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Cultura alimentar indígena e os cuidados da cunhã, trocas culturais e educação não escolar na Amazônia colonial

Cultura de la comida indígena y el cuidado de cunhã, intercambios culturales y educación no escolar en la Amazonia Colonial

Resumo

O artigo analisa os usos da mandioca como planta de civilização e o papel das mulheres indígenas como mediadoras de saberes alimentares na Amazônia colonial. Inspirado na história cultural, ressalta aspectos da vida cotidiana ao conceber a alimentação não apenas pelo viés nutricional, mas também como mediadora de processos educativos e de circulação de saberes. As trocas culturais em torno do alimento possuem caráter educativo, pois informavam o fluxo global de pessoas e permutas entre cozinhas ameríndia, europeia e africana. As mulheres indígenas são flagradas como educadoras, posto que garantiam os cuidados cotidianos e ensinavam os saberes alimentares necessários à sobrevivência tanto dos naturais quanto dos colonizadores.

Palavras-chave:
mandioca; saberes; mulheres; processos educativos

Resumen

El artículo analiza los usos de yuca como planta de civilización y el papel de las mujeres indígenas como mediadoras del conocimiento alimentario en la Amazonia colonial. Inspirándose en la historia cultural, resalta aspectos de la vida cotidiana al concebir la alimentación no sólo desde una perspectiva nutricional, sino como mediadora de procesos educativos y de circulación de conocimientos. Los intercambios culturales en torno a la comida tienen un carácter educativo, ya que informaron el flujo global de personas y los intercambios entre cocinas amerindia, europea y africana. Las mujeres indígenas son vistas como educadoras ya que garantizaban el cuidado diario y enseñaban los conocimientos nutricionales necesarios para la supervivencia de los nativos y de los colonizadores.

Palabras clave:
yuca; conocimiento; mujeres; procesos educativos

Abstract

The article analyzes the use of cassava as a civilization plant and the role of indigenous women as mediators of food knowledge in the colonial Amazon. Based on cultural history, this work highlights the aspects of daily life by conceiving food not only by its nutritional bias, but as a mediator of educational processes and knowledge circulation. Cultural exchanges around food have educational character, since they inform the global flow of people and the exchanges between kitchens from Amerindia, Europe and Africa. Indigenous women stand out as educators since they guaranteed everyday care and taught the food knowledge necessary for the survival of both natural and colonizers.

Keywords:
cassava; knowledge; women; educational processes

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa de natureza histórica, baseada em fontes impressas e manuscritas que informam sobre a cultura alimentar da Amazônia colonial entre 1741-1757.

Tem como objetivo analisar os usos da mandioca como “planta de civilização” no extremo norte do Brasil e a proposta de desterro de seu cultivo por parte do inaciano João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.), bem como o papel das mulheres indígenas como mediadoras dos saberes alimentares. Argumentamos que as trocas culturais em torno da questão alimentar possuem caráter educativo, uma vez que informam o fluxo global de pessoas, a aclimatação de espécies vegetais e animais, bem como as permutas entre cozinhas (ameríndia, europeia e africana).

Nas trocas culturais em curso, as mulheres indígenas despontam como educadoras, ainda pouco reconhecidas pela historiografia, na medida em que garantiam os cuidados cotidianos e ensinavam os saberes alimentares necessários à sobrevivência tanto dos naturais quanto dos colonizadores. A conquista europeia sobre o território americano veio acompanhada do modelo europeu de racionalidade que buscou subjugar os saberes locais como atrasados e incivilizados, a exemplos dos saberes alimentares, em particular os atrelados à mandioca. Em vista disso, a mandioca desponta não apenas como alimento, mas também como elemento ora civilizador, ora atrasador do processo civilizatório em curso e, por isso mesmo, como elemento pedagógico.

Teoricamente, apoiamo-nos no conceito de mediação cultural de Serge Gruzinski (2014Gruzinski, S. (2014). As quatro partes do mundo: História de uma mundialização. Editora da UFMG.) para caracterizar os intercâmbios culturais vivenciados entre europeus e outras culturas. Inspirados na história cultural, ressaltamos aspectos do cotidiano com base em Giard (2013Giard, L. (2013). A arte de nutrir. In M. Certeau, L. Giard, & P. Mayol. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar (Vol. 2, 12a ed., pp. 211-331). Vozes.) e Fernand Braudel (1997Braudel, F. (1997). Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas do cotidiano. Martins Fontes.), bem como em Albuquerque (2012Albuquerque, M. B. B. (2012). Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial. FCPTN.) para o entendimento da alimentação não apenas pelo viés nutricional, mas também como mediadora de processos educativos e de circulação de saberes.

A principal fonte deste artigo é a obra monumental do missionário João Daniel, intitulada Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.). Os dados biográficos sobre o autor são limitados. Provavelmente, um dos mais significativos foi escrito por Serafim Leite (1949Leite, S. (1949). História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo VIII). Instituto Nacional do Livro.), importante referência em estudos sobre a Companhia de Jesus. Para o autor:

DANIEL, João. Missionário, Historiador e Fisiógrafo. Nasceu a 24 de julho de 1722 em Travaçós, Diocese de Viseu. Filho de Manuel Francisco Canário e sua mulher Maria [Daniel?]. Entrou na Companhia em Lisboa, a 17 de dezembro de 1739. Embarcou para o Maranhão e Pará em 1741. Concluiu os estudos, entre os quais o de Física, foi missionário do Cumaru e fez a profissão solene na Fazenda de Ibirajuba, a 20 de novembro de 1757. Destinava-se a Cronista da sua Vice Província. Mas oito dias depois da profissão, a 28 de novembro, saiu do Pará desterrado para o Reino, por ter dito, alguns meses antes, na Sexta-Feira Santa, o Evangelho do dia: que “Anás e Califás faziam a sua vontade e os Apóstolos de Cristo dormiam”. À falta de outro pretexto serviu o evangelho, para os perseguidores de mãos dadas (o Governador e o Bispo) se darem por aludidos; e por este “horroroso” crime foi desterrado em 1757 e confinado em Cárcere e dois anos depois sepultado vivo nos Cárceres de Almeida e de S. Julião da Barra, onde faleceu a 19 de janeiro de 1776. Na prisão para lhe servir “de honesto divertimento em tanta miséria”, diz ele próprio, escreveu o livro, que ilustra o seu nome (Leite, 1949Leite, S. (1949). História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo VIII). Instituto Nacional do Livro., p. 190, grifo do autor).

Ao longo do período colonial, boa parte do que se escreveu sobre o homem e a natureza, tanto na América espanhola quanto na portuguesa, foi obra de missionários religiosos. Viver anos em contato com os povos nativos, estudar suas línguas e absorver o que ela informava sobre as matas, os rios, a fauna, tornava o missionário íntimo conhecedor dos saberes da floresta.

Na segunda metade do século XVIII, exilados em Roma após o banimento das colônias espanholas em 1767, os inacianos Juan Ignácio Molina, Francisco Javier Clavigero e Felippo Salvatore Gilij promoveram debates acerca da natureza do Novo Mundo, esforçando-se em refutar ideias negativas sobre as terras além mar. Se de Roma ressoava as ideias dos inacianos espanhóis no exílio, quase nula foi a produção no mesmo período daqueles missionários que serviram nas colônias portuguesas, sendo o Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas, de João Daniel, uma das poucas exceções.

João Daniel, bem como os exilados Molina, Clavigero e Gilij, escrevera em tom de reflexão sobre sua experiência missionária. Diferentemente dos espanhóis, que não estavam presos e tinham acesso a bibliotecas e aos debates, João Daniel escreveu aproximadamente oitocentas páginas do Tesouro ao longo dos dezoito anos que esteve no cárcere. Desse modo, sem acesso a leituras substanciais, citou de memória autores que contribuíram para sua formação intelectual. Outras características tornam o escrito de João Daniel singular. Em primeiro lugar, ele pôde viver a experiência e as transformações políticas e administrativas na Amazônia que acompanharam a ascensão do Marquês de Pombal; em segundo lugar, seu escrito permaneceu inédito por longos anos. Desde sua primeira publicação parcial (1820) até 1976, ano de sua publicação total, já haviam transcorrido duzentos anos de sua morte.

