Acessibilidade / Reportar erro

Cenas da violência contra a mulher: a descida ao cotidiano na literatura brasileira contemporânea

Writing violence against women: the descent into everyday life in Brasilian contemporary literature

Escenas de violencia contra las mujeres: el descenso al día cotidiano en la literatura brasileña contemporánea

Resumo

Com base em Veena Das (2020)DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. e sua leitura antropológica do elo entre vida e palavras no registro da violência na vida ordinária, o trabalho propõe uma leitura comparada de dois livros de escritoras brasileiras: Tudo é rio (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record.) e O peso do pássaro morto (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós.). Em ambos, o ato violento praticado contra a mulher estrutura a ordem narrativa, que entrelaça desejo de posse pelo corpo feminino à ocorrência de um trauma que se manifesta no corpo da escrita. Interessa apontar modos como a ficção das autoras brasileiras contemporâneas parece emergir das cenas cotidianas de violência contra a mulher e alcançar um espaço de rearranjo do sensível (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34.) fazendo da literatura campo de afetação de pessoas já habituadas ao testemunho da violência cotidiana. As autoras parecem operar um deslocamento do ato violento por meio do posicionamento ético-político da escrita literária, com base na violência encenada na literatura (Walty e Moreira, 2020WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.), a novas possibilidades de mobilização do leitor.

Palavras-chave:
escritas da violência; violência de gênero na literatura; escritas de autoria feminina; literatura brasileira contemporânea

Abstract

Inspired by Veena Das (2020)DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. and her anthropological reading of the link between life and words in the record of violence in ordinary life, this work proposed a comparative reading of two books by Brazilian female writers: "Evetything is River" (Carla Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record.) and "The weight of the dead bird" (Aline Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós.). In both works, the violent act committed against the woman structures the narrative order, intertwining the desire for possession of the female body with the occurrence of a trauma that manifests itself in the body of writing. The interest is in pointing out ways in which the fiction of contemporary Brazilian authors seems to emerge from everyday scenes of violence against women and reach a space for rearranging the sensible (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34.), making literature a field of affectation for people already accustomed to witnessing everyday violence. The authors seem to operate a displacement of the violent act through the ethical-political positioning of literary writing, based on the violence staged in literature (Walty and Moreira, 2020WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.), to new possibilities for mobilizing the reader.

Keywords:
writings of violence; gender violence in literature; women's literary production; contemporary Brazilian literature

Resumen

A partir de Veena Das (2020)DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. y su lectura antropológica del vínculo entre vida y palabra en el registro de la violencia en la vida cotidiana, este trabajo propone una lectura comparativa de dos libros de escritoras brasileñas: "Tudo é rio" (Carla Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record.) y "O peso do pássaro morto" (Aline Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós.). En ambos, el acto violento cometido contra la mujer estructura el orden narrativo, entrelazando el deseo de posesión del cuerpo femenino con la ocurrencia de un trauma que se manifiesta en el cuerpo escrito. Eso por señalar formas en que la ficción de las autoras brasileñas contemporáneas parece emerger de escenas cotidianas de violencia contra las mujeres y alcanzar un espacio de reordenamiento de lo sensible (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34.), haciendo de la literatura un campo de afectación para personas ya acostumbradas a presenciar la violencia cotidiana. Las autoras parecen operar un desplazamiento del acto violento a través del posicionamiento ético-político de la escritura literaria, a partir de la violencia escenificada en la literatura (Walty y Moreira, 2020WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.), hacia nuevas posibilidades de movilización del lector.

Palabras clave:
escritos de violencia; violencia de género en la literatura; escritos de mujeres; literatura brasileña contemporánea

INTRODUÇÃO

É preciso dizer que este trabalho nasceu de um luto com o mundo: do choque de assistir diariamente às notícias de mulheres perseguidas por seus parceiros, violentadas, abusadas, feridas e assassinadas, embora ainda seja difícil estimar o quanto os levantamentos iniciais dos anos de 2020 e 2021 por pesquisadores brasileiros já induzem à constatação de uma piora significativa dos índices gerais de violência doméstica como reflexo da pandemia de COVID-19 (Lima, 2021LIMA, Everton (2021). Violência contra as mulheres no contexto da COVID-19. Fiocruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/violencia-contra-mulheres-no-contexto-da-covid-19. Acesso em: 18 abr. 2023.
https://portal.fiocruz.br/noticia/violen...
). O levantamento de 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança PúblicaFÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (2023). Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4ª ed. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/visivel-e-invisivel-a-vitimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao/. Acesso em: 18 abr. 2023.
https://forumseguranca.org.br/publicacoe...
registrou o aumento em todas as formas de violência contra a mulher e constatou que mais da metade da população brasileira relatou ter visto uma mulher sofrer algum tipo de violência no seu bairro ou comunidade ao longo dos últimos 12 meses.

