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Transcestralidade, Travestilândia, Traviarcado: o palco e as dissidências de gênero no Brasil

Transcentralité, Travestiland, Traviarchie : la scène et la dissidence de genre au Brésil

RESUMO

Transcestralidade, Travestilândia, Traviarcado: o palco e as dissidências de gênero no Brasil – Este artigo tem como objetivo colocar em perspectiva histórica a relação entre as artes (sobretudo cênicas) e as travestilidades no Brasil a partir do início do século XX. Com base em uma revisão de literatura que incluiu tanto trabalhos acadêmicos como documentos não acadêmicos, o estudo distingue três padrões (ou paradigmas) de inserção na sociedade experimentados por artistas travestis: a transcestralidade, a travestilândia e, mais recentemente, o traviarcado. Essa distinção permite interpretar e compreender melhor o papel da atual geração dessas artistas: se de um lado elas alimentam a mudança social com seu trabalho ao mesmo tempo artístico e político, de outro esse papel só pode ser entendido como resultado de um processo histórico, em que a importância e a contribuição de artistas dos outros dois paradigmas devem ser igualmente reconhecidas.

RÉSUMÉ

Transcentralité, Travestiland, Traviarchie : la scène et la dissidence de genre au Brésil – Cet article vise à mettre en perspective historique les relations entre les arts (notamment les arts du spectacle) et les identités ‘travestis’ au Brésil depuis le XXe siècle. S’appuyant sur une revue de la littérature incluant à la fois des travaux académiques et des documents non académiques, l’étude identifie trois modèles (ou paradigmes) d’insertion dans la société vécus par les artistes ‘travestis’ : la transcestralité, le travestiland et, plus récemment, la traviarchie. Cette distinction permet de mieux interpréter et comprendre le rôle social joué par la génération actuelle de ces artistes : si d’un côté elles alimentent le changement social avec leur travail à la fois artistique et politique, de l’autre ce rôle ne peut être compris que comme le résultat d’un processus historique, dans lequel l’importance et la contribution des artistes des deux autres paradigmes doivent également être reconnues.

Mots-clés:
Travestis; Arts du Spectacle; Médiation Socioculturelle; Dissidence de Genre

ABSTRACT

Transcestrality, Travestiland, Traviarchy: the stage and gender dissidences in Brazil – This article aims to put into historical perspective the relationship between the arts (especially performing arts) and travestilities in Brazil since the beginning of the 20th century. Based on a literature review that included both academic works and non-academic documents, the study identifies three patterns (or paradigms) experienced by travesti artists in what refers to their insertion in society: transcestrality, travestiland, and, more recently, traviarchy. This allows a better interpretation and understanding of the role played by the current generation of these artists: if on the one hand they fuel social change with a work which is both artistic and political, on the other this role can only be understood as the result of a historical process, in which the importance and contribution of artists from the other two paradigms must be also recognized.

Keywords:
Travestis; Performing Arts; Sociocultural Mediation; Gender Dissidences

Introdução

Este artigo tem como objetivo colocar em perspectiva histórica a relação entre as artes (sobretudo cênicas) e as travestilidades no Brasil nos séculos XX e XXI. A análise parte de um trabalho anterior, desenvolvido por Meneses e Jayo (2018)MENESES, Emerson Silva; JAYO, Martin. Presença Travesti e Mediação Sociocultural nos Palcos Brasileiros: uma periodização histórica. Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 158-174, 2018., em que foi apresentada uma periodização, distinguindo uma pré-história e quatro fases, ou gerações, para a arte travesti nos palcos brasileiros. Aqui, ao contrário daquele trabalho, o foco principal não é propriamente cronológico. O que tenciono fazer é distinguir, em parte baseando-me naquele histórico, os paradigmas ou padrões de inserção na sociedade experimentados por artistas travestis a partir do início do século XX, a fim de melhor compreender o papel das subjetividades travestis contemporâneas.

A análise não objetiva historiar a origem ou a evolução da presença travesti nas artes. Sabemos que o próprio termo travesti tem sido usado com sentidos diversos em diferentes contextos e momentos históricos (Platero, 2017). Podemos, no entanto, refletir sobre como o termo travesti autorreclamado, no passado utilizado como forma violenta de exclusão, tem sido utilizado na contemporaneidade como uma forma de afirmação na luta política e social por respeito e direitos dessa vasta população. Longe de querer analisar um fenômeno homogêneo ou único que atravessa diferentes épocas, o intuito aqui é trazer à tona a presença dessas artistas em momentos distintos da história, contribuindo para a construção da afirmação, identidade(s) e memória travesti.

Um ponto de partida é entender, como destaca Weiss (2002)WEISS, Paula Macedo. Democracia em Movimento. São Paulo: Folhas de Relva, 2022., que a arte é um importante meio de expressão política e de discussão de problemas que exigem uma análise mais ampla e crítica por parte da sociedade e que os ativismos pela arte, ou artivismos (Colling, 2019COLLING, Leandro. A Emergência e Algumas Características da Cena Artivista das Dissidências Sexuais e de Gênero no Brasil da Atualidade. In: COLLING, Leandro. Artivismos das Dissidências Sexuais e de Gênero. Salvador: EDUFBA, 2019.; Richard, 2013RICHARD, Nelly. Fracturas de la Memoria: arte y pensamiento crítico. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2013.) das dissidências de gênero, ampliam as noções de afirmação das transidentidades para a sociedade cisnormativa1 1 Cisnormatividade é o termo que designa a expectativa social por uma correspondência entre o sexo biológico e a identidade de gênero, expectativa essa que se traduz em um sistema de opressão e discriminação sobre indivíduos que não a cumprem. .

Não há muitos estudos acadêmicos que tenham se debruçado de forma aprofundada sobre artistas travestis e seu papel na luta política por visibilidade e afirmação social das identidades de gênero dissidentes. A maior parte das pesquisas sobre a população travesti e trans que podemos encontrar mediante buscas sistemáticas por palavras-chave em bases de artigos e repositórios de teses e dissertações conecta vivências travestis a temas como o HIV/AIDS, a prostituição, a impossibilidade de inserção no mercado de trabalho formal e a expulsão escolar (ou um termo mais confortável: evasão escolar), além de tratar as corporalidades trans e travestis a partir da lógica binária e do entendimento cismédico. Isso reforça a necessidade de discussões que se voltem a desnaturalizar a exotificação.

Por outro lado, por meio da busca não sistemática, foi possível reunir alguns trabalhos significativos resultantes de pesquisa acadêmica, como os de Delgado (2013), Leal (2021)LEAL, Abigail Campos. Ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero. São Paulo: Glac Edições, 2021., Leal e Denny (2018)LEAL, Dodi; DENNY, Marcelo (Org.). Gênero Expandido: performances e contrassexualidades. São Paulo: Annablume, 2018., Leal e Rosa (2020)LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2237-266097755. Acesso em: 02 ago. 2022.
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, Lion (2016LION, Antonio Ricardo Calori de. É Fogo na Jaca: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 23., 2016, Assis. Anais [...]. Assis: ANPUH-SP, 2016., 2015), Rodrigues (2016)RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço. Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX a 1980. Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 90 -116, 2016., Silva (2011)SILVA, Geisa Rodrigues Leite. As Múltiplas Faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo. 2011. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011., Silva Junior (2017)SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes da. Para uma História dos Concursos de Beleza Trans: a criação de memórias e tradição para um certame voltado para travestis e mulheres transexuais. Cadernos Pagu, Campinas, v. 50, set. 2017., Vergueiro (2019)VERGUEIRO, Viviane. Sou Travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial. Brasília: Padê Editorial, 2019., entre outros, bem como referências não acadêmicas relevantes, como Nunes (2015)NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015., Paschoal (2016)PASCHOAL, Marcio. Rogéria: uma mulher e mais um pouco. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016. e Camarero e Oliveira (2021)CAMARERO, Alberto; OLIVEIRA, Alberto. Divina Valéria. São Paulo: Campus, 2021., cuja revisão e análise constituíram a base metodológica deste estudo.

Artistas travestis e mediação sociocultural

No Brasil, pelo menos desde a década de 1950, diferentes gerações de artistas travestis têm ganhado projeção nacional, desempenhando com diferentes graus de intensidade um papel de mediadoras socioculturais das dissidências de gênero. O exemplo talvez mais célebre é o de Rogéria (1943-2017), que, com uma longa carreira iniciada na década de 1960 no teatro e depois na televisão, acabou se tornando figura querida do grande público, transformando-se na “travesti da família brasileira” (Paschoal, 2016PASCHOAL, Marcio. Rogéria: uma mulher e mais um pouco. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016.), apelido com que era conhecida no final da vida. Outros exemplos históricos menos conhecidos são o de Ivaná, atuante nos anos 1950 no teatro de revista e representante de uma geração anterior a Rogéria, e o de Cláudia Wonder, de geração posterior, na década 1980.

