Resumo:
Este artigo explora a dança por intermédio da lente do gênero, utilizando o estudo de caso de Mimosa / Twenty Looks or Paris is Burning, uma performance coletiva concebida por quatro dos mais importantes coreógrafos contemporâneos: Trajal Harrell, Cecilia Bengolea, François Chaignaud e Marlene Monteiro Freitas. Este texto interroga diferentes elementos destacados por essa performance, como a forma pela qual a herança da dança pode dialogar com as perspectivas contemporâneas referentes a questões de classe, gênero e raça, para nos ajudar a compreender melhor a representação da identidade subcultural na dança.
Palavras-chave:
Comunidade; Zona de Contato; Voguing; Gênero; Dança pós-moderna
Abstract:
This article explores dance through the lens of gender, using the case study of Mimosa/Twenty Looks or Paris is Burning, a collective performance conceived by four of the most important contemporary choreographers: Trajal Harrell, Cecilia Bengolea, François Chaignaud, and Marlene Monteiro Freitas. This text interrogates different elements highlighted by this performance, such as how dance heritage may dialogue with contemporary perspectives concerning class, gender, and race issues, to help us better understand the representation of subcultural identity in dance.
Résumé:
Cet article vise à explorer la danse à travers le prisme du genre, en utilisant l'étude de cas de Mimosa/Twenty Looks or Paris is Burning, une performance collective conçue par quatre des plus importants chorégraphes contemporains : Trajal Harrell, Cecilia Bengolea, François Chaignaud et Marlene Monteiro Freitas. Ce texte interrogera différents éléments mis en évidence par cette performance, tels que la manière dont l'héritage de la danse peut dialoguer avec les perspectives contemporaines concernant les questions de classe, de genre et de race, nous aidant ainsi à mieux comprendre la représentation de l'identité sous-culturelle dans la danse.
Mots-clés:
Communauté; Contact Zone; Voguing; Genre; Postmodern Dance
Na última década, teóricos queer e transfeministas empenharam um significativo esforço para delinear uma genealogia queer e trans da performance em um contexto global. O teatro e a dança constituem espaços privilegiados onde a representação de gênero e as múltiplas corporeidades podem ser exploradas. Usando o estudo de caso de Mimosa / Twenty Looks or Paris is Burning, uma performance coletiva concebida em 2009 por quatro proeminentes coreógrafos contemporâneos ocidentais - Trajal Harrell, Cecilia Bengolea, François Chaignaud e Marlene Monteiro Freitas -, este artigo explora como as reflexões contemporâneas sobre a representação de gênero podem revelar sua herança. Destaca como as estratégias de dança problematizaram noções de gênero representando sujeitos e corporeidades não normativos e como essa pesquisa artística precedeu alguns dos tópicos centrais interrogados pela teoria queer, teoria transfeminista e perspectivas interseccionais.
Ao analisar as questões levantadas pelos quatro coreógrafos de Mimosa em seu diálogo ficcional com o patrimônio histórico e as práticas de dança da dança pós-moderna e do Voguing, este ensaio se envolve com a peça principalmente por meio de uma abordagem metodológica estética. Com base no Voguing e na dança pós-moderna, as duas formas centrais de dança combinadas e exploradas em Mimosa, este artigo reflete sobre a recepção da noção de Autenticidade e considera a capacidade das corporeidades não normativas de problematizar a identidade e a representação de gênero. A autenticidade será considerada tanto como ferramenta estética quanto como uma noção que nos ajuda a entender a identidade em uma perspectiva interseccional. Esses temas são examinados dentro do contexto de uma perspectiva queer e trans, valendo-se particularmente do pensamento de Judith Butler e Paul B. Preciado.
Repensando a Dança na perspectiva dos Corpos Generificados Contemporâneos
Em 2009, The Kitchen, um teatro de vanguarda em Nova York, convidou o coreógrafo Trajal Harrell para criar Mimosa, projeto que acabou resultando em um trabalho em três partes: M, S e XS. Cada parte apresentou versões diferentes do mesmo espetáculo com vários artistas. Mimosa (M), que estreou em 2011, é a maior versão da trilogia e foi criada em colaboração com outros três coreógrafos proeminentes: a dupla francesa, Cecilia Bengolea e François Chaignaud, e a lisboeta Marlene Monteiro Freitas, oriunda de Cabo Verde.
O título completo da performance, (M)imosa/Twenty Looks or Paris Is Burning at the Judson Church (M), menciona diretamente as duas principais referências que os coreógrafes procuraram enfatizar: o documentário de Jennie Livingston Paris Is Burning e a Judson Church, um local seminal na dança pós-moderna. O documentário Paris Is Burning narra a vida de várias figuras da comunidade drag queen latine de Nova York, o berço do Voguing. Essa referência situa a performance no contexto cultural LGBTQIA+, destacando tanto sua herança como dança quanto o impacto que o filme teve no desenvolvimento da teoria de gênero. Particularmente uma das protagonistas do filme, Venus Xtravaganza, serviu como estudo de caso para as teorias de gênero e performance subversiva de Judith Butler, conforme foi discutido nas obras seminais de Butler, Gender Trouble (Butler, 1999) e Bodies That Matter (Butler, 1993). Assim, Mimosa não apenas presta homenagem ao significado histórico e cultural do Voguing, mas também se envolve com o discurso teórico sobre gênero que o Voguing ajudou a moldar.
Além disso, de acordo com Harrell, Mimosa se envolveu com três perguntas iniciais:
I. O que aconteceria se o cenário do Voguing no Harlem viesse para o centro da cidade para dançar ao lado dos pioneiros da dança pós-moderna?
II. O que poderíamos aprender ao imaginar essa ficção histórica de um encontro entre os dançarinos de vanguarda dessas duas comunidades diferentes, acidentalmente aprimorando suas práticas lado a lado no mesmo momento histórico na cidade de Nova York?
III. Qual poderia ser o papel da ficção histórica em uma cidade que deu origem a uma infinidade de estilos musicais e de dança nos últimos cinquenta anos, incluindo Krumping, House, Grime Dance, Voguing e dança pós-moderna?
Em seus imaginativos diálogos decorrentes dessas perguntas norteadoras, os artistas se voltam para o passado e exploram lacunas temporais e desvios narrativos para criar uma relação significativa e transformadora com o presente, mobilizando uma perspectiva imbuída de teoria e perspectivas queer.