O Tesouro diferencia-se, ainda, dos demais escritos de religiosos por ser um tratado, ou seja: conjunto de estudos e propostas para melhor desenvolver as potencialidades econômicas da Amazônia. E mais, “[...] além de um julgamento moral e de um planejamento da exploração da flora, da fauna e do solo [...]”, no Tesouro, “[...] encontramos também esforço de conhecimento e ordenamento do mundo natural e expressões de sentimento diante dos fenômenos e das belezas naturais” (Costa & Arenz, 2014Costa, D. F., & Arenz, K. H. (Orgs.). (2014). Patrimônio e história: os jesuítas na Amazônia. Editora Paka-Tatu., p. 97). Sua obra é rica em análise sobre “[...] os haveres deste jardim, descrevendo suas sementeiras, frutos e legumes” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 413). Dentre as plantas deste jardim, ocupa-se, em particular, com a mandioca.

Mandioca: “Rainha do Brasil”

Fernand Braudel (1997Braudel, F. (1997). Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas do cotidiano. Martins Fontes.), o expoente maior da segunda geração de historiadores dos Annales, destaca o papel desempenhado pelo trigo na Europa, pelo arroz na Ásia e pelo milho na América como “plantas de civilização”, ou seja, plantas “[...] que organizaram a vida material e por vezes a vida psíquica dos homens com grande profundidade, a ponto de se tornarem estruturas quase irreversíveis” (Braudel, 1997, p. 92).

Todavia, Braudel, após reflexão, não incluiu entre as plantas dominantes ou de civilização a mandioca, por considerar que “[...] na América, só serviu culturas primitivas e regularmente medíocres” (Braudel, 1997, p. 92). Contrariando esse ponto de vista, o trabalho de Cruz (2011Cruz, R. B. (2011). Farinha de “pau” e de “guerra”: os usos da farinha de mandioca no extremo Norte (1722-1759) [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Pará.) lança um olhar diferente sobre a mandioca e sobre a afirmação de Braudel em relação ao estágio de civilização dos grupos indígenas. Para Cruz (2011, p. 12, grifo do autor), é

[...] importante considerar que, tanto antes da colonização quanto durante a existência da colônia, a farinha de mandioca foi a base da alimentação de grupos humanos bem distintos, índios e portugueses, conformando-se perfeitamente ao modelo de “planta dominante”, pois sendo o alimento básico dos grupos indígenas, dela não podiam prescindir tão facilmente, enquanto para os colonos, além de suprir sua carência alimentar, torna-se igualmente elemento importante de sua dieta alimentar, era uma forma, entre outras, de controlar a mão de obra indígena.

Em sua História da alimentação no Brasil, Câmara Cascudo (2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil (4a ed.). Global.) dedica especial atenção à mandioca ou, como a intitula, “A Rainha do Brasil”. Destaca algumas qualidades que tornaram a mandioca e seu gênero mais usual, a farinha, indispensável à dieta do brasileiro, sem a qual era impossível alimentar-se:

É comida de volume, comida que enche, sacia, faz bucha, satisfaz. Comem-na pura, [...] mastigando a crueira que não pode ser peneirada. “Sem farinha homem não vive”. De sua indispensabilidade na opinião indígena, Alfred Russel Wallace ouviu em 1849 no Rio Negro, Amazonas, um nativo afirmar que estivera perdido na mata dez dias e sem comer “porque não tinha farinha”. Havia caça e podia matá-la, mas não possuindo farinha não era possível alimentar-se (Cascudo, 2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil (4a ed.). Global., p. 92, grifo do autor).

A caça, a fruta, ou até mesmo o peixe que o nativo pudesse obter durante os dias em que esteve perdido na selva, não constituíam, em sua opinião, alimento, ou pelo menos não o suficiente para saciar a fome. Faltava-lhe a farinha, a base, o fundamental. No intuito de demonstrar a importância da farinha, Cascudo recorre ao relato de uma expedição de caça no Maranhão de 1614: “Embrenharam-se muito pelo sertão, e quando a felicidade os encheu de caça, aconteceu-lhes uma desgraça: acabou sê-lhes a farinha” (Cascudo, 2011, pp. 92-93).

A indispensável farinha de mandioca ocupou lugar de destaque no tratado sobre o rio das Amazonas, de João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.), que inicia por aquilo que considera o pão cotidiano, usual: a farinha-de-pau. Em seu tratado sobre a Amazônia, dedica especial atenção ao cultivo da mandioca e consumo de seu principal produto: a farinha. Sobre a origem mítica de seu cultivo, esclarece que, segundo a tradição, para “[...] alguns índios, deve-se sua invenção ao glorioso apóstolo São Tomé; porque dizem que ele ensinara aos índios os seus plantamentos, talvez padecido de sua brutalidade, por não terem uso de sementeiras, nem instrumentos para o fazerem” (Daniel, 2004, p. 413).

São Tomé teria ensinado aos índios o plantio da mandioca, livrando-os do padecimento e da brutalidade na qual viviam, pois a domesticação de plantas e animais “[...] permite ao homem tornar-se dono do mundo natural” (Montanari, 2008Montanari, M. (2008). Comida como cultura. Editora SENAC-SP., p. 22), ao controlar melhor a oferta de comida. Entretanto, não se pode deixar de perceber que “[...] o aproveitamento do território por meio das atividades de caça e coleta exige um saber fazer, um conhecimento, uma cultura [...]”, tão elaborada quanto as culturas agrícolas (Montanari, 2008, p. 23). A origem do cultivo da mandioca tem outras explicações lendárias, inclusive associando-a ao corpo feminino. Santos (2006Santos, G. M. (2006). Da cultura à natureza: um estudo do cosmos e da ecologia dos Enawene-Nawe [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo.), ao pesquisar a cosmologia de um grupo indígena da Amazônia meridional, afirma que, na mitologia Enawene, a planta de mandioca abriga o espírito de uma adolescente enterrada pela própria mãe, conforme se evidencia no texto abaixo:

Certo dia, Atolo, uma menina adolescente, pediu à sua mãe Kokotero que a enterrasse. Diante da insistência e tomada de profunda tristeza, a mãe, por fim atendeu ao pedido da filha, enterrando-a até a cintura numa terra fofa e fria. Após o seu enterro, a menina pediu à mãe que não olhasse para trás, devendo regressar para visitá-la somente depois das primeiras chuvas. Recomendou, por fim, que não esquecesse de trazer peixe, e que mantivesse o terreno em sua volta sempre limpo e bem cuidado. Kokotero fez tudo quanto pediu a filha Atolo, e ao voltar ao local, encontrou uma roça de mandioca bonita e bem formada. De cada parte do corpo da menina havia brotado uma nova planta, dando origem às variedades de mandioca hoje cultivada pelo Enawene-Nawe (Santos apud Cruz, 2011Cruz, R. B. (2011). Farinha de “pau” e de “guerra”: os usos da farinha de mandioca no extremo Norte (1722-1759) [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Pará., p. 29).

Cruz (2011Cruz, R. B. (2011). Farinha de “pau” e de “guerra”: os usos da farinha de mandioca no extremo Norte (1722-1759) [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Pará., p. 28), ainda com base no trabalho de Santos (2006Santos, G. M. (2006). Da cultura à natureza: um estudo do cosmos e da ecologia dos Enawene-Nawe [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo.), esboça um quadro associativo entre o corpo feminino e a planta mandioca. Vejamos:

Quadro 1
O corpo feminino e a planta mandioca

Nota-se, portanto, que a mandioca e seus derivados, como a farinha, os beijus e as bebidas, significavam bem mais que uma fonte de alimento para as populações indígenas. Representava a transcendência, a ligação com seus antepassados, algo que não pode ser facilmente desenraizado.