Atônita, assisto nos telejornais ao que parece ser a um ciclo sem fim de repetição de relatos de crimes contra a mulher (praticados, na maioria das vezes, por homens que são ou foram seus parceiros), enquanto me lembro das leituras de trabalhos de pesquisadores da violência encenada na literatura e no cinema brasileiro — com frequência se desdobram sobre obras poéticas pela expressão da violência em perspectiva masculina: o homicídio, a morte violenta e a brutalidade da vida na cidade, no aparato policial, em enfrentamentos ligados a certo ideal de masculinidade que habitualmente se manifesta na violência e que acontece na cena do espaço urbano. A violência contra homens é grande e, habitualmente, ocorre no ambiente de fora, na paisagem da cidade, o que faz os estudos da violência na literatura brasileira e em outras artes poéticas contemporâneas se voltarem para certa leitura da relação com o espaço social urbano. A crítica mais frequente é sobre o "realismo" periférico, com muitas pesquisas desdobrando-se sobre a estética violenta em fenômenos que encontram seu expoente na "Cidade de Deus" (Paulo Lins), mas também na recorrência da expressão da violência na paisagem urbana, em obras de ficcionistas como Marcelino Freire, Fausto Wolff, Marçal Aquino e outros.

Também em obras de autoria feminina (Ana Paula Maia e Conceição Evaristo, por exemplo), a violência situa-se na paisagem da cidade, mas é notável que ela não fica circunscrita ali: para as mulheres, movimentar-se é correr o risco da violência que está nas ruas. Há também o risco da violência que está dentro, alcançando espaços privados, como o trabalho e até mesmo o lugar que deveria ser sinônimo de abrigo e proteção, como o ambiente doméstico. Para nós, mulheres, não há fora da violência.

Cenas da violência contra a mulher na literatura brasileira contemporânea: corpus literário e corpos literários femininos

Começo com um trecho intitulado "Escrever a dor" em Vida e palavras, da antropóloga indiana Veena Das (2020DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp., p. 68):

A ausência de qualquer linguagem instável da dor talvez seja sintomática do fato de que não posso separar minha dor da minha expressão — outra maneira de dizer isso é que minha expressão da dor compele o outro de maneiras muito particulares — você não está livre para acreditar ou não acreditar em mim — nosso futuro está em jogo. Quero readentrar essa cena de devastação para perguntar como se pode habitar um mundo assim, que se fez estranho por uma desolador experiência de violência e perda. Cavell descreve isso como o gesto emersoniano de se aproximar do mundo mediante uma espécie de luto por ele. Algumas realidades precisam ser ficcionadas para que possam ser apreendidas.

É assim, inspirada pela antropologia da violência de Veena Das (2020)DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. e seu cuidado com o elo entre palavras e vidas, que faço um convite para que nos aproximemos — com delicadeza — de algumas cenas de violência contra a mulher na literatura brasileira contemporânea. Parece importante que possamos ler cenas da violência contra a mulher contadas por autoras de ficção; e, com Veena Das (2020)DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp., pensaremos que escrever a dor parte do luto da própria realidade. "Algumas realidades precisam ser ficcionadas para que possam ser apreendidas" (Das, 2020DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp., p. 68). A literatura, então, oferece-nos alguns caminhos a explorar a seguir, por seus diversos modos de colocar em cena a violência contra a mulher. Começo por aí: o que significa encenar a violência?

Embora o corpus literário aqui convocado para a leitura comparada entre duas escritoras brasileiras tenha várias dimensões possíveis enquanto escrita da violência, neste trabalho opero a crítica com base em duas cenas. Em cada livro, a leitura parte do trauma instaurado na construção narrativa da cena de violência contra a mulher praticada por um homem, seu parceiro, buscando perceber como a escrita expressa o fato.

Aqui, o elo entre escrita literária e violência é tomado da perspectiva de Ivete Walty e Terezinha Moreira (2020)WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas., para quem a estreita relação entre estética, ética e política é o ponto de partida, compreendendo não apenas o conceito de violência contra a mulher, mas também e principalmente como essa violência, enquanto ação, se inscreve no texto literário.

