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Energia renovável e extrativismo verde: transição ou reconfiguração?1 1 Agradecemos o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Fundação Rosa Luxemburgo.

Resumo

O artigo discute as implicações de projetos implementados por corporações do setor energético a partir do uso que fazem das noções de transição energética, descarbonização e energia renovável. Procedemos à análise de documentos de organizações empresariais, da sociedade civil, do governo brasileiro e das Nações Unidas com dados e representações sobre projetos de eólicas e de produção de hidrogênio verde, assim como entrevistas realizadas com mulheres da Comunidade Quilombola do Cumbe, localizada no município de Aracati/Ceará, atingida por um projeto de energia eólica. Procuramos desenvolver uma análise que coloque em relação contrastiva o discurso de instituições multilaterais e empresariais que justificam as energias ditas limpas como meio de combate às mudanças climáticas e, por outro lado, a percepção de populações atingidas por um projeto de energia eólica quanto aos impactos e ao sentido que atribuem a tais projetos.

Palavras-chave:
Transição Energética; Energia Renovável; Eólicas; Hidrogênio Verde; Mudança Climática; Extrativismo Verde; Conflito Ambiental

Abstract

This article discusses the implications of projects implemented by corporations in the energy sector based on their use of the notions of energy transition, decarbonization and renewable energy. We analyzed documents from business organizations, civil society, the Brazilian government and the United Nations containing data and representations regarding wind power projects and the production of green hydrogen. Interviews were also conducted with women from the quilombola community in Cumbe, located in the municipality of Aracati, in the Brazilian Northeastern state of Ceará, who have been affected by a wind power project. We have sought to develop an analysis that contrasts, on the one hand, the discourse of multilateral institutions and corporations that justify so-called clean energies as a means of combating climate change and, on the other, the perceptions of populations affected by a wind energy project in terms of the impacts and meaning they attribute to such projects.

Keywords:
Energy Transition; Renewable Energy; Wind Power; Green Hydrogen; Climate Change; Green Extractivism; Environmental Conflict

Se isso é energia limpa, não imagino o que seria a suja

Cleomar Ribeiro da Rocha, Quilombola e Pescadora do Território Quilombola do Cumbe

1. Introdução

O debate ambiental no plano interacional tem se concentrado crescentemente no tema das mudanças climáticas e nas estratégias políticas e tecnológicas, justificadas pela necessidade de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Instituições multilaterais e empresariais propõem-se a adotar processos de transição energética, empregando ou estimulando o emprego de energias ditas renováveis através de instrumentos financeiros e de lógicas de compensação. Entre as estratégias de investimento e de autolegitimação ambiental de suas práticas, grandes corporações têm se envolvido em projetos de produção de hidrogênio verde obtido a partir da construção de parques eólicos, caracterizado como fonte de energia renovável e limpa.

No cenário de apropriação corporativa do debate climático, investimentos em energia solar e eólica têm apresentado forte crescimento, acompanhando o que vem sendo chamado de “a nova promessa do hidrogênio verde”, o “combustível do futuro” alegadamente destinado a reduzir as emissões de carbono e frear a mudança climática (Faber, 2023FABER, R. Série Carreira na Economia Verde. São Paulo: Exame, 2023.). O Brasil, em particular, ocupa o 6º lugar no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo (Abeeólica, 2022ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENERGIA EÓLICA. Relatório Anual 2021. ABEEólica, 2022.), sendo que 85% destes projetos estão concentrados na Região Nordeste (Agência Brasil, 2023AGÊNCIA BRASIL. Capacidade de geração de energia eólica deve bater recorde neste ano. Agência Brasil, 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-04/capacidade-de-geracao-de-energia-eolica-deve-bater-recorde-neste-ano . Acesso em: abril de 2023.
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). Estudo publicado pela consultora alemã Roland Berger, em janeiro de 2023, projeta que o hidrogênio verde será a principal fonte de energia do planeta, podendo o mercado brasileiro vir a movimentar R$ 150 bilhões por ano, dos quais mais de 60% serão provenientes de exportações (Soares, 2023SOARES, J. P. Hidrogênio verde promete turbinar parceria Brasil-Alemanha. Deutsche Welle Brasil, 03 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/hidrog%C3%AAnio-verde-promete-turbinar-parceria-brasil-alemanha/a-64599718.
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). Trata-se de um combustível crescentemente apresentado como alternativa viável para substituir os combustíveis fósseis e, a partir do qual, o Brasil poderia assumir uma posição de liderança na transição energética. Estas estimativas e projeções em torno ao hidrogênio têm sido frequentemente utilizadas para caracterizar um processo dito de “nova revolução verde” (Faber, 2023FABER, R. Série Carreira na Economia Verde. São Paulo: Exame, 2023.).