A esses exemplos históricos se soma mais recentemente uma geração contemporânea, surgida no início do século XXI, que enfrenta a imposição de papéis de gênero na sociedade produzindo uma arte militante e política, um artivismo das dissidências de gênero. Buscam assim o que Preciado (2014, p. 22)PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014. chama de “desconstrução sistemática da naturalização de práticas sexuais e do sistema de gênero”.

Ao criarem suas obras, muitas dessas artistas ativistas travestis contemporâneas o fazem como forma de mediação das dissidências de gênero voltadas a plateias cis, atuando assim como mediadoras socioculturais.

O conceito de mediação sociocultural tem origem no de mediação cultural, presente em discussões acadêmicas e em práticas profissionais nos campos da Comunicação, da Educação, da Museologia e das Artes Cênicas (Perrotti, 2016PERROTTI, Edmir. Mediação Cultural: além dos procedimentos. In: SALCEDO, Diego Andres (Org.). Mediação Cultural. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016.; Aboudrar; Mairesse, 2016ABOUDRAR, Bruno Nassim; MAIRESSE, Françoise. La Médiation Culturelle. Paris: Presses Universitaires de France, 2016.; Perrotti; Pierruccini, 2014PERROTTI, Edmir; PIERUCCINI, Ivete. A Mediação Cultural como Categoria Autônoma. Informação & Informação, Londrina, v. 19, n. 2, p. 1-22, 2014.; Desgranges, 2006). Para Aboudrar e Mairesse (2016)ABOUDRAR, Bruno Nassim; MAIRESSE, Françoise. La Médiation Culturelle. Paris: Presses Universitaires de France, 2016., mediação cultural é um processo pelo qual, graças à ação de um intermediário (o mediador), indivíduos ou grupos sociais assimilam determinada proposição – seja ela cultural, estética, política etc. – com a qual, de outra forma, não tomariam contato. O mediador atua como um agente formativo, facilitador do contato e da construção de conhecimento social com relação a determinado tópico ou proposição.

Oliveira e Galego (2005)OLIVEIRA, Ana; GALEGO, Carla. A Mediação Sócio-cultural: um puzzle em construção. Porto: ACIME, 2005. ampliam a noção, acrescentando à expressão cultural o prefixo socio. Mediação sociocultural, dessa forma, pode ser entendida como um processo comunicacional de transformação do social e requalificação das relações sociais em temas em que seja necessário reforçar a dimensão da diversidade, da interculturalidade e da coesão social. Assim, processos de mediação sociocultural têm papel como estratégias de resolução de conflitos e de intervenção em problemáticas de integração na e da sociedade. Em coerência com essa ideia, para Desgranges, mediações obtidas pelos palcos “podem trazer à tona questões urgentes da vida social” (Desgranges, 2017, p. 47DESGRANGES, Flávio. A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec, 2017.). No caso das artistas que são o foco desta análise, as mediações auxiliam na criação de uma nova relação com as próprias vidas trans em sociedade e com questionamentos necessários para grande parte da sociedade cisgênera que em geral não enxerga a legitimidade de vidas e corpos trans e travestis.

Os artivismos das dissidências têm, recentemente, chamado atenção de comunidades pesquisadoras. Alguns estudos internacionais, como o de Alonso-Sanz e Alfonso (2003)ALONSO-SANZ, Amparo; ALFONSO, Vicente. How Artistic Actions Can Foster Sensitivity to Equality in Diversity in Public University Participants and Observers. Sexuality Research and Social Policy, Berlin, ago. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s13178-023-00858-4. Acesso em: 02 jul. 2023.
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, referem-se a processos de pedagogia pública (public pedagogy), definindo esse conceito como sendo uma pedagogia em sentido alargado, que se propõe a educar na esfera pública, para além das instituições escolares. O conceito se refere a educar o público em uma forma bastante assemelhada àquela contemplada pelo de mediação sociocultural. Biesta (2012)BIESTA, Gert. Becoming Public: public pedagogy, citizenship and the public sphere. Social & Cultural Geography, v. 13, n. 7, p. 683-97, 2012. refere-se, inclusive, a uma pedagogia pública baseada nas artes (arts-based public pedagogy). Apesar das semelhanças, a fim de que o presente trabalho se filie à comunidade de pessoas que pesquisam o assunto em língua portuguesa, preferimos adotar neste estudo o termo mediação sociocultural, seguindo Oliveira e Galego (2006)PINTO, António Vaz. Nota de Abertura. In: OLIVEIRA, Ana; GALEGO, Carla. A Mediação Sócio-cultural: um puzzle em construção. Porto: ACIME, 2005. P. 7..

Meneses e Jayo (2018)MENESES, Emerson Silva; JAYO, Martin. Presença Travesti e Mediação Sociocultural nos Palcos Brasileiros: uma periodização histórica. Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 158-174, 2018. já propuseram a ideia de que artistas travestis podem desempenhar função de mediadoras socioculturais rumo a uma afirmação social da transgeneridade e da travestilidade. De fato, uma possibilidade de mediação sociocultural, em prol da resolução de conflitos e da intervenção em problemáticas de integração, é a criação de processos formativos que se entrelacem em projetos artísticos. O mediador sociocultural (neste caso mediadora, a artista travesti) criaria estratégias baseadas em linguagem artística, na tentativa de atingir o público esteticamente e também de conscientizá-lo em um processo de troca de saberes, com impactos simultaneamente artísticos e sociais ou políticos.

Três paradigmas

São três os paradigmas, ou padrões de atuação mediadora de artistas travestis que aqui pretendemos distinguir a saber: o daquelas que poderíamos chamar de artistas precursoras, ou trancestrais, (presente mais no início do processo histórico e marcado pela marginalidade), o da travestilândia (marcado por uma crescente visibilidade social, graças à exposição midiática proporcionada pelo show business e pela TV, e ao mesmo tempo pela exposição a um alto grau de exotificação, violência e preconceitos sociais), e o do traviarcado (caracterizado por um maior protagonismo político das artistas travestis no debate público e na luta por direitos). Como veremos, não se trata propriamente de uma periodização, na medida em que há superposições temporais entre essas formas de inserção, que não obedecem a uma lógica de fases com fronteiras cronológicas rígidas.

Transcestralidade

Madame Satã (1900-1976), hoje considerada por muitos a primeira artista travesti brasileira de que se tem notícia, pode ser apresentada como uma das principais representantes deste primeiro paradigma, que chamamos transcestralidade. A identidade travesti tem-lhe sido atribuída por autores como Cafola (2021)CAFOLA, Diego Aparecido. Vozes Subalternas em Meio à Multidão: na encruzilhada de Linn da Quebrada. 2021. Dissertação (Mestrado em Estudos Culturais) – Universidade Federal de Mato Grosso de Sul, Aquidauana, 2021., Cassimiro (2021)CASSIMIRO, Patrick. Bichas Brasileiras: a história de 30 ícones LGBTQIA+. São Paulo: Edição do Autor, 2021., entre outros. Optamos por também chamá-la assim, mesmo cientes de que essa denominação não existia no tempo histórico da personagem, no qual a classificação talvez mais cabível seria a de um homossexual em sua vida privada e de um artista transformista na vida profissional. Vale, contudo, observarmos que o qualificativo travesti aparece em livro autobiográfico da artista, publicado no início da década de 1970 (Madame Satã, 1972MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.)2 2 Esse livro, que em sua primeira edição (1972) se intitulou Memórias de Madame Satã, é às vezes referenciado erroneamente como sendo de autoria de Sylvan Paezzo, escritor a quem Madame Satã, pessoa de baixa escolaridade, ditou o depoimento e delegou a organização do texto. A obra, no entanto, é uma autobiografia. Ao ser reeditada em 2022 pela editora paulistana Noir, tentou-se resolver o problema, ainda que talvez não da forma mais adequada: o título foi alterado para Madame Satã: autobiografia, e a autoria foi desta vez creditada a Madame Satã, porém usando, para tanto, o seu nome civil, masculino. . Ela própria, portanto, ainda que só no final da vida, chegou a referir-se a si própria como travesti.

A construção da sua identidade, tanto de gênero quanto artística, está associada ao ambiente dos bailes e concursos do Carnaval carioca. O próprio nome Madame Satã, com que ficou conhecida, teria surgido de uma fantasia que trajou no carnaval de 1938, como relata Green (2003)GREEN, James N. O Pasquim e Madame Satã, a ‘Rainha’ Negra da História Brasileira. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, p. 201-221, 2003.. Em épocas de criminalização de dissidências de gênero – haja vista o Código Penal de 1890, vigente até 1940, que proibia “disfarçar o sexo, tomando trajes impróprios do seu”, dispondo como pena a “prisão celular por quinze a sessenta dias” (Barbosa, 2014, p. 78) –, havia uma oportunidade, como ressalta Green, para exercer uma maior liberdade na expressão de gênero.