Assim a classificação da violência, mesmo que útil como ponto de partida da reflexão, só será produtiva na medida em que permitir seu estudo no exercício das relações de intersubjetividade, suas conjunções e suas rupturas. Essa seria uma forma de, à maneira de Bakhtin no estudo da língua, recusar o objetivismo abstrato e o subjetivismo individualista (1981, passim), detendo-nos na análise do exercício da violência inscrito no texto e pelo texto. Para isso, vale voltar a Rancière na sua postulação de que "a escrita é indissoluvelmente, duas coisas em uma: é o regime errante da letra órfã cuja legitimidade nenhum pai garante, mas é também a própria textura da lei, inscrição imutável do que a comunidade tem em comum" (1995, p. 9) (Walty; Moreira, 2020WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas., p. 17).

Como pretendo apontar, autoras frequentemente se valem da construção da cena da violência contra a mulher como momento-chave do encadeamento narrativo, em que a ficção torna efetiva nossa relação de vínculo com o presente histórico, com seus dissensos. Retomo a discussão nos termos de Jacques Rancière e Adnen Jdey em O método da cena (2021)RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adnen (2021). O método da cena. Belo Horizonte: Quixote. para apostar na potência da cena enquanto condensadora da história e do presente que partilhamos.

Um quadro visual; certo modo de estar e agir no espaço determinado em recorte temporal; a narrativa da disposição de objetos e sujeitos em uma paisagem… Afinal, o que são cenas? Aqui, tomamos as cenas como "pequenas máquinas teóricas construídas para encenar e questionar as partilhas ingênuas sobre as quais normalmente se fundam a dignidade do pensamento ou o rigor da ciência" (Rancière; Jdey, 2021RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adnen (2021). O método da cena. Belo Horizonte: Quixote., p. 26). Elas visam articular as redes da experiência do ordinário com a ordem ampliada das coisas e, por vezes, podem inverter hierarquias, realizando a partilha entre palavras enunciadas na escrita e palavras de outras e outros, encontradas nos fenômenos que buscamos apreender.

Na leitura aqui empreendida, a um só tempo, cenas são objeto, método e ação da escrita de pesquisa literária. Volto-me para as cenas da violência contra a mulher na literatura, pois elas condensam instantes "que dividem o tempo e tornam a ordem das coisas entregue à sua contingência" (Rancière; Jdey, 2021RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adnen (2021). O método da cena. Belo Horizonte: Quixote., p. 27). Falo de cenas de violência contra a mulher na literatura — dos seus corpos na escrita, dos corpos que escrevem e do corpo da própria escrita. O corpus literário é composto de dois livros de autoria feminina, Tudo é rio e O peso do pássaro morto, e ambos marcam a estreia de escritoras contemporâneas que seguem produzindo. Nesse corpus em leitura comparada, busco notar modos que a escrita encontra para expressar o peso da violência sobre corpos femininos e, também, sobre a escrita como potência tanto na perspectiva das "políticas da escrita" (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Rio de Janeiro: 34.) da ficção quanto na expressão do enfrentamento da violência de gênero.

Há algumas explicações para a força das cenas de violência nessas obras, porém minha perspectiva abdica de explicar pela via do sentido, para estar-com-os-sentidos por meio da interação do texto literário em seu jogo operado pelo texto: operar pela afecção e pelo potencial de impacto dessas obras, nos pactos éticos partilhados entre autor e leitoras/leitores, pelo modo como o texto literário faz a mediação dessas instâncias, criando determinada posição de testemunho perturbador partilhado nos livros escolhidos. Nas duas autoras, a escrita parece estar interessada em tornar a violência visível e intolerável, mediante acontecimentos traumáticos que se instalam no cotidiano de protagonistas mulheres violentadas brutalmente por homens que diziam amá-las — revelando o quanto a violência contra a mulher está entranhada em nossa realidade cotidiana, sendo brutal na realidade assim como na ficção.

A violência contra a mulher em Tudo é Rio

O romance de estreia de Carla Madeira foi o segundo livro de ficção mais vendido no Brasil em 2021. Em Tudo é rio (2021), a escrita-fluxo traz a metáfora da violência avassaladora, das águas que afundam o corpo. Nas palavras do presságio da narradora: "Venâncio, quando viu a barriga de Dalva crescer foi vendo crescer nele um ciúme doentio. Mas era tarde, não comandava o curso do rio. Estava feito" (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 20).

A cena de violência que será nosso ponto de entrada acontece logo no início do romance. Ainda não fomos apresentados aos detalhes do amor de Dalva e Venâncio, que depois são desenvolvidos. Entramos na história por outra personagem, Lucy, uma puta que se apaixona por Venâncio, mas não consegue atrai-lo, o que faz sua obsessão pelo homem aumentar. Os dois primeiros capítulos apresentam essa relação de desencontro em uma escrita que coloca o corpo feminino de Lucy em cena, em que o erotismo parece ser o modo de entrada na ambiência do romance. Estamos imersos no ambiente do puteiro, somos participantes do gozo livre de Lucy com seu "corpo indecente, que convidava aos berros línguas e mãos" (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 15), que tenta de todo modo retirar Venâncio do abismo "entediado" diante do sexo. É depois de nos introduzir nesse mundo de gozo e recusa que somos apresentados à cena de violência no capítulo 3 do romance.