Os coreógrafos de Mimosa parecem adotar o conceito de “assincronias queer” de Elisabeth Freeman, que oportuniza repensar momentos historicamente significativos por meio do que Freeman define como arrasto temporal - a atração visceral do passado sobre o presente supostamente revolucionário e o uso consciente do corpo como um canal para a compreensão do passado (Freeman, 2010). Esses conceitos incentivam o público a reavaliar a política queer e o agenciamento dos corpos dentro de suas histórias e experiências, destacando assim o valor da herança nas reflexões artísticas e sociais contemporâneas.
Repensando a perspectiva revolucionária da dança pós-moderna e do Voguing
Os coreógrafos observam que a criação de Mimosa foi precedida por uma extensa exploração da história e práticas do Voguing e da dança pós-moderna, especialmente em termos de seu contexto estético e social. Embora ambos sejam considerados movimentos norte-americanos urbanos e tenham se desenvolvido simultaneamente em Nova York na década de 1960, cada um deles articula aspectos únicos de suas respectivas paisagens culturais, artísticas e sociais.
A dança pós-moderna é rotulada como uma forma de dança de concerto (Banes, 2011; Thompson, 2021; Mazzaglia, 2010) que se desenvolveu dentro da icônica Judson Memorial Church1 em Greenwich Village (Nova York). Particularmente o Judson Dance Theater serviu como um ponto de encontro fundamental para artistas de várias disciplinas. Sally Banes (2011, p. 208) afirma que a descrição mais precisa do Judson Dance Theater é que era um coletivo vagamente organizado de coreógrafos, poetas e músicos que se encontravam semanalmente na Judson Memorial Church na Washington Square de 1962 a 1965. O grupo produziu mais de duzentas danças em vinte concertos, compreendendo principalmente apresentações de uma noite. Seus representantes englobavam o impulso rumo à libertação física e política que capturou o imaginário americano na década de 19602 (Banes, 2011, p. 209). Thompson lembra que a noção de dança pós-moderna procurou esvaziar a visão excessivamente interesseira da arte que os artistas que trabalhavam na Judson Memorial Church percebiam na dança moderna. Assim, a dança pós-moderna foi mobilizada por um sentimento de dança antimoderna mais do que pela busca e condição de um novo estilo de dança (Thompson, 2021).
O grupo Judson rejeitou as restrições de composição e apresentação da dança moderna, enquanto defendia o uso não convencional da música e do espaço, pois muitas vezes preferiam se apresentar fora dos locais de teatro tradicionais, como em ruas e galerias de arte. Em termos de movimentos corporais e composição de cenas, valorizavam o movimento não como um dispositivo de contar histórias, mas por si só. Sua pesquisa coreográfica se baseava principalmente na improvisação e visava incorporar práticas cotidianas à cultura. Portanto, ler um poema, comer uma maçã ou se despir em público poderiam ser vistos como atos legítimos de dança. Aqui, os atos ordinários da vida cotidiana reivindicavam a mesma legitimidade estética atribuída às técnicas virtuosas da dança. Essas práticas foram renomeadas como dança pós-moderna por suas conexões com o movimento artístico pós-moderno. Sally Banes relembra como a primeira performance realizada por alunos de Merce Cunningham se tornou um modelo para um sistema de produção barato e cooperativo para novas obras da dança pós-moderna (Banes, 2011). A dança pós-moderna integrava uma forte experimentação ideológica, conforme é identificado em No Manifesto3, de Yvonne Rainer. Em uma lista concisa, mas assertiva, Rainer assinala os princípios estéticos e composicionais da dança pós-moderna, rejeitando elementos como virtuosismo, transformação, imaginário trash, envolvimento de performer ou espectador, estilo, exagero e excentricidade. Essencialmente, a dança pós-moderna buscava remover a teatralização em favor da Autenticidade por meio de uma hibridização de formas artísticas e da democratização da dança, incentivando a ampla participação. A teatralização é descrita por Josette Féral como uma forma de atenuar a Autenticidade para torná-la estética ou erótica (Féral, 2007).
Enquanto a dança pós-moderna surgiu no mundo estabelecido da dança profissional branca como produto interno e reação a uma dança moderna, o Voguing surgiu na comunidade social negre e latine marginalizade do Harlem. Essas condições divergentes influenciaram na disseminação e na visibilidade de cada forma de dança. O Voguing ganhou significativa popularidade na década de 1990, em grande parte devido à canção Vogue da cantora pop Madonna, que elevou o Voguing ao reconhecimento global. O Voguing pode ser definido como uma prática de dança baseada na comunidade que é altamente codificada e com questões de identidade e subjetividade em seu núcleo composicional. As comunidades Voguing ou house ball foram definidas por Bailey (2013) como redes de mulheres, homens e pessoas transgênero, principalmente pessoas negres e latines, que podem ser lésbicas, gays, bissexuais, heterossexuais ou queer. O Voguing pode ser observado ao confrontar questões de gênero, sexualidade e luta de classes a partir de uma perspectiva interseccional. Davis, citado por Smythe, argumenta que o Voguing é um mundo “construído sobre as costas das mulheres trans afro-americanas”, no qual historicamente o cenário ballroom proporcionou refúgio para pessoas trans e pessoas negres, particularmente aquelas que passam por dificuldades como falta de moradia ou rejeição por suas famílias biológicas devido a suas identidades LGBTQ+ (Smythe, 2019). Muitas vezes os ballrooms serviram como abrigo ou família alternativa e se organizaram em torno das Houses, renomeando-se com sobrenomes, comumente inspirados em marcas de moda. Como parte do processo de pertencimento à comunidade, a identidade de cada novo membro é reconfigurada, pois ele/ela/ile precisa aceitar a prática simbólica para assumir um novo papel como mãe, irmã ou irmão e, por fim, um novo nome. Nesta libertação ou emancipação do passado, cada membro da comunidade pode encarnar o caráter que aspira ser.
Chatzipapatheodorlidis (2017) observa que as Voguing Houses promovem um senso de pertencimento entre os membros, particularmente por meio do processo competitivo de festas nas quais competidores representam e honram a House a que pertencem. Em geral, a dança Voguing é baseada em competições entre grupos em que os grupos/famílias se enfrentam em um desafio a partir do qual deve emergir o melhor4. Originalmente, essas batalhas eram baseadas em categorias concebidas como fixas, como a categoria Vogue, que evoluiu a partir de uma mulher do Queens. A categoria está relacionada ao imaginário gay das divas da década de 1950, que faz parte da origem do Voguing. Animadas pela admiração pela elite americana - especificamente, mulheres brancas ricas - drag queens negres começaram a exagerar os movimentos das mãos e a imitar as poses de modelos e indivíduos de classe alta. Encenavam suas performances em clubes, praticando na frente do espelho para aperfeiçoar sua transformação com maquiagem e vestidos com o objetivo de encarnar a imagem idealizada da riqueza americana e da feminilidade da moda associada às normas da classe média e alta heterossexual branca. Para as pessoas que dançam Vogue, o objetivo era passar por sujeito valorizado e narrar visualmente sua história.
