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Abordagens Somáticas na Formação em Dança: da secura do fundo ao currículo como cartografia

Approches Somatiques dans l‘Enseignement de la Danse: de l’arrière-plan stérile au programme comme cartographie

Resumo:

Este artigo analisa as relações e contribuições das práticas somáticas na formação em dança no contexto do ensino superior a partir de um estudo entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Serão apresentadas as principais reflexões, das quais se enfatizam o próprio conceito de Somática na atualidade e suas possibilidades de articulação no ensino superior de dança. Em nossa pesquisa, percebeu-se uma coexistência dos campos a partir de duas possibilidades principais: uma secura do fundo - conceito de Godard (2006)GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79., que caracterizaria uma requisição da Somática de forma pontual ou utilitária -; e outra, na qual a interação se dá de tal forma que toda engrenagem do ensino-aprendizagem é modificada.

Palavras-chave:
Somática; Dança; Ensino-aprendizagem; Performatividade; Corporalização

Résumé:

Cet article analyse les relations et les apports des pratiques somatiques dans la formation en danse dans un contexte d'enseignement supérieur à partir d'une étude entre Lisbonne et Rio de Janeiro. Les principales réflexions seront présentées, à partir desquelles le concept actuel d’approche Somatique et ses possibilités d'articulation dans l'enseignement supérieur de la danse seront soulignés. Dans notre recherche, la coexistence des champs est présentée à partir de deux possibilités principales: l’arrière-plan stérile - concept de Godard (2006)GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79., qui caractériserait une demande somatique ponctuelle, accessoire ou utilitaire -; et une autre, dans laquelle l'interaction se produit de telle façon que tout le rouage de l'enseignement-apprentissage est modifié.

Mots-clés:
Somatique; Danse; Enseignement-apprentissage; Performativité; Corporéité

Abstract:

This article analyzes the relationships and contributions of somatic practices in the training in dance, in higher education context, based on a study between Lisbon and Rio de Janeiro. The main reflections will be presented, which emphasize the actual concept of Somatics and its possibilities of articulation in the teaching of dance in higher education. In our research, a coexistence of the fields is presented based on two main possibilities: the dryness of the background - Godard’s (2006) concept, which would characterize a request from Somatics in a punctual or utilitarian way -; and another, in which the interaction takes place in such a way that the whole gear of teaching and learning is modified.

Keywords:
Somatics; Dance; Teaching-learning; Performativity; Embodiment.

O encontro da Dança com a Somática alterou o ensino-aprendizagem da dança. Esse diálogo entre os campos reivindicou o respeito aos limites anatômicos do corpo, estimulou a exploração de novos padrões de movimentos e questionou modelos e concepções pedagógicas acerca da prática corporal. Porém, apesar do crescente corpus de pesquisa sobre a Somática, como é possível perceber pela proliferação de trabalhos especialmente na última década, é importante ainda questionar: como a Somática vem se desenvolvendo considerando tanto o âmbito de pesquisadores e suas práticas quanto o ambiente acadêmico? E, para além disso, quais formações em Dança consideram o campo somático em seu ensino-aprendizagem? Quais são a importância e o impacto desse cruzamento?

Essas questões nos instigaram a realizar uma investigação1 1 Investigação realizada no âmbito do Doutoramento em Artes da Universidade de Lisboa, em regime de cotutela com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 2017 e 2023. em duas cidades de dois continentes diferentes para examinar as semelhanças e diferenças entre as abordagens de cada contexto de ensino. Nas cidades escolhidas, Lisboa e Rio de Janeiro, foram identificadas quatro instituições de ensino superior em dança, duas em cada país: a Faculdade de Motricidade Humana (FMH) e a Escola Superior de Dança (ESD), em Portugal, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Faculdade Angel Vianna (FAV), no Brasil. As cidades escolhidas consideraram a experiência da proponente como docente que, de 2011 a 2017, foi professora da FAV, no Rio de Janeiro, e, entre 2018 e 2019, da ESD, em Lisboa. A designação por centros de nível superior relaciona-se com o fato desses locais formarem, além de bailarinos, futuros professores.

Assim, essa investigação partiu de uma abordagem qualitativa com perspectivas metodológica da Educação Comparada e da Cartografia como método de pesquisa, tendo sido orientada por quatro tipos de procedimento: a coleta documental, a observação de aulas, as entrevistas e o inquérito por questionário. A observação de aulas dedicou-se às unidades curriculares que pudessem ser fontes para este estudo, como as técnicas de dança (clássica, moderna, contemporânea), aulas específicas de conteúdos somáticos e outras matérias que envolvessem a percepção do corpo, como Anatomia, Cinesiologia e afins (ver Tabela 1). Nessa etapa, foi possível perceber os processos pedagógicos, bem como identificar possíveis cruzamentos da Dança e outros campos.

Tabela 1
Designação das aulas assistidas de acordo com a cidade, instituição e data.

Por sua vez, as entrevistas, realizadas com os professores e coordenadores/diretores, possibilitaram a exploração sobre nosso tema do ponto de vista do corpo docente e da coordenação (ver Tabela 2). No caso das entrevistas realizadas com a direção, os objetivos incluíram a caracterização dos contextos de formação no que diz respeito à trajetória histórica da instituição, diretrizes pedagógicas e possíveis interfaces com o campo somático. As entrevistas realizadas com os professores intencionaram perceber as trajetórias acadêmicas e artísticas, bem como aferir as opções didático-metodológicas e os possíveis referenciais somáticos.

Tabela 2
Designação dos entrevistados de acordo com a cidade, instituição e data.

De forma geral, encontramos quatro instituições de ensino que tecem diferentes relações com a Somática. Como será demonstrado, cada escola é um ecossistema que cria e perpetua concepções de corpo e dança. A seguir analisaremos as principais questões que se destacaram, tais como as perspectivas indisciplinadas sobre a Somática na atualidade, qual o espaço e qual o seu papel na formação em dança. Essa análise, contudo, não fará uma referência direta ao seu enunciador. Tendo alguns entrevistados optado pelo anonimato, a identidade de todos será respeitada. Buscamos pontos de ancoragem nas questões que se repetem e discutimos as principais problemáticas de forma conjunta, sem necessariamente atrelar-lhes uma autoria. Será acrescentado o símbolo asterisco [*] ao final das citações. A transcrição na íntegra de todas as entrevistas assim como outros aprofundamentos sobre esta pesquisa poderão ser consultados em Magalhães (2023)MAGALHÃES, Marina. Abordagens Somáticas na Formação em Dança no Ensino Superior: processos de percepção-sensibilidade a partir de um estudo entre Lisboa e o Rio de Janeiro. 2023. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Belas Artes, Universidade de Lisboa/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lisboa, 2023..

Efeito telefone sem fio: toda dança é somática?