Assim, com o avanço dos acordos climáticos e, principalmente, após as consequências geopolíticas da guerra entre Rússia e Ucrânia, ao lado da expansão da fronteira energética convencional do petróleo, gás e carvão, a noção de energia renovável vem sendo apropriada pelas corporações para se legitimar e expandir o controle sobre o mercado energético, impondo políticas e projetos ditos de transição energética, apresentados como instrumento de combate às mudanças climáticas. Concentrado em propostas de mudanças técnicas, o discurso da transição energética parece inscrever-se na lógica da modernização socioecológica do capitalismo (Acselrad, 2022ACSELRAD, H. (org). Neoxtrativismo e Autoritarismo: afinidades e convergências. Rio de Janeiro: Garamond, 2022.) que busca se apresentar como comprometido com a defesa do meio ambiente, o enfrentamento da mudança climática e o combate à pobreza. A estratégia não seria mais a de negar os efeitos deletérios do capitalismo extrativista, mas, sim, a de afirmar a complementariedade entre as formas de energia e a capacidade de as eólicas compensarem os impactos negativos das atividades industriais baseadas em energia convencional.

No âmbito dos territórios concretos de instalação de infraestruturas energéticas, empreendimentos como os grandes parques eólicos em terra (onshore) ou no mar (offshore), a partir dos quais se pode produzir o chamado “hidrogênio verde”, vêm sendo, por sua vez, questionados por comunidades atingidas, movimentos e organizações sociais em razão das implicações socioambientais negativas que ocasionam, por suas dimensões, pelos impactos de seus processos de instalação, pela privatização dos territórios, entre outros danos que os levam a colocar em questão a própria noção de renovabilidade (Furtado; Paim, 2020FURTADO, F.; PAIM, E. A noção de energia renovável e conflitos e resistências desde as comunidades. In: Encontro Anual da Anpocs, 44., 2020 . GT10 - Conflitos e desastres ambientais: colonialidade, desregulação e lutas por territórios e existências. 2020. Disponível em: https://encurtador.com.br/tzCRZ.
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; Instituto Terramar, 2021INSTITUTO TERRAMAR. Hidrogênio - um portador de energia limpa?. Fortaleza: Terramar, 2021. Disponível em: https://terramar.org.br/2021/06/11/novas-propostas-para-a-matriz-energetica-brasileira-se-amparam-na-reproducao-de-danos-ambientais-e-violacoes-de-direitos /. Acesso em: janeiro de 2023.
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). A perspectiva crítica dos grupos atingidos questiona o entendimento da energia como recurso natural explorável, dissociado das relações sociais envolvidas em sua produção, em seu uso, na distribuição e manejo de seus efeitos. Este questionamento tem implicações, por certo, sobre os próprios usos das noções de energia renovável e transição energética.

Assim, o presente texto discute as implicações de projetos implementados por corporações do setor energético a partir do uso que fazem das noções de transição energética, descarbonização e energia renovável. Procuramos desenvolver uma análise que coloque em relação contrastiva o discurso de instituições multilaterais e empresariais, que justificam as energias ditas limpas como meio de combate às mudanças climáticas e, por outro lado, a percepção de populações atingidas por um projeto de energia eólica quanto aos impactos e ao sentido que atribuem a tais projetos.

Para tanto, procedemos à análise de documentos de organizações empresariais, da sociedade civil, do governo brasileiro e das Nações Unidas, com dados e representações sobre projetos de eólicas e de produção de hidrogênio verde, assim como entrevistas realizadas com mulheres da Comunidade Quilombola do Cumbe, localizada no município de Aracati/Ceará, atingida por um projeto de energia eólica. O material empírico, aqui trabalhado, provém das atividades do Intercâmbio entre Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra-Águas na Chapada do Apodi e na Foz do Jaguaribe no Ceará, realizadas durante os cursos de extensão “Direitos e Saberes Feministas em Tempos de Pandemia”, realizado em 2021, e “Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra”, em 2022.2 2 Os referidos cursos foram promovidos pela Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. A partir dos depoimentos, então recolhidos, procuramos mostrar como as chamadas “transições energéticas” podem favorecer, como no caso em estudo, não uma ruptura, mas uma continuidade das atividades de extração e exportação de recursos dos territórios, assim como a geração de conflitos ambientais. Isso, junto com leituras sobre outros projetos de eólicas no Ceará (Faustino, Tupinambá; Meirelles, 2023FAUSTINO, C.; TUPINAMBÁ, S.V.; MEIRELLES, A. Impactos e Danos Socioambientais da Energia Eólica no Ambiente Marinho-Costeiro no Ceará. São Paulo: Instituto Terramar; Fundação Rosa Luxemburgo, 2023. Disponível em: https://rosalux.org.br/impactos-e-danos-socioambientais-da-energia-eolica-no-ambiente-marinho-costeiro-no-ceara /. Acesso em: novembro de 2023.
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), nos ajudaram a refletir também sobre como a transição energética pode favorecer uma possível intensificação da corrida por terra e território.

2. Transição energética e extrativismo verde: complementação e compensação

O artigo está estruturado da seguinte forma: breve introdução apresentando o tema, objetivos e a metodologia; na parte 2 reunimos dados sobre a evolução da produção de energia e dos projetos de hidrogênio verde como parte do discurso da transição energética, evocado por instituições intergovernamentais e empresariais justificando a adoção, nos territórios do Sul Global, das tecnologias apresentadas como solução à crise climática global; na parte 3 trataremos das implicações territoriais do parque eólico da empresa CPFL Renováveis sobre a Comunidade Quilombola do Cumbe à luz da noção de ecogovernamentalidade climática; em considerações finais problematizaremos as justificativas ambientais da transição energética ante as práticas espaciais das empresas produtoras de energias ditas limpas.