Kevin Omni Burrus, membro histórico da House of Omni, reflete que o Voguing se tornou um refúgio considerável para as drag queens, servindo como meio para canalizar e aliviar a dor e a opressão experimentadas na vida real. Este conceito se alinha com a definição de Johnson de “performance como estratégia de sobrevivência” (Johnson, 2005, p. 140). No Voguing, a categoria Autenticidade serve tanto como categoria performativa quanto noção conceitual. Participantes das categorias Autenticidade pretendem ser percebidos como alguém que não são, esforçando-se para alcançar uma Autenticidade socialmente formada por meio de suas ações e apresentação. Ao imitar normas hegemônicas de feminilidade ou masculinidade, as pessoas que dançam Vogue produzem uma subjetividade idealizada e valorizada, recriando e parodiando o mundo do qual se sentem excluídas. O ballroom e a prática de Autenticidade oferecem aos indivíduos um espaço para realizar suas identidades de gênero valorizadas em um ambiente de apoio. As categorias de Autenticidade servem, assim, como ferramentas para que cada participante ensaie e represente várias identidades, que podem ser consideradas para ajudar a navegar e se preparar para a vida fora do cenário ballroom.
É importante observar que a comunidade ballroom desenvolveu seu próprio sistema de identidade, que vai além da estrutura androcêntrica-heteronormativa branca dominante. Conforme foi observado por Hoarau R. e Bailey, este sistema inclui uma classificação por sexo/gênero em seis partes que se baseia em categorias iniciais: Mulheres, Homens, Butch Queens, Butch Queens in Drag, Butches e Femme Queens. Esta classificação expandida reflete uma compreensão mais matizada de gênero e identidade na cultura ballroom, desafiando as noções binárias tradicionais5.
Embora a identidade fosse central para a dança Voguing, a abordagem do Judson Dance Theater à identidade era mais crítica e analítica, concentrando-se em como as identidades dos artistas influenciavam suas expressões e resultados criativos. É importante observar, no entanto, que a questão da identidade e a interrogação das categorias de gênero em relação à cultura dominante não foram explicitamente abordados pelos dançarines e coreógrafes do Judson na época. Levaria várias décadas até que Yvonne Rainer, por exemplo, se definisse abertamente como lésbica política (Rights…, 2022). Para os dançarines do Judson, o gênero não era uma preocupação estética ou ideológica primordial. Conforme Bennahum, Perron e Robertson (2018) argumentam, o grupo Judson desafiava o olhar masculino na dança ao utilizar táticas contraintuitivas. Uma dessas táticas, usada por coreógrafes como Anna Halprin, Simone Forti e Yvonne Rainer, era a apresentação do corpo nu em termos dessexualizados, juntamente com uma crítica feminista do virtuosismo. Essa abordagem era um desvio deliberado das práticas de dança modernista e das ideologias do passado, inclusive a noção articulada por George Balanchine de que “balé é mulher” (Bennhaum; Perron; Robertson, 2018, p. 22). Paradoxalmente, o intenso foco na coisisse do corpo minava as normas tradicionais de gênero. A partir dessas duas práticas distintas, os coreógrafes de Mimosa expandem características de ambas, como identidade, coreografia composicional e elementos estéticos. Incorporam aspectos de exploração da identidade e estratégias de composição que refletem tanto a ênfase do Voguing na identidade pessoal e fluida quanto a abordagem mais academicamente crítica de Judson às normas tradicionais de gênero.
Mimosa, entre Autenticidade e Encarnação
A complexidade de mesclar aspectos divergentes do Voguing e da dança pós-moderna está intrinsecamente encarnada nas escolhas estéticas e composicionais de Mimosa. A peça é construída basicamente em torno de dois eixos principais: componentes estéticos e narrativa pessoal. Podemos entender narrativa pessoal como a construção de um sujeito por meio da linguagem. A estrutura da performance continua notavelmente simples e linear, inspirada no estilo de passarela do Voguing, em que cada dançarine atua principalmente sozinhe no palco. Em contrapartida, a cenografia evoca a dança pós-moderna, caracterizada por sua decoração minimalista - composta por apenas quatro lâmpadas que mantêm o palco em semiescuridão. Esse diálogo fictício entre o minimalismo pós-moderno e o exagero e a estética paródica do Voguing também se reflete na personificação dos personagens. Por exemplo, Harrell adota um estilo de indumentária minimalista, enquanto François Chaignaud e Marlene Monteiro Freitas se envolvem com uma estética de exagero associada a práticas de drag queen e drag king. Em geral, os coreógrafes visam desestabilizar a percepção de identidade e gênero do público, buscando as contínuas transformações estéticas de cada personagem. Essa abordagem evidencia a multiplicidade e a fluidez da corporeidade e o constante deslocamento de corpos generificados, com frequentes referências a sujeitos populares e icônicos. Embora a estrutura replique a passarela do Voguing, não possui o elemento competitivo típico do Voguing, favorecendo, em vez disso, um senso de copresença e comunidade. Isso é enfatizado pela presença constante dos performers no palco; mesmo quando não está atuando ativamente, François Chaignaud permanece na primeira fila, mesclando perfeitamente o espaço do teatro com o guarda-roupa situado diretamente no palco. Marlene Monteiro Freitas é a primeira a se apresentar, promovendo imediatamente a imersão do público na atmosfera de mescla de gêneros proposta pela performance. Usando calças pretas, botas Doc Martens e cabelos ondulados presos, oferece seu busto ao olhar do público em um palco em meia penumbra6. O palco se torna um espaço para experimentar movimentos, impulsos e ações fragmentadas à medida em que explora vários estilos e ritmos de caminhada, imitando os passos masculinos e femininos. A música acentua o clima, evocando a atmosfera de caminhar por uma rua de Nova York. A cena culmina em um crescendo de ritmo e intensidade, com Marlene posicionada em frente a um microfone. Em um tom sensual, diz suavemente: “Olá a todes, agradeço por terem vindo esta noite. Meu nome é Mimosa Ferrara, e essas malditas calças estão sempre caindo” (O público ri). “Gostaria de lhes dar as boas-vindas esta noite. Merci.” Logo depois dessa cena, a identidade de Mimosa é assumida por Trajal Harrell, que continua usando camisa e calças pretas. Apresenta-se: “Bem-vindes. Boa noite. Meu nome é Mimosa Ferrara”, desestabilizando intencionalmente a identificação do público com o sujeito e sua identificação étnica e de gênero. Harrell toca em estilo de karaokê a música da banda britânica Starsailor, Alcoholic. Em seguida, o coreógrafo francês François Chaignaud inverte a cena ao adentrar pela galeria. Renomeia-se Mimosa Ferrara mais uma vez, mas desta vez Mimosa se assemelha a uma diva dos anos 1950, enfeitada com um casaco de pele e um vestido longo brilhante. Com uma voz brilhante e feminina de falsete no estilo opereta, canta em inglês: “You can fuck the Russians and the English too. Who can fuck the Germans? For the Queens and the Kings. You should fuck the ugly, to be kind and polite”. De uma maneira irônica, afeminada e exagerada, ele conclui declarando: “Você deve foder as regras... mas antes disso, deve me foder”. Os espectadores percebem que Mimosa passou a representar uma identidade fluida e um corpo multifacetado no qual os códigos sexuais de reconhecimento são persistentemente borrados. A aparência de Chaignaud mescla personagens drag queen e de opereta, brincando de maneira provocante e irônica com estereótipos femininos de diva e a expectativa social de conduta e linguagem adequadas.