Negra e nascida em Pernambuco, Satã viveu desde muito jovem no Rio de Janeiro e tentou diferentes ofícios, que alternou com a atividade no palco como artista transformista. Em 1928, ela ganhava 15 mil réis por semana apresentando-se como a Mulata do Balacochê em um teatro da Praça Tiradentes, reduto artístico do centro do Rio, interpretando um samba intitulado Mulher de Besteira. Após uma noite em que “aplaudiram e aplaudiram e gritaram o meu nome artístico e tive a certeza de que estava agradando milhões” (Madame Satã, 1972, p. 1MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.), a artista conta que voltava a pé para casa, não muito longe, e resolveu entrar em um botequim. Fazia 15 dias que vinha apresentando aquele número e, como ela mesma diz, “estava louco para ter uma profissão certa que me permitisse viver em paz […] e o teatro era o caminho” (Madame Satã, 1972, p. 1MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.). Feliz com o sucesso e prestes a assinar um novo contrato, resolveu comemorar: “Me animei e pedi um bife mal passado que sempre foi minha comida preferida” (Madame Satã, 1972, p. 3MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.). Mas a alegria e a paz de espírito foram, como era previsível, interrompidas por um xingamento, vindo de um policial, enquanto esperava o bife. Deixemos que a própria artista, em sua autobiografia de 1972, nos relate o que se passou:

– Veado.

[…]

– Nós já estamos no carnaval, veado?

[…]

– Estamos ou não estamos no Carnaval seu veado?

[…]

Em vez de se retirar do bar e me deixar em paz pois eu já tinha demonstrado que não estava querendo conflito ele estava quase na minha mesa. Ah meu deus eu preciso me controlar. Eu estava tão bem como artista.

– Veado safado.

Alberto parou na minha frente. Os olhos estavam enormes. Pareciam maiores do que a cara dele.

– O veado não vai dizer nada?

– Por que o senhor está fazendo isso comigo? Apenas entrei aqui para fazer uma refeição.

– Veado vagabundo.

– Vim do trabalho.

– Só se for do trabalho de dar a bunda e roubar os outros.

O meu bife não vinha mesmo. Com certeza quando o dono do bar notou que o vigilante estava querendo coisa comigo suspendeu o pedido mas não me disse nada. Era isso mesmo. Menos louça pra quebrar (Madame Satã, 1972, p. 23MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.).

A cena, passada em 1928 e evocada tão emotivamente pela própria personagem em 1972, não perde a dramaticidade e continua tocante até hoje, quase um século depois do ocorrido: nela vemos alguém sendo humilhada por ser quem é. Se a agressão partiu inicialmente do vigilante, a ele se juntaram solidariamente muitos outros: o dono que suspendeu o bife, os demais presentes que nada fizeram. Madame Satã prossegue o relato, detalhando os fatos até o triste desfecho. Num primeiro momento, optou por deixar o lugar: “me levantei sempre de cabeça baixa e fui embora em silêncio” (Madame Satã, 1972, p. 24MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.). Mas, enquanto subia os degraus da pensão em que morava, “comecei a ficar mais nervoso ainda e com um nó na garganta” (Madame Satã, 1972, p. 24MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Depoimento a Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.), o que lhe fez retornar. Desta vez armada, atirou no seu agressor. Levada a julgamento, foi condenada a 16 anos de prisão, depois reduzidos a dois. Seria apenas o seu primeiro encarceramento, de uma longa série que faria com que contabilizasse, ao todo, 27 anos encarcerada no sistema prisional (Green, 2003GREEN, James N. O Pasquim e Madame Satã, a ‘Rainha’ Negra da História Brasileira. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, p. 201-221, 2003.).

Em 1986, dez anos depois da sua morte, a encontramos retratada na primeira página do jornal carioca O Pasquim (Figura 1). “Dez anos sem Madame Satã”, diz a chamada. Na foto ela aparece sobre um palco, fazendo movimentos amplos de braços e vestindo um figurino chamativo: uma capa aparentemente brilhante, grandes e vistosos braceletes.

Figura 1
Capa do Pasquim nº 875 (abril de 1986). Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp).

Anos depois, ela seria retratada no cinema3 3 Madame Satã foi interpretada pelo ator Lázaro Ramos no longa-metragem biográfico Madame Satã, de Karin Aïnouz (2002), filme que teve grande notoriedade. Antes disso, já havia sido retratada em outro filme, menos conhecido: A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos Fontoura, cujo personagem principal é inspirado nela, interpretado pelo ator Milton Gonçalves. , mas é mais comumente lembrada a partir de sua ficha policial:

[…] desordeiro, sendo frequentador contumaz do Largo da Lapa e imediações. É pederasta passivo, usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Entretanto é um indivíduo perigosíssimo […]. É visto sempre entre pederastas, prostitutas e pessoas do mais baixo nível social (Green; Polito, 2004, p. 145GREEN, James N.; POLITO, Ronald. Frescos Trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.).

Entre uma passagem policial e outra, Madame Satã “[...] encontrou na vida artística um refúgio visto que sempre buscava voltar para ela, afirmando que, em cima dos palcos, ele era livre para realizar seus desejos e suas vontades, se travestia e, ainda assim, era aceito pelas pessoas” (Cafola, 2015, p. 139CAFOLA, Diego Aparecido. Madame para Uns, Satã para Outros: uma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2000), de Karim Aïnouz. Albuquerque – Revista de História, v. 7, n. 14, p. 121-141, 2015.), ao mesmo tempo em que, fora do palco, encontrava na malandragem, na valentia e na violência uma estratégia de sobrevivência a um ambiente extremamente hostil.

Descrita por Silva (2011, p. 10-11)SILVA, Geisa Rodrigues Leite. As Múltiplas Faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo. 2011. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. como uma personagem de “múltiplas faces” que, ao longo da vida, “soube ser várias coisas”, Madame Satã ocupou na verdade um lugar à margem por não se ajustar à normatização imposta pela sociedade. Construiu sua identidade e viveu no que Arantes (2010)ARANTES, José Estêvão Rocha. Vivendo no Entre-lugar: raça e homossexualidade na construção de identidades. In: COSTA, Horácio et al (Org). Retratos do Brasil Homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: EDUSP, 2010. chama de um entre-lugar: uma zona fronteiriça entre a concessão à norma e a transgressão, entre a identidade masculina e a feminina, entre a malandragem e o palco.

Transformada com o tempo em figura mítica associada à boemia e malandragem carioca do século XX, retratada em filmes, telenovela e sambas-enredo e investigada em pesquisas acadêmicas, ela é certamente a representante mais conhecida (ou a única representante realmente conhecida) de toda uma geração de artistas travestis – ou transformistas, denominação mais ajustada ao seu momento histórico – que vivenciaram experiências marcadas pela estigmatização e pela múltipla discriminação: por origem social, por orientação sexual e/ou identidade de gênero, com muita frequência também por raça. São pessoas cuja vida não aderente à norma fez com que se tornassem marginais. James Green (2000)GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000. enumera alguns nomes sobre os quais pouco se sabe, mas que parecem ter tido presença igualmente frequente tanto em palcos da zona boêmia e concursos de carnaval quanto em locais de prostituição e delegacias: Gilda de Abreu, Kay Francis, Lena Horne são alguns deles. Outros nomes decerto se perderam na memória e ainda merecem ter suas experiências pesquisadas.

Um desses nomes ainda merecedores de mais atenção aparece registrado nos escritos (também referidos por Green, 2000GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.) do médico Leonídio Ribeiro (1893-1976). Diretor do Instituto de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal na década de 1930, Ribeiro se propôs a caracterizar a presença homossexual na população brasileira. Entre os indivíduos pesquisados, destaca-se “M. S., conhecido pelo cognome feminino de Marina” (Green, 2000GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.). Marina foi entrevistada em 1932 para o estudo conduzido por Ribeiro, e chama a atenção a maneira como o médico, mesmo tratando-a em sintonia com a época como homem homossexual, já reconhece nela traços do que hoje se consideraria uma subjetividade transgênero ou travesti:

[...] Marina deixou sua família no Norte do Brasil, mudou-se para o Rio de Janeiro e conseguiu emprego no teatro de revista como dançarino (sic) e membro do coro. No Rio, conheceu um homem de status social superior ao seu, e os dois iniciaram um relacionamento de seis anos, no qual Marina assumiu o papel tradicional da mulher. Ele cuidava da casa, possuía um guarda-roupa repleto de trajes femininos e assumiu o que Ribeiro considerava uma persona feminina. [...] Ao retratar a personalidade feminina de Marina, Ribeiro o descreve como uma ‘mulher presa no corpo de um homem’ (Green, 2000, p. 136GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.).

Sem dúvida, era comum na época relacionamentos homoafetivos reproduzirem os papéis rígidos de homem masculino/ativo e homem efeminado/passivo, e é possível que a própria Marina tenha tido uma compreensão de si mesma dentro desse modelo. Entretanto, hoje certamente poderíamos questionar se não se tratava de pessoa trans ou travesti vivendo uma relação heterossexual. Por que não pensarmos, então, na persona feminina de Marina, e em seu estilo de vida após trocar os palcos pelo casamento, como indício de sua dissidência de gênero, reforçando a percepção de que se tratava de uma sujeita travesti?