Após várias décadas da criação do campo somático por Hanna (1980)HANNA, Thomas. Human Awareness: the inscrutable factor in somatic science. Somatics: Magazine Journal of the Bodily Arts and Sciences, Novato, v. 2, n. 4, p. 57-62, 1980., alguns princípios das práticas somáticas encontram-se altamente difundidos nas artes e em outros meios, como apontam autores como Eddy (2016)EDDY, Martha. Mindful Movement: the evolution of the somatic arts and conscious action. Chicago: Intellect Ltd, 2016., Fortin (2011)FORTIN, Sylvie. Nem do Lado Direito, nem do Lado do Avesso: o artista e suas modalidades de experiência de si e do mundo. In: WOSNIAK, Cristiane; MARINHO, Nirvana. O Avesso do Avesso do Corpo: educação somática como práxis. Joinville: Nova Letra, 2011. P. 25-44., Grebler e Pizarro (2019)GREBLER, Maria Albertina Silva; PIZARRO, Diego. A Somática e as Artes da Cena: fricções da experiência e sua influência no ensino superior e na cultura contemporânea, parte II. Repertório, Salvador, v. 22, n. 32, p. 10-20, 2019. e Lester (2017)LESTER, Kelly Ferris. Somatics: a buzzword defined. Journal of Dance Education, Silver Spring, v. 17, n. 1, p. 31-33, 2017.. Entretanto, nem todos os professores que trabalham com abordagens somáticas possuem formação em uma técnica específica. Algumas práticas e ideias têm sido disseminadas ao longo do tempo e, atualmente, povoam um referencial de trabalho que as utiliza como parâmetro. Raquel Cavalcanti (2019CAVALCANTI, Raquel Pires. A Presença da Educação Somática no Processo de Ensino-Aprendizagem em Dança: transformações, desafios e perspectivas. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS SOMÁTICAS E DANÇA, 1., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: Ed. IFB, 2019. P. 189-200., p. 192) afirma que:

Nesse caso, ideias e habilidades somáticas são eventualmente disseminadas graças à polinização cruzada, ou seja, quando o conhecimento híbrido de um indivíduo se funde e influencia reciprocamente as ideias e práticas de outros dentro da mesma comunidade. Ao longo do tempo, essa mistura constante de ideias e práticas somáticas com práticas herdadas ou inovadoras da dança contemporânea cria uma plataforma em constante desenvolvimento de referências e práticas de estudo.

O que por um lado tem um grande potencial disseminador e renovador das abordagens somáticas, por outro, acaba por acarretar o que denominamos de efeito telefone sem fio. Essa metáfora quer demonstrar que algo pode ser transformado a ponto de perder seu sentido original. Ou seja, após décadas de miscigenação, muitas vezes não se sabe ao certo de onde vem cada coisa ou qual era a proposição original.

Esse efeito acabou por gerar, além da banalização e uma apropriação indevida e sem critério do termo, percepções sobre o campo excessivamente vagas ou genéricas. Isso se reflete na fala de alguns professores entrevistados, que afirmam que: “toda dança é somática”*; “qualquer tipo de mobilização e imobilização é uma prática somática”*; “mesmo que nós estejamos acamados, estamos a fazer uma prática somática quando sentimos que estamos a respirar ou sentimos frio”*; “a dança é intrinsecamente somática, pela própria definição do que é somatismo”*.

Se toda dança é somática, se tudo é somático, então nada é somático. Existem noções elementares e fundamentos dessas práticas que devem ser considerados (ver Magalhães, 2022MAGALHÃES, Marina. A Somática como Poética da Transformação de Si. Sinais de Cena, Lisboa, v. 3, n. 1, p. 87-101, 2022.). Toda dança tem potencial de ser ensinada somaticamente, da mesma forma que tem potencial de ser ensinada mecânica e autoritariamente. Não é porque a dança é uma atividade desenvolvida pelo corpo que isso a torna uma prática intrinsecamente somática. Esse campo foi desenvolvido justamente para diferenciar o soma do corpo, no qual o soma é o corpo (vivo) percebido do ponto de vista da primeira pessoa. Isso quer dizer que, para ser considerada somática, além de atender aos fundamentos do campo, uma aula deveria ter em vista os conhecimentos tanto objetivos quanto subjetivos no que se refere à experiência de seus praticantes.

De forma geral, há um reducionismo que acaba por limitar a Somática ao tornar esse termo um sinônimo de consciência do corpo. Como notou uma das professoras entrevistadas: “[...] as pessoas estão abrindo o leque da Somática de uma forma muito ampla. Basta você chamar atenção para as partes do corpo, entender que é necessário ter consciência, sentir e perceber o corpo, que estaria dando Educação Somática”*. Da mesma forma, outra professora questiona:

Agora todo mundo é somático. Por quê? [...] estou impressionada com esse lugar de apropriação da Educação Somática. Todo mundo coloca dentro do saco, ou do campo florido aberto da Educação Somática, tudo que não esteja na vertente da técnica constituída*.

Essa dificuldade em ter clareza pode estar relacionada ao fato desse ser “um campo em construção, que está sempre vivo”*, como lembra-nos outra entrevistada, “não é uma coisa fechada”*. Além disso, por se tratar de algo que se relaciona com a experiência e com a subjetividade, não é fácil expressar-se com palavras:

Para mim é difícil falar sobre as técnicas somáticas. As técnicas somáticas são vividas. Há muitas técnicas que a gente só entende porque as praticou. Se não tiver praticado é muito difícil de entender. Na realidade, eu acho que isso é um dos problemas. Se não estiver a fazer, se não estiver envolvido, é difícil de entender o que é que se está a passar. Às vezes é difícil de explicar por palavras a importância destas técnicas*.

De alguma forma, as questões relacionadas à percepção são escorregadias à linguagem. Ginot (2010)GINOT, Isabelle. Para uma Epistemologia das Técnicas de Educação Somática. Tradução: Joana Ribeiro da Silva Tavares e Marito Olsson-Forsberg. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-17, 2010. menciona um atraso teórico relacionado à Somática, assim como em outras questões no que concerne às práticas corporais. Esse atraso não significa uma ausência de discurso, mas retrata a dificuldade de se expressar, através da linguagem verbal, algo relacionado à experiência e à subjetividade. Embora a Somática caracterize-se como uma experiência viva que nos atravessa, sua materialidade é da ordem da poética, da corporeidade e da expressividade, o que não se traduz em uma métrica passível de ser medida ou quantificável. Em suma, a Somática é difícil de explicar e de entender, porém, fácil de sentir e perceber.

Perspectivas indisciplinadas

Como os professores caracterizam a Somática, então? E como ela pode se relacionar com a dança?

Como será demonstrado, ainda há um conflito para caracterizar a Somática. Cada enunciador, baseado nas próprias experiências singulares, parece assumir o que denominamos de perspectivas indisciplinadas sobre o campo, nas quais pegamos de empréstimo a visão da Somática como campo expandido indisciplinar, como defendido por Pizarro (2020PIZARRO, Diego. Anatomia Corpoética em (De)composições: três corpos de práxis somática em dança. 2020. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro/Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020., p. 185). Nessa ótica, a indisciplina é entendida como abolição das molduras disciplinares, e percebemos que, “de tão indisciplinar, a Somática escorre por entre os dedos quando sequer direciona-se a ela um gesto de captura”.

Nesse sentido, uma das professoras entrevistadas lembra-nos sobre a importância em se pensar em atualizações: “[...] a questão é o que é Somática hoje e o que é a dança hoje. E de que dança estamos falando, de que pensamento da Somática estamos falando. Porque a dança hoje é diferente de 30 anos atrás”*. Ela complementa: “[...] eu gosto de pensar o campo somático como um conjunto de abordagens que tratam do corpo nos seus aspectos perceptivos, motores, cognitivos, criativos, expressivos. O corpo em situação, o corpo em um contexto”*.

De forma complementar, outra professora compartilha uma interpretação sobre a Somática que evidencia seus aspectos perceptivos e reflete que esta, apesar de fundada em uma interioridade não se fecha em si, mas amplia-se para o contato com o mundo exterior:

A Somática possibilita um conhecimento intrapessoal, dentro de nós mesmos. E a partir dessa integração com meu próprio corpo, com ossos e articulações, a partir dessa escuta fina do próprio corpo, que eu posso escutar o outro, que eu posso escutar o mundo. Então, para mim, a Somática é uma educação para as relações humanas porque ela parte de um corpo que pára para se ouvir. E, se ele para para se ouvir, ele vai ter uma escuta mais aguçada para o tempo, o espaço, o outro e para o que está acontecendo*.