Outra corporeidade é revelada na cena seguinte. Cecilia Bengolea divide o palco com Marlene Monteiro Freitas. Freitas senta-se no chão, enquanto Cecilia está escondida sob uma figura indistinta deitada no chão, completamente envolta em um terno de látex de cor branca e nude. Saltos vermelhos e um chapéu cinza de abas largas completam esta figura indefinida e semelhante a um objeto, torcida em uma posição complicada. A figura de Bengolea está inanimada no chão enquanto Marlene Monteiro Freitas imita uma pianista, sentada no chão de costas para o público. A cena evoca a imagem de um artista magistral criando uma nova obra ou mesmo trazendo à tona uma nova criatura, que permanece de gênero indefinido nesse contexto. Assim que Monteiro sai do palco, Bengolea ganha os holofotes. Apertada no traje de látex justo, Bengolea se move lentamente como uma figura semelhante a uma marionete, um ser inanimado, e gradativamente dá vida a esse sujeito ambíguo. Movimenta-se como uma aranha ao rastejar e se mover pelo palco, se esforçando para levantar enquanto mantém o equilíbrio em seus saltos altos. Na continuidade da cena, o terno de látex acentua os contornos de seu corpo esguio, revelando a forma de um pênis. Esta criatura recém-nascida se aproxima do microfone e abre o traje de látex, expondo um seio feminino. Bengolea explica em espanhol, sua língua materna, o que Mimosa significa: “alguém que adora carícias”. Logo Chaignaud se junta a Bengolea no palco em uma cena de dueto. Ele se posiciona no fundo do palco, vestido apenas de calcinha e segurando dois seios falsos, mas extremamente realistas, como extensões de seu corpo. Os dois corpos se refletem como um espelho. O corpo esguio e andrógino de Bengolea exibe um seio e um pênis protético. Ela brinca com a ambiguidade da aparência e da visão, desafiando os papéis dominantes de sexo e gênero que associam a masculinidade aos homens e a feminilidade às mulheres. François Chaignaud opera dentro do mesmo quadro, apresentando um corpo feminilizado com próteses mamárias.
Esta cena de dueto também lembra uma performance pós-moderna de Yvonne Rainer. Rainer desenvolveu um dueto com Steve Paxton no qual, nus, espelhavam gestos um do outro para propor novas possibilidades para o corpo não normativamente generificado (Bennhaum; Perron; Robertson, 2018). É evidente que ambos os coreógrafos brincam com estereótipos de feminilidade e masculinidade, borrando suas fronteiras frágeis e ilusórias, ao mesmo tempo em que renegociam a visão naturalista delineada por Gayle Rubin, em que sexo e gênero são considerados pela cultura dominante como naturalmente estabelecidos. Uma visão naturalista que tem justificado historicamente a condição excludente e hierárquica imposta às mulheres. Essa relação foi criticada por teóricos pós-estruturalistas e queer que afirmaram que, embora o sexo seja biológico, o gênero é culturalmente construído. Pode ser considerado que a medicina, como instituição ou dispositivo foucaultiano7, desempenha um papel fundamental na construção do sexo e do gênero. Conforme observa Paul B. Preciado (2008), a medicina tem papel de destaque tanto na definição de normas de gênero quanto na produção do processo de normalização a partir de categorias binárias de sexo. A ideia de um binário de sexos também foi desmontada por biólogos como Anne Fausto Sterling (2013), que afirmam que coexistem uma infinidade de gêneros e sexos. Os coreógrafos de Mimosa certamente podem ser vistos assumindo esse continuum de gênero.
Os quatro coreógrafes de Mimosa exploram o continuum de gênero e as múltiplas possibilidades existentes entre sexo e gênero para desafiar conceitos de identificação de gênero. Estabelecem uma dinâmica de transformação contínua nas identidades e no corpo de Mimosa, confrontando persistentemente as percepções individuais de feminilidade e masculinidade do público e suas fronteiras. Essa fluidez e antifixidez celebram a herança da comunidade Voguing que surgiu antes mesmo do desenvolvimento formal dos estudos queer. Nessa percepção de gênero, os coreógrafes parecem se alinhar com a noção de que compreender gênero requer desconstruí-lo (Butler, 2004). Visam revelar como as subjetividades são construídas e quais normas governam nosso nomear e ser, especialmente em relação às normas de beleza estética que regulam o que é considerado aceitável para mulheres e homens. As observações de Guillaume Marche sobre movimentos políticos queer podem ser consideradas importantes aqui. Marche observa que diversas expressões de gênero dentro de comunidades queer - como homens gay masculinos, lésbicas femininas e outras formas de expressão sexual e de gênero - foram simbolicamente apagadas para construir uma imagem social unificada de uma comunidade queer mais homogênea, especialmente na década de 1990 (Marche, 2017). Esse processo de normalização da comunidade queer, referido por alguns estudiosos como homonormatividade, contrasta com as categorias ballroom acima mencionadas e com a herança do Voguing. Jasbir Puar nos alerta sobre como as configurações de sexualidade, raça, gênero, nação, classe e etnia estão se realinhando em relação às forças contemporâneas de securitização, contraterrorismo e nacionalismo. De acordo com o argumento de Puar, as ideias heteronormativas há muito dominantes nos EUA agora são acompanhadas por ideologias homonormativas que replicam ideais raciais, de classe, de gênero e nacionais estreitos semelhantes (Puar, 2007).