Por fim, outra personagem muito pouco conhecida que poderia também figurar ao lado de Madame Satã e de Marina entre as transcestrais é Jacqueline Galiaci. Nascida em 1933 no interior de São Paulo, Jacqueline foi expulsa de casa em 1947, aos 14 anos. A partir dali, como relata Assunção (2021)ASSUNÇÃO, Ademir. Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos: textos de jornalismo cultural. Brasília: SciELO/Editora UnB, 2021., nasceria não apenas uma vedete do teatro de revista, mas também a primeira dissidente de gênero latino-americana a submeter-se (em 1969) a uma cirurgia de mudança de sexo, como chamavam a redesignação de gênero à época.

Em 1964, a vedete era descrita como:

Um artista que fazia, em terra paulistana, apresentações em ‘travesti’ ganhando aplausos, tal a perfeição com que se mostrava em boates e espetáculos assistidos por um grande público. Algum tempo antes, porém Jacqueline já havia solicitado às autoridades policiais autorização para sair à rua em trajes femininos, porque assim se sentia melhor, livre de constrangimentos (Revista do Rádio, 1964, p. 6).

Em um conjunto de depoimentos concedidos no início dos anos 1990 ao jornalista Ademir Assunção, reproduzidos em Assunção (2021)ASSUNÇÃO, Ademir. Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos: textos de jornalismo cultural. Brasília: SciELO/Editora UnB, 2021., Jacqueline conta que “ainda na década de 1950 passei a assumir meu nome feminino”, porém, ao andar pelas ruas de São Paulo, “[...] usava uma boina e colocava o cabelo todo dentro dela, porque se a polícia me pegasse na rua com o cabelo grande, me prendia. A repressão era muito grande” (Assunção, 2021, p. 79ASSUNÇÃO, Ademir. Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos: textos de jornalismo cultural. Brasília: SciELO/Editora UnB, 2021.). Em 1960, entrou na Justiça para obter, por meio de habeas corpus, o direito de andar em público em trajes femininos (Figura 2). Mesmo assim, foi presa inúmeras vezes, tendo sido alvo de tortura e violência policial. Em uma das detenções, ocorrida após o golpe militar de 1964, relata ter sido estuprada nas dependências do DOPS por quatro investigadores. Ainda na década de 1960, Jacqueline formalizou um pedido de alteração de registro nos seus documentos que lhe foi negado. Apenas depois de uma cirurgia de confirmação de gênero realizada no Marrocos, os órgãos oficiais acataram seu pedido de modificação nos documentos.

Figura 2
Jacqueline Galiaci passeando com o noivo. Fonte: Revista do Rádio, n. 740, 23 nov. 1962.

No auge da fama, construída tanto nos palcos como nas páginas policiais dos jornais paulistanos, Jacqueline Galiaci, depois de já ter se submetido à cirurgia de redesignação e aparentemente cansada de escândalos envolvendo a curiosidade do público e da imprensa sobre seu corpo, decidiu abandonar a carreira artística e passou a viver uma vida anônima com Antonio Carlos Acquaviva. A vedete travesti, que cantava sambas de Isaura Garcia e Dalva de Oliveira, morreu em outubro de 1992, aos 58 anos de idade, vítima de infarto.

As três artistas aqui tratadas – Madame Satã, Marina, Jacqueline Galiaci – têm, como visto, biografias e perfis bastante diferentes. Elas reúnem, contudo, o traço comum que nos faz classificá-las como representantes do que chamamos de transcestralidade: são artistas que tiveram existências marcadas por estigmatização e violência e trajetórias profissionais intervaladas por prisões e/ou episódios de violência policial. Madame Satã certamente passou mais tempo encarcerada em celas do que atuando em palcos. Marina é uma das muitas personagens sobre as quais não é possível saber muita coisa, mas o pouco que sabemos chega a nós, sugestivamente, por meio de literatura policial. Jacqueline, assim como parece ter acontecido com Marina, exilou-se dos palcos: trocou a atividade artística pela vida doméstica e anônima, protegendo-se ou tentando proteger-se assim da violência e do preconceito. Todas elas ajudaram a abrir caminho, entretanto, para um modelo seguinte de inserção de artistas travestis na sociedade brasileira.

Travestilândia

Também na primeira metade do século XX, enquanto as figuras acima referidas tinham suas existências marcadas pelo estigma e pelo trânsito entre o palco, a marginalidade social e a repressão policial, aos poucos uma nova maneira de inserção de artistas travestis na vida social foi se gestando, primeiro no Rio de Janeiro, depois em outras capitais do país.

As primeiras manifestações desse movimento se dão ainda nas primeiras décadas do século, quando artistas transformistas estrangeiros, como o argentino Aymond (nome artístico de Norberto Americo Aymonio) e o norte-americano John Bridges (ou João Bridges, como costumava ser creditado), entre outros, passaram a se apresentar de forma recorrente em uma cena artística mais mainstream, longe dos cabarés de má fama e do circuito mais popular em que encontraríamos, por exemplo, Madame Satã.

Bridges, desde a virada do século XIX para o XX, apresentava-se no Rio de Janeiro cantando com voz de soprano e imitando a atriz portuguesa Pepa Ruiz, de grande sucesso na época (Nunes, 2015NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015.; Oliveira, 2016OLIVEIRA, Richard Bertolin de. Três Atos e Vinte e Nove Pares de Meias Justas: perfis biográficos de Pepa Ruiz. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2016.). Aymond, nos anos 1920 e 1930, apresentou de forma recorrente pequenos shows de transformismo em salas de cinema, antes das projeções, imitando atrizes da época (Nunes, 2015NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015.). Além de muitas vezes terem outra origem social (alguns deles inclusive estrangeiros), esses artistas se diferenciaram dos exemplos anteriores por terem sido foco de interesse da indústria do espetáculo.

Assim, ao contrário de Madame Satã e de outras artistas expostas em maior ou menor grau à marginalidade, cujos nomes frequentavam mais comumente prontuários e inquéritos policiais, aqui estamos diante de nomes que estampavam a programação e o noticiário cultural – configurando um modo de inserção social inteiramente diferente. Richard Bertolin de Oliveira recupera o exemplo de uma notícia publicada ainda em 1895, no carioca Jornal do Brasil:

Mas o clou, o sucesso, foi o Sr. John Bridges, que em travesti deu-nos a fotografia da Pepa nos 18 papéis. É tão perfeita a semelhança que o teatro parecia vir abaixo com os aplausos. Evidentemente, Bridges, com sua perfeita imitação e voz de soprano, vai ser um acontecimento (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 jun. 1895, p. 2, reproduzido por Oliveira, 2016, p. 86OLIVEIRA, Richard Bertolin de. Três Atos e Vinte e Nove Pares de Meias Justas: perfis biográficos de Pepa Ruiz. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2016.).

E, em meio a estes e outros exemplos, mais ou menos corriqueiros ao longo de toda a primeira metade do século, uma personagem se sobressairia por volta de 1950, quando a Companhia Walter Pinto anunciou sua chegada da Europa: Ivaná (Figura 3).

Figura 3
Ivaná em cena e em capa de revista. Fontes: Lion (2016)LION, Antonio Ricardo Calori de. É Fogo na Jaca: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 23., 2016, Assis. Anais [...]. Assis: ANPUH-SP, 2016. (esquerda) e Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://memoria.bn.br) (direita).

A cena artística de 1950 foi o auge dos chamados espetáculos de revista, que contavam com extensa equipe técnica e eram estrelados por vedetes famosas. O produtor teatral Walter Pinto (1913-1994) fora responsável por uma renovação desse gênero na década de 1940, introduzindo luzes e coreografias grandiosas, coros numerosos e grandes orquestras. Coristas (dançarinas) estrangeiras – principalmente francesas e russas, segundo Antonio Calori de Lion (2016)LION, Antonio Ricardo Calori de. É Fogo na Jaca: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 23., 2016, Assis. Anais [...]. Assis: ANPUH-SP, 2016. – costumavam ser contratadas para as produções, que contavam com artistas de renome, como Dercy Gonçalves e Grande Otelo, e grandes vedetes, como Mara Rubia e Virginia Lane. Em 1953, juntou-se a estas últimas Ivaná, uma jovem e voluptuosa vedete, apresentada ao público como artista recém-chegada da França.