A cultura alimentar indígena valia-se da caça e coleta, bem como do cultivo predominante da mandioca, da qual se fazia algumas variedades de farinha. Daniel descreve os quatro tipos ou “castas” de farinha que se fazem das raízes da mandioca. Como atribui uma hierarquia ou “casta” entre os quatro tipos de farinha, inicia por aquela “[...] que equivale ao mais mimoso pão de trigo no seu tanto” (Daniel, 2004, p. 414): a farinha de água. Descreve o inaciano de maneira pormenorizada o preparo do “mimoso pão”:

Tirada da terra a raiz da mandioca, deita-se de molho em poços ou tanques de água viva, boa, corrente [...]. Depois de três dias ou pouco mais [...] a tiram da água, e lhe tiram a casca, que dá com muita facilidade, e bem lavada a metem na prensa a tirar-lhe a umidade chamada tucupi, cujas prensas são de vários modos. O mais usual é um canudo de 10 a 12 palmos, que tecem de cipó, ou casca de palmeira, em cuja feitura os índios não são só bons, mas expeditos mestres. Tem prensas, a que chamam de tipiti, suas presilhas nas pontas, e na parte superior a boca, por onde lhe metem aquela massa, e logo dependurados os tipitis ou prensas em forquilhas, e puxada de baixo com algum peso, que fazem sair a aguadilha, ou tucupi (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 414).

Passado esse momento inicial do preparo, “[...] depois de bem espremida a torram em fornos a fogo, os quais são do feitio da copa de um chapéu de sol” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 414). A qualidade final da farinha dependia muito da qualidade da planta, além, é claro, “[...] do benefício das farinheiras” (Daniel, 2004, p. 414).

A citação sobre a forma de preparo da farinha de água revela ao leitor - mesmo aquele que tenha tido um mínimo contato com a produção artesanal de farinha - uma espécie de continuidade histórica, analogias possíveis na técnica de preparo e materiais utilizados. O resultado é a mais estimada e cara farinha produzida na Amazônia do século XVIII, existindo um comércio entre indígenas e brancos, sendo que os últimos compravam a farinha dos primeiros “[...] por 100 réis, ou quando muito caro 150 réis, [...] [e vendiam por] 300 ou 400 réis ordinariamente, cujo preço sobe ou desce conforme sua abundância” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 415).

A segunda farinha é a seca, menos estimada que a primeira, tem a vantagem de se fazer de maneira mais rápida, dispensando os dias que a mandioca leva de molho na água corrente, característica da maneira de preparo da farinha da água. No fabrico da farinha seca, percebe-se a influência de técnicas europeias como: “Rodas forradas por fora com ralos de cobre, puxada ou com engenho, ou com as mãos, e força de dois homens cada um em sua asa; e entre tanto lhe vai uma índia ministrando, e dando o que comer pelo buraco de uma tábua a mandioca” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 415).

O cobre, o ferro, as prensas substituíram antigos instrumentos como o tipiti para retirar o tucupi. À maneira indígena de preparo da farinha, o colonizador introduzia novos instrumentos para acelerar o processo de fabrico e atender aos anseios da empresa colonial. Mas não eram apenas objetos, traziam os adventícios consigo maneiras mais sutis na produção da farinha, que levariam a uma reordenação das tarefas, das etapas da produção. Mudanças nem sempre aceitas.

Apontada como mais prática, a forma de preparo da farinha seca não era bem-vista pelos trabalhadores. João Daniel justificava a resistência dizendo que “[...] os operários gostavam pouco destas fábricas, porque no puxar das rodas suam” (Daniel, 2004, p. 415). Seria mesmo o suor a causa da pouca afeição dos “operários” pelo modo de fabrico dos europeus? Tudo indica que os motivos eram outros.

Compartilhamos a ideia de que “[...] os hábitos alimentares constituem um domínio no qual a tradição e inovação tem a mesma importância” (Giard, 2013Giard, L. (2013). A arte de nutrir. In M. Certeau, L. Giard, & P. Mayol. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar (Vol. 2, 12a ed., pp. 211-331). Vozes., p. 212). O indígena assimilou rapidamente ferramentas que facilitavam sua vida, em especial o ferro. No fabrico da farinha, não foi diferente. Os dentes ou bicos de animais, fixados em tábua, utilizados para ralar a mandioca, foram substituídos por raladores de cobre. Entretanto, é necessário frisar que alguns aspectos resistiram às mudanças. Se o modo de preparo da farinha seca encurtava o tempo de produção, por não ser necessário colocar a mandioca de molho por dois ou três dias, e carecia de menor mão de obra, essa forma de preparo mudava o sabor, tornando-a menos estimada. Consideramos também que as mudanças na forma de preparo alteravam profundamente etapas consagradas pela maneira tradicional de fabrico. Outro ponto foi a profunda alteração na organização do trabalho que, economizando em mão de obra, tirava dos trabalhadores a possibilidade de uma conversa, uma brincadeira, uma cantoria, um momento de sociabilidade, substituído por um trabalho repetitivo e mecânico.

A cultura alimentar dos nativos sofreria grandes transformações quando do encontro histórico com europeus e africanos. O contrabando de elementos de uma cozinha para outra foi regra, não exceção. Como ponto comum da cultura humana, o alimento, e todas as atividades e instrumentos dos quais as civilizações se valem para produzi-lo, carrega consigo saberes. Pela observação da cultura alimentar é possível notar constantes trocas culturais, momentos de sociabilidades que evidenciam processos educativos complexos, de natureza não escolar e, em geral, sutis.

Entretanto, contra as inovações nas técnicas de preparo, aceitas até certo ponto, os cuidados com os alimentos, o que Giard (2013Giard, L. (2013). A arte de nutrir. In M. Certeau, L. Giard, & P. Mayol. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar (Vol. 2, 12a ed., pp. 211-331). Vozes.) chama de “as técnicas do corpo”, preservaram-se, pois “[...] são mais bem protegidas da superficialidade da moda e porque aí entra em jogo uma fidelidade material” de grande densidade (Giard, 2013, pp. 215-216). Por isso, o modo de se fazer farinha do século XVIII e as formas tradicionais de seu preparo no século XXI guardam tantas semelhanças.

A terceira espécie de farinha é a carimã, da qual cabe destacar algumas características, especialmente aos leitores menos familiarizados com a cultura da mandioca. A carimã ou puba é a farinha mais fina extraída da mandioca. Tem especial apreço pelas populações tradicionais por ser considerada de mais fácil digestão, sendo utilizada em mingaus para os enfermos e também na panificação, substituindo o trigo ou misturado a ele para dar volume a massa. Segundo o inaciano, no século XVIII, a carimã era “[...] bem conhecida já na Europa, para onde se manda encomenda” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 416). Seu preparo ocorre através do peneiramento das farinhas de água e seca, descritas anteriormente. A quarta espécie é a farinha de tapioca, obtida da seguinte forma:

Quando espremem a farinha nas prensas, aparam embaixo o tucupi, ou aguadilha, que lançam, a qual sai muita substância e muito polme, que assenta embaixo. Daqui tiram levemente por cima o tucupi, e, segredado este polme, põem este a secar nos fornos, donde saem em granitos (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 416).

A descrição pormenorizada das quatro castas de farinha feita por João Daniel, bem como suas formas de preparo, permite perceber o ponto de vista de Cruz (2011Cruz, R. B. (2011). Farinha de “pau” e de “guerra”: os usos da farinha de mandioca no extremo Norte (1722-1759) [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Pará., p. 24), ao defender que “[...] a produção da farinha ao se realizar por meio de técnicas variadas, não constituía um alimento bárbaro, selvagem”. Vejamos, como exemplo, o aproveitamento do tucupi e das folhas para se cozer com carne ou peixe. Ambos preparos necessitam de técnica e grande sensibilidade. Nos dois casos, é tênue a linha entre o veneno e o alimento.