A visão dessas duas professoras relaciona a Somática como um sistema que trata do corpo vivo em sua pulsão relacional com o outro e com o meio externo. Autores como Humberto Maturana e Francisco Varela (1992) ou Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch (1993VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind: cognitive science and human experience. Massachusetts: MIT, 1993.) percebem a Ecologia como uma organização autopoiética2 2 Produzem a si próprios continuamente em sentidos coerentes e autônomos em acoplamentos com o mundo (Maturana; Varela, 1992). de acoplamentos estruturais e sociais com o mundo em que o indivíduo e o meio estão sempre conectados em um processo dinâmico e biologicamente fundamentado. Nessa concepção, a mente humana é incorporada em todo organismo e situada no mundo, ou seja, o esquema corporal não é um objeto da consciência ou uma representação parcial do corpo, mas um conjunto integrado de processos sensório-motores que é codependente do meio. Segundo os autores, a percepção não consiste na captura passiva de um mundo exterior, mas sim em uma atitude ativa que tem por efeito um sujeito e um meio que estão em constante relação e são acoplados e coproduzidos.

Nessa perspectiva sobre a Ecologia, Tim Ingold (2010)INGOLD, Tim. Da Transmissão de Representações à Educação da Atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010. criou o conceito de taskcape (tarefagem), em oposição ao conceito de landscape (paisagem), como um recurso para incluir a história e a cultura no paradigma ecológico. O autor utiliza a expressão taskcape para ressaltar a dinâmica das paisagens. É como uma experiência de viajar por um campo de tarefas entrelaçadas, na qual o campo é a taskcape. Ingold compara essa noção a um livro de receitas. As receitas são como histórias; elas têm uma estrutura narrativa que, tal qual as taskcape, não gera um conhecimento transmitido: “É um conhecimento que cresceu em mim enquanto eu segui os mesmos caminhos que os meus predecessores e sob a direção deles” (Ingold, 2020INGOLD, Tim. Antropologia e/como Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2020., p. 30). A receita, assim como a taskcape, não é conhecimento, mas abre caminho para o conhecimento.

Como ele afirma, “[...] a história, compreendida como o movimento pelo qual as pessoas criam os seus ambientes e, portanto, a si mesmas, não é mais do que uma continuação do processo evolucionário” (Ingold, 2010INGOLD, Tim. Da Transmissão de Representações à Educação da Atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., p. 17). Ao habitar o mundo, somos envolvidos pelos múltiplos traços históricos e culturais que foram incorporados na paisagem, os quais não são uma prerrogativa humana, mas de todos os seres que habitam o mundo. Nesse sentido, Fortin (2011FORTIN, Sylvie. Nem do Lado Direito, nem do Lado do Avesso: o artista e suas modalidades de experiência de si e do mundo. In: WOSNIAK, Cristiane; MARINHO, Nirvana. O Avesso do Avesso do Corpo: educação somática como práxis. Joinville: Nova Letra, 2011. P. 25-44., p. 37) afirma acreditar “[...] que uma prática de consciência sobre si pode ajudar numa transformação da dinâmica relacional com o nosso entorno. O desenvolvimento da sensibilidade é visto então como um trampolim para alcançar o outro”.

Outra perspectiva demonstrada pelos professores entrevistados considera a somática como uma abordagem, ou seja, esse campo relacionar-se-ia à pedagogia e ao como ensinar mais do que ao o que ensinar. Sob esse ponto de vista, a Somática é compreendida “[...] não como um campo de atuação, mas sim, como um modo de operar. E, enquanto modo de operar, está dentro de qualquer área, de qualquer aula”*. Ou, como dito por outro professor, “[...] [as práticas somáticas] são abrangentes e são princípios básicos que ensinam também uma forma de estar”*. Ou ainda, como define outro entrevistado, poderíamos pensá-las como “atitudes”* convocadas durante uma aula.

Ginot (2010)GINOT, Isabelle. Para uma Epistemologia das Técnicas de Educação Somática. Tradução: Joana Ribeiro da Silva Tavares e Marito Olsson-Forsberg. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-17, 2010. lembra-nos que o cruzamento dessas áreas modificou até certo ponto o ensino-aprendizado da dança, ao colocar em ênfase uma pedagogia ativa-exploratória que se opõe a uma ordem pedagógica do modelo e forma. De acordo com Fortin (1999)FORTIN, Sylvie. Educação Somática: novo ingrediente da formação prática em dança. Tradução: Márcia Strazzacappa. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, v. 2, p. 40-55, 1999., uma primeira modificação estrutural relaciona-se ao fato de as aulas de técnica de dança serem tradicionalmente focadas no professor, enquanto na Somática é claramente focada no estudante. Isso significa que, em práticas de dança com uma abordagem somática, o saber é construído na experiência própria de cada indivíduo e o estudante é convidado a tomar uma posição ativa no processo de ensino-aprendizagem. Essa autonomia não se restringe às técnicas de dança. Como comenta uma das entrevistadas, as práticas somáticas promoveriam uma disponibilidade e sensibilidade corporal, denominada pela professora de skills (habilidades), que estariam transversais ao ensino-aprendizagem de forma geral. Porém, colocar a Somática em uma posição tão ampla e relativa contribui para o reforço da banalização dos conteúdos nos quais essas práticas operam. A Somática pode ser transversal a qualquer técnica, entretanto, não se pode esquecer que enquanto campo do conhecimento ela possui seus princípios e fundamentos.

Outro professor atenta-nos para a consciência da presença, como nomeada por ele, e para a ampliação do próprio repertório de movimento. Além disso, lembra-nos do potencial inclusivo da Somática que, ao convocar outros corpos e outros gestos, amplia o que enxergamos como dança e promove um acesso mais democrático para que mais pessoas possam dançar:

São as técnicas somáticas que permitem ter uma espécie de consciência mais aguda da presença, daquilo que podemos designar como presença. Ao mesmo tempo, permitem de alguma forma sentir mais do que pensar a origem do movimento, a origem dessa força motriz do corpo. [...] Além disso, é pelas práticas somáticas que nós, por exemplo, podemos ampliar o próprio leque de movimento dos intérpretes. Na dança teatral, graças às práticas somáticas, pudemos também convocar outros corpos, corpos e movimentos diferentes. Portanto, as próprias práticas somáticas têm essa potência inclusiva, que eventualmente numa dança clássica, numa técnica Cunningham, ou mesmo numa técnica Graham dificilmente encontras*.

Porém, podemos indagar: as questões somáticas referem-se a todas as danças? Essa problematização foi abordada por uma das professoras e diz respeito a um pensamento decolonial. De acordo com seu relato, em um seminário, um bailarino oriundo da dança afro-brasileira havia considerado a Somática dispensável, uma vez que, para ele, essa integração já estaria presente na própria construção gestual daquela dança. A professora questiona:

Talvez a Somática possa ser entendida até como uma resposta a algo que antes foi dividido em uma perspectiva eurocêntrica, branca, e, porque foi dividido lá atrás, precisa reconectar lá na frente. Também é importante a gente ser honesto e entender como é que esse termo aparece, como esse campo se nomeia e ele se nomeia via América do Norte e Europa*.