O debate sobre a transição energética vem ocorrendo, com particular força, no contexto dos acordos e das políticas climáticas, em especial da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, sigla em inglês), a partir do consenso estabelecido e difundido pelo Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês) de que a dependência nos combustíveis fósseis é a principal causa da mudança climática (IPCC, 2023IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. AR6 Synthesis Report: Climate Change 2023. IPCC, 2023. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle /. Acesso em: abril de 2023.
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). Vale ressaltar, antes de tudo, que apesar de iniciativas isoladas tomadas sob a alegação de buscar reduzir os investimentos em energia fóssil e diversificar a produção de energia, os hidrocarbonetos e o carvão continuam predominando nos discursos e práticas dos agentes dominantes. A porcentagem de combustíveis fósseis na matriz energética global tem se mantido por volta de 80% durante décadas (International Energy Agency, 2022bIEA. International Energy Agency World Energy Outlook. Paris, october 2022b. Disponível em: https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2022 . Acesso em: abril de 2023.
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). De acordo com o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, divulgado em março de 2023, em 2019 a contribuição dos combustíveis fósseis, em termos de todas as emissões de CO2 da economia, foi: carvão 33%, petróleo 29% e gás 18%. Além disso, o financiamento público e privado para os combustíveis fósseis no mundo continua em alta, alcançando em média US$ 120 bilhões por ano no setor de energia, superando os investimentos nas chamadas políticas de adaptação e mitigação do clima entre 2019 e 2020. Em termos de comparação, o financiamento público global real para adaptação foi de US$ 46 bilhões (IPCC, 2023IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. AR6 Synthesis Report: Climate Change 2023. IPCC, 2023. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle /. Acesso em: abril de 2023.
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). Estudos revelam que os planos de extração de combustíveis fósseis no mundo, se executados, levariam à ultrapassagem da meta de 1,5 ºC de aquecimento; em 2030 as corporações do setor extrairão 120% a mais de combustíveis fósseis do que deveriam (UNEP, 2019UNEP. United Nations Environment Programme. The Emissions Gap Report 2019. 26 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.unep.org/resources/emissions-gap-report-2019 . Acesso em: janeiro de 2023.
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). No caso do Brasil, vale mencionar o encontro promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em outubro de 2023, “Caminhos para Transição Energética Justa no Brasil”, que difundiu, em particular a partir de falas do presidente do Banco Aloizio Mercadante, do governador do Amapá Clécio Luiz e do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, a necessidade de abrir uma nova fronteira de exploração de petróleo na costa norte do país (Climainfo, 2023CLIMAINFO. BNDES, Petrobras e o “jogo dos erros” do petróleo na foz do Amazonas. ClimaInfo, 16 de outubro de 2023. Disponível em: https://climainfo.org.br/2023/10/15/bndes-petrobras-e-o-jogo-dos-erros-do-petroleo-na-foz-do-amazonas/.
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).

Ao mesmo tempo, de acordo com o Relatório do IPCC (2023)IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. AR6 Synthesis Report: Climate Change 2023. IPCC, 2023. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle /. Acesso em: abril de 2023.
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, seria preciso reduzir drasticamente a dependência de combustíveis fósseis na produção de energia e mudar para uma eletrificação generalizada usando energia renovável. Entre as fontes de energia mencionadas, inclusive em termos da redução de custos, podendo agora competir com os combustíveis fósseis, está a energia solar, eólica em terra e mar e baterias de íons de lítio. Relatório anterior do IPCC afirmava que “as transições energéticas podem fornecer soluções para muitas questões globais, incluindo esforços contra as mudanças climáticas, a realização do desenvolvimento sustentável, e a melhoria do bem-estar humano”, criando “um caminho dinâmico e inevitável” (UN, 2021UN. United Nations. Theme Report on Energy Transition. Towards the Achievement of SDG 7 and Net-Zero Emissions. United Nations, Department of Economic and Social Affairs, 2021., p. 12).

Assim, duas semanas antes da 26a Conferência das Partes (COP-26) da UNFCCC, realizada em 2021, o Conselho Global de Energia Eólica e mais de 90 outras partes -o que o Conselho denominou de “líderes globais” -, lançaram um alerta: “as instalações de eólica precisam aumentar quatro vezes os níveis atuais para que a fonte possa fazer seu papel de ajudar os países a atingir o net zero até 2050” (Abeeólica, 2022ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENERGIA EÓLICA. Relatório Anual 2021. ABEEólica, 2022., p. 2). Zerar as emissões líquidas, conceito central hoje no cumprimento de metas de redução de emissões de CO2 nos acordos de clima, significa chegar ao ponto em que todas as emissões de gases do efeito estufa (GEE) causadas pela atividade humana se “equilibrem” com a remoção ou captação de carbono da atmosfera. Ou seja, nesta lógica, não será preciso reduzir todas as emissões causadas pelas atividades “humanas”, como as que resultam da queima de combustíveis fósseis ou dos veículos. As emissões que continuam a ser geradas podem ser “equilibradas” ou “compensadas” com a quantidade equivalente de remoção ou captação de carbono (Furtado, 2021bFURTADO, F. Clima S.A. Soluções Baseadas na Natureza e Emissões Líquidas Zero. Rio de Janeiro: Fase, 2021b.).