Apesar da identidade francesa com que foi vendida ao público, Ivaná era na verdade provavelmente de nacionalidade portuguesa4 4 Embora autores como Nunes (2015) e Lion (2016) afirmem que Ivaná era portuguesa, seu local de nascimento tem sido, mais recentemente, objeto de controvérsia. Em artigo publicado em setembro de 2021, Thürler e Mathieu (2021, p. 20) apresentam evidência documental de que ela teria, na verdade, nascido em Mont-St-Aignan, na França. De qualquer forma, seu nome civil, Yvan Monteiro Damião, indica claramente origem portuguesa. , tinha 20 anos de idade e já residia há bastante tempo no Rio de Janeiro (Nunes, 2015NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015.). Outro dado inicialmente omitido era seu sexo biológico: dava-se a entender ao público que se tratava de mais uma vedete cisgênero, informação que ainda em 1953 começou a ser retificada por reportagens da mídia, como relata Lion (2016)LION, Antonio Ricardo Calori de. É Fogo na Jaca: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 23., 2016, Assis. Anais [...]. Assis: ANPUH-SP, 2016.. Ali é revelado seu nome civil, bem como informações sobre sua origem social e vida anterior aos palcos. Em matéria de 1953 na revista Manchete, o repórter Ivo Serra ressaltava a aparência feminina da artista e incentivava a curiosidade do grande público:

A publicidade foi formidável, apresentando Ivan como a grande atração da revista. Metido em longos vestidos pretos e capas estampadas, fumando em longas piteiras, não foi dito nada sobre seu sexo, se homem ou mulher. E quando chegou ao palco ninguém imaginou que na verdade fosse um homem. Cantava como mulher, trajava-se como mulher e apresentava o ‘charme’ e o ‘sexy’ das grades francêsas das ‘boites’ cariocas. Depois o público descobriu que Ivana era apenas um homem desempenhando o papel travesti. O ‘cartaz’ aumentou (Serra, 1953, p. 22SERRA, Ivo. Ivaná, a Grande Dúvida. Manchete, Rio de Janeiro, p. 22, set. 1953.).

Em 1954, em sua coluna na revista Manchete, o dramaturgo e jornalista Henrique Pongetti (1898-1979) comentava: “A mulher mais bonita entre as que Walter Pinto trouxe de Paris era portuguesa e não era mulher, era anfíbia, e se chamava Ivana” (Pongetti, 1954, p. 3PONGETTI, Henrique. Há Francesas no Pôrto! Manchete, Rio de Janeiro, n. 103, p. 3, abr. 1954.). Com o tempo, essa condição “anfíbia” de Ivaná não só se tornou de pleno conhecimento do público, como também passou a ser propagandeada como estratégia de marketing pelos produtores de espetáculos, que antes a tinham escondido. Em 1963, sua dissidência de gênero era ressaltada e fetichizada: “Ivaná – homem ou mulher? – na sua última temporada no Brasil5 5 Texto de anúncio publicitário do espetáculo Não Aperta que eu Grito! (Folha de São Paulo, 29 ago. 1963). é o que se anunciou a respeito da artista na publicidade de um espetáculo seu montado em São Paulo.

Ivaná é com frequência reconhecida como a primeira travesti que se tornou famosa como atriz no Brasil, crédito que ela mesma por vezes corrigiu, nomeando Aymond como seu antecessor, conforme explica Nunes (2015)NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015.. É sabido, pelas muitas entrevistas que deu ao longo da carreira, que ao menos durante parte da vida viveu privadamente como homem, adotando vestuário masculino quando não estava em cena. É provável, porém, que ela tenha sido o que hoje se classifica como pessoa trans, a julgar pela informação, dada por Nunes (2015, p. 166)NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015., de uma declaração que ela teria dado à imprensa em 1961: o seu desejo de submeter-se a uma cirurgia para o que então se chamava de mudança de sexo.

Seja como for – vedete trans, atriz travesti ou ator transformista –, Ivaná foi uma performer que se apresentou a um público diversificado e por ele foi tratada como celebridade. Sua figura não era calcada na imitação ou na caricatura, mas no glamour típico das divas cinematográficas do período, caracterizando-se por um alto grau do que hoje chamaríamos de passabilidade feminina. Fez sucesso não só no teatro de revista, mas também no cinema, tendo interpretado personagens femininas em diferentes filmes da década de 1950 – a exemplo de Mulher de Verdade (direção de Alberto Cavalcanti, 1954), em que contracenou com artistas de grande popularidade, como Inezita Barroso, Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, o que significava transpor barreiras inimagináveis para a época.

O fenômeno de Ivaná nos mostra que, em meados do século XX, a partir da indústria do espetáculo, já surgiam formas de sinalizar à sociedade a possibilidade de transpor barreiras binárias de gênero e sexualidade. Descoberta pelo show business, ela pode ser considerada iniciadora de uma geração de glamourosas divas que encontraria seu maior impulso nas décadas de 1960 e 1970.

Uma década depois do surgimento de Ivaná (e também de Phedra de Córdoba, outra importante vedete travesti dos anos 1950), o teatro de revista na década de 1960 buscava um novo impulso comercial com espetáculos em que o principal atrativo eram artistas travestis. Como ressalta Delgado (2013), tratava-se agora de atrair público ao teatro para ver, justamente, corpos travestis em cena. Em 1964, foi montado aquele que é tido como um dos mais importantes espetáculos de elenco travesti da história teatral brasileira: Les Girls, dirigido por Carlos Machado. Como observa Thiago Soliva (2016, p. 98)SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o Símbolo do Glamour: um estudo sobre homossexualidade, resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.:

A estreia de Les Girls foi um sucesso nacional, mesmo em um contexto de ditadura, no qual a indústria de entretenimento brasileira passou a ser objeto de censura e controle. […] Tratava-se de uma comédia musical no melhor estilo, que misturava a estética da Broadway com o teatro de revista brasileiro.

O espetáculo, que além de encenado no Rio de Janeiro e em São Paulo acabou fazendo turnês no exterior, manteve-se em cartaz até a década de 1970 e lançou, ao longo do tempo, várias novas artistas, de geração posterior a Ivaná, que ganhariam grande projeção: Marquesa, Divina Valéria, Jane Di Castro, Camille K., Fujika de Halliday, Brigitte de Búzios, Eloína dos Leopardos, além da mais famosa de todas, Rogéria.

Nos palcos e em seguida nas telas de TV, muitas dessas artistas ganharam grande notoriedade, como peças de uma lucrativa indústria do entretenimento. Surgiam “[...] diversos espaços de diversão, onde os espetáculos montados exibiam elencos formados exclusivamente de uma nova modalidade de travestis” (Rodrigues, 2016, p. 93RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço. Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX a 1980. Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 90 -116, 2016.), empregada pelo show business em espetáculos socialmente bem vistos. A imagem que as artistas construíram, em cena e também em suas figuras públicas, era a de mulher sedutora, sex symbol, femme fatale, reproduzindo ou mesmo exacerbando os padrões de feminilidade glamourosa das estrelas cinematográficas hollywoodianas. Era o caso também das artistas que se apresentavam na boate paulistana Medieval, que se tornou um dos principais palcos da arte travesti no país nos anos 1970 (Figura 4).

Figura 4
Vic Glamour, Monalisa, Gisele, Geórgia e Érica, artistas da boate Medieval (São Paulo, década de 1970). Fonte: Foto de Madalena Schwartz em Aguilar e Titan Jr. (2021).

Celebrados como nova cultura do entretenimento, os shows de travestis carregavam certo valor simbólico de modernidade, fazendo com que parte do público pudesse construir para si a imagem de uma elite aberta ao novo (Soliva, 2016SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o Símbolo do Glamour: um estudo sobre homossexualidade, resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). E, se até então artistas travestis eram vistas como atores transformistas, que se vestiam para “imitar um outro gênero como recurso teatral” (Rodrigues, 2016, p. 104RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço. Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX a 1980. Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 90 -116, 2016.), gradativamente elas passaram a contribuir para a percepção da diferença entre travestimento cênico e identidades travestis. A já mencionada Divina Valéria, por exemplo, depois de algum tempo atuando na Europa, retornou ao Brasil no início dos anos 1970 com as modificações corporais que ela chamou de lapidação (Figura 5). Em depoimento a Camarero e Oliveira (2021)CAMARERO, Alberto; OLIVEIRA, Alberto. Divina Valéria. São Paulo: Campus, 2021., ela conta com orgulho que “quando desci do avião, estavam todas me esperando – de homem. E eu maravilhosa, de short e botas longas, como Jane Fonda em ‘Klute’”6 6 Klute (Klute: O Passado Condena) é um filme estadunidense de 1971, dirigido por Alan J. Pakula, com Jane Fonda no papel principal. (Camarero; Oliveira, 2021CAMARERO, Alberto; OLIVEIRA, Alberto. Divina Valéria. São Paulo: Campus, 2021., n. p.). O anterior fazer travesti, restrito aos palcos, cedia espaço ao ser travesti, em que a expressão feminina do gênero se dá em todas as instâncias da vida.

Figura 5
Divina Valéria no início dos anos 1970. Fonte: Camarero e Oliveira (2021)CAMARERO, Alberto; OLIVEIRA, Alberto. Divina Valéria. São Paulo: Campus, 2021..