Em uma contextualização sobre a origem do termo somática, podemos lembrar que na década de 1970, Thomas Hanna, um filósofo e acadêmico estadunidense, inspirou-se no trabalho de Moshe Feldenkrais, um físico e mestre de judô ucraniano-israelense. Hanna foi cooptado pela proposta de Feldenkrais em relação à saúde e integração do corpo e buscou unificar os diversos métodos que reconhecia como similares sob o termo somática.

Entretanto, muitas práticas tradicionais de povos originários e de culturas orientais têm uma compreensão holística do ser humano sem necessariamente adotar um nome para adjetivá-las como tais. Inclusive algumas práticas que poderíamos reconhecer dentro do projeto somático não adotam essa denominação, como é o caso da Metodologia Angel Vianna, da Técnica Klauss Vianna ou da Anatomie Pour le Mouvement (Anatomia para o Movimento) e do Geste Anatomique (Gesto Anatômico), essas últimas de Blandine Calais-Germain. No entanto, o reconhecimento de outros sistemas, métodos e técnicas não invalida a Somática como campo. Thomas Hanna (1980)HANNA, Thomas. Human Awareness: the inscrutable factor in somatic science. Somatics: Magazine Journal of the Bodily Arts and Sciences, Novato, v. 2, n. 4, p. 57-62, 1980. criou um deslocamento epistemológico abrindo possibilidades para a expansão de um novo paradigma.

Do ponto de vista da formação superior em dança, parece haver um consenso sobre a importância da Somática, apesar de o espaço dado a essas práticas variar enormemente de acordo com cada contexto. Para alguns entrevistados, “[...] a consciência corporal é a base para o entendimento de qualquer técnica ou vivência em dança”* e também “a Somática é uma condição sine qua non para a formação do bailarino contemporâneo”*. Para outros, entretanto, a Somática desempenha um papel “complementar àquilo que é o treino da técnica de dança”*. Essas duas visões apresentam uma grande diferença: enquanto, na primeira, a Somática assume um lugar central e essencial, na segunda, esse papel é apenas periférico ou secundário.

Enquanto abordagem transversal às práticas corporais, em uma das instituições, uma professora compartilhou que, devido à proposta de formação daquele curso especificamente, o cruzamento entre a dança e a Somática seria uma condição dada a priori: “Aqui, acho que não tem como falar de uma dança não ligada à Somática, por causa da fundadora”*. Isto é, a prerrogativa dessa Licenciatura carregaria o campo da Somática em suas diretrizes de maneira intrínseca devido às propostas pedagógicas do curso.

Para Fortin (2011FORTIN, Sylvie. Nem do Lado Direito, nem do Lado do Avesso: o artista e suas modalidades de experiência de si e do mundo. In: WOSNIAK, Cristiane; MARINHO, Nirvana. O Avesso do Avesso do Corpo: educação somática como práxis. Joinville: Nova Letra, 2011. P. 25-44., p. 31), apesar do reconhecimento sobre a pertinência de incluir a Somática na formação artística, sua presença parece-lhe “[...] sempre frágil, instável e ameaçada, porque ela não participa da mesma maneira da edificação do corpo glorioso, invencível e produtivo do discurso dominante”. Para a autora, as práticas institucionalizadas do meio profissional funcionam ainda frequentemente conforme uma “[...] pedagogia autoritária, que faz a promoção de corpos dóceis a serviço de uma imagem estética que não serve para o bem-estar dos dançarinos”. Apesar de uma atitude comprometida em relação ao ensino-aprendizagem e à profissão da dança, as divergências manifestam-se quanto aos meios para alcançar um determinado objetivo. Em uma perspectiva somática, para facilitar uma reorganização corporal global, o bailarino pode adotar diferentes estratégias, ainda que pareçam contraditórias: o controle pode ser obtido pelo abandono do peso, o relaxamento pode ser utilizado para encontrar a força, a amplitude pode ser obtida por um trabalho aquém dos limites, a visualização, a fim de melhorar a execução motora, o tempo lento pode ser um recurso para melhorar um Allegro, e assim por diante.

Porém, como nos lembra outra professora, é fundamental “[...] cuidar para não trazer a Somática para um lugar de panaceia universal. Botar [a Somática] no lugar do possível”*:

Antes se acreditava que o balé era base para tudo. Se fizesse balé poderia fazer qualquer outra coisa. Só que o balé não é mais base para tudo. Seria a Somática base para tudo? Na realidade esses métodos são sobre o gesto e não dá para você fazer uma hora de Ginástica Holística, levantar-se e dançar. Você muda do plano de chão, do tipo de apoio de coordenação e depois tem que ter uma funcionalidade do movimento*.

O risco de colocar a Somática como uma panaceia universal relaciona-se com o que Pizarro (2020)PIZARRO, Diego. Anatomia Corpoética em (De)composições: três corpos de práxis somática em dança. 2020. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro/Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020. denomina como uma estética da assepsia: buscar, a qualquer custo, um corpo neutro, sem marcas ou registros de experiências passadas. Porém, na experiência somática não se trata de apagar experiências passadas ou padrões corporais antigos, mas sim de criar novas opções e alternativas, expandindo a capacidade do corpo de se mover, sentir e se expressar.

Tendo em vista as perspectivas indisciplinadas que observamos em nossa investigação, podemos ainda questionar: o que definiria o papel da Somática em uma formação em dança? Ou ainda, qual seria o impacto dessas práticas se assumissem um lugar central e essencial? E se estiverem apenas como uma complementação, em um papel secundário?

Qual é o projeto?

Às questões anteriores, somamos a pergunta de uma professora que indaga se deveríamos trabalhar com o campo somático de forma integrada à dança ou estudá-lo separadamente? Propomos responder com outra questão colocada por uma entrevistada que questiona: “qual é o projeto?”*.

Se o meu projeto quer aprofundar em educação somática, não misture, porque leva tempo, porque fazer o mergulho nessa experiência de uma concepção de corporeidade não é superficial nem rápido. Se o lugar do projeto é conhecer a fundo, experimentar, conhecer o próprio corpo relacionado com a Somática: aprofunde. Se o lugar é ensinar uma técnica e, na construção desse ensino de técnica são trazidos elementos de um método que você domina para facilitar o trabalho técnico, misture*.

Isso quer dizer que as diferentes possibilidades de interação entre os campos promovem diferentes resultados. O estudo dedicado individualmente às práticas somáticas pode promover a elaboração de variadas perspectivas sobre o gesto e uma ampliação do vocabulário perceptivo e cinestésico. Por exemplo, em um dos depoimentos, uma professora compartilhou que ofereceu um curso denominado Movimentos Somáticos em uma Licenciatura em Dança. É importante dizer que ela era uma professora externa à instituição e propôs um curso extra, com duração de vinte aulas, que abordava essencialmente fundamentos da Somática. Para ela, nessa aula focada na percepção, os estudantes sentiam-se mais livres para explorar, sem se preocupar com a forma do movimento ou a técnica da dança. Em suas palavras:

O que eles perceberam foi que havia um tempo para sentir, para pensar no que sentiam, sem ter aquela preocupação de construir um produto de dança. Eles sentiram como uma mais-valia ter aquele espaço em que não tinham que se preocupar tanto com um produto ou com a questão estética, ou em produzir um movimento que fosse bonito e podiam dedicar-se mais ao seu corpo, a descobrir o seu corpo. [...] O que eu percebo é que nessas aulas eles sentem-se, de alguma forma, mais livres para poderem explorar o corpo e têm tempo para essa exploração sem ter tanta pressão*.