O capítulo começa com a afirmação de que Venâncio e Dalva se casaram apaixonados "perdidamente", ou, como a narradora expressa, "pareciam eternos de tão juntos. Um saboreava o outro" (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 19). Mas a notícia da gravidez de Dalva parece o presságio do mal:

Naquele dia, Venâncio podia ter saído, já estava lá fora no portão, quando pôs sentido na bexiga cheia e pesada. Voltou para mijar. Nos últimos anos, a lembrança desse segundo, o preciso momento em que decidiu voltar, provocava nele uma aflição sem alívio. O filho tinha nascido de manhã, quando ele entrou no quarto, Dalva oferecia o bico do peito para o menino. Os olhos de Venâncio pararam ali, sentiu uma dor de infidelidade, traição, a nuca esquentou num quase desmaio, Ela punha na boca do menino o bico do seio que era dele, o bico, acordado e nu, estava lá entumecido, pronto, sem que ele o tivesse excitado.

A boca do neném buscava ansiosa o peito farto e úmido querendo sugar, engolir e ainda tão sem saber. O mamilo se dobrava passando na boquinha pequena, querendo ser pego por ela. Dalva se entregava a uma emoção única, da mais comovente ternura. O momento dela e do filho cegou Venâncio de uma absurda loucura. Ele arrancou o menino dos braços dela e jogou longe, bateu em Dalva, bateu, bateu, espancou (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 20-21).

A cena narrada parece ter um modo ambivalente de mobilização da sensibilidade de leitoras e leitores: aproximamo-nos da imagem da mãe amamentando o filho pela ação de Venâncio. O movimento narrativo de mostrar a ação "acidental" do homem ao retornar da rua para o espaço interno da casa se torna o guia de nossa leitura: no início, é o próprio olhar masculino que nos convida a entrar na casa e testemunhar a cena de amamentação; com os olhos de Venâncio, vemos no gesto um ato erótico. Dalva "punha na boca do menino o bico do seio que era dele" (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 20-21), um bico entumecido que Venâncio percebe como sinal de excitação.

Pelo encadeamento narrativo, acompanhamos a antecipação da violência pelo olhar da personagem masculina. Ao princípio, o filho do casal não é apresentado nessa condição, mas como outro ser masculino que toma o corpo da mulher que era do homem. A amamentação — imagem simbólica do primeiro cuidado de mãe que contém um corpo ofertado a outro corpo que dela depende — aparece narrada de um modo a nos apresentar o gesto como erótico, na perspectiva de Venâncio. Mas na sequência imediata, com o corte de um parágrafo, a narradora desloca-nos sutilmente à posição de testemunho da cena. A transição expressa-se na escolha de palavras, pela qual transitamos do olhar masculino dominante (que percebe o corpo feminino como seu domínio) para outro olhar, que vê a amamentação por meio do vínculo entre mãe e filho.

São algumas as escolhas feitas pela autora para promover essa passagem, de um parágrafo a outro. No primeiro, sob o olhar de Venâncio, a palavra é "o menino"; no segundo parágrafo, "neném" de "boquinha pequena" em um momento de "ternura" entre Dalva e o "filho". Quando Venâncio reaparece na cena narrativa, irrompe com brutalidade no momento, e a violência consuma-se contra esposa e filho. O corte abrupto instaura-se na cena maternal, e retornamos ao ponto de partida, pela palavra escolhida: Venâncio não arremessa o "filho", mas o "menino". O sutil deslizamento das palavras na cena: de menino, neném, filho a mais uma vez menino. Nas passagens construídas pela narrativa, o retorno da mesma palavra já não significa a partilha do olhar masculino. Quando Venâncio arremessa o "menino", seu ato é de tratar o filho como objeto. Primeiro, menino-homem que devora "sua" mulher. Depois, neném-filho que é arrancado da mãe para ser, por fim, atirado como objeto. Esse paradoxo habita os dois parágrafos que apresentam a cena de violência dupla, não apenas contra o próprio filho recém-nascido, como também contra Dalva, que em poucas linhas passa de amante a propriedade. É assim que a ação violenta se apresenta como "fim" de uma sequência de acontecimentos narrativos — que antecipava a tragédia pelo olhar masculino.