Mas, entre todas, Rogéria (Figura 6) foi sem dúvida a que mais se celebrizou. Atuando em teatro, cinema e televisão, tornou-se uma referência para o público de diferentes gerações – desde os que a viram no teatro de revista em Les Girls, ainda em 1964, até os que assistiram a Divinas Divas (2016), filme de Leandra Leal (Figura 7), passando por marcantes papéis televisivos, como o de Ninete, na novela Tieta (1989).

Figura 6
Rogéria em imagem da década de 1970. Fonte: Reproduzido de http://ego.globo.com/.

Figura 7
Elenco do filme Divinas Divas (2016): Brigitte de Búzios, Camille K., Divina Valéria, Rogéria, Jane Di Castro, Fujika de Halliday, Eloína e Marquesa. Fonte: Imagem de divulgação do filme.

Na televisão, embora não tenha sido a primeira travesti em cena, posto que coube a Claudia Celeste (Silva Junior, 2017SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes da. Para uma História dos Concursos de Beleza Trans: a criação de memórias e tradição para um certame voltado para travestis e mulheres transexuais. Cadernos Pagu, Campinas, v. 50, set. 2017.), Rogéria certamente foi a mais popular e a de carreira mais longeva, estendendo-se dos anos 1980 a 2017. A popularidade acabou por render-lhe o apelido que a acompanharia até o fim da vida, que ela própria repetia em diversas aparições: a travesti da família brasileira.

Aceita na cultura mainstream, a travesti da família brasileira conseguiu oferecer, por meio da sua figura pública carismática e de sua presença constante em telenovelas e programas televisivos, referências ao grande público, consumidor da cultura de massa, sobre questões ligadas à identidade de gênero – em outras palavras, promoveu mediação sociocultural. Contribuiu para o processo – sem dúvida ainda incompleto – de afirmação social da transgeneridade e da travestilidade, e reflexo disso foi a cobertura jornalística do seu falecimento, em setembro de 2017. “Morre a atriz Rogéria”7 7 Morre a atriz Rogéria aos 74 anos, no Rio de Janeiro foi o título veiculado pelo jornal O Globo em 5 de setembro de 2017, tratamento semelhante ao dado pelos demais veículos de mídia do país. estamparam os principais jornais: quem morria era a atriz, a mulher famosa querida do público, com pouco ou nenhum destaque à sua dissidência de gênero. Significativo sinal de afirmação social, algo difícil de se imaginar poucos anos antes.

O que não quer dizer que a própria Rogéria e as artistas de geração próxima à sua, alçadas à fama pelo show business, não tenham tido suas vidas marcadas pelo estigma e pela marginalização. Ivaná, mesmo em cartaz há anos em produções teatrais e no cinema, foi presa em 1961, como relata Nunes (2015)NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015.. Rogéria relata a Paschoal (2016)PASCHOAL, Marcio. Rogéria: uma mulher e mais um pouco. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016. variadas experiências de intolerância e repressão policial pelas quais passou em diferentes momentos da carreira, apesar da crescente aceitação de sua figura pelo público. Em depoimentos no filme Divinas Divas, estrelas de Les Girls como Divina Valéria, Jane Di Castro e Eloína também relatam as abordagens policiais, as prisões e os espancamentos que sofreram de forma recorrente, mesmo durante seus anos de maior sucesso no teatro.

Parte da repressão veio como resultado da instauração da ditadura civil-militar de 1964, que coincidiu com a entrada em cartaz de Les Girls e o período de maior florescimento de espetáculos de travestis. A ditadura, contudo, teve em um primeiro momento um papel ambíguo com relação às artistas travestis. Como destaca Thiago Soliva (2018), esses espetáculos não eram foco de censura dos governos militares, uma vez que “[...] aparentemente, a preocupação dos órgãos de repressão era com indivíduos identificados como potencialmente perigosos à manutenção do sistema, tais como as diferentes vertentes teóricas e políticas articuladas à esquerda” (Soliva, 2018, p. 24). Ainda de acordo com esse autor, as dissidências sexuais e de gênero passaram a ser vistas pela ditadura como ameaça e entraram mais vigorosamente na agenda repressiva um pouco mais tarde, na década de 1980, quando artistas travestis já começavam a alcançar visibilidade pública em uma tecnologia mais abrangente que os palcos: a televisão – seja apresentando-se em programas de auditório, seja integrando elencos de telenovelas.

Foi, de fato, a partir da virada para os anos 1980 que o estigma e a marginalização de travestis encontraram sua maior força, contando com respaldo da sociedade, haja vista as operações policiais higienistas iniciadas por essa época nos grandes centros urbanos, com o intuito de limpar a presença travesti das ruas. A 98a Audiência Pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, cujo tema foi Ditadura e homossexualidade, em novembro de 2013, comprovou as atrocidades a que homossexuais e travestis foram expostos no período. Embora espaços de sociabilidade tenham proliferado a partir dessa época, dando assim uma falsa impressão de conquista de respeito e harmonia social, as ações cotidianas de repressão e controle a dissidentes sexuais e de gênero aumentavam consistentemente. Isso é bem ilustrado por uma matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 1º de abril de 1980, intitulada Polícia já tem plano conjunto contra travestis. Segundo a reportagem, a proposta das polícias civil e militar paulistanas era:

[...] tirar os (sic) travestis das ruas de bairros estritamente residenciais; reforçar a Delegacia de Vadiagem do DEIC para aplicar o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais; destinar um prédio para recolher somente homossexuais; e abrir uma parte da cidade para fixá-los são alguns pontos do plano elaborado para combater de imediato os (sic) travestis, em São Paulo (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 307COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Tomo 1. Brasília: CNV, 2017. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em: 18 ago. 2021.
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/...
).

Eram as rondas, termo que se popularizou na década de 1980:

Essas ‘rondas’ comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo ‘limpar’ a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais. O método usado pelas forças de segurança era realizar batidas policiais em locais frequentados pelas pessoas LGBT, especialmente as travestis, que eram levadas ‘para averiguação’ às dependências policiais, tendo por fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941, então em vigor (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 307COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Tomo 1. Brasília: CNV, 2017. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em: 18 ago. 2021.
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/...
).

A repressão à presença travesti nas ruas e nos espaços de sociabilidade se refletia também nos meios de comunicação. Programas de televisão – como o Comando da Madrugada, apresentado pelo jornalista Goulart de Andrade – documentaram de forma espetacularizada e sensacionalista algumas dessas operações de limpeza promovidas na cidade, exibindo e endossando em rede nacional as violências e humilhações sofridas pelas pessoas que eram alvo das operações policiais8 8 O programa citado está disponível na íntegra na internet, em https://www.youtube.com/watch?v=8EQ6dtDhGTs. Acesso em: 2 out. 2023. .

O sensacionalismo também se faz presente em inúmeras outras coberturas midiáticas do assunto, como na matéria intitulada Travestilândia: um mundo sem fronteiras em São Paulo, veiculada em outubro de 1979 em uma revista masculina mensal de grande tiragem. A reportagem de oito páginas se destinava a revelar “quem são, como vivem e o que pensam os (sic) travestis” (Araújo, 1979, p. 51ARAÚJO, Celso Arnaldo. Travestilândia: um mundo sem fronteiras em São Paulo. Ele & Ela, São Paulo, ano XI, n. 126, p. 50-57, out. 1979.). O resultado é um retrato fortemente exotificado, em que travestis “que endoidam executivos” (p. 51), travestis “de show” (p. 55), “travestis da zona” (p. 56), “travestis de Paris” (p. 52), e “travestis que se operaram” (p. 53) desfilam como objeto de curiosidade do público leitor. “Com eles pau é pau, queijo é queijo” (p. 53), resume o texto, investindo em uma caracterização homogeneizadora e caricata cuja síntese está no próprio título da matéria: Travestilândia alude a Disneylândia, nome do célebre parque de consumo de entretenimento povoado por personagens voltados a promover a diversão e o consumo do público pagante e o faturamento do negócio. De forma análoga, seja nos espetáculos de teatro, seja nos shows de boate ou na zona, as travestis, artistas ou não, têm aqui em comum o fato de serem vistas como exótico (e/ou erótico) objeto de consumo e entretenimento.

Travestilândia, enfim, sintetiza esse novo padrão de inserção social das travestis artistas, cuja origem podemos situar grosso modo no teatro de revista dos anos 1950-1960 e que teve seu auge nas décadas de 1970 e 1980. Ainda que muitas vezes alçadas à fama e tornadas personas públicas de certa visibilidade, engrenagens que se tornaram do show business, na vida cotidiana seguiram sofrendo preconceitos sociais, marginalização e estigmatização não muito diferentes daqueles que atingiram as representantes do modelo anterior. Também há, por fim, um recorte racial: as artistas travestis alçadas à fama nesse paradigma em geral são, ou aparentam ser, brancas. “As pessoas desviadas negras sofriam uma perseguição muito maior”, assinala Oliveira (2020, p. 179)OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Nem ao Centro, Nem à Margem!: corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Salvador: Devires, 2020..