No tocante ao comércio de produtos amazônicos com a Europa, foi notável a astúcia dos inacianos. Guiados por hábil senso econômico, dispuseram ao longo do rio suas missões e aldeamentos de tal forma que possibilitasse o fluxo de mercadorias, produtos e serviços entre si. A Casa de Santo Alexandre, em Belém, além de grande colégio e biblioteca, armazenava os produtos das missões, que posteriormente eram embarcados para a Europa.

O arrojo comercial dos inacianos incomodava as autoridades e os colonos, principalmente pelo controle que exerciam sobre a mão de obra dos indígenas e de como esta era fundamental no que diz respeito ao abastecimento de gêneros alimentícios, dentre os quais a farinha. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em carta ao Marquês de Pombal em 18 de fevereiro de 1754, afirma sobre os religiosos que:

Enquanto se lhes não tirar o domínio das aldeias, hão de ser senhores de todas as riquezas deste Estado. Com os índios é que eles extraem as drogas destes dilatados sertões; com os índios é que fazem as manteigas, as tartarugas e as salgas de todas as qualidades de peixe que aqui há, que são os dois ramos mais importantes destas capitanias; finalmente, com os índios, tirando-lhes as fazendas, hão de fabricar nas terras das suas aldeias os mesmos gêneros da farinha, algodão, feijões, arroz e tudo o mais que agora fabricam nas fazendas, vindo por este modo a ficar com mais vantajoso comércio e senhores de maiores riquezas (Mendonça, 2005Mendonça, M. C. (2005). A Amazônia na era pombalina: correspondência do Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado - 1751- 1759 (2a ed., Tomo 1, 2 e 3). Senado Federal., pp. 117-118).

Ao assumir o trono em 1750, D. José I teria encontrado um Estado enfraquecido e sob forte influência dos religiosos, especialmente os da Companhia de Jesus. Nesse contexto, ascende à condição de poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marques de Pombal, “[...] defensor de um regalismo exacerbado, doutrina que defende a intervenção do Estado nos assuntos da Igreja” (Souza Jr., 2009Souza Jr., J. A. (2009). Tramas do cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará do setecentos - um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política pombalina [Tese de Doutorado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 81).

Pombal ignorava a imunidade eclesiástica, afirmando a supremacia do poder real sobre o papal, promovendo mudanças nas relações entre o Estado e a Igreja Católica no sentido de eliminar a influência desta última nas decisões do rei. A partir de 1751, o Grão-Pará e Maranhão passou a ser governado por Mendonça Furtado, o qual representava, no extremo norte da colônia portuguesa na América, as aspirações de Pombal em inserir Portugal na modernidade. Para tanto, seria necessário modernizar a administração do estado português, motivo pelo qual Sebastião José de Carvalho e Melo reformou a administração estatal eliminando cargos desnecessários, diminuindo, assim, o poder político da nobreza tradicional; e ainda “[...] desenvolveu a reforma do sistema educacional português, retirando-a das mãos da Companhia de Jesus, cujo ponto culminante foi a reforma da Universidade de Coimbra” (Souza Jr., 2009Souza Jr., J. A. (2009). Tramas do cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará do setecentos - um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política pombalina [Tese de Doutorado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 81). Com o intuito de garantir sólida formação intelectual aos membros da nobreza, “[...] que os tornassem, no futuro, burocratas eficientes, Pombal criou o Colégio dos Nobres, em 1761, cujo currículo incluía disciplinas vinculadas ao progresso da ciência e da técnica” (Souza Jr., 2009, p. 81).

A Amazônia da segunda metade do século XVIII era marcada profundamente pelos choques de interesses de religiosos, colonos, população indígena e administração colonial, que culminaria com a “[...] implementação do Regimento do Diretório dos Índios, em 1755, logo antes da expulsão geral, em 1759” (Souza Jr., 2009Souza Jr., J. A. (2009). Tramas do cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará do setecentos - um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política pombalina [Tese de Doutorado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 83). Durante algum tempo, a expulsão dos jesuítas da Amazônia foi analisada pelos historiadores sobre uma perspectiva dualista, “[...] contra ou a favor de Pombal, contra ou a favor dos jesuítas” (Souza Jr., 2009, p. 84). Havia também a cristalização da tese de que, ao implantar o Regime do Diretório dos índios e expulsar os jesuítas do Estado do Grão-Pará e Maranhão, reformas iniciadas em 1755, Pombal já teria um projeto pronto a ser imposto para a Amazônia. Souza Jr. (2009) contesta essas análises, que considera um “partidarismo histórico”, e procura perceber as múltiplas faces do processo de expulsão dos religiosos, defendendo a hipótese de que

A implantação do Regimento do Diretório na Amazônia também resultou, e muito, das pressões exercidas pelos colonos em sua demanda pela mão-de-obra indígena, como também pela múltipla prática dos índios, que longe de estarem na condição de vítimas passivas da nova experiência histórica que lhes fora imposta, eram sujeitos autônomos no processo em que foram inseridos pela colonização portuguesa, no qual, concomitantemente, resistiam, negociavam, sediam, faziam conquistas, escolhiam aliados entre os estrangeiros etc., ou seja, vivenciavam e pensavam suas experiências cotidianas nas relações com os invasores, como atores de sua história (Souza Jr., 2009Souza Jr., J. A. (2009). Tramas do cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará do setecentos - um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política pombalina [Tese de Doutorado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 84).

O Regimento do Diretório substituiu as determinações estabelecidas no Regimento das Missões de 1686 que, no entender de Mendonça Furtado, teria dado poder em demasia aos regulares, devido ao controle que estes exerciam sobre a mão de obra indígena. Mendonça Furtado denunciou a grande autonomia que os religiosos tinham em relação às autoridades, acusando-os de usar a religião para atingir seus interesses escusos de enriquecimento, prejudicando os interesses da coroa e dos colonos. Entre esses interesses, desponta o domínio das drogas do sertão, muitas das quais exportadas para Europa.

O mercado europeu de gêneros tropicais não demonstrou grande interesse pela farinha de mandioca, talvez pela inadequação de seu cultivo entre as searas europeias, as quais aclimataram com sucesso outras culturas americanas, cuja batata parece ter sido a mais bem adaptada. Mas, na Amazônia, a mandioca dominou as preferências, tanto de naturais quanto dos adventícios. Comer farinha de mandioca representava, dentre outras coisas, sentimento de pertença e poderia revelar o grau de adequação ou assimilação de um estrangeiro em relação à cultura alimentar local.

Farinha de mandioca, civilidade e trocas culturais

Cada sociedade estabelece, segundo seus próprios critérios, as boas maneiras à mesa. Em alguns casos, alimentar-se desta ou daquela forma implica revelar o grau de familiaridade do indivíduo com a cultura que o cerca e até mesmo ser absorvido por ela. Se à ideia de civilização está relacionado algum “requinte” na maneira de se alimentar, a farinha de mandioca tinha os seus, como observou João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 417):

O modo de levar à boca, ou é com os três dedos mínimos, como os tapuias e gente ordinária, ou é com colheres, como os brancos, ou com os dedos, com os mais: pelo que, de certa distância atiram com ela a boca com tal destreza, que não só não erram a boca, mas nem ainda lhe cai um grão.

A habilidade de lançar a farinha à boca com a mão ou com uso de colher é tida como critério de distinção, separando os familiarizados com a farinha de pau, nativos ou não, dos “[...] novatos europeus, os quais os primeiros que se costumem, já metem a colher na boca, já lhes cai à metade, e já com perigo de pagarem patente de novatos, por não saberem meter a sua colherada” (Daniel 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 417).

A centralidade do uso da farinha como alimento, nesta passagem, que não exclui certo tom de humor, revela sua estreita relação com a identidade local. Ser ou não ser novato dependia também de saber comer a farinha segundo a etiqueta amazônica, arremessando a farinha na boca sem que lhe toque os dedos ou a colher, e mais, sem perder nenhum grão no arremesso.