No entanto, um sujeito não é construído apenas a partir de normas estéticas, pois Butler nos lembra de que nos tornamos sujeitos através do processo de interpelação. Um sujeito, em vez de ser identificado estritamente com um indivíduo, deve ser designado como uma categoria linguística, ocupante de um espaço, uma estrutura em formação. Os indivíduos passam a ocupar o lugar do sujeito (o sujeito emerge simultaneamente como um lugar), e desfrutam de inteligibilidade apenas na medida em que são, por assim dizer, estabelecidos pela primeira vez na linguagem. O sujeito é uma ocasião linguística para um indivíduo alcançar e reproduzir a inteligibilidade, condição linguística de sua existência e agência (Butler, 1997, p. 10-11). Esse processo de interpelação é revelado na segunda parte de Mimosa, quando a narrativa pessoal e a autoficção dos coreógrafes são integradas à peça. Chaignaud narra que, aos 19 anos, começou a dançar como travesti em um cabaré francês (em drag balls), onde conheceu um homem de um grupo musical e se apaixonou. Eles se mudaram para Portugal juntos. Lá, ele continuou a se apresentar como drag queen com seios falsos gigantescos, lembra. Uma noite, uma famosa drag queen se aproximou dele e o chamou de Mimosa. Descobriu que Mimosa não se referia à flor ou a alguém que gosta de ser acariciado, mas sim ao nome de uma marca de produtos lácteos portugueses. Essa revelação foi tingida de ironia, pois poderia ser interpretada como um insulto.
No final, Chaignaud (2006) reproduz The Dying Swan, um ato que lembra sua própria tradição e criação. Em uma entrevista, ele lembra como ter aprendido a dançar em uma escola de balé clássico o levou a entender intimamente os modelos fixos de normas de gênero impostos dentro da academia de balé. Ele questiona a transmissão implícita de um corpo predeterminado e uniforme, destacando o impacto das normas de gênero nas corporeidades de dançarines e oferecendo uma perspectiva crítica que reflete uma resistência mais ampla às normas restritivas dentro do mundo da dança, contribuindo para o discurso contínuo sobre diversidade, inclusão e redefinição dos padrões corporais no âmbito da dança. Enquanto isso, Harrell reflete sobre como sua jornada como artista afro-americano tem sido marcada por períodos de estranhamento e reconexão com a dança. Ele conta como seus anos de faculdade o levaram a abandonar a dança, apenas para voltar a ela por acaso durante uma período com bolsa de estudos na Croácia. À medida que a performance se desenrola, histórias pessoais e individuais de cada performer são compartilhadas com o público, obscurecendo ainda mais as linhas entre Autenticidade e ficção, desafiando as percepções do público. À medida que a cena final se aproxima, Monteiro volta ao palco, agora adornade com uma peruca, um vestido roxo, maquiagem pesada com lábios vermelhos e rímel. Mais uma vez brinca com a identidade e a definição de Mimosa. Monteiro explica que Mimosa também é uma cor e destaca seus vários significados em diferentes idiomas; pode significar amarelo, enquanto em seu país de origem, Cabo Verde, significa roxo. Assim, o nome Mimosa torna-se uma ferramenta linguística estratégica, englobando seus significados, identidades, cores e desejos polissêmicos, conforme transmitidos pelos performers. Na cena final, todos os coreógrafes sobem ao palco, alternando-se no karaokê, na dublagem labial e na imitação de músicas populares. Cecilia Bengolea interpreta uma música de Kate Bush, enquanto François Chaignaud, vestido como uma diva em um casaco de pele, canta This Is My Life, de Shirley Bassey. Marlene Monteiro, vestide como drag king com peito nu, barba falsa e cabelo estilizado para imitar ícones masculinos, combina gestos que lembram Prince e Michael Jackson. Enquanto dubla a música de Prince, seus gestos, o moon walking e a luva que usa em uma mão evocam Michael Jackson. Ironia e autoescárnio são características proeminentes dessa sequência final e desses três performers. Por outro lado, Trajal Harrell é o últime a se apresentar, fazendo uma interpretação emocionante de (Out Here) On My Own, de Nikka Costa. As letras deste sucesso dos anos 1980 criam um efeito dialógico com a performance, afirmando: "Sometimes I wonder where I've been, Who I am, do I fit in? Make believe it’s hard alone; Out here on my own; We’re always proving who we are, And always reaching for that rising star, To guide me far, and shine me home, Out here on my own”. [“Às vezes eu me pergunto onde estive, quem sou, eu me encaixo? Faça de conta que é difícil sozinho; Aqui fora por conta própria; Estamos sempre provando quem somos, E sempre alcançando aquela estrela em ascensão, Para me guiar para longe, e me fazer brilhar para casa, Aqui fora por minha própria conta”.].
Gênero, Autenticidade e Práticas Queer
Ao criar um diálogo fictício entre duas tradições de dança, os coreógrafes interrogam o corpo generificado e a representação das identidades minoritárias, juntamente com suas implicações sociais e históricas. Em sintonia com os teóricos queer e trans, os coreógrafes reconhecem o papel fundamental que as culturas subalternas têm desempenhado no questionamento das normas de gênero e suas contribuições para a estética da dança contemporânea e as discussões sociais e políticas em andamento. Destacam as histórias de diversas identidades sexuais e subjetividades marginalizadas pela sociedade, particularmente no mundo do teatro e da performance, por não se conformarem às normas sociais que regulam a sexualidade ou a identidade de gênero, tanto durante a década de 1960 nos EUA quanto depois. Em outras palavras, Mimosa chama a atenção para uma história invisibilizada e examina criticamente determinadas práticas e noções estéticas.