Traviarcado

A palavra escolhida para nomear esse terceiro e mais recente modelo de inserção de artistas travestis na sociedade faz uso do sufixo grego ἀρχή (arc), que pode ser traduzido como governo, comando. O traviarcado, assim, se caracteriza pela reivindicação de poder e de direitos, pela contestação da cisnormatividade, por um maior protagonismo no debate público e uma presença ativa na luta política.

É difícil, talvez impossível, estabelecer um marco temporal preciso para o surgimento das primeiras manifestações desse novo modelo. Mesmo nas décadas de 1980 e 1970, muitas ativistas e artistas travestis sobreviviam e lutavam por visibilidade a partir dos palcos e das pistas. Exemplos disso estão documentados no trabalho fotográfico de Madalena Schwartz, que retratou diferentes aspectos da vida de homossexuais, transformistas e travestis da cena paulistana da década de 1970 (Felitti, 2021FELITTI, Chico. Dois Olhares Estrangeiros. In: AGUILAR, Gonzalo; TITAN Jr., Samuel (Org.). As Metamorfoses: travestis e transformistas na São Paulo dos anos 70. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2021. P. 63-67.). Outro exemplo talvez mais emblemático, já nos anos 1980, é a multiartista Claudia Wonder (Figura 8), em cuja obra já estão presentes questões de representatividade e direitos, tão caras às artistas travestis da geração atual.

Figura 8
Claudia Wonder em imagem da década de 1980. Fonte: blog O Caralho do Rock (http://www.cdorock.com/).

“Eu sempre quis ser artista, e a Rogéria me serviu de referência desde a infância” (Wonder, 2008, p. 23): assim se refere Claudia Wonder à mais famosa diva travesti que ganhara fama no paradigma anterior. Entretanto, mesmo recebendo de sua antecessora essa declarada influência, Claudia inaugurou uma estética artística contracultural, marcadamente underground, em muitos aspectos oposta ao glamour e à reprodução da feminilidade hegemônica, que caracterizaram Rogéria e outras divas travestis surgidas do teatro de revista.

O espetáculo que celebrizou Claudia Wonder, intitulado O Vômito do Mito, estreou em 1985 na casa noturna Madame Satã, em São Paulo, e é possível ver aí uma sugestiva cadeia de referências: Madame Satã, representante da transcestralidade dá nome ao palco; Rogéria, importante diva cuja fama resulta da travestilândia, é uma influência declarada; e, por fim, na contramão da proposta estética e de entretenimento que marcara esse modelo, o espetáculo faz cruas referências ao estigma social que caía então sobre homossexuais e travestis, agravado com o surgimento da epidemia de AIDS.

Em O Vômito do Mito, cenários e figurinos luxuosos que haviam marcado os shows tradicionais de travestis são abandonados. Na contramão da estética glamourosa valorizada até então, Claudia atuou nua. Ela própria, anos depois, comentou essa transformação: “Eu quis mostrar que o (sic) travesti pode fazer outra coisa, um artista não pode se limitar a um gênero de trabalho” (Wonder, 2008, p. 52). E, sobre o caráter político do espetáculo, acrescentou:

Tinha aquela cena na banheira com groselha, que representava o sangue, numa época em que a Aids aterrorizava todo mundo. Eu ficava completamente nua, matava a cobra e mostrava o pau na banheira de sangue. E jogava esse sangue em todo mundo [referindo-se ao público]. Eu acho que foi isso, a ousadia e o momento certo de fazer a coisa. Era o rock, era o rock (Wonder, 2008, p. 52).

Era justamente ao rock e à contracultura dos anos 1980, e não mais a uma indústria mainstream do entretenimento, que Claudia Wonder se filiava esteticamente. Ela não emulava mais a imagem glamourosa cultivada pelas divas da travestilândia, que em sua arte cedeu espaço a uma estética contracultural comprometida com militância política por direitos e visibilidade LGBT. Além de Cláudia, que fundiu a atividade artística como cantora, compositora, escritora e atriz à de militante, outras travestis que se celebrizaram, ligadas ao bas-fond dos anos 1980, foram Andréa de Mayo, Brenda Lee e Janaína Dutra, entre outras. Nem todas tiveram atuação artística; todas, no entanto, tiveram marcante atuação política.

Andréa de Mayo (1950-2000) tem uma biografia artística menos extensa se comparada a Claudia Wonder, embora tenha se destacado como a Geni n’A ópera do malandro, de Chico Buarque, em montagem de 1979 (Figura 9). Apresentava-se mais frequentemente no palco de sua própria boate, a Prohibidu’s, na região central de São Paulo. É mais conhecida como empresária da noite e cafetina por sua denúncia da violência social (sobretudo policial) contra travestis nas décadas de 1980 e 1990 e por sua luta política por direitos LGBT.

Figura 9
Andrea de Mayo em cena de A ópera do malandro. Fonte: Foto de divulgação.

Em sua maioria, essas travestis militantes e artistas da década de 1980 tiveram suas carreiras e vidas precocemente interrompidas, seja em decorrência da AIDS, seja dos contextos de vida a que a população trans e travesti está sujeita no Brasil. O declínio dessa geração de artistas veio nas décadas de 1990 e 2000, e há quem também o atribua – como fez a própria Claudia Wonder (2008) – à explosão da cultura drag nas boates e casas noturnas LGBT. A concorrência das drag queens teria deslocado dos palcos e do mercado muitas das artistas travestis que se apresentavam em boates e casas noturnas. Ainda assim, a semente do traviarcado estava plantada e seria retomada por artistas contemporâneas inseridas nesse novo paradigma.

É dessa forma que, após aquilo que, em Meneses e Jayo (2018, p. 169)MENESES, Emerson Silva; JAYO, Martin. Presença Travesti e Mediação Sociocultural nos Palcos Brasileiros: uma periodização histórica. Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 158-174, 2018., foi chamado de “interregno drag”, a presença travesti nos palcos brasileiros ressurge no início do século XXI com uma nova geração de artistas, portadora de um novo e fortalecido discurso relacionado às corporalidades trans e ao papel político ou ativista de sua arte. São artistas que assumem papéis políticos dentro e fora de cena, carregando pautas simultaneamente estéticas e políticas. Entendem que a arte dos palcos é uma estratégia tanto de sobrevivência quanto de ataque, necessária “no interior da atmosfera tóxica do regime racista e cis-heterossexista colonial” (Leal, 2021, p. 113LEAL, Abigail Campos. Ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero. São Paulo: Glac Edições, 2021.).

São artistas como Assucena Assucena e Raquel Virgínia (vocalistas do extinto grupo musical paulista As Bahias e a Cozinha Mineira), Ave Terrena e Renata Carvalho (atrizes e dramaturgas), Tyller Antunes, Ambrosia, Verónica Valenttino9 9 Em 2023, Verónica Valenttino recebeu o prêmio Shell de Melhor Atriz pelo espetáculo musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas. É também a primeira vez que uma atriz travesti ganha o troféu Shell, que é considerado um dos principais das artes cênicas no país. , Marina Mathey, June Weimar, Leona Jhovs e Olivia Lopes (atrizes e cantoras, integrantes do elenco do musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas) (Figura 10), Wally Ruy (atriz), Ventura Profana (multiartista e performer), Lyz Parayzo (performer e artista visual), Liniker (cantora e atriz), Julia Katharine (cineasta e atriz), Linn da Quebrada (cantora, atriz, compositora, apresentadora), Jup do Bairro (cantora, compositora, apresentadora), Kiara Felippe (DJ e componente do coletivo artístico Batekoo), Clodd Dias (atriz), Danna Lisboa (atriz, cantora e dançarina), Wescla Vasconcelos (atriz, diretora e poeta), entre muitas outras.

Figura 10
Elenco travesti do espetáculo Brenda Lee e o Palácio da Princesas (Tyller Antunes, Ambrosia, Verónica Valenttino, Marina Mathey, June Weimar [depois substituída por Leona Jhovs] e Olivia Lopes). Fonte: Foto de divulgação.

As imagens públicas e performances artísticas dessa geração de artistas carregam mensagens de combate ao machismo, à cisnormatividade e à transfobia – enfim, um forte discurso político de afirmação de novas subjetividades e corporalidades travestis. Faz parte desse discurso, inclusive, o questionamento da necessidade dos procedimentos biotecnológicos e das corporalidades protéticas por meio das quais, desde a década de 1970, travestis e mulheres trans vinham se normalizando frente à sociedade que delas espera corpos hegemonicamente femininos. É nesse sentido, por exemplo, que Assucena Assucena (Figura 11), vocalista do extinto As Bahias e a Cozinha Mineira, declara em entrevista em 2016 não se interessar em submeterse a procedimentos de transformação corporal, como a hormonização e as próteses de silicone (Ferraz, 2016FERRAZ, Ana. O feminino mora aqui. Carta Capital, São Paulo, nov. 2016. Disponível em: https://ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/14168/o-feminino-mora-aqui. Acesso em: 20 ago. 2021.
https://ceert.org.br/noticias/historia-c...
).