Apesar da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica) afirmar que “a transição energética precisa ser muito mais rápida”, a energia eólica no Brasil terminou o ano de 2021 com 795 usinas e 21,57 GW de potência instalada; um aumento de 21,53% em relação a dezembro de 2020. Em 2021, foram instalados 110 novos parques eólicos e 1 foi revogado, num total de 3,83 GW de nova capacidade, representando um recorde em termos de instalação para a eólica no país. Foi a fonte de energia elétrica que mais cresceu em 2021; a segunda foi a solar fotovoltaica, com 17,95%. A nova capacidade eólica instalada em 2021 fez a fonte atingir uma participação de 11,8% da matriz elétrica brasileira no fim de 2021 (Abeeólica, 2022ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENERGIA EÓLICA. Relatório Anual 2021. ABEEólica, 2022.), atrás da hidráulica (56,8%) e do gás natural (12,8%). O governo brasileiro se orgulha em afirmar que “a matriz elétrica brasileira é baseada em fontes renováveis de energia, ao contrário da matriz elétrica mundial” (EPE, 2022EPE. Empresa de Pesquisa Energética. Balanço Energético Nacional Ano Base 2021. Brasília: EPE, 2022 Disponível em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/balanco-energetico-nacional-2022 . Acesso em: dezembro de 2022.
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).

De acordo com o Global Wind Energy Council (GWEC), o Brasil terminou o ano de 2021 como o terceiro país que mais instalou eólicas no mundo, passando a ser o 6o colocado em termos de capacidade instalada. Recebeu US$ 5,15 bilhões (R$ 27,81 bilhões) de investimentos para o setor eólico, representando 44% dos investimentos realizados em renováveis (solar, eólica, agrocombustíveis, biomassa e resíduos, PCH e outros) (BNEF, 2023BNEF. Bloombergnef. Energy transition Investment Trends 2023: tracking global investments in the low-carbon energy transition. BloomergNEF, 2023. Disponível em: https://assets.bbhub.io/professional/sites/24/energy-transition-investment-trends-2023.pdf.
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).

Muitos destes projetos de eólicas estão diretamente relacionados com a possível exportação de hidrogênio verde, especialmente para a União Europeia. De forma concisa, sem entrar em detalhes técnicos e especificidades químicas, a produção de hidrogênio pode ser catalogada em dois grandes conjuntos: a) como parte dos processos da indústria dos hidrocarbonetos (incluindo a indústria petroquímica) através do processamento do gás natural, petróleo ou carvão e, b) através da eletrólise, utilizando eletricidade para separar o hidrogênio do oxigênio da água, sendo essa a matéria prima do processo (Pérez Macías, 2021PÉREZ MACÍAS, L. F. El hidrógeno, la nebulosa promesa del mercado de las energías renovables. Documento de trabajo. Red de Energía y Poder Popular en América Latina, 2021. Disponível em: https://rosalux-ba.org/wp-content/uploads/2021/08/Red-Energia-y-Poder-Popular.pdf . Acesso em: abril de 2023.
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). O hidrogênio é um gás incolor, mas existem cerca de nove códigos de cores para identificá-lo, conforme a Tabela 1 (H2 Bulletin, 2023H2 BULLETIN. Hydrogen colours code. 2023. Disponível em: https://www.h2bulletin.com/knowledge/hydrogen-colours-codes /. Acesso em: março de 2023.
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).

Tabela 1
Códigos de cores do hidrogênio

Atualmente, a produção de hidrogênio se baseia em tecnologias de combustíveis fósseis, com mais de um sexto do fornecimento global sendo derivado de instalações e processos da indústria petroquímica. Segundo a Agência Internacional da Energia (IEA, sigla em inglês), a produção de hidrogênio com baixas emissões de dióxido de carbono representou menos de 1% da produção total de hidrogênio nos anos 2021, 2022 e 2023. No “Cenário Líquido Zero” (Net Zero Scenario), a produção planejada de hidrogênio de baixa emissão será de 95 milhões de toneladas, mais da metade da produção global do gás até 2030. Nesta projeção, cerca de dois terços será através de eletrólise, enquanto o outro terço será produzido a partir de combustíveis fósseis e com captura e armazenamento de carbono (IEA, 2022aIEA. International Energy Agency. Hydrogen Supply. Tracking report. September 2022a. Disponível em: https://www.iea.org/reports/hydrogen-supply . Acesso em: abril de 2023.
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).