A colher, popularizada nas mesas europeias com o refinamento dos hábitos e surgimento de uma nova etiqueta, principalmente nos ambientes da nobreza e burguesia do século XVI - XVII, já era bem conhecida e utilizada na Amazônia, segundo João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.). Não se trata de um simples objeto introduzido à mesa, mas de algo que já traz consigo a ideia de “civilidade”, de um costume refinado chegando às fronteiras do novo mundo. Assim, “os modelos e práticas alimentares” configuram-se como áreas de contato e trocas entre diversas culturas, “[...] fruto da circularidade de homens, mercadorias, técnicas, gostos de um lado para o outro do mundo” (Montanari, 2008Montanari, M. (2008). Comida como cultura. Editora SENAC-SP., p. 189).

Interessante notar que a introdução de novos objetos à mesa, como garfo e colher, encontrou resistência até mesmo entre os refinados europeus. Braudel conta um caso curioso e ilustrativo de como os modos à mesa tiveram lenta difusão:

Há um desenho que mostra Maximiliano da Áustria à mesa, por volta de 1513; tem a mão enfiada num prato; uns dois séculos mais tarde, a Palatina conta que Luís XIV, ao admitir pela primeira vez os filhos à mesa, proibiu-os de comer de maneira diferente da dele próprio e de se servirem de um garfo, como lhes tinha ensinado um preceptor demasiado zeloso. Quando foi então que a Europa inventou as boas maneiras à mesa? (Braudel, 1997Braudel, F. (1997). Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas do cotidiano. Martins Fontes., p. 16).

O questionamento de Braudel sobre a invenção das boas maneiras à mesa europeia ficará sem resposta. Poderíamos ampliar a discussão sobre os bons modos à mesa, contudo, o que cabe aos europeus comedores de trigo não cabe aos comedores de mandioca, uma vez que estes últimos desenvolveram seus próprios critérios de boas maneiras e civilidade. Mas, pela introdução da colher e de outros utensílios, bem como pela aclimatação de novas espécies vegetais e animais nas práticas alimentares da Amazônia do século XVIII, é possível visualizar o que Gruzinski (2014Gruzinski, S. (2014). As quatro partes do mundo: História de uma mundialização. Editora da UFMG., p. 42) chama de “mundialização”, ou seja: “[...] intercâmbios de todos os tipos [...] [ocorridos entre] as diferentes partes do globo no contexto da expansão marítima e comercial europeia”. Esses intercâmbios também aproveitavam a potencialidade de navegação permitida pela fabulosa rede formada pelo Rio das Amazonas e seus afluentes, que ligava a América espanhola e o Grão-Pará e Maranhão ao Atlântico.

Os intercâmbios envolvendo a questão alimentar se fizeram perceber desde o início da ocupação do vale amazônico. Alírio Cardoso (2012Cardoso, A. (2012). Maranhão na monarquia hispânica: intercâmbios, guerras e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655) [Tesis Doctoral]. Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Salamanca.), em capítulo dedicado aos intercâmbios e à aclimatação de espécies vegetais de outras partes do mundo, destaca que os primeiros colonos da região amazônica já aventavam essa possibilidade, buscando apoio dos governantes. Com isso, é possível perceber que as dificuldades de contato, as grandes distâncias e “barreiras” naturais não impediram trocas e circulação de saberes mediados pelos alimentos. Chambouleyron (2014Chambouleyron, R. (2014). Como se hace em Indias de Castilla. El cação entre lá Amazonía brasileira e las Indias de Castilla. Revista Caplutense de História da América, (40), 23-43.) dá um bom exemplo da conexão entre Amazônia e América Espanhola envolvendo um gênero alimentício que também figurou com grande importância, o cacau.

Segundo o autor, em meados de 1670, a coroa portuguesa passou a estimular seriamente o cultivo do cacau. Neste particular, a experiência castelhana foi fundamental, pois, no princípio do século XVII, o cacau ainda era pouco conhecido na Europa, mas largamente consumido na Nova Espanha. As principais regiões exportadoras eram Guayaquil e Venezuela. Chambouleyron (2014Chambouleyron, R. (2014). Como se hace em Indias de Castilla. El cação entre lá Amazonía brasileira e las Indias de Castilla. Revista Caplutense de História da América, (40), 23-43.) aponta que vários dos encomenderos que cultivavam o cacau e comerciavam escravos na Venezuela eram portugueses. Assim, a experiência venezuelana com o cacau foi definitiva para promover o cultivo sistemático deste gênero na Amazônia, que se deu em meados de 1670, quando a coroa portuguesa passou a estimular com mais seriedade o cultivo.

Na carta do governador do Maranhão e Grão-Pará ao príncipe regente, existe a sugestão de que mudas de cacau sejam cultivadas “[...] como se hace en Indias de Castilla” (Chambouleyron, 2014Chambouleyron, R. (2014). Como se hace em Indias de Castilla. El cação entre lá Amazonía brasileira e las Indias de Castilla. Revista Caplutense de História da América, (40), 23-43., p. 33). Desse modo, o cacau figurou como um dos alimentos de grande importância no contexto da economia amazônica, sendo utilizado, inclusive, como substituto da moeda metálica. Todavia, sua importância como gênero de exportação, moeda da terra e alimento, nunca esteve perto de se equiparar à importância da mandioca e da farinha no regime alimentar amazônico, pois não é exagero dizer que tudo vai bem se tiver um pouco de farinha.

Virtudes e escândalos da mandioca

As virtudes da mandioca se expressam nos relatos sobre suas diferenciadas formas de uso. A farinha, por exemplo, era muito apreciada com caldos de peixe e carne, quanto mais gordo melhor, e “[...] para estas sopas é preferida a farinha da água à seca” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 417). Os brancos valiam de colheres para tomar as sopas, os naturais preferiam canudos por onde sugavam os caldos engrossados pela farinha.

Era a farinha também fundamental no labor de vencer as distâncias pelos rios, sendo ingrediente fundamental para as bebidas chamadas “tiquaras”, as quais: “[...] são um pouco de farinha em algum vaso de água fria com que bebem misturada, e é o ordinário refresco nos calores, especialmente nos índios quando andam no trabalho, ou na remadura das canoas” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 417).

Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.), por vezes, chama a farinha de mandioca de farinha de pão da América, recorrendo ao velho expediente de comparar o que já era conhecido do europeu com as novidades dos produtos americanos. Dessa forma, o pão da América seriam os beijus. Daniel descreve os vários tipos de beijus e suas respectivas formas de preparo. Primeiro, os beijus su, feitos a partir da farinha seca que, depois de sair espremida da prensa, era socada em pilão, em seguida dava-se a forma arredondada e levava-se ao forno. Era o pão ordinário e, misturado à manteiga, ganhava em sabor com a ressalva de que seu preparo e primor “[...] dependem muito das cozinheiras” (Daniel, 2004, p. 418).

Ocasiões especiais pediam pratos especiais. A farinha, além dos beijus, era usada para fazer pequenos bolos redondos, que eram amassados com alguma manteiga, em seguida cozidos com ovos de pássaros, peixes, cobras ou lagartos. “Chamam estes bolos de miepês, e os índios domésticos usam muito deles nas suas festas” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 419). O segundo tipo de beiju é o de água, por ser feito da mesma farinha. “Destes mesmos beijus de água fazem os tapuias os seus vinhos [...]. Os brancos também deles fazem ótima aguardente” (Daniel, 2004, p. 418).

