Desire. Xiao Lu and the Missing Sex of Post-89 Performance Art in China. In: HOPFENER Birgit et al. (Ed.). Negotiating Difference Contemporary Chinese Art in the Global Context Weimar: Verlag und Datenbank fur Geisteswissenschaften, 2012. P. 127-140.
- WELLAND, Sasha Su-Ling. Experimental China Gender and Globalization in Chinese Contemporary Art. Durham; Londres: Duke University Press, 2018.
- XIAO LU. Dialogue China: Hong Kong University Press, 2010.
- XIAO LU. Entrevista com a autora, gravada em áudio Comunicação pessoal. Pequim, 3 de setembro de 2019.
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
14 Set 2022 -
Aceito
11 Nov 2022