Segundo dados da consultora Wood Mackenzie, o Brasil liderou o volume de anúncios de projetos de produção de baixo carbono no primeiro trimestre de 2021, apresentando 0,6 milhões de toneladas/ano de um total de 2,4 milhões de toneladas/ano, através do registro de 55 anúncios no mundo todo. Os projetos para produção de hidrogênio “verde” no Nordeste do Brasil vêem crescendo nos últimos anos, tendo a região despontado como um dos polos para produzir e exportar hidrogênio, principalmente para a União Europeia (Casarin, 2021CASARIN, R. Brasil lidera anúncios de projetos de hidrogênio no 1º trimestre, diz Wood. Portal Solar. 11 de junho de 2021. Disponível em: https://www.portalsolar.com.br/noticias/tecnologia/outras-fontes/brasil-lidera-anuncios-de-projetos-de-hidrogenio-no-1-trimestre-diz-wood . Acesso em: fevereiro de 2023.
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). Muitos destes portfólios antecederam a instituição do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), que aconteceu somente em agosto de 2022, através da aprovação da resolução nº 6, de 23 de junho de 2022, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Vale ressaltar que, baseado na narrativa da importância do hidrogênio verde para a promoção de uma economia de baixo carbono e de metas de emissões líquidas zero até 2025, em julho de 2022, combinando fundos do BNDES FINEM-Meio Ambiente e o Fundo Clima, o BNDES lançou o Programa BNDES Hidrogênio Verde com o objetivo de incentivar projetos pilotos do combustível. Em janeiro de 2023, o Ministério de Minas e Energia lançou o plano de trabalho trienal (2023-2025) do PNH2 com o objetivo de criar as bases para o mercado de hidrogênio no país. Mais recentemente, em março de 2023, o Senado criou uma comissão especial para debater políticas públicas sobre hidrogênio verde. Também está em trâmite no Senado, o Projeto de Lei 725, de 2022, que estabelece os parâmetros para o uso do hidrogênio sustentável no país, de autoria do ex-senador Jean Paul Prates, atual presidente da Petrobras.

O setor corporativo, principalmente das petroleiras, interessado na produção de hidrogênio, vem promovendo a geração de energia eólica no mar (offshore). Em dezembro de 2022, chegou a 70 o número de projetos protocolados para licenciamento ambiental junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) (Vasconcelos, 2023 VASCONCELOS, G. Empresas encaminham projetos de geração de energia eólica em alto-mar. Estadão, 03 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/coluna-do-broad/empresas-encaminham-projetos-de-geracao-de-energia-eolica-em-alto-mar /. Acesso em: abril de 2023.
https://www.estadao.com.br/economia/colu...
). Mesmo na ausência de medidas regulatórias para o setor, em março de 2023, a Petrobras anunciou que avaliará sete projetos offshore com a Equinor, empresa petroleira norueguesa (Teixeira Jr., 2023 TEIXEIRA JR., S. Petrobras e Equinor estudam US$ 70 bi em eólicas offshore. Petroleiras assinam acordo para avaliar viabilidade de sete parques no litoral brasileiro. Reset Newsletter. 2023. Disponível em: https://www.capitalreset.com/petrobras-e-equinor-estudam-us-70-bi-em-eolicas-offshore/?utm_campaign=070323_-_bolsa_de_carbono__petro_equinor&utm_medium=email&utm_source=RD+Station . Acesso em: abr. 2023.
https://www.capitalreset.com/petrobras-e...
).

A ausência de definições regulatórias não impede a assinatura de diversos memorandos entre empresas estrangeiras e governos estaduais para a produção de energia renovável e hidrogênio verde. O Ceará, até final de outubro de 2022, havia assinado 24 documentos relacionados ao projeto do governo de tornar o Estado o principal produtor de energia renovável do país e de construir um complexo de instalações industriais relacionado à produção de hidrogênio verde no Porto do Pecém (Ceará, 2022CEARÁ. Governo do Ceará chega a 24 memorandos de entendimento assinados sobre energia renovável. 2022. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2022/10/26/governo-do-ceara-chega-a-24-memorandos-de-entendimento-assinados-sobre-energia-renovavel /. Acesso em: abril de 2023.
https://www.ceara.gov.br/2022/10/26/gove...
). Empresas como AES Brasil, Fortescue, Linde, Qair, Engie, EDP Renováveis são algumas das que assinaram memorandos com o governo do Ceará, somando 8 GW em capacidade de eletrólise para produzir 1,3 milhão de toneladas de hidrogênio verde por ano (Machado, 2022 MACHADO, N. EDP produz sua primeira molécula de hidrogênio verde no Ceará. 16 de dezembro de 2022 . Atualizado em 24 de abril de 2023. Disponível em: https://epbr.com.br/edp-produz-sua-primeira-molecula-de-hidrogenio-verde-no-ceara /. Acesso em: abril de 2023.
https://epbr.com.br/edp-produz-sua-prime...
).

Em âmbito federal, em março de 2023, foi reafirmada a intenção de colaboração na área energética entre Brasil e Alemanha. Os ministros de Minas e Energia do Brasil e do Ministério Federal de Economia e Proteção Climática da Alemanha vão liderar a “Parceria Energética Brasil-Alemanha” que passou a fazer parte do Acordo sobre Cooperação no setor de energia, assinado em 2008. De acordo com o comunicado conjunto, o Grupo de Trabalho Hidrogênio Verde da Parceria Energética apoiará o fortalecimento da cooperação em energia entre os dois países e na implementação de políticas públicas e investimentos privados. No documento não há menção sobre transferência de tecnologia, mas sim “o interesse em contar com o engajamento de atores brasileiros na promoção da exportação de hidrogênio verde e produtos derivados para a Alemanha” (Brasil-Alemanha, 2023BRASIL; ALEMANHA. Parceria Energética Brasil-Alemanha. Comunicado Conjunto Brasil-Alemanha. 13 de março de 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/investimento-alemao-podera-alavancar-projetos-de-hidrogenio-de-baixo-carbono-no-brasil/CommuniquM.Habeck.pdf . Acesso em: abril de 2023.
https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/no...
).