A cena de violência é narrada com certa distância que permite a estrutura da narrativa "de fora"; os momentos que antecedem o ato violento parecem vívidos e detalhados. Já a própria violência descrita aparece breve e incisiva. Venâncio "bateu em Dalva, bateu, bateu, espancou" (Madeira, 2021MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., p. 21). Difícil virar essa página reveladora da ação brutal e, quando o fazemos, encontramos o capítulo 4 como imagem de um vazio no luto do mundo. Capítulo de apenas uma palavra, centralizada no branco imenso da página: "Dor". A narrativa leva-nos a viver o silêncio, que passará a ocupar o espaço do sofrimento no destino de desencontro das personagens já apresentadas, fazendo ressoar o depois da violência. Desse silêncio, erige-se o romance.

A violência parece inaugurar vários lutos: o do filho de Dalva e Venâncio, o do amor entre o casal, o de Venâncio mesmo (que parece ausentar-se da vida, arrependido da sua ação brutal). Mundos perdidos derramam-se nos próximos 32 capítulos. O texto literário opera na (re)invenção de corpos e vidas, por meio de fragmentos de perda, com a repercussão dos efeitos da violência sobre todos: não apenas sobre as vítimas (Dalva e o filho), mas também sobre o perpetrador da violência (Venâncio) e sobre Lucy, a puta que se refaz com o desejo não correspondido e a impossibilidade de trazer Venâncio de volta à vida.

Assim, em Carla Madeira (2021)MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., o romance articula o luto do mundo pela violência indizível nascida do silêncio, que curiosamente permanece um enigma para a personagem de Lucy em quase toda a narrativa, o que a faz ser, a um só tempo, mulher obscena e desejante e também terceira na relação perdida de Dalva e Venâncio. Aqui, a escrita não elabora tensões; ela é erótica e amorosa, encontro e desencontro, amor e violência, morte e reparação pelo perdão, ultrapassando definições puras. O texto literário explora tensões entre amor e posse, pornografia e erotismo, dizendo não apenas da dor como também do desejo feminino, enquanto apresenta o amor masculino revestido de controle do corpo feminino e, ao mesmo tempo, arrependimento e morte em vida para Venâncio.

Embora de outro modo, a cena da violência contra a mulher em O peso do pássaro morto também é um definidor para o desdobramento da narrativa a partir da "perda do mundo" pela protagonista. Não como explicação, mas como narrativa de uma sequência de acontecimentos brutais que se sucedem ao estupro — violência que irrompe e impacta mais do que o mundo da vítima protagonista, colocando não apenas o seu corpo, porém igualmente outros corpos, em luto.

A violência contra a mulher em O peso do pássaro morto

Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós. escreve em uma estrutura narrativa típica do gênero romanesco, em sucessão temporal, com desdobramento de ações sobre a vida da personagem protagonista, mas constrói na página uma organização visual da escrita com jeito de poesia. Nas páginas da escrita-imagem, desenha-se uma tensão constante entre o peso e a leveza: a leveza da escrita, o peso da violência que paira sobre a sequência de acontecimentos que afetam a vida da personagem.

O peso do pássaro morto também é o livro de estreia de Bei pela editora independente Nós. Na descrição da própria autora, presente em redes sociais digitais e engajada com o trabalho de divulgação de sua escrita, o livro não é chamado de "romance", mas de "trabalho literário", já que a escrita é difícil de situar em um gênero literário específico. Para além de estar de acordo com a recusa ao enquadramento por parte da autora, a leitura que aqui proponho reconhece que estar entre modalidades de escrita não parece ser um desconcerto, mas uma virtude da literatura de Aline Bei. As palavras têm não só sentido no plano do enunciado, mas sobretudo são uma "presença" performada na página, o que faz com que sua escrita da violência alcance não apenas outra expressão, mas outro modo de agir na sensibilidade de leitoras e leitores.

Aqui, a violência irrompe na narrativa, porém é antecipada por acontecimentos que dão contorno à cena, tanto na perspectiva imagética quanto narrativa. Em Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., o luto do mundo é antecipado e reencenado por várias imagens, antes de o estupro se tornar um fato narrativo. O livro organiza-se por recortes temporais da vida da protagonista e correspondem a diferentes capítulos: aos 8 anos, ao 17, aos 18, aos 28, aos 37, aos 48, aos 50, aos 52 anos e em um quadro final chamado de "póstumo".