Durante o curso, uma estudante descobriu que a docente também era professora de técnicas de dança em outra escola e ficou envergonhada: “Que horror! Eu andei aí a fazer coisas... nem sei o que eu andei a fazer!”*. Ou seja, essa aluna sentiu-se livre na aula de práticas somáticas para experimentar. Realizou gestos e movimentos que, para ela, não poderiam ser considerados dança, já que não seguiam as regras ou os padrões do que ela compreendia como sendo dança. Esse exemplo demonstra que as práticas somáticas atuam em um descongestionamento gestual e fomentam a expansão da percepção e do potencial de movimento, já que ambos são lados da mesma moeda. Quando trabalhadas separadamente, ou seja, com tempo adequado para que os estudantes possam dedicar-se às questões da consciência e da percepção, as práticas somáticas produzem esse efeito de desconstrução.

Retornemos à nossa questão inicial sobre o papel das práticas somáticas em uma formação superior, como resume uma professora: “o que nos interessa é pensar que danças, que perspectivas da Somática e que tipos de pontes queremos construir”*. O lugar que a Somática assume em uma determinada formação está intimamente relacionado com o conceito de dança, com a abordagem sob a qual a técnica é vista e, de forma mais ampla, com as possibilidades de quem é autorizado a dançar.

O que é dança? O que é técnica? Quem pode dançar?

Essas perguntas aparentemente básicas e triviais podem ser cruciais para tecermos uma análise a partir de diferentes contextos. Queremos compreender como se dá a interação entre a Dança e a Somática, mas, o que cada Licenciatura compreende por dança?

Essa resposta muitas vezes não está explícita e, apesar de não ter uma definição fechada e objetiva, interfere nas escolhas que cada instituição faz no que diz respeito às propostas pedagógicas e artísticas. Ao mesmo tempo, influencia o plano de aula dos professores e as metodologias utilizadas e, mais tarde, poderá interferir nas escolhas dos futuros profissionais formados. O que é dança delimita as possibilidades e ditará as prioridades nas decisões sobre o projeto pedagógico e o plano curricular. Ou seja, se uma instituição prioriza um estilo estético ou uma técnica como ideal, ela irá priorizar conteúdos que se relacionam com os princípios do modelo escolhido. Além disso, o viés que determina o que é dança influenciará na contratação de professores que dialoguem com esse perfil. Em suma, o ponto sob o qual cada escola avista a dança determinará o tipo de formação oferecida e irá propagar uma determinada visão sobre a arte.

Nas entrevistas com professores e coordenadores, a visão sobre o que é dança, ainda que implícita, contrapôs-se em falas como “[...] todo mundo pode dançar e manifestar-se através da dança”* e “há corpos mais fáceis de se trabalhar”*. A crença de que todas as pessoas podem dançar estabelece uma relação com a dança como meio de expressão. Por outro lado, a concepção de que existem corpos com mais facilidade encobre uma visão sobre o que é dança, na qual existe um modelo ou uma forma a ser alcançada.

Resumidamente, a dança relaciona-se diretamente com a abordagem e com o sentido que se dá para a noção de técnica. Para os gregos e romanos antigos, como observa Ingold (2000)INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000., arte e tecnologia tinham o mesmo significado e caracterizavam-se como práticas habilidosas. Esse sentido já está contido na própria palavra ars ou artem (arte), derivada do latim, e na palavra que originou tecnologia, tekhné, do grego clássico. Etimologicamente, portanto, arte e tekhné estariam relacionadas a um mesmo significado associado ao trabalho do artesão.

No entanto, com o passar do tempo, o que se assistiu foi a separação não apenas entre arte e tecnologia, mas também entre arte e artesanato. O artesanato foi rebaixado ao meramente técnico ou à execução mecânica de operações predeterminadas, e a arte, elevada a um lugar de experimentação, criatividade e imaginação. “Enquanto as operações tecnológicas são predeterminadas, a arte é espontânea; enquanto a fabricação de artesanato é um processo de replicação mecânica, a arte é a produção criativa de novidade” (Ingold, 2000INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000., p. 18, tradução nossa)3 3 No original em inglês: “Where technological operations are predetermined, art is spontaneous; where the manufacture of artifacts is a process of mechanical replication, art is the creative production of novelty”. . Nessa perspectiva, a técnica encontra-se em oposição ao pensamento, à criatividade e à espontaneidade. Como na anedota de Ingold (2000)INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000., o pianista, apesar de sua técnica perfeita, se faltar-lhe alma ou inteligência, terá sua performance fadada a converter-se em algo artificial, raso e sem valor.

Marcel Mauss foi o primeiro a propor a noção de técnicas de corpo, compreendidas como “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p. 407). Nessa interpretação, as técnicas de corpo, reconhecidas em sua pluralidade, são identificadas como algo imposto ao indivíduo pelas sociedades, “normas humanas de adestramento humano” (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p. 411). Cada sociedade teria suas diferentes técnicas, do nascimento à morte: técnicas da infância, da adolescência, da idade adulta, técnicas do movimento etc. Mauss (2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p. 407) define o corpo como “[...] o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo”.

Essa noção de corpo como instrumento é empregada em abordagens nas quais o corpo é visto como um objeto que deve ser lapidado e dominado para que se obtenha o êxito de uma arte considerada efêmera. Nesse tipo de ensino-aprendizagem, guiado por uma visão mecanicista, a técnica é percebida como um tipo de treinamento ou adestramento físico.

O mecanicismo, como definido por Dianne Woodruff (1999WOODRUFF, Dianne. Treinamento na Dança: visões mecanicistas e holísticas. Tradução: Leda Muhana. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, n. 2, p. 31-39, 1999., p. 32), consiste na visão de que todo fenômeno do universo pode ser explicado segundo a física ou a química: “Essa visão oferece a base para culturas tecnológicas e homogêneas que valorizam tudo passível de medição, pesado e representado através de números”. Na dança ensinada de maneira mecanicista, os exercícios e sequências são repetidos inúmeras vezes até se tornarem automáticos em uma atividade mecânica da qual os estudantes esperam aprender determinados movimentos e adquirir determinadas habilidades, como girar, equilibrar e dominar a articulação do pé. Essa visão de ensino privilegia o virtuosismo (a maestria da forma), o quantitativo (o mais alto, rápido e grande) e o automatismo (repetir até decorar a sequência). Ou seja, uma técnica reúne um conjunto de instruções na forma de passos de dança, organizados sequencialmente, do mais fácil para o mais difícil. Como define Helena Katz (2009KATZ, Helena. Método e Técnica: faces complementares do aprendizado em dança. In: SALDANHA, Suzana (Org.). Angel Vianna: sistema, método ou técnica? Rio de Janeiro: Funarte, 2009. P. 26-32., p. 26):

O senso comum designa como técnica uma atividade prática, associada ao aprimoramento de alguma habilidade do corpo que, de imediato, é tratada como uma atividade mecânica, a ser repetida e sem associação com a vida mental. Um puro fazer, uma atividade prática, relativa ao corpo - e aqui já vale sublinhar que tal entendimento de corpo é o de corpo separado da mente.