O uso da farinha de mandioca para a fabricação de bebidas embriagantes preocupava Mendonça Furtado. O governador via parte do gênero, que serviria aos militares e civis envolvidos nas expedições de demarcação no alto rio Negro, ser desperdiçado na prática “escandalosa” das “beberônias” indígenas. Escrevia Mendonça Furtado de Mariauá, em 10 de julho de 1755, que

Um dos grandes consumos que aqui tinham as farinhas era o fazerem os índios delas uma quantidade de vinhos com que faziam as suas beberrônias, chamei aos Principais e lhes disse que, se me constasse que em umas povoações de cristãos se conservavam estes costumes do mato, os havia de castigar a eles, como merecia aquele crime, e que parecia muito mau, quando eu estava necessitando de farinha para sustentar a muita gente que vinha em minha companhia, a estivessem eles desperdiçando, consumindo-a em uma coisa tão escandalosa como aquela, e perdendo preço que se lhe havia de dar por ela (Mendonça, 2005Mendonça, M. C. (2005). A Amazônia na era pombalina: correspondência do Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado - 1751- 1759 (2a ed., Tomo 1, 2 e 3). Senado Federal., p. 415).

Mendonça Furtado condenava o uso de farinha para fabricação dos “vinhos”, visto como “costumes do mato” que sobreviviam entre indígenas das povoações, prejudicando o abastecimento da expedição demarcatória dos novos limites estabelecidos pelo Tratado de Madri. Esse Tratado redefinia as fronteiras entre as colônias portuguesas e castelhanas na América do Sul, substituindo o antigo Tratado de Tordesilhas, de 1494. A atividade bandeirante e a ação missionária dos religiosos, que ignoravam os limites oficiais durante o período da União Ibérica (1580-1540), haviam tornado as determinações do Tratado de Tordesilhas obsoletas. Com o intuito de solucionar as querelas entre espanhóis e portugueses, em torno dos limites coloniais, foi concretizada a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Segundo as novas determinações estabelecidas no tratado de 1750, os limites coloniais lusitanos e hispânicos seriam consolidados por meio do princípio de uti possidetis. Essa ideia, proposta originalmente por Alexandre de Gusmão, embaixador português, sugeria que os limites e pertencimento de cada território seriam de quem primeiramente ocupou a região.

As beberagens indígenas, contudo, não significavam apenas embriaguez ou escândalo, como via Mendonça Furtado. Albuquerque (2012Albuquerque, M. B. B. (2012). Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial. FCPTN., p. 53), em trabalho pioneiro, aborda essas bebidas como “[...] uma forma de educação não escolar recorrente no Brasil colonial”. Bebia-se o cauim em diversas ocasiões importantes com finalidade educativa. O nascimento era um dos momentos em que se bebia o cauim, com o objetivo de ressaltar valores como: “a valentia e o espírito vingativo”, nos meninos. A afirmação da virilidade, marcada entre os tupinambás pela perfuração dos lábios, também era regada pelos seus vinhos. Entre as meninas e seus ciclos de vida, também ocorriam marcadas cerimônias envolvendo o cauim. As moças não conheciam homens antes da menarca, “[...] ocasião festejada com grande festa e bebidas, rito que as introduzia ao mundo adulto” (Albuquerque, 2012, p. 95). As festas de casamento também eram regadas pelo vinho indígena, pois somente a partir de casados era permitido beber o cauim. Assim, durante a festa de casamento:

Os índios mais velhos assumiam a tarefa de ajudar o noivo a beber sua primeira cuia de cauim, posto que acreditavam que nenhuma gota deveria ser perdida sob pena de comprometer o maior ensinamento transmitido nessa ocasião que era a valentia (Albuquerque, 2012Albuquerque, M. B. B. (2012). Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial. FCPTN., p. 96).

As cerimônias mortuárias também eram regadas a cauim. Nestas ocasiões bebia-se para lembrar as qualidades do ente querido. Não se fazia guerra ou tomava-se alguma decisão importante, sem antes beber o cauim. Dessa forma, as bebidas indígenas, dentre as quais a mandioca figurava como um dos ingredientes principais, era fundamental na organização social e psíquica das populações nativas, já que, movidos por seus efeitos, os índios cultuavam seus ancestrais, reafirmavam valores e perpetuavam sua cultura.

Os problemas de Mendonça Furtado com as beberagens indígenas não eram os únicos que encontraria em sua viagem ao Rio Negro. Na farta correspondência enviada a seu irmão, o Marques de Pombal, Furtado indica que os inacianos sabotavam a expedição demarcatória não fornecendo indígenas, mantimentos e canoas para o intento. Havia, ainda, incitamento à indisciplina militar, alimentada pelo rumor de que a expedição demarcatória estava sendo levada a cabo sem autorização régia. Sem farinha de mandioca, a expedição demarcatória corria o risco de não acontecer, posto que ela era fundamental para manter os indígenas remadores e alimentar as tropas.

A queixa de Mendonça Furtado em relação a essas beberagens surpreende, uma vez que, na altura da segunda metade do século XVIII, o cauim já havia perdido espaço, no gosto dos naturais, para a aguardente de cana de açúcar. A difusão da cachaça entre os indígenas ocorreu estimulada pelo comércio entre estes e os brancos. João Daniel, experiente na observação do costume dos naturais, aconselhava aos que fossem fazer comércios com eles que a melhor moeda de troca era “aguardente de cana alambicada”, uma vez que “[...] por um frasco farão empenhos; por isso a melhor fazenda que podem levar os brancos às suas missões para comprarem farinha, etc., é aguardente, porque os índios tiram aquela da boca, só por comprarem esta” (Daniel, 2004, p. 290).

O uso da aguardente deixou suas marcas na Amazônia. Costume disseminado entre os naturais, a cachaça tornou-se moeda de troca comum na busca do colono pela farinha de mandioca a qual tinha como forma mais delicada a farinha de carimã, a qual era panificável e amplamente usada em receitas dos colonos em substituição ao trigo. Dizia João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 419) que

O biscouto feito do carimã e tapioca é mais gostoso que o da Europa, e fazem diversidade dele, como cada um quer. Serve também o carimã para os mimosos caldos de que usam não só os americanos, mas também os europeus, para onde os naturais embarcam muita; e é muito substancial para os doentes e velhos. Assim mesmo serve para o pão-de-ló, massas polvilhos, e para todos os mais usos que tem o trigo, de sorte, que pode chamar-se o trigo do Amazonas sem exageração da verdade.

O intercâmbio de gêneros entre Europa e América se dava em uma via de mão dupla. Os produtos americanos invadiram a Europa depois da conquista do continente. A atitude dos europeus diante dos alimentos, recém-introduzidos, era um misto de curiosidade e cautela. Em alguns séculos, os novos produtos seriam assimilados de tal forma que “[...] seria difícil imaginar a Europa sem o milho ou a batata, o tomate ou o pimentão [...] [ao ponto de] esquecer sua origem exótica”. Uma das maneiras de assimilar novos alimentos era tratar “[...] os produtos novos com procedimentos e preparações tradicionais”. Foi assim que a farinha de carimã entrou como substituto do trigo na receita do biscoito europeu (Montanari, 2008Montanari, M. (2008). Comida como cultura. Editora SENAC-SP., p. 176).

Além de substituir o trigo nas receitas europeias, a citação de João Daniel sobre as farinhas de carimã e tapioca demonstra que elas eram consideradas bom alimento para pessoas debilitadas, restaurando a energia de velhos e doentes. Desse modo, para além da questão nutricional, os alimentos assumem múltiplos significados, associam-se também à identidade cultural, sentimento de pertencimento e a práticas de cura, a partir da restauração das energias vitais. Resta ainda um derradeiro elogio de Daniel, desta feita para a planta mandioca. Uma planta de muita serventia. “Seu pau ou haste serve para plantar [...]”, sua folha “[...] é excelente para cozer com carne, peixe ou qualquer outro guisado”. Por fim, a “[...] aguadilha que lançam na prensa, a que chamam tucupi [...], cozida é um excelente tempero nos guisados” (Daniel, 2004, p. 419).