Conforme observa Bailey (2007), o estudo da expansão dos sistemas de gênero perseguidos pelo Voguing e pelos drag balls permanece pouco explorado. Mimosa celebra o Voguing e a dança pós-moderna por sua inovação nas formas de dança, tanto em termos de práticas estéticas quanto de problematização das identidades de gênero. Consequentemente, Mimosa pode ser definida como uma performance queer, engajando-se com as múltiplas leituras que esse termo implica em relação à dança (Croft, 2017; Farfan, 2017). Refiro-me à noção proposta por Hélène Beauchamp (2015, p. 122), que sugere que a estética queer se engaja na exploração de “estados dissonantes do corpo e do rosto, resultando em uma indeterminação do ser e, sobretudo, em algo dinâmico, sempre em transformação”. Essa definição queer é ainda reforçada por Chaignaud, que falou em imaginar Mimosa como um manifesto para corpos que foram sonhados, particularmente aqueles marginalizados ou negligenciados pela dança contemporânea.
Além disso, as referências da performance a Paris is Burning e à influente teoria de gênero de Judith Butler a situam em diálogo com uma estrutura estética queer e sua contrapartida acadêmica crítica. O gênero não é mais considerado como uma essência psicológica inerente produzida por contextos médicos e psiquiátricos, mas sim como uma prática performativa discursiva e corpórea por meio da qual os indivíduos adquirem inteligibilidade e reconhecimento social. Pode ser considerado que a teoria de Butler transformou o gênero em uma ferramenta inclusiva para compreender o processo de encarnação, como os dançarinos em Mimosa também expressam. Venus Extravaganza, uma drag queen da comunidade latine e uma figura analisada em Gender Trouble, de Butler exemplifica essa mudança. No entanto, essa análise enfrentou críticas de teóricos trans por interpretar mal as subjetividades de Venus, muitas vezes identificando-a como travesti8 e não como transgênero, o que prejudica seu status social e etnia. Essa crítica destaca uma falha em analisar o assunto a partir de uma perspectiva interseccional, conforme foi teorizado por Kimberley Crenshaw (Crenshaw, 1989).
Ademais, Venus, como drag queen, mobiliza uma figura historicamente percebida como um continuum entre homossexualidade masculina, drag e identidades transexuais ou transgênero. Essa figura atraiu significativa atenção teórica em estudos queer, estudos transgêneros e transfeminismo. Por outro lado, o influente trabalho de Butler nos campos performativo e teatral posiciona as drag queens - e, em menor grau, os drag kings - como figuras simbólicas que representam a fluidez de gênero e a multiplicidade de subjetividades que existem além de uma sociedade dominante binária, heteronormativa, androcêntrica e branca. A performance Mimosa se baseia extensivamente na estética drag queen, notadamente por Chaignaud e da cena de encerramento com Trajal Harrell. No final da apresentação, Harrell canta Nikka Costa enquanto usa uma peruca colorida, criando um contraste marcante com seu traje comum e discreto. Mais importante ainda, sua exploração de gênero emprega o conceito Voguing de Autenticidade e suas implicações sociais.
O que significa ser autêntico para a comunidade Voguing? Esta Autenticidade implica uma adesão completa às identidades idealizadas que aspiram encarnar. Reflete como as pessoas que dançam Vogue, que muitas vezes são indivíduos queer, são percebidas dentro e fora dos espaços ballroom. A representação da comunidade sobre feminilidade e masculinidade é moldada pelas normas culturais e sociais dominantes que regem o gênero. De acordo com Judith Butler, esse processo de idealização envolve o esforço para se alinhar às normas sociais, apesar da dificuldade inerente de se conformar plenamente a elas. Aqui, as pessoas que dançam Vogue são consideradas como aspirantes a fazer parte da sociedade que frequentemente as marginaliza. Para conseguir isso, imitam ou desempenham as identidades que desejam adotar. Conforme Mimosa lembra através da letra de Nikka Costa, os indivíduos devem constantemente demonstrar e dar provas de sua identidade de gênero. Para as pessoas que dançam Vogue, essa restrição social performativa é feita tanto dentro da comunidade durante as competições quanto externamente na sociedade em geral. A situação varia de acordo com o contexto social em que a comunidade se baseia, pois as normas de gênero variam ao longo do tempo e do espaço.
Paul B. Preciado descreve uma condição semelhante ao argumentar que, em lugares do mundo onde alguns direitos transgêneros são reconhecidos, a liberdade de entrar na redesignação de sexo existe ostensivamente, mas apenas quando um sujeito transgênero consegue desempenhar corretamente para que o exame de um médico especialista comprove que é verdadeiramente transgênero (Preciado, 2019). No ballroom, as pessoas que dançam Vogue são avaliadas com base em sua capacidade de encarnar seus eus idealizados, o que significa reproduzir estereótipos e códigos estéticos, comportamentos e aparências atribuídos a ambos os gêneros pela sociedade dominante - a sociedade autêntica. Para serem considerados reais, as pessoas que dançam Vogue devem efetivamente minimizar ou eliminar qualquer desvio das normas dominantes de gênero e sexo das sociedades heteronormativas. Conforme observa Bailey: “para ser aceito na competição, você tem que se envolver em categorias baseadas em gênero diferentes das suas” (Bailey, 2013, p. 58). Isso significa que os participantes devem estar em conformidade com categorias específicas de gênero e demonstrar sua adesão a essas expectativas da sociedade.
No entanto, Hoarau (2023) descreve a existência simultânea de categorias nas festas que não se limitam a imitar o sistema binário de gênero. Essas categorias permitem a participação dos indivíduos, independentemente de suas identidades escolhidas. O conceito de Autenticidade envolve inerentemente noções de alteridade. Isso se refere à maneira como qualquer posição de eu ou sujeito requer um outro ou alteridade para sua própria constituição e existência. Para identidades minoritárias, inclusive queer e grupos étnicos, a alteridade denota sua posição dentro de uma estrutura heteronormativa, branca e androcêntrica. Para as pessoas que dançam Vogue, a alteridade envolve o ato de se identificar ou desidentificar de um grupo específico. José Muñoz descreve a desidentificação como uma estratégia empregada pelas comunidades minoritárias para navegar e confrontar as normas dominantes de gênero e sexuais, seja trabalhando dentro ou contra essas normas (Muñoz, 1999, p. 195). Por exemplo, a desidentificação pode ser usada para afirmar a estranheza de alguém ou para se distanciar da estranheza. Em Mimosa, os performers usam as noções de identificação e desidentificação na interação de referências estéticas extraídas das diferentes formas de dança envolvidas.