A cena de violência sexual aparece no capítulo dos 17 anos (o segundo), mas o anterior já antecipa a metáfora do luto do mundo em vida, com a memória fragmentária de várias cenas de uma infância marcada pela perda de amizades que desorienta e desorganiza a conexão da protagonista com as pessoas e o mundo ao seu redor. No capítulo dos 17 anos, acompanhamos uma jovem que está descobrindo o desejo e a vontade do gozo, por meio da paixão por Pedro. A força erótica aparece em várias descrições que confundem elementos objetivos com a paisagem emocional da protagonista. Então, em um show com a amiga Paula, na protagonista (de quem não sabemos o nome) o desejo se manifesta no acontecimento de um beijo a três, entre ela, a amiga e outro homem que assistia ao show.

O beijo, flagrado por uma câmera, vira imagem que circula na escola e cria uma situação de múltiplas violências: Pedro enraivece-se por ser tomado como o "namorado corno", enquanto a protagonista vira alvo tanto de outros estudantes quanto do amante, que a acusa de "puta". Mas nada disso é suficiente para afastar a protagonista do homem com o orgulho ferido. Com esperança de perdão e reconciliação, ela recebe Pedro em casa, para que a cena de violência sexual se apresente:

desci as escadas correndo num quase tropeço

quando abri a porta

o Pedro

tinha 1 Faca

que colou no meu

pescoço

meu grito

morreu no estômago

junto com o chute que ele me deu (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 58).

O detalhamento descritivo que se segue nos permite ver a imagem do estupro na perspectiva da protagonista, que narra como Pedro "mastigava meus peitos pronto para arrancar o bico", "arrancou o pau pra fora", "socou o pau até o fundo mais impossível da minha garganta", "abriu minhas pernas e meteu com pressa de olho fechado" (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 58-59). Em Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., a escrita de violência investe no minucioso detalhamento descritivo. É possível visualizar cada palavra-detalhe enquanto se lê, tanto em sua parte na totalidade quanto nos pequenos detalhes que parecem, por vezes, ser metonímicos e condensar o sentido de concretude, do corpo da violência ao corpo da letra.

A autora concretiza a violência não apenas na narrativa crua e detalhada das ações de suas personagens. Sua escrita também se expressa na força mínima da letra: ao início da cena, Pedro grafado com P maiúsculo. Pedro como uma pessoa, antes da violência, aparece depois durante o ato como "o pedro" que ria enquanto cometia o estupro. Ao final, é dito "e eu melada O chão de ardósia O Pedro subiu as calças" (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 60).

Na escrita de Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., o uso da minúscula é frequente em uma narração fluida, que faz as palavras deslizarem na página. O uso de sinais gráficos, espaçamento e recuos, a variação no tamanho (corpo da letra), bem como a disposição das frases, letras e palavras na página, são elementos expressivos. Essas intervenções deixam de ser lidas como recurso convencional da escrita, podendo abrir a leitoras e leitores novos caminhos de interpretação pelas escolhas mínimas e significativas, como a simples troca de minúscula por maiúscula. Pedro é pedro e também O Pedro — próximo, não humano, até que se torne distante. O recurso é usado para objetos que ganham mais peso como a Faca — grafada com F maiúsculo —, com a força de ação sobre a protagonista (ironicamente, sem nome, talvez apontando para o sentimento de im-propriedade sobre si mesma).

O luto do mundo pela violência atinge a protagonista e deixa marcas que se desdobrarão em uma cadeia de desencontros ao longo da vida, nos próximos capítulos: aos 18 anos, no nascimento do filho e, a partir daí, em toda a trajetória marcada pela incapacidade de se conectar com o filho e o mundo. Isso se propaga em vários quadros sucessivos de recortes temporais de sua vida: na infância do filho, na saída dele para a universidade, na tentativa de visitá-lo, no casamento no exterior, do qual a mãe não participa, e, por fim, na sua morte e na cena póstuma. Os desencontros serão a própria matéria por meio da qual a protagonista construirá suas imagens de sobrevivência.

O luto do mundo é metamorfoseado pela escrita, assim como Ítalo Calvino (2015)CALVINO, Ítalo (2015). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. postula sobre a leveza como uma das cinco propostas para o atual milênio: "A literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver" (Calvino, 2015CALVINO, Ítalo (2015). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras., p. 41). Importante lembrar que o autor também lia nas imagens que fazem parte do imaginário popular das mulheres bruxas que voavam em cabos de vassoura uma "constante antropológica nesse nexo entre a levitação desejada e a privação sofrida" (Calvino, 2015CALVINO, Ítalo (2015). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras., p. 42), interpretando ser essa capacidade de invenção de imagens que transmuta o peso em leveza como o "dispositivo antropológico" perpetuado pela literatura. O peso sobre o corpo feminino habita narrativas desde há muito, como sabemos.