Embora a mandioca fosse amplamente conhecida pelas populações nativas do Brasil, alguns grupos não utilizavam suas raízes para a fabricação de farinha. Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.) informa que existiam naturais que preferiam fazer suas farinhas com frutas do mato e consumiam apenas a macaxeira, por não ter o inconveniente de ser venenosa e poder ser consumida após um simples cozimento. A diferença fundamental entre a macaxeira e a mandioca está na quantidade de ácido cianídrico encontrada em suas raízes. A mandioca ou macaxeira brava possui 100 mg de HCN por quilograma de raiz fresca sem casca, necessitando de um processamento mais demorado para poder ser consumida. Já a macaxeira ou mandioca mansa apresenta apenas 50 mg de HCN por quilo de raiz fresca e seu consumo depende de um simples cozimento. Certamente os grupos em deslocamento ou que contassem com um instrumental reduzido optariam pelo uso da macaxeira para o consumo.

No tocante aos pratos derivados da mandioca, dos cuidados na conservação dos alimentos e em tantos outros aspectos da vida cotidiana na Amazônia de hoje e da época de João Daniel, vale frisar o trabalho da mulher indígena, pois foi dela que recebemos o melhor de sua cultura. Provém do seu trabalho a rede de dormir e embalar, o asseio pessoal e a higiene do corpo, as culturas do milho, do caju e da fundamental mandioca e seu complexo alimentar que se desdobra em beijus, farinhas, bolos, bebidas e fermentados alcoólicos. Nunca é demais frisar que

Se atribui à figura feminina o papel de guardiã do saber alimentar, além da sensualidade, o que, por outro lado, parece corresponder à realidade histórica; os estudiosos são unânimes ao admitir a primazia feminina na observação e na seleção de plantas que acompanhou o surgimento da agricultura ao redor das primeiras aldeias (Montanari, 2008Montanari, M. (2008). Comida como cultura. Editora SENAC-SP., p. 26).

Cabe ainda destacar o caráter do colonizador português, no qual se notou:

Máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado. Assim, organizou-se [no Brasil] uma sociedade cristã na superestrutura, com a mulher indígena recém-batizada, por esposa e mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das tradições, experiências e utensílios da gente autóctone (Freyre, 1995, p. 91).

Provavelmente, uma das vias mais fortes de penetração do saber alimentar indígena na vida do colono foi nas relações cotidianas. Vistas como educadoras do cotidiano, a mulher indígena, tomada como esposa ou ainda utilizada nos serviços domésticos, ao conviver com os elementos da cozinha adventícia, agregou elementos novos ao seu repertório de cuidados e saberes alimentares e lá deixou marcas profundas.

Até aqui, só elogios à farinha de mandioca. Entretanto, os argumentos favoráveis logo cederão lugar a uma verdadeira campanha contrária ao seu cultivo. A erradicação do cultivo da mandioca, proposto por João Daniel, justifica-se por uma série de “inconvenientes” em sua cultura.

Entre a civilização e o atraso: a proposta de desterro do cultivo da mandioca

No sétimo capítulo da parte quinta do tratado escrito pelo inaciano, cujo título é Deve desterrar-se do Amazonas o cultivo da maniva e farinha-de-pau, João Daniel arrola uma série de argumentos para justificar a erradicação da mandioca do Amazonas, por considerar que seu cultivo rústico é o causador de atraso e mau uso das terras.

A primeira justificativa parece estreitamente relacionada à mobilidade do cultivo, que por sua vez corresponde ao caráter seminômade dos povos indígenas tradicionais, constantemente em busca de novas terras para as queimadas, caça, pesca e oferta de frutos e sementes. Neste sentido, João Daniel argumentava que sendo

[...] o cultivo da maniva, ou farinha de pau, a causa de variarem todos os anos as terras no rio, ou estados do Amazonas, parece se não deviam buscar mais razões para desterrar do mundo, cultivo que, sendo o mais laborioso pede cada ano novas matas, e novas terras, não merece a atenção dos homens ainda que fosse o mais regalado manjar do mundo (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 168).

João Daniel apresenta ainda mais seis argumentos contrários ao cultivo da mandioca. De modo geral, esses argumentos se relacionam ao que já foi previamente exposto na passagem acima, ou seja: a necessidade de novas terras para cultivo; as derrubadas e queimadas necessárias ao plantio, atividade de extremo perigo para os trabalhadores; o ciclo longo de amadurecimento da raiz; bem como o risco de se perder ou comprometer a produção pelo excesso de umidade. O emprego de grande quantidade de mão de obra na produção da farinha também é apontado como negativo e justificador da erradicação da mandioca. Para se entender a radical mudança na visão de João Daniel sobre a farinha, os argumentos do filósofo argentino radicado no México, Enrique Dussel, podem ser úteis.

Nas conferências proferidas pelo filósofo, na Universidade alemã Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, em 1992, Dussel entende a modernidade como um fato não estritamente europeu, mas deste em relação dialética com o não europeu. Para Dussel (1993, p. 8), o ano de 1492 “[...] é a data de nascimento da Modernidade”. A chegada do europeu à América é o momento em que a Europa “[...] pode se definir como um ‘ego’ descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade” (Dussel 1993, p. 8, grifo do autor). Descobrir e conquistar a América marca no ego europeu o momento de transição de uma Europa periferia do mundo mulçumano para uma Europa centro da história mundial, e essa transição é marcada por “[...] um ‘mito’ de violência sacrifical muito particular e, ao mesmo tempo, um processo de ‘en-cobrimento’ do não-europeu” (Dussel 1993, p. 8, grifo do autor).

Dussel dá base para entender a mudança do ponto de vista de João Daniel em relação à farinha, o qual, mesmo descrevendo várias qualidades do alimento, propõe, em seguida, sua erradicação. Não é para menos! João Daniel falava de um ponto de vista eurocêntrico, colonizador. Embora reconheça a centralidade da farinha como alimento cotidiano, propunha a substituição ou “en-cobrimento” de um alimento ao qual, antes, tinha atribuído qualidades. É que, no entender de Daniel (2004, v. 2, p. 195), “[...] só com as searas da Europa pode haver fartura no Amazonas”.

O missionário criticava até mesmo os portugueses que haviam adotado o cultivo da mandioca e o uso da farinha em substituição aos cereais conhecidos na Europa. Propõe que os colonos “[...] deviam buscar melhor economia, e beneficiar melhor as terras, e não costumar-se ao rústico viver dos índios; porque não se hão de sujeitar os sábios ao brutal viver dos rústicos” (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 192).

Tudo indica que Daniel entendia a adoção do hábito alimentar dos indígenas, pelos portugueses, como algo negativo, pois implicava a sujeição do civilizado ao “viver dos rústicos”. Assim, o modo do rústico - entre os quais despontava a farinha de mandioca e seu uso - precisava ser erradicado, dominado, uma vez que interessava ao conquistador o controle sobre o cotidiano e suas práticas, incluindo as alimentares. Para Dussel (1993Dussel, E. (1993). 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade (Jaime A. Clasen, trad.). Vozes., p. 50):

A colonização da vida cotidiana do índio, do escravo africano pouco depois, foi o primeiro processo europeu de modernização, de civilização de subsumir (ou alienar) o Outro como si-mesmo; [...] como objeto de uma práxis erótica, pedagógica, cultural, política, econômica.

Segundo Dussel, o mito da modernidade tem um componente racional e irracional. O componente racional é aquele caracterizado como dotado de bondade, “mito civilizador”. Porém, esse “mito civilizador”, por sua vez, justifica a irracionalidade da violência contra o Outro. Aqui, violência deve ser entendida não apenas em sua dimensão física (escravização, genocídio), mas também em suas dimensões psicológicas, sociais, culturais e religiosas.

A conquista europeia sobre o território americano marcou a ascensão de um modelo de racionalidade, de ciência, de epistemologia e educação, de modo que o senso comum europeu se tornou o “[...] parâmetro e critério de racionalidade ou humanidade” (Dussel, 1993Dussel, E. (1993). 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade (Jaime A. Clasen, trad.). Vozes., p. 63), subjugando outras formas de saberes e processos educativos considerados brutos, atrasados, a exemplo dos saberes alimentares que derivavam da mandioca. Sob este ponto de vista, a mandioca configura-se, portanto, não apenas como fator de alimentação ou nutrição, mas também como elemento ora civilizador, ora atrasador do processo civilizatório em curso. Logo, como elemento pedagógico.