Figura 11
Assucena no dia 2 de outubro nas eleições de 2022. Fonte: Foto postada pela artista em rede social.

Não se trata mais de buscar no palco a imagem hegemônica de mulher em um corpo transformado, mas de defender, inclusive a partir do palco, a possibilidade de identidades trans não aderentes à rigidez do sistema binário, inclusive das aparências. Ao propor o que Preciado (2014, p. 22)PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014. chama de “desconstrução sistemática da naturalização de práticas sexuais e do sistema de gênero”, as artistas travestis desse novo paradigma fazem refletir sobre as imposições das visualidades femininas, assim como as possibilidades de corporalidades. Questionam assim os processos hegemônicos (sociais e artísticos), o que Dodi Leal e Marcelo Denny (2018)LEAL, Dodi; DENNY, Marcelo (Org.). Gênero Expandido: performances e contrassexualidades. São Paulo: Annablume, 2018. chamaram de insurreições artísticas e performances de gênero expandidas. Fazem-no por meio de suas corporalidades dissidentes e desobediências de gênero que reforçam a verdadeira anticolonialidade das e nas artes cênicas, como dito por Dodi Leal e André Rosa (2020)LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2237-266097755. Acesso em: 02 ago. 2022.
http://dx.doi.org/10.1590/2237-266097755...
. Colaboram para que vidas travestis se fortaleçam, entendendo que as cisnormas “[...] não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras, [...] que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele” (Mombaça, 2017, p. 21-22MOMBAÇA, Jota. O Mundo É Meu Trauma. Piseagrama, Belo Horizonte, n. 11, p. 21-22, 2017.).

Ainda haverá certamente muito para estudar sobre essa nova geração de artistas travestis, mesmo porque elas estão em franca expansão. Por ora, encerremos com o didático diálogo reproduzido abaixo, travado entre Jup do Bairro e Linn da Quebrada no documentário Bixa Travesty, de 2018, dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla (Figura 12):

Figura 12
Linn da Quebrada e Jup do Bairro no filme Bixa Travesty (2018). Fonte: Foto de divulgação.

Jup: Eu tive que explicar para ele [referindo-se a um motorista de táxi que insistira em tratá-la no masculino].

Linn: Que nem toda mulher tem…

Jup: Barba, mas é o meu caso!

Linn: Que nem toda mulher tem…

Jup: Chuchu, mas eu tenho!

Linn: Que nem toda mulher tem…

Jup: Cabelo seco, mas eu tenho!

Linn: Mas tem mulher que tem…

Jup: Pinto!

Linn: Olha só, gente!

Jup: Que novidade, pasmem!

Considerações finais

Este artigo se propôs a colocar em perspectiva histórica a relação entre as artes (sobretudo cênicas) e as travestilidades no Brasil. Procurou mostrar como artistas travestis, ao longo do século XX e das primeiras décadas do XXI, contribuíram de diferentes maneiras para educar a sociedade cisgênera por meio de um processo de pedagogia pública ou de mediação sociocultural, rumo a um melhor entendimento social acerca das dissidências de gênero. Ao fazer isso, procuramos fugir a uma periodização convencional, baseada em fases cronologicamente bem delimitadas e colocadas numa linha do tempo. Esse tipo de esquematização, que por sinal já fizemos em trabalho anterior (Meneses e Jayo, 2018MENESES, Emerson Silva; JAYO, Martin. Presença Travesti e Mediação Sociocultural nos Palcos Brasileiros: uma periodização histórica. Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 158-174, 2018.), tem a vantagem de ser didática, mas paga o preço da excessiva simplificação. Assim, o que este trabalho fez foi apontar três paradigmas, ou padrões de inserção, de artistas travestis que, embora tendam a suceder-se no tempo, não seguem uma cronologia rígida, podendo coexistir em diferentes momentos.

Se o maior protagonismo trans que é visível hoje na cena artística tem logrado promover um novo olhar da sociedade sobre as dissidências de gênero, é pelo trabalho acumulado que esse fenômeno se construiu. As artistas atuais, representantes do que aqui chamamos de traviarcado, com suas propostas artísticas e políticas, agem como mediadoras socioculturais na luta pela afirmação das populações trans nos palcos e fora deles, confirmando o compromisso da arte com a mudança da sociedade. Sua existência e seu papel social, por outro lado, não podem ser vistos de forma descolada de um processo em que já tiveram lugar (e por vezes ainda têm) outros modelos de inserção de artistas travestis na sociedade que lhe foram precursores: o da transcestralidade e o da travestilândia.

Vimos como, por meio de suas performances, as artistas do traviarcado têm conseguido produzir mediação sociocultural e contribuir para a afirmação da presença travesti na sociedade cisnormativa, além de constituir-se como fonte epistêmica (Vergueiro, 2018) para compreender complexidades da vida cotidiana e da arte para além de lentes binárias. Mas, além disso, a discussão aqui apresentada também nos permite ver como o próprio traviarcado e seu artivismo são resultado de um processo histórico protagonizado também pelas artistas de outras gerações e/ou paradigmas.

Em suma, se o traviarcado se traduz em potencial de mediação sociocultural a partir do palco, rumo a um melhor entendimento entre uma sociedade cisnormativa e aquelas sujeitas trans e travestis que lutam contra a precariedade das suas vidas, este potencial que hoje as artistas conseguem chamar para si tem, na sua gênese, a contribuição de artistas dos outros dois paradigmas. A mediação sociocultural exercida pelo traviarcado não deve ser interpretada senão como resultado de um processo histórico em que as artistas da transcestralidade e da travestilândia têm um papel e uma importância a serem igualmente reconhecidos.

Notas

  • 1
    Cisnormatividade é o termo que designa a expectativa social por uma correspondência entre o sexo biológico e a identidade de gênero, expectativa essa que se traduz em um sistema de opressão e discriminação sobre indivíduos que não a cumprem.
  • 2
    Esse livro, que em sua primeira edição (1972) se intitulou Memórias de Madame Satã, é às vezes referenciado erroneamente como sendo de autoria de Sylvan Paezzo, escritor a quem Madame Satã, pessoa de baixa escolaridade, ditou o depoimento e delegou a organização do texto. A obra, no entanto, é uma autobiografia. Ao ser reeditada em 2022 pela editora paulistana Noir, tentou-se resolver o problema, ainda que talvez não da forma mais adequada: o título foi alterado para Madame Satã: autobiografia, e a autoria foi desta vez creditada a Madame Satã, porém usando, para tanto, o seu nome civil, masculino.
  • 3
    Madame Satã foi interpretada pelo ator Lázaro Ramos no longa-metragem biográfico Madame Satã, de Karin Aïnouz (2002), filme que teve grande notoriedade. Antes disso, já havia sido retratada em outro filme, menos conhecido: A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos Fontoura, cujo personagem principal é inspirado nela, interpretado pelo ator Milton Gonçalves.
  • 4
    Embora autores como Nunes (2015)NUNES, Diego. Cá e Lá: o intercâmbio cinematográfico entre Brasil e Portugal. São Paulo: Matarazzo, 2015. e Lion (2016)LION, Antonio Ricardo Calori de. É Fogo na Jaca: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 23., 2016, Assis. Anais [...]. Assis: ANPUH-SP, 2016. afirmem que Ivaná era portuguesa, seu local de nascimento tem sido, mais recentemente, objeto de controvérsia. Em artigo publicado em setembro de 2021, Thürler e Mathieu (2021, p. 20) apresentam evidência documental de que ela teria, na verdade, nascido em Mont-St-Aignan, na França. De qualquer forma, seu nome civil, Yvan Monteiro Damião, indica claramente origem portuguesa.
  • 5
    Texto de anúncio publicitário do espetáculo Não Aperta que eu Grito! (Folha de São Paulo, 29 ago. 1963).
  • 6
    Klute (Klute: O Passado Condena) é um filme estadunidense de 1971, dirigido por Alan J. Pakula, com Jane Fonda no papel principal.
  • 7
    Morre a atriz Rogéria aos 74 anos, no Rio de Janeiro foi o título veiculado pelo jornal O Globo em 5 de setembro de 2017, tratamento semelhante ao dado pelos demais veículos de mídia do país.
  • 8
    O programa citado está disponível na íntegra na internet, em https://www.youtube.com/watch?v=8EQ6dtDhGTs. Acesso em: 2 out. 2023.
  • 9
    Em 2023, Verónica Valenttino recebeu o prêmio Shell de Melhor Atriz pelo espetáculo musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas. É também a primeira vez que uma atriz travesti ganha o troféu Shell, que é considerado um dos principais das artes cênicas no país.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

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Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    04 Out 2023
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