Esse tipo de entendimento pode suscitar um discurso monolinguístico, de acordo com o qual indivíduos com corpos diferentes devem entender que aprender a dançar é o mesmo que aprender a reproduzir um passo de dança em um esforço para mimetizar sua forma codificada. De acordo com esse pensamento, a aquisição das técnicas presume ainda um esquecimento. Assim que dominadas, elas devem tornar-se automáticas a fim de evitar que se pense no movimento antes de realizá-lo. Infelizmente, esse tipo de abordagem fracassa no ensino-aprendizagem de uma percepção corporal aprofundada. Como destaca Woodruff (1999WOODRUFF, Dianne. Treinamento na Dança: visões mecanicistas e holísticas. Tradução: Leda Muhana. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, n. 2, p. 31-39, 1999., p. 38):

Infelizmente muitas técnicas de dança são um pouco mais do que uma série de exercícios e sequências mecânicas, que propõem um vocabulário de ‘coisas a serem feitas’, mas que frequentemente fracassam no ensino de uma percepção corporal aprofundada, fundamental para a apreensão de um vocabulário técnico qualitativo.

Em contrapartida, outra forma de perceber a técnica seria, como posto por Jussara Miller e Cora Laszlo (2016MILLER, Jussara; LASZLO, Cora Miller. A Sala e a Cena: a importância pedagógica de processos criativos em dança e educação somática. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, v. 20, n. 36, p. 150-167, 2016., p. 154), compreendê-la como um processo de investigação. Seria um conjunto de vários procedimentos que não se pautariam em dicotomias como certo e errado, melhor ou pior, mas que estariam relacionados a “[...] processos de atuação para construção de um corpo cênico que não reduz a pessoa a um instrumento a ser lapidado, mas a remete ao soma, ao indivíduo que trabalha com autonomia de um pesquisador em prontidão e investigação”. Nesse tipo de abordagem, a técnica é vista como meio e não como fim a ser alcançado.

Nessa perspectiva, a noção de técnica aproxima-se da ideia de uma prática habilidosa (skills) com o ambiente, como sugere Ingold (2000INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000.; 2010INGOLD, Tim. Da Transmissão de Representações à Educação da Atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010.). A técnica seria resultado de um processo dinâmico e relacional, no qual o “[...] conhecimento consiste, em primeiro lugar, em habilidades, e que todo ser humano é um centro de percepções e agência em um campo de prática” (Ingold, 2010INGOLD, Tim. Da Transmissão de Representações à Educação da Atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., p. 7).

Uma vez adquirida, a técnica passa a pertencer ao sujeito e deixa marcas no corpo, como uma impressão. Um acrobata será sempre um acrobata, esteja no circo ou no supermercado. A técnica o acompanha entranhada em seus gestos e movimentos, tornando impossível não reconhecer que ele pertence a uma cultura gestual que tem movimentos específicos que atravessam seu sentar, mexer ou andar. “Assim, o ‘estilo’ compromete-se no corpo do bailarino e através dele, mediante seus conhecimentos e convicções sobre a filosofia do corpo” (Louppe, 2012LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Tradução: Rute Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2012., p. 81).

Dito isso, é importante ressaltar que cada concepção de dança esconde uma visão sobre técnica e, da mesma forma, todas as técnicas contêm uma estética. Ou seja, qualquer técnica carrega em si, explícita ou implicitamente, uma visão de mundo. Porém, como destaca uma das professoras, alguns pontos de vista são excludentes e não dialogam entre si:

Uma coisa que me preocupa enormemente e é ainda uma discussão muito leviana e superficial: cada perspectiva dessas tem uma ideia de corpo por trás. As pessoas às vezes juntam um monte de coisas na superfície, mas, na hora em que você se aprofunda, as compreensões de corporeidade não são as mesmas e isso talvez seja uma coisa para se pensar: as pessoas fazem várias formações, mas olham o outro a partir de que lente? Porque têm lentes que são incompatíveis*.

Dito de outra forma, pode haver certa incompatibilidade de linguagens: enquanto a Somática propõe uma visão holística do corpo e da aprendizagem, determinadas abordagens da dança propõem parâmetros que são opostos. Quer dizer, mesmo que cada vez um número maior de bailarinos busque aulas de práticas somáticas de modo complementar, isso não significa necessariamente uma transposição automática dessa prática para uma dança mais cuidadosa em si.

Porém, a dança não deve ser analisada como simples objeto. “Deve ser considerada, pelo contrário, uma leitura do mundo em si, uma estrutura de informação deliberada, um instrumento de esclarecimento sobre a consciência contemporânea” (Louppe, 2012LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Tradução: Rute Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2012., p. 35). Cada técnica e, portanto, cada estética, esconde um ideal de corpo, e algumas vezes não é possível integrar visões que colocam em jogo noções opostas ou excludentes. Da mesma forma, não se pode pensar em uma técnica universal e absoluta que sirva a todos os corpos, do mesmo modo que não se pode pensar em um corpo que se adapte a todas as técnicas. Ou seja, há uma pluralidade no que se refere aos corpos e às técnicas, como posto por Mauss (2003)MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. com o conceito de técnicas do corpo (no plural).

Essa questão faz-nos avançar para o último ponto desse tópico, que parte da compreensão de que o entendimento sobre a dança e a abordagem sobre a técnica determinará também quem pode dançar. Se acreditar-se, como alguns professores disseram, que “dançar é uma maneira de estar e sentir o mundo”* ou “dançar é explorar o corpo de várias formas”*, não faz sentido a afirmação, também por parte do corpo docente, de que “este curso não forma bailarinos”*. Claramente estamos lidando com visões diferentes sobre o que é dança e o que é técnica, o que sugere, consequentemente, uma demarcação sobre quem poderá dançar.

Uma das professoras entrevistadas compartilhou que, durante muitos anos, havia acreditado que não tinha um corpo propício para dança, especialmente porque trabalhava com o balé clássico. “Eu peguei uma geração que sofreu muito com esse estereótipo de corpo ideal para dança. Eu mesma sofri, passei muito tempo acreditando que eu não tinha um corpo propício, principalmente porque trabalhava com o balé”*. Ela complementa:

Hoje, obviamente, eu acredito que todo corpo pode dançar, mas não era assim. Esse foi um pensamento que mudou, não só em mim, mas em muitos de nós. Quando eu senti isso no meu próprio corpo, uma capacidade de mudança e aceitação, é que eu comecei a pensar que para todo mundo seria possível, mas primeiro eu vivi isso no meu próprio corpo*.

A técnica é também uma manifestação histórica balizada por aspectos culturais da sociedade na qual se insere. Ou seja, a técnica de dança vincula-se a uma dinâmica de criação de sentido que não pode ser nem isolada, nem fechada em si mesma. De forma semelhante, as instituições de ensino, em suas escolhas sobre as perspectivas de dança e a abordagem sobre o fazer artístico, encontram-se inseridas em determinado contexto que, reciprocamente, cria e expressa visões sobre o que é dança, o que é técnica e quem pode dançar.

O corpo é a consciência

Como colocado por uma professora entrevistada: “eu não tenho consciência do corpo. O corpo é a consciência”*. Se considerarmos a indivisibilidade do indivíduo, ou seja, se o corpo e a mente não estão separados, não devemos dizer que temos consciência do corpo, como se a consciência estivesse separada do próprio corpo e se localizasse em outro lugar que não nele próprio. Nessa perspectiva, podemos questionar: por que as aulas que propõem um estudo do corpo, como anatomia, cinesiologia e afins, ainda hoje são realizadas em sua maioria de maneira tradicional? Se o corpo é a consciência, quais aspectos dos estudos anatômicos seriam mais importantes em uma formação em dança?