Além disso, os performers criam um espaço mutável onde o público pode se identificar ou se desidentificar dos deslocamentos persistentes das subjetividades. As origens culturais dos coreógrafes também informam sua recepção e desidentificação com o conceito de Autenticidade. Conforme observou Monteiro, o Voguing é um mundo impenetrável para alguém de fora da América do Norte, distante da tradição. Marlene Monteiro Freitas é uma cabo-verdiana creole, François Chaignaud é uma dançarine queer francesa, Cecilia Bengolea é de origem argentina e vive na França, e Trajal Harrell é um dançarine negre americane. A recepção da teorização queer deve ser contextualizada fora das fronteiras dos EUA. Por exemplo, a teoria queer enfrentou e continua a enfrentar significativa resistência em diferentes contextos europeus. Aqui, a identificação e a desidentificação podem ser consideradas como tensões criativas para os coreógrafes, distanciando-os e aproximando-os da tradição da dança e da cultura comunitária dos EUA. Isso é particularmente evidente na performance de Monteiro, na qual emprega nudez parcial e imita os movimentos de Michael Jackson, adotando uma identidade masculina enquanto enfatiza ambiguidades. Ao expor seus seios, contrasta fortemente com a tradição do drag king, que exige que as mulheres apaguem sua feminilidade para se passarem por homens. Por outro lado, os performers são movidos pelo desejo de expor a artificialidade da construção de gênero ao público. Conforme afirma Teresa De Lauretis (2008):
O gênero não é meramente um derivado do sexo anatômico ou biológico, mas uma construção sociocultural, uma representação ou, mais precisamente, um efeito da interação entre representações discursivas e visuais que emanam de vários aparelhos institucionais, como família, religião, sistema educacional, medicina e direito, bem como de fontes menos óbvias, como linguagem, arte, literatura, cinema e teoria. A Autenticidade de gênero reside justamente nos efeitos de sua representação: o gênero se atualiza e se torna autêntico quando essa representação é um ato de autorrepresentação, assumido individualmente como uma forma de identidade social e subjetiva.
Chaignaud argumenta que a dança oferece essa oportunidade de inventar novos corpos, pois é uma prática inseparável da imaginação, da possibilidade de inventar um corpo. Afirma que: “Para mim, o figurino é inseparável da dança. Se imaginarmos que a dança é uma arte da autoinvenção, da invenção de um corpo, em certo sentido o figurino reorganiza os órgãos e para mim é o início da dança. É fantasiar, inventar ou documentar um corpo” (Chaignaud, 2019).
Continua ele:
O interessante dessa Autenticidade (Voguing) é que ela inclui todos os meios artificiais que você pode precisar usar. Essa Autenticidade, Trajal sempre a contrastou com a Autenticidade do pensamento de Judson, que buscava se livrar de todos os truques teatrais. Considerando que a Autenticidade... para ser autêntico, você pode usar um monte de maquiagem, um monte de sutiãs falsos, um monte de fantasias, um monte de adereços que vão fazer você parecer autêntico. Então é essa situação interessante em que ser autêntico não é se livrar de todos os elementos culturais e de todos os truques, mas ser autêntico é usar tudo o que você pode usar, de hormônios a fantasias, de salto alto a um pau falso para passar pelo que você quiser passar (Renan Benyamina, 2016).
É fundamental destacar uma perspectiva alternativa. Conforme foi observado por Marlon M. Bailey, na comunidade ballroom, as categorias Autenticidade de feminilidade e masculinidade estão intimamente ligadas a atributos e órgãos sexuais específicos, como pênis, vagina ou seios. No mundo do Voguing, uma mulher transgênero só é considerada uma mulher feminina autêntica se possuir os atributos sexuais tipicamente associados ao corpo feminino; caso contrário, pode não ser considerada autêntica. Os coreógrafes Marlene Monteiro Freitas, Cecilia Bengolea e François Chaignaud usam essa construção artificial - referida como tecnologias de gênero - para desafiar e ir além da noção binária de gênero ou, no mínimo, para reatualizar a fluidez de gênero no contexto dos estudos queer e trans. A marionete objetificada interpretada por Bengolea e a cena do espelho perturbam as leituras convencionais da anatomia sexual por meio do uso de próteses e da iluminação. Conforme afirma Paul B. Preciado, os corpos trans são produzidos e identificados a partir de sua resistência às normas binárias. De fato, Marie Draz (2022) aponta como a Autenticidade, no início do quadro butleriano, é lida como normatividade. A noção de Autenticidade tem sido objeto de críticas significativas, particularmente no que diz respeito às primeiras interpretações de Butler e sua relevância para as identidades trans, conforme foi apontado por Draz (2022), especialmente em sua conexão com a fluidez. No entanto, a fluidez explorada pelos coreógrafes de Mimosa parece se referir à representação de múltiplas subjetividades que proliferam em nossa sociedade e serve como crítica, semelhante às afirmações de Foucault, à produção disciplinar de verdade envolvendo gênero e sexualidade (Foucault, 1976). Nesse contexto, os coreógrafes interrogam, alinhades a uma abordagem queer-feminista, como os corpos são produzidos e interpretados por meio de normas de gênero. Conforme sugere Paul B. Preciado (2008), o gênero pode ser considerado como uma forma de somatopolítica ficcional. Essa perspectiva envolve conceituar o corpo não como natural, mas como um arquivo político dinâmico - um somatec - para aproveitar o conceito de somatécnica teorizado por Susan Stryker. Conforme explica Sullivan (2014, p. 187-190), Stryker cunhou o termo somatécnica para destacar o que considerava a indissociabilidade de soma e techné, do corpo (como um construto culturalmente inteligível) e das técnicas (dispositivos e tecnologias duras) em e através das quais as corporeidades são formadas e transformadas. Segundo Preciado, esse arquivo engloba toda a história da opressão, ao mesmo tempo em que encarna seu potencial revolucionário e sua capacidade de resistência.
Os coreógrafes de Mimosa ampliam essa interrogação representando corpos que desafiam o sistema sexual binário. Adotam as perspectivas de teóricas transgênero como Kate Bornstein e Susan Stryker, que se identificam como de gênero queer e rejeitam imposições normativas de masculinidade e feminilidade. Ao retrabalharem o conceito de Autenticidade dentro da lacuna temporal entre a década de 1960 e atualmente, os coreógrafes demonstram como a Autenticidade serve como uma ferramenta importante para mobilizar a compreensão sobre as respostas sociais aos corpos não normativos. Isso inclui abordar a necessidade de proporcionar um espaço seguro, o conceito de pertencimento e a prática de passagem e sua normatividade e inteligibilidade implícitas. Esses conceitos recentes têm sido objeto de estudo aprofundado na teoria queer e trans9.