Assim, a conquista da Amazônia colonial não era apenas um desafio do ponto de vista do domínio territorial, controle e exploração comercial. A conquista também era uma missão pretensamente civilizadora-espiritual. “Todo ‘o mundo’ imaginário dos indígenas era ‘demoníaco’ e como tal devia ser destruído” (Dussel, 1993Dussel, E. (1993). 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade (Jaime A. Clasen, trad.). Vozes., p. 60, grifo do autor). Ao propor a substituição do cultivo da mandioca pelo trigo e demais searas da Europa, João Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto., p. 171), como membro da Companhia de Jesus, não excluía uma justificativa “cristã” ao alimento, pois segundo ele:

Já se sabe que o trigo tem em todas as searas o primeiro lugar, porque tem em toda casta de grão a primazia, e bastava para seu abono escolher o seu e o nosso Criador, e Redentor, o pão de trigo para nele se sacramentar no venerando, e tremendo Sacramento da Eucaristia.

Substituir um alimento pagão por outro ligado à liturgia católica se fazia necessário para uma efetiva catequização e domínio colonial. Assim, até mesmo nas questões do poder espiritual o alimento estava presente, extrapolando, com isso, a simples relação com a questão nutricional.

A escrita de Daniel (2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.) não é desprovida da ideia colonizadora de superioridade europeia. Diferentemente dos demais escritos de sua época, a retórica de João Daniel é um tratado, ou seja, um estudo técnico de como melhor se pode desenvolver determinadas ações. No caso do Tesouro, um projeto de desenvolvimento para as potencialidades do Rio Máximo, exposto principalmente na parte quinta e sexta - tanto do manuscrito que pertence à Biblioteca Nacional do Brasil quanto do que é preservado em Évora. Nas proposições para desenvolver a Amazônia, Daniel, tal como outros projetos criados de fora para dentro da Amazônia, não incluíam os saberes locais, antes os desautorizavam, descrevendo-os como “brutos” ou “rudes”.

Persistiu, contudo, a mandioca, e nessa persistência, ou melhor, permanência, não é possível deixar de assinalar a agência das mulheres indígenas. Foram essas mulheres anônimas que “[...] fizeram a farinha, assaram os bijus, cozinharam as refeições e preparam os remédios [...]”, atuando no silencioso esforço de garantir os cuidados cotidianos da vida e ensinar - como educadoras que foram - os saberes alimentares, muitos dos quais presentes ainda hoje em nossas refeições (Costa & Arenz, 2014Costa, D. F., & Arenz, K. H. (Orgs.). (2014). Patrimônio e história: os jesuítas na Amazônia. Editora Paka-Tatu., p. 78).

As plantas dominantes e suas formas de cultivo foram introduzidas em ambientes exóticos, alterando profundamente a vida dos homens. Seus movimentos de dispersão levaram séculos, por vezes milênios. Todavia, após a “descoberta” da América esses movimentos multiplicaram-se e aceleram-se. “As plantas do Velho Mundo chegaram ao Novo; inversamente, as do Novo Mundo chegaram ao Velho: de um lado, o arroz, o trigo, a cana-de-açúcar, o cafezeiro [...]; de outro, o milho, a batata, o feijão, o tomate, a mandioca, o tabaco” (Braudel, 1997Braudel, F. (1997). Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas do cotidiano. Martins Fontes., p. 144).

No caso da mandioca, Cascudo (2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil (4a ed.). Global.) revela um breve quadro de sua dispersão. Primeiro, pelo continente americano, em um fluxo contrário ao do milho, a mandioca teria saído do Sul para ser cultivada ao norte. Com a expansão marítima e comercial europeia, “[...] o português sacode a mandioca para o continente africano desde os primeiros anos da colonização” (Cascudo, 2011, p. 100). Onde as embarcações portuguesas aportassem e o clima permitisse, a mandioca era aclimatada. Assim:

A mandioca é plantada desde a Mauritânia, alto Senegal, e vem correndo litoral e simpatias até o Sudoeste, desde a Guiné, Costa do Marfim, do Ouro, Daomé, Togo, a Nigéria, Camerum, Gabão, Angola inteira. Pelo Congo vai ganhando sertão, rumo a contra costa, tanto em Quênia e Tanganica como em Moçambique, mesmo na proximidade dos lagos, enfrentando os velhos cereais “históricos” e locais. Não apenas a Manihot utilíssima foi exportada, mas seu complexo alimentar, o modo de cultivo, a preparação da farinha e dos bolos, mais encargo para a mulher negra como no Brasil era dever da cunha selvagem (Cascudo, 2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil (4a ed.). Global., p. 100, grifo do autor).

Coube, contudo, à mulher indígena o domínio original do “complexo alimentar” em torno da mandioca envolvendo uma diversidade de saberes que enriqueceram a mesa de muitos povos e sem o que a subsistência do europeu na América portuguesa não teria sido possível.

Considerações Finais

Digna do título de Rainha do Brasil, planta de civilização, alimento fundamental, a mandioca e sua forma de cultivo atravessou os séculos de forma quase imutável. Mesmo em nossa época de fast-food e alimentos industrializados, tem lugar cativo na mesa de boa parte da população brasileira, não só dos pobres. E todos querem sua porção de farinha, pois, como diz o ditado popular: “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

A proposta de João Daniel de extinção do cultivo da mandioca nunca foi colocada em prática e, se levada a sério, provavelmente, não teria obtido sucesso. Na Amazônia do século XVIII, o plantio de mandioca e a produção da farinha podem ser entendidos como elementos mediadores das relações entre indígenas e europeus. As trocas culturais mediadas pelo alimento assumem, portanto, uma dimensão educativa, uma vez que traduzem o fluxo global de pessoas e as permutas entre diferentes cozinhas (ameríndia, europeia e africana). Nessas trocas, as mulheres indígenas despontam como educadoras, ainda pouco reconhecidas pela historiografia, por meio das quais os saberes alimentares circulavam garantindo a sobrevivência de indígenas e europeus.

Ademais, a adoção destes últimos do sistema alimentar dos naturais possui caráter eminentemente educativo. Afinal, se o europeu incorporou a mandioca e a farinha na sua dieta, teve que aprender a técnica adequada de cultivo e manejo da terra, seleção de espécies e seus usos diversos. Neste particular, foram determinantes os saberes da mulher indígena relacionados aos múltiplos usos da mandioca: como comida, bebida, remédio. Tais saberes eram transmitidos em uma pedagogia do cotidiano, na repetição diária dos gestos, nas relações de sociabilidade que atravessavam a cozinha.

Ao tomar a mulher indígena como esposa ou para as tarefas domésticas, os adventícios trouxeram para próximo de si os saberes de que elas eram portadoras, envolvendo o trato da caça, do peixe, do preparo da farinha, beijús e tantos outros. Vale ressaltar, ainda, o papel essencial que as mulheres exerciam na produção das bebidas fermentadas embriagantes feitas de diversos produtos, em particular, da mandioca. Marcadas pela feminilidade, a produção das bebidas era central na transmissão dos valores indígenas, motivo pelo qual assumiam uma dimensão eminentemente pedagógica (Albuquerque, 2012Albuquerque, M. B. B. (2012). Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial. FCPTN.).

Rainha do Brasil, a farinha de pau causou discussões acaloradas que apontavam tanto suas virtudes quanto seu atraso na construção de um mundo “civilizado” segundo a lógica do colonizador. A proposta de seu completo desterro (Daniel, 2004Daniel, J. (2004). Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (Vol. 1 e 2). Rio de Contraponto.), contudo, não logrou sucesso, e a mandioca persiste e resiste como alimento essencial na cultura de inúmeros povos, muitos dos quais preferem a fome a ter que comer sem farinha.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2024
  • Aceito
    12 Abr 2024
  • Publicado
    07 Jul 2024
  • Publicado
    24 Jul 2024
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