Desde o início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1º de janeiro de 2023), o Brasil já recebeu pelo menos três visitas de autoridades de alto nível e empresários da Alemanha, tendo como destaque o tema da transição energética. Diretamente relacionado a este assunto, também houve a visita da vice-presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, no mês de março, quando esta demonstrou o interesse em expandir parcerias da União Europeia para a exploração de matérias primas estratégicas para a indústria verde, como minerais críticos (terras raras, lítio, cobalto e nióbio). Frente a instabilidade no suprimento de energia relacionada com a guerra entre Rússia e Ucrânia, a Alemanha e a União Europeia estão em busca de alternativas.

Neste contexto, os países da América Latina que possuem potencial de geração de energia solar e eólica, chave para a produção e exportação de hidrogênio verde e outros recursos estratégicos, estão enfrentando a crítica daquilo que ativistas e estudiosos/as estão categorizando como “extrativismo verde”. Ou seja, uma lógica que não se diferencia do neoextrativismo a não ser pelos discursos utilizados para garantir a sua legitimação. Retóricas originadas no Norte Global buscam relacionar certas tecnologias, a serem implementadas em territórios do Sul Global, com a perspectiva de solução da crise climática (Ulloa, 2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
https://doi.org/10.4067/S0718-3402202100...
; Dietz, 2022DIETZ, K. Transición energética y extractivismo verde. La transición energética en Europa anuncia el extractivismo verde en América Latina. Fundación Rosa Luxemburg, Oficina Región Andina, septiembre de 2022. Disponível em: https://rosalux.org.ec/pdfs/transicion-energetica-y-extractivismo-verde.pdf . Acesso em: abr. 2023.
https://rosalux.org.ec/pdfs/transicion-e...
). A transição energética impulsionada, principalmente, por países do Norte Global como os Estados Unidos e os da Europa com seus New Green Deal, mas também países “emergentes” como a China, como veremos mais adiante, e suas corporações, têm graves implicações para os povos e territórios dos países do Sul Global (Bringel; Svampa, 2023BRINGEL, B.; SVAMPA, M. Do “Consenso das Commodities” ao “Consenso da Descarbonização”. Nueva Sociedade, n. 306, 2023. Disponível em: https://nuso.org/articulo/306-del-consenso-de-los-commodities-al-consenso-de-la-descarbonizacion/.
https://nuso.org/articulo/306-del-consen...
). A geopolítica da transição energética reforça o papel subordinado e dependente das economias dos países do Sul Global frente ao capitalismo global, permitindo a apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativistas e financeiras (Delgado, 2012DELGADO, G. Do Capital Financeiro na Agricultura à Economia do Agronegócio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Paulani, 2013PAULANI, L. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações sobre o caso brasileiro. Estudos Avançados, v. 27, n. 77, p. 237-264, 2013.). Uma dependência que, nesse contexto, não é só político-econômica e financeira, mas também ecológica (Acselrad, 2023ACSELRAD, H. Capitalismo extrativo. A Terra é Redonda, 03 de jun. 2023. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/capitalismo-extrativo /. Acesso em: outubro de 2023.
https://aterraeredonda.com.br/capitalism...
); evocando-se a necessidade de combater a mudança climática, reproduzem-se mecanismos de dominação e de colonialidade (Hazlewood, 2010HAZLEWOOD, J. A. Más allá de la crisis económica: CO2lonialismo y geografías de esperanza. Íconos - Revista de Ciencias Sociales, n. 36, Quito, enero de 2010.).

Com efeito, no caso brasileiro, a narrativa que tem buscado justificar a inserção do hidrogênio na matriz energética tem girado em torno a supostos investimentos financeiros, geração de postos de trabalho e exportação para os países do Norte Global (Dietz, 2022DIETZ, K. Transición energética y extractivismo verde. La transición energética en Europa anuncia el extractivismo verde en América Latina. Fundación Rosa Luxemburg, Oficina Región Andina, septiembre de 2022. Disponível em: https://rosalux.org.ec/pdfs/transicion-energetica-y-extractivismo-verde.pdf . Acesso em: abr. 2023.
https://rosalux.org.ec/pdfs/transicion-e...
; Sander, 2023SANDER, I. Uso de hidrogênio verde pode gerar R$ 62 bilhões e 41 mil empregos no RS até 2040. GZH Ambiente, 16 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/ambiente/noticia/2023/02/uso-de-hidrogenio-verde-pode-gerar-r-62-bilhoes-e-41-mil-empregos-no-rs-ate-2040-cle7aix9g006g013q13druv70.html.
https://gauchazh.clicrbs.com.br/ambiente...
; Com Reuters, 2023COM REUTERS. UE sinaliza investimento de R$ 10,5 bi em hidrogênio verde no Brasil; entenda esse combustível. País tem condições de liderar globalmente a produção dessa fonte de energia. Folha de São Paulo, 13 de junho de 2023. [Atualizado em 14 de junho de 2023]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/ue-sinaliza-investimento-de-r-105-bi-em-hidrogenio-verde-no-brasil-entenda-esse-combustivel.shtml .
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
). Juntamente a demais países da América Latina e África, na referida transição energética, caberia ao Brasil o papel de provedor de “recursos naturais” e de mão de obra barata para os objetivos da alegada transição energética verde global. Isto porque há distintos caminhos e estratégias para as transições energéticas. Ulloa (2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
https://doi.org/10.4067/S0718-3402202100...
) destaca a distinção entre as transições energéticas sociais e as transições institucionalizadas. No caso das transições sociais, as propostas partem de organizações e movimentos sociais que buscam enfrentar a problemática da mudança climática a partir de questionamentos ao capitalismo extrativista. Em sua diversidade, tendem a levar em consideração, dinâmicas econômicas e políticas sistêmicas, além das territoriais, em particular as que afetam povos e comunidades. Apresentam propostas específicas sobre como deixar os combustíveis fósseis no subsolo, descentralizar a produção de energia e garantir autonomia energética num mundo pós-extrativista. Aí encontramos noções como justiça ambiental e territorial, mas também “transição energética justa, inclusiva e solidária”; “transição energética pela vida”; e, “transição energética justa e popular”. Além de demandar novas fontes de energia, essas propostas centram-se na necessidade de repensar a vida a partir da perspectiva da justiça e de mudanças no modelo econômico.