Para concluir, a hibridização de registros e estilos e a exploração de lacunas temporais em Mimosa constituem uma oportunidade para reimaginar coletivamente impossibilidades históricas, criar novas possibilidades e novas formas de pensar no mundo contemporâneo. Ao reconhecerem o papel das influências subculturais na formação de legados e desafiando os processos culturais dominantes contemporâneos de normalização, os coreógrafes enfatizam a importância de manter uma postura crítica em relação à integração de identidades queer na sociedade neoliberal. Isso implica em fomentar o pensamento crítico em relação às normas sociais dominantes e resistir ao conformismo a que as subjetividades estão sempre sujeitas. Além disso, os coreógrafes reconhecem o legado promovido pelas culturas subalternas, que vai além da cultura dominante e é reconhecido como um espaço privilegiado para desafiar a taxonomia das normas de gênero. A investigação estética dos coreógrafes evolui para uma questão profundamente política, para ressaltar como determinadas subjetividades e corporeidades continuam marginalizadas econômica, social e culturalmente na sociedade andro-heterossexual branca dominante. Mimosa busca chamar a atenção para essas questões e fomentar a reflexão continuada sobre como o teatro e a performance podem problematizar a representação e o reconhecimento de corporeidades não normativas.
Notas
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1
Na década de 1960, a Judson Church era um centro vibrante formado pelo Teatro de Dança, Teatro dos Poetas e Galeria.
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2
O Judson Dance Theater iniciou sua experiência como grupo de oficina. Ao longo do tempo expandiu-se para abranger as redes sociais e artísticas que influenciavam os participantes originais da oficina. Banes afirma que a dança pósmoderna passou a incluir indivíduos que participavam das aulas de Dunn, mas que nunca apareciam no Judson, bem como artistas como Meredith Monk, Phoebe Neville e Kenneth King, que começaram a se apresentar na Judson Church após o término da oficina inicial. Nos primeiros anos, coreógrafos como Yvonne Rainer, Steve Paxton, Ruth Emerson, Fred Herko, Elizabeth Keen, David Gordon, Lucinda Childs, Judith Dunn, Sally Gross, Trisha Brown e Elaine Summers colaboravam com músicos como John Herbert McDowell, Philip Corner, Malcolm Goldstein e James Tenney, além de artistas visuais como Carolee Schneemann, Robert Rauschenberg, Alex Hay e Robert Morris.
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3
Não ao espetáculo. Não ao virtuosismo. Não às transformações, à magia e ao faz-de-conta. Não ao virtuosismo. Não às transformações, à magia e ao faz-deconta. Não ao glamour e à transcendência da imagem de estrela. Não ao heroico. Não aos anti-heroicos. Não ao imaginário trash. Não ao envolvimento de performer ou espectador. Não ao estilo. Não ao exagero. Não à sedução do espectador pelas artimanhas do performer. Não à excentricidade. Não a se movimentar ou ser movimentado.
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4
A competição de dança se intensifica com o tempo e pode durar dez horas. Muitas vezes o júri é formado por Pais e Mães da House. A competição de dança é dividida em várias categorias: “Maior Autenticidade”, que significa mulher de verdade, e “Melhor Modelo”, aquela que se distingue pelo vestido mais glamouroso. Todas essas formas são estritamente codificadas, até mesmo nos movimentos e gestos a serem realizados. Para não ser desclassificado durante uma competição, é preciso executar toda a coreografia com precisão, sem nenhum erro.
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5
Hoarau relata as definições da seguinte forma: Mulheres: mulheres cisgênero, incluindo lésbicas femininas e mulheres heterossexuais. Homens: homens cisgênero heterossexuais ou aqueles que não se identificam como gay. Butch Queens: Homens nascidos biologicamente (homens cis) que se identificam como gays ou bissexuais, com uma expressão de gênero que pode ser masculina, hipermasculina ou feminina. Butch Queens Up in Drag: Homens cis gays que se apresentam e competem em drag, mas não vivem como mulheres. Butches: indivíduos transgêneros femininos para masculinos (homens trans) em diferentes estágios de redesignação de gênero, bem como lésbicas masculinas, mulheres heterossexuais masculinas ou mulheres que se apresentam como masculinas. Femme Queens: Indivíduos transgênero masculinos para femininos (mulheres trans) em vários estágios de redesignação de gênero.
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6
A descrição da performance foi viabilizada por filmagens fornecidas pelos autores e pela companhia produtora.
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7
Especificamente para Foucault, dispositivos (ou aparatos) são o conjunto de técnicas discursivas e práticas de gestão e governança, nas quais determinados elementos, como escolas ou prisões, são capazes de controlar, dirigir e conter estrategicamente o comportamento dos indivíduos. Para Foucault, a sexualidade é um dispositivo de poder, significando um complexo mecanismo de leis e normas linguísticas, religiosas, morais e científicas que são aplicadas ao indivíduo, influenciando suas relações com os outros e consigo mesmo.
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8
Refiro-me aqui à definição de travesti de Susan Stryker como uma palavra antiga, cunhada em 1910 pelo sexólogo alemão Magnus Hirschfeld. Para Hirschfeld, travestis eram um dos muitos tipos diferentes de intermediários sexuais, inclusive homossexuais e hermafroditas, que ocupavam um espectro entre homem puro e mulher pura. Inicialmente, esse termo foi usado da mesma forma como transgênero é usado agora, para transmitir o sentido de uma ampla gama de identidades e comportamentos variantes de gênero. Durante o século passado, no entanto, na medida em que não caiu totalmente em desuso, referese principalmente a pessoas que usam roupas atípicas de gênero, mas não se envolvem em outros tipos de modificação corporal. Em geral se refere a homens e não a mulheres e usualmente traz consigo a associação de transformismo para por prazer erótico (Stryker, 2008).
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9
Uma lista de autores nunca conegue ser completa; no entanto, para citar apenas alguns: Judith Butler, Leslie Feinberg, Sandy Stone, Susan Stryker, Dean Spade e Jay Prosser.
Disponibilidade de dados de pesquisa:
o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.
Este artigo original foi traduzido por Ananyr Porto Fajardo e também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
Referências
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Editor responsável: Patrick Campbell