Em Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., o luto transfigurado pela escrita toma várias formas: como na imagem do imitar o voo da borboleta da amiga Carla na infância, depois evocada na imagem do voo das cartas que a protagonista faz para a amiga morta (e que descobre com sofrimento não terem força para atravessar o céu, apenas atravessando o muro para a casa da vizinha). Nesse momento, aparece pela primeira vez a imagem do pássaro:

Eram as cartas para carla, que merda

avião de papel não viaja o céu inteiro.

então pensei em pedir ajuda pro's

passarinhos.

eu colocaria a carta no bico e eles

entregariam como fazem nos correios (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 42).

Em vários outros momentos da narrativa, os passarinhos aparecem como alegorias, ora de leveza, ora de sofrimento: na infância do filho, quando ele pergunta sobre o pai, a protagonista desconversa cantando a canção do "sabiá lá na gaiola fez um buraquinho" (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 99); ainda na infância do filho lucas (com L minúsculo), quando ele usa o Estilingue (com E maiúsculo) para atirar pedras nos passarinhos com os amigos, vemos a projeção da imagem do pai Pedro sobre o filho (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 85):

penso

que nunca

vou esquecer a morte

daqueles pássaros

ou a noite do Pedro em casa

corto um tomate

pra fazer o almoço

e penso que o tomate sou eu

a faca

é o Pedro, já cortei meu dedo assim uma porção de vezes, com outras frutas também, mas o tomate

por ser vermelho

e ceder já no primeiro

corte,

principalmente.

às vezes

penso que só lembrarei dessas duas coisas pro resto da vida, a minha mão na cara do lucas, a mão do Pedro na minha cara,

a cara do lucas e a cara do

Pedro, acima de qualquer

memória (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 97).

Por vezes, a perda do mundo transfigura-se com o desvio de uma imagem de um espaço narrativo a outro: como na imagem do cachorro bravo que atacou sua amiga até a morte ("a carla morreu de Cachorro" — Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 23), que reaparece no desejo da protagonista de compartilhar sua história de dor com o filho (Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 74) e finalmente se transfigura quando, aos 37 anos, a protagonista se vê diante de outro cachorro e escolhe acolhê-lo ("— seu nome vai ser Vento" — Bei, 2017BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., p. 107), transmutando a imagem do animal de um ponto a outro da narrativa.

Aqui resgato o conceito de alegoria em Walter Benjamin (1984)BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.: em oposição à conciliação pacificadora entre ético e estético do símbolo romântico, derivada da separação de forma e conteúdo, Benjamin (1984)BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. apresenta a riqueza dialética da alegoria. Mais do que ilustração concreta de um conceito abstrato, a alegoria deve ser compreendida como forma de expressão, e isso significa dizer que ela não cinde forma e conteúdo. A alegoria é expressão na linguagem, simultaneamente dos elementos sensível e suprassensível. Em oposição a um símbolo de interioridade não contraditória, que unifica conteúdo ético na forma estética, a alegoria guarda sua riqueza expressiva no movimento dialético entre extremos. Acontece, pois, no movimento.

Assim, tomo a imagem do pássaro não como emblema unificador, tal como Benjamin (1984)BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. percebia no símbolo romântico, mas como alegoria que se desdobra em várias imagens com sentidos errantes ao longo do romance, expressando a dualidade entre peso e leveza na narrativa. O peso do luto, o peso do pássaro morto: a leveza da escrita, a leveza da imagem do voo e da forma da letra mínima na página. Essas múltiplas imagens se abrem no texto e revelam, em seus muitos desdobramentos ao longo do romance, a oscilação indecidível sobre a qual o romance parece se construir. Ora imagem de leveza, ora de sofrimento, os pássaros são como a escrita de Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós.: sustentam o desvio da própria escrita, que parte do luto instaurado pela violência contra a protagonista para a construção do texto literário.

Considerações finais: testemunho da violência e pacto ético-sensível com leitoras e leitores

Como procurei mostrar, com base no conceito de cena como método (Rancière; Jdey, 2021)RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adnen (2021). O método da cena. Belo Horizonte: Quixote., a escrita das autoras brasileiras contemporâneas Carla Madeira e Aline Bei, em Tudo é rio e em O peso do pássaro morto, parece indicar-nos um caminho para a ressensibilização do olhar sobre a violência. As cenas performam uma estética fundamentada na perspectiva ético-política da expressão literária tal como articulada por Rancière (1995)RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Rio de Janeiro: 34., ao encenar a violência como estrutura narrativa, e não apenas como um "acontecimento anômalo" chocante, que apela ao sensível de leitores na excitação instantânea e se esgota no tempo. A dor perdura nas vidas das personagens tanto no plano do enunciado quanto na forma escrita — tornando-se o impulso do movimento da expansão narrativa, tanto temporal quanto espacialmente.