Em nossa pesquisa de campo, dentre as aulas a que assistimos, as técnicas de dança contemporânea mostraram-se mais permeáveis ao diálogo com a Somática, mesmo que algumas ainda estejam estruturadas dentro de uma ótica mecanicista. As aulas de técnica de dança clássica, por outro lado, em sua maioria, são pautadas em uma pedagogia do modelo e forma. Entretanto, algo que ficou em evidência foi uma desconsideração do campo somático no ensino-aprendizagem nas aulas de anatomia, cinesiologia e afins, apesar do consenso sobre a importância da conjugação desses conteúdos à sua aplicação prática. Como exemplifica uma das professoras:

Não me interessa saber muito da anatomia, interessa saber muito da anatomia aplicada ao trabalho do fazer. [...] Essa matéria, no meu ponto de vista, é absolutamente essencial, desde que focada naquilo que é a aplicação prática ao trabalho que o intérprete, o bailarino, faz diariamente*.

Etimologicamente, a palavra anatomia advém do grego e significa cortar em partes. A visão cartesiana da anatomia utiliza um modelo do corpo que está morto, imóvel, dissecado, cuja abordagem pretende-se objetiva por meio de ações como abrir, dissecar, observar, nomear e organizar. Em suma, a anatomia, em uma perspectiva cientificista, baseia-se principalmente na observação do corpo imóvel e em situações clínicas, o que pode ter utilidade para a Medicina, mas, para a Dança, a anatomia não deveria ter outra abordagem que incluísse as questões subjetivas e da percepção?

Assim perguntamos: por que não proporcionar aos estudantes de dança uma aula de anatomia com abordagem somática? O estudo científico do corpo é imprescindível e inquestionável. A questão que se coloca é: a partir do que já se sabe da contribuição do campo somático em relação à consciência e percepção, o estudo anatômico não poderia estar aliado à experimentação do corpo que considera suas particularidades e sensações? Como discorre Pizarro (2020PIZARRO, Diego. Anatomia Corpoética em (De)composições: três corpos de práxis somática em dança. 2020. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro/Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020., p. 32), seria uma anatomia corporalizada vivencial, poética e movente, “assim, a anatomia tradicional científica ocidental, estabelecida como a ciência de cortar cadáveres, passa a ser vivenciada como a arte de sensibilizar a existência”.

Nessa perspectiva, uma das professoras entrevistadas propõe um trabalho que ela denomina Anatomopoesia. Por meio da ideia de objetos relacionais, de Lygia Clark, ela desenvolve um estudo anatômico para o corpo vivo, experimentado enquanto um campo híbrido entre a ciência e a arte, proposto a partir de um diálogo com a Metodologia Angel Vianna. Ela explica:

A partir desse momento eu comecei a criar essa pesquisa de ciência integrada à arte e a desenvolver vários materiais que eu chamo, baseada na Lygia Clark, de objetos relacionais. O objetivo é convidar a atenção do estudante a ouvir o conteúdo da ciência, mas, ao mover os objetos relacionais, o material mesmo, dispondo de um pouco de arte, criar uma ponte com seu próprio bios, com seu próprio corpo, que tem toda a subjetividade de um sujeito*.

Acreditamos, assim como enfatiza Pizarro (2020PIZARRO, Diego. Anatomia Corpoética em (De)composições: três corpos de práxis somática em dança. 2020. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro/Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020., p. 66), que “[...] uma reforma no ensino de anatomia para dança é urgente, considerando também os caminhos curriculares que os programas de ensino superior têm adotado para a formação de professores(as) de dança e dançarinos(as)”. Uma anatomia corporalizada ou uma anatomia a partir dos preceitos somáticos dar-se-ia como um estudo dos aspectos anatômicos do corpo vivo por meio de um estudo experimental, capaz de abrir espaço para individualidades e subjetividades. Porém, mais do que utilizar a Somática como um conteúdo complementar e acessório à Dança, nossa proposta aspira engendrar uma cultura somática como parte de todo o processo. Ou seja, “[...] não visa vivenciar conceitos forjados sobre as topografias dos cadáveres, mas, antes, busca experimentar a sensibilidade de (co)mover-se nos caminhos dos tecidos vivos” (Pizarro, 2020PIZARRO, Diego. Anatomia Corpoética em (De)composições: três corpos de práxis somática em dança. 2020. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro/Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020., p. 73).

Mitologias do corpo em movimento

Como defende Godard (2002GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. P. 11-35., p. 20), vários elementos contribuem para que um indivíduo construa uma relação simbólica que perpassa sua atividade corporal, afetiva e expressiva. Esses elementos são determinados por uma “mistura complexa de parâmetros filogenéticos, culturais e individuais” que criam o que o autor denominou de mitologias do corpo em movimento. “A mitologia do corpo que circula em um grupo social se inscreve no sistema postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos serve de veículo para essa mitologia” (Godard, 2002GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. P. 11-35., p. 21). De maneira análoga, podemos considerar as escolas de dança como celeiros, fábricas, que originam, abrigam e fazem circular determinadas mitologias. Ou seja, cada instituição de ensino é como um sistema que cria concepções de corpo e de dança.

Essa ideia é complementada pela fala de uma professora entrevistada: “A gente acha que universidade é tudo a mesma coisa, mas não é”*. Cada contexto é único e desenvolve o conhecimento a partir de uma determinada perspectiva. Os cursos universitários são ambientes plurais que articulam diferentes territórios e apresentam objetivos distintos, apesar de aparentemente semelhantes. Cada processo de formação é o resultado de múltiplas instâncias que convocam diferentes áreas do saber para concretizar determinada proposta de ensino-aprendizagem. Em relação ao nosso foco - o campo somático em interação com a dança -, observamos em nossa pesquisa duas possibilidades principais: uma coexistência de campos na qual as práticas somáticas são requisitadas de forma pontual, acessória ou utilitária; e outra, na qual a interação se dá de tal maneira que toda a engrenagem do ensino-aprendizagem é modificada.

Podemos conceber essas possibilidades utilizando as análises de Godard (2002GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. P. 11-35.; 2006GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79.) sobre o gesto e a percepção em que o autor trata das questões entre a figura e o fundo. De acordo com Godard (2002GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. P. 11-35., p. 27) “[...] podemos considerar a atitude postural e o pré-movimento, que antecipam inevitavelmente o gesto, como um plano de fundo sobre o qual se desenha o movimento aparente: a figura”. Isto é, o fundo correlaciona-se a uma atitude em relação ao peso e à gravidade que existe antes mesmo de se iniciar o movimento, mas que produz a carga expressiva do movimento que será executado. Dito de outra forma, e utilizando uma metáfora do autor sobre as obras de Matisse e de Lygia Clark, podemos conceber o ensino-aprendizagem de duas maneiras: uma na qual há uma secura do fundo e outra em que o fundo vibra de tal forma que toma a frente e passa ao lugar da própria figura. Em suas palavras:

Isso me faz pensar em Matisse, que quando foi ao Marrocos viveu uma revolução pessoal. O fundo tornou-se mais importante do que a figura. O fundo se pôs a vibrar cada vez mais, e, finalmente, passou à frente da figura. É bem o que nos captura em Marrocos... Matisse é um belíssimo exemplo daquilo que falávamos há pouco, é o contexto marroquino, isto é uma certa forma de olhar, de movimentos dos corpos, de conduta em sociedade, das cores e do abafado dos sons, que modificou a sua pintura. E é o que faz Lygia Clark. Ela se interessa mais pelo fundo do que pela figura. Quer dizer, o fundo ainda indiferenciado, onde os sentidos se agitam; esse fundo permite retomar, inventar uma nova figura ou jogos entre figuras (Godard, 2006GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79., p. 78).