As transições institucionalizadas, por outro lado, envolvem governos e corporações, além de grandes organizações conservacionistas, que respondem aos acordos globais ambientais, em especial o climático, a partir da lógica da ambientalização, ou seja, da incorporação de justificativas ditas ambientais a seus atos e procedimentos, fazendo da crítica às mudanças climáticas uma oportunidade de acumulação e de legitimação. A descarbonização, que define as propostas deste campo, está centrada na produção de energia renovável através de modelos econômicos lucrativos. Assim, projetos de energia eólica e fotovoltaica, além do hidrogênio verde, são sustentados em novos processos sociotécnicos e sociopolíticos, aduzindo razões ambientais e climáticas ao discurso do desenvolvimento e do progresso. Ou seja, não se questiona o extrativismo industrial, mas propõem-se formas de complementá-lo e compensá-lo (Ulloa, 2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
https://doi.org/10.4067/S0718-3402202100...
). O Secretário de Geologia, Mineração e Transformação do Ministério de Minas e Energia (MME) do governo do Jair Bolsonaro, Alexandre Vidigal, por exemplo, explicitou o modo como a energia dita limpa demandará mais produção de minérios, valorizando a noção de sustentabilidade por esta, supostamente, estimular a produção mineral:

Quando falamos em energia limpa, em energia verde, quando estamos atrás de novos recursos de geração de energia, armazenamento de energia [...], quando falamos em energia fotovoltaica [...], estamos falando exatamente daquilo que os bens minerais podem oferecer. Então hoje temos uma lógica muito clara - quanto mais se ampliar o discurso da sustentabilidade, mais estaremos ampliando também o discurso da necessidade dos recursos minerais, dos bens minerais. Não há como dissociar uma coisa e a outra […]. Quanto mais sustentabilidade, mais recursos minerais precisaremos (apudPolítica Mineral..., 2020POLÍTICA MINERAL: o programa do governo para a mineração. Brasil Mineral, 22 de julho de 2020. Disponível em: https://www.brasilmineral.com.br/noticias/o-programa-do-governo-para-minera%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: julho de 2020.
https://www.brasilmineral.com.br/noticia...
).

Para além deste tipo de associação interessada entre energia limpa e extrativismo industrial, quando o foco da transição energética é posto na medição, captura, armazenamento e compensação do carbono, o debate se despolitiza, ocultando as causas da crise climática estruturalmente associadas ao consumismo e à obsolescência programada, legitimando o capitalismo extrativista e, a fortiori, não dando conta das desigualdades sociais, de raça, gênero embutidas na produção e consumo de energia (Moreno; Chassè; Fuhr, 2016MORENO, C.; SPEICH, D.; FUHR, L. A Métrica do Carbono: abstrações globais e epistemicídio ecológico. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll , 2016.). Cria-se “um fetichismo do CO2, em torno ao qual nossos sonhos ambientais, aspirações, contestações, como também políticas, se cristalizam”, na perspectiva de “estabilizar o clima para que o capitalismo continue funcionando para sempre” (Swyngedouw, 2010SWYNGEDOUW, E. Apocalypse Forever? Post-political Populism and the Spectre of Climate Change. Theory, Culture & Society. v. 27, n. 2-3, 2010. p. 213-232., p. 219 e 222). Sendo o inimigo externo à sociedade, a cura do problema poderia estar, por sua vez, dentro do próprio sistema, legitimando-se assim os mecanismos de mercado e da compensação.

Ao mesmo tempo, em alguns casos, a linha que separa as transições energéticas sociais, por vezes ressignificadas pelos agentes dominantes, e as transições institucionalizadas, fica cada vez mais tênue. Os termos utilizados, como a própria ideia de transição e energia renovável e limpa; as metodologias e as tecnologias propostas frequentemente como um fim, tendo como exemplo a energia solar e as próprias eólicas - em alguns casos com argumentos de que no mar pode ter menos impacto e que frente a emergência climática algum custo é necessário -, são crescentemente contraditórias e ambíguas, parecendo, no que diz respeito a suas implicações políticas, ambientais e territoriais, similares entre si (Ulloa, 2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
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). Justificativas ambientais são atribuídas a reconfigurações técnicas de um capitalismo que continua concentrando o poder sobre os recursos do território, em lugar de se adotar