A escrita parece nascer do luto da realidade em consequência da violência, embora se expresse de modos bastante distintos: em Carla Madeira (2021)MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record., na estrutura romanesca clássica com investimento no erotismo paralelamente à brutalidade do fato; em Aline Bei (2017)BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós., com uma inventiva capacidade de narrar fora das fronteiras do gênero narrativo, explorando ao limite a estrutura mínima da escrita até a força irredutível da letra, em seu corpo visível na página.

Por fim, parece ser importante assinalar como a cena da violência, em ambos os livros, se torna um acontecimento que instaura o interdito: tanto a protagonista sem nome de O peso do pássaro morto quando Dalva de Tudo é rio se recusam, ainda que de modos distintos, a falar sobre o ocorrido. No plano do enunciado, a violência é conhecida pelas vítimas e pelos algozes, apenas. Mas, no plano da enunciação e na construção narrativa, conhecemos a violência de outra maneira: pela perspectiva das autoras mulheres, em suas escritas, que fazem de nós, leitores, suas testemunhas — convocando-nos para o jogo.

A violência marca os acontecimentos ficcionais posteriores em uma cadeia de lutos e desencontros com o outro. Paradoxalmente, é pelo silêncio das personagens vítimas que se constrói a escrita da violência. Tal parece ser a potência da escrita: ficcionar para acolher e fazer ressoar a partilha do sofrimento feminino em um campo ampliado, além da trajetória individual das personagens — mulheres de ficção escritas por mulheres autoras. Retomando Veena Das (2020DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp., p. 68), "outra maneira de dizer isso é que minha expressão da dor compele o outro de maneiras muito particulares — você não está livre para acreditar ou não acreditar em mim — nosso futuro está em jogo".

Diante da violência ficcionada, é mesmo nosso futuro que está em jogo. Diante dos dois trabalhos literários trazidos nesta leitura comparada, já não podemos virar o olho — deixar de ver a violência (ainda que reste a opção de fechar o livro) não a fará desaparecer. O projeto de afecção de leitores parece construir um contexto ficcional em que as relações desiguais entre gênero na sociedade atravessam ideais de relacionamento amoroso e posse do corpo feminino.

Tanto no espaço social de uma cidade pequena em Tudo é rio quanto no espaço urbano de O peso do pássaro morto se encena a violência como presença em múltiplos espaços, como a cidade, a rua, a escola e, principalmente, a casa. Todos são espaços de estranhamento, não há lugar de abrigo ou defesa para as personagens vítimas — a violência contra a mulher habita espaços íntimos (parece-me fundamental notar que ambas as mulheres sofrem violência em seus lares, e o espaço ficcional interior torna-se o espaço social, no sentido da violência de gênero). Mas também encontra espaço na matéria viva que é a palavra. Literatura como acolhida da violência para sua transfiguração: espaço-limiar que articula a violência entre o público e o privado, rearranjando a experiência de corpos femininos em desalinho na escrita.

Referências

  • BEI, Aline (2017). O peso do pássaro morto São Paulo: Nós.
  • BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
  • BENJAMIN, Walter (1987). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. (Obras Escolhidas, v. 1.)
  • CALVINO, Ítalo (2015). Seis propostas para o próximo milênio São Paulo: Companhia das Letras.
  • DAS, Veena (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.
  • FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (2023). Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil 4ª ed. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/visivel-e-invisivel-a-vitimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao/ Acesso em: 18 abr. 2023.
    » https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/visivel-e-invisivel-a-vitimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao/
  • LIMA, Everton (2021). Violência contra as mulheres no contexto da COVID-19. Fiocruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/violencia-contra-mulheres-no-contexto-da-covid-19 Acesso em: 18 abr. 2023.
    » https://portal.fiocruz.br/noticia/violencia-contra-mulheres-no-contexto-da-covid-19
  • MADEIRA, Carla (2021). Tudo é rio Rio de Janeiro: Record.
  • RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita Rio de Janeiro: 34.
  • RANCIÈRE, Jacques (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34.
  • RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adnen (2021). O método da cena Belo Horizonte: Quixote.
  • WALTY, Ivete Lara Camargos; MOREIRA, Terezinha Taborda (org.) (2020). Violência e escrita literária Belo Horizonte: Editora PUC Minas.
Editores: Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz
Editor de Seção: Patricia Trindade Nakagome

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2023
  • Aceito
    18 Abr 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com