Essa imagem ajuda-nos a perceber como se dá um ensino no qual a dança e as práticas somáticas interagem de tal forma que essa interação causa uma modificação em vários aspectos, desde o conceito de corpo e de técnica, até a própria arte. Já que esse tipo de abordagem exige o desenvolvimento de uma nova maneira de pensar. Por outro lado, quando as questões sobre a corporeidade e a expressividade se apresentam de forma mais periférica ou utilitária em relação ao ensino-aprendizagem da dança, podemos pensar em uma secura do fundo, no sentido posto por Godard (2006)GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79..

Entre a secura e o fundo que vibra passando à frente da figura, podemos encontrar vários níveis de presença do campo somático, que se relacionam, inclusive, com o sentido da própria palavra formação. Se, por um lado, a tradição de ensino da dança ocidental baseia-se em uma transmissão unilateral de formas a serem repetidas e reproduzidas sistematicamente, e a formação encontra-se mais próxima da ideia de formatação, por outro, as práticas somáticas propõem uma ruptura que sugere um sentido mais amplo e diversificado para as formações, já que estas definem-se de forma singular e são estabelecidas conforme o duplo ensino-aprendizagem.

Nesse sentido, podemos analisar três vertentes da influência das práticas somáticas no ensino-aprendizagem. Em um primeiro tipo, temos a atuação dos professores. O currículo posto na prática4 4 Fernando Vieira (2007) propõe pensarmos em três tipo de currículo: o currículo (ou plano curricular), o currículo operacional e o currículo experimentado. O primeiro, o currículo ideal ou formal, pode também ser chamado de currículo como texto ou currículo como papel e contém o que é registrado nos documentos legais e os discursos dos pedagogos e professores. O currículo operacional seria o currículo posto na prática e ilustra como os professores implementam o currículo formal. Por último, o currículo experienciado pelos alunos contém traços do currículo formal e do currículo operacional, mas se amplia para fazer caber as experiências dos estudantes. envolveria a qualidade possibilitada pela Somática para ações, pensamentos ou práticas dentro das salas de aula. Em um segundo tipo de envolvimento, temos a somática como uma prerrogativa curricular. Nesse caso, podemos pensar em uma subdivisão na qual as instituições promoveriam um encontro mais periférico e utilitário com a Somática. E outro, em que o atravessamento é mais global, culminando no que Godard (2006)GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79. caracteriza como o fundo vibrando a tal ponto que transpassaria a figura e chegaria à frente. Quer dizer, o ensino-aprendizagem está de tal maneira imbricado das práticas somáticas que modifica todo esse sistema em suas múltiplas características.

Em nossa pesquisa, encontramos, dentre as quatro instituições, uma em que o projeto político pedagógico não incluía a Somática como campo do conhecimento, ficando restrita à prática dos professores que porventura tinham sido adjetivadas por este encontro, no que Godard (2006)GODARD, Hubert. Olhar Cego: entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely (Org.). Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. P. 73-79. denomina de secura do fundo. Em duas instituições, percebemos um cruzamento do tipo periférico ou acessório, em que uma ou algumas unidades curriculares são dedicadas ao campo Somático, mas isso não se reflete no projeto político pedagógico como um todo. Por último, em apenas uma das escolas, notamos um imbricamento tal que o fundo passou à frente.

Na experiência de compreender o ensino-aprendizagem da dança em sua relação com a Somática, mais importante que questionar o que é dança é perguntar quando ela acontece numa perspectiva fenomenológica e vivencial. Como refere Sylvio Costa (2016), apesar de estarmos em um novo milênio, ainda ecoa em nossa cultura e sociedade um ideário de formação e sobre a formação que é tributário do século XVIII. Por consequência, a formação em dança enfrenta problemas relacionados a uma lógica operativa dicotômica, linear e determinística que se desdobra em questões como a fragmentação do conhecimento, a separação entre a técnica e a criação e o apartamento entre o fazer e o pensar a dança.

Entretanto, se questionamos a visão mecanicista que reduz o papel da universidade à formação profissionalizante voltada para um suposto mercado de trabalho, podemos considerar o ensino-aprendizagem no nível superior, como propõe Thereza Rocha (2010), como um processo de desconstrução e singularização. Nesse sentido, é importante perceber o quanto a dança expandiu-se nas últimas décadas e ampliou as bordas de sua esfera de atuação em uma constante elaboração. Fazer dança hoje comporta atividades que outrora não eram tão facilmente reconhecidas como possibilidades de exercício profissional no setor. Fazer dança hoje já não se restringe a dançar/performar, coreografar ou ensinar. O ensino superior, portanto, atuaria no sentido de auxiliar os estudantes a habilitarem-se para interagir e responder a esse novo lugar, que é a dança na atualidade, ao encontrarem e inventarem o seu próprio espaço.

Dessa forma, propomos pensar como seria a graduação em dança se esta fosse uma prática de si. Isto é, como seria se nossa perspectiva de educação fosse somática e o ensino-aprendizado se desse no corpo e pelo corpo, ao considerar as percepções e as experiências do ponto de vista do próprio sujeito?

Nessa proposição de formação como exercício de si, o currículo atuaria como uma cartografia5 5 A cartografia, no sentido posto por Suely Rolnik (2006, p. 23), seria “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem”. , uma passagem, articulada com a concepção somática de corporeidade e, assim, apontaria para lógicas mais favoráveis ao risco, à experimentação, à autonomia e à diversidade de possibilidades. Como resume Rocha (2010, p. 99), “[...] o aprendizado somático transforma a vida e é inconfundível, particular, singular, definitivo, autoral”. Esse processo de singularização é necessariamente dialógico. O estudante, ao imprescindir-se de si, aprende correlativamente a imprescindir o outro, com as outras singularidades com as quais coopera, e sensibiliza-se para um campo de possibilidades de invenção e atuação, saindo da escola autor de si, da sua dança e do seu espaço de atuação.

Notas

  • 1
    Investigação realizada no âmbito do Doutoramento em Artes da Universidade de Lisboa, em regime de cotutela com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 2017 e 2023.
  • 2
    Produzem a si próprios continuamente em sentidos coerentes e autônomos em acoplamentos com o mundo (Maturana; Varela, 1992MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. The Tree of Knowledge: the biological roots of human understanding. Boston/New York: Shambala, 1992.).
  • 3
    No original em inglês: “Where technological operations are predetermined, art is spontaneous; where the manufacture of artifacts is a process of mechanical replication, art is the creative production of novelty”.
  • 4
    Fernando Vieira (2007)VIEIRA, Fernando. Dança no Ensino: as orientações educacionais nas (an)danças do currículo. In: MOURA, Margarida; MONTEIRO, Elisabete (Org.). Dança em Contextos Educativos. Cruz Quebrada: Faculdade de Motricidade Humana/Edições FMH, 2007. P. 51-62. propõe pensarmos em três tipo de currículo: o currículo (ou plano curricular), o currículo operacional e o currículo experimentado. O primeiro, o currículo ideal ou formal, pode também ser chamado de currículo como texto ou currículo como papel e contém o que é registrado nos documentos legais e os discursos dos pedagogos e professores. O currículo operacional seria o currículo posto na prática e ilustra como os professores implementam o currículo formal. Por último, o currículo experienciado pelos alunos contém traços do currículo formal e do currículo operacional, mas se amplia para fazer caber as experiências dos estudantes.
  • 5
    A cartografia, no sentido posto por Suely Rolnik (2006ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2006., p. 23), seria “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem”.

Referências

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2023
  • Aceito
    07 Mar 2023
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