[...] transformaciones radicales socioambientales que […] buscan un cambio radical de las relaciones estructurales capitalistas en torno al control, acceso, y apropiación territorial y ambiental como “recursos”, para posicionar otras formas de vida posibles y una justicia ambiental relacional. (Ulloa, 2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
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)

3. Implicações territoriais da transição energética e a CPFL Renováveis

A carcinicultura nos tirou os lagos e as eólicas nossas dunas

Cleomar Ribeiro da Rocha, Quilombola e Pescadora do Cumbe

Como mencionado anteriormente, grande parte da produção de hidrogênio verde será resultante da instalação de parques eólicos. A análise dos efeitos deste “novo” e “revolucionário” combustível passa por um tratamento das implicações territoriais dos parques eólicos. Diversas pesquisas foram produzidas sobre os efeitos dos parques eólicos, a exemplo dos trabalhos de Araújo (2015) ARAUJO, J. C. H. As tramas da implementação da energia eólica na zona costeira do Ceará: legitimação e contestação da “energia limpa”. 2015. Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.e de Gorayeb, Brannstrom e Meireles (2019GORAYEB, A.; BRANNSTROM, C.; MEIRELES, A. J. A. Impactos socioambientais da implantação dos parques de energia eólica no Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2019. 304 p. Disponível em: http://www.observatoriodaenergiaeolica.ufc.br/wp-content/uploads/2019/07/livro_web.pdf Acesso em: mar. 2023.
http://www.observatoriodaenergiaeolica.u...
). Examinaremos aqui as relações entre o discurso da energia renovável e da transição energética e a experiência da Comunidade Quilombola do Cumbe, composta de aproximadamente 170 famílias e 800 pessoas, que vivem do mar, das dunas e do mangue, localizada no município de Aracati, no litoral leste no Ceará, a cerca de 160 quilômetros de Fortaleza, afetada pelas atividades da empresa CPFL Renováveis. Além do parque eólico, a comunidade é também atingida pela carcinicultura, empreendimentos turísticos e pelo derramamento de petróleo que afetou o litoral nordestino em 2020 (Brasil, 2022). Em função disto, nos termos de Cleomar Ribeiro da Rocha (2022ROCHA, C. R. Sessão IX - Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re)existências. Apresentação durante Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78SbY . Acesso em: abril de 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78...
a), quilombola, pescadora Cumbe, a sua comunidade pode ser entendida como “uma distribuidora de água e de energia”. Em 2008 se instalou nessa comunidade um dos maiores parques eólicos do Ceará. Com 67 aerogeradores, inicialmente implementados pela empresa Bons Ventos, mas hoje administrado pela CPFL Renováveis, o parque passou a ocupar uma área de aproximadamente 1.546ha, cercando a Comunidade Quilombola do Cumbe, obrigada a pedir permissão para circular dentro do seu próprio território (Jucà; Betim, 2021).

A CPFL Renováveis, maior geradora de energia eólica do país, é “uma empresa geradora de energia limpa a partir de fontes renováveis” e “presente nos quatro tipos principais de produção sustentável: eólica, pequenas centrais hidrelétricas, termelétricas movidas a cana-de-açúcar e solar” (CPFL ENERGIA, 2023CPFL ENERGIA. Estrutura Acionária e Societária. CPFL, 2023. Disponível em: https://cpfl.riprisma.com/show.aspx?idCanal=s+78jgyHqZFHM4kmlz0plA== . Acesso em: março de 2023.
https://cpfl.riprisma.com/show.aspx?idCa...
). A empresa, criada em 2011, tem 94 ativos, distribuídos em 58 municípios do Brasil, que somam 2.1 GW de capacidade instalada. Pertence ao grupo CPFL Energia, maior grupo privado do setor elétrico brasileiro. A CPFL Energia é uma holding, ou seja, uma empresa com estrutura central que administra diferentes empresas de um mesmo grupo. Atualmente, é controlada pela State Grid Corporation of China (SGCC) que adquiriu o controle da CPFL Energia em janeiro de 2017 da Camargo Corrêa e dos fundos de pensão Previ, Fundação Cesp, Sabesprev, Sistel e Petros (CPFL ENERGIA, 2017CPFL ENERGIA. State Grid adquire o controle acionário da CPFL Energia. 2017. Disponível em: https://encurtador.com.br/auQS7 . Acesso em: março de 2023.
https://encurtador.com.br/auQS7...
). A CPFL Renováveis é controlada pela CPFL Energia (49,1502%) e pela CPFL Geração (50,8498%) (CPFL ENERGIA, 2023CPFL ENERGIA. Conheça o Plano ESG 2030 da CPFL Energia. CPFL, 2023. Disponível em: https://cpflsolucoes.com.br/plano-esg-2030-cpfl/.
https://cpflsolucoes.com.br/plano-esg-20...
).

É importante destacar o papel das empresas Chinesas nessa empresa, pois, com a acelerada industrialização do país desde os anos 2000, houve um aumento no consumo de energia acompanhado de planos de modificação da matriz energética para a produção de energia a partir das fontes “renováveis”. Assim, o papel da China na construção de parques eólicos pelo mundo vem anualmente atingindo recordes.

O avanço das corporações chinesas na América Latina não é algo novo. Há alguns anos diversos autores e autoras vêm apontando uma transição do vértice dinâmico da economia global do Atlântico para o eixo Ásia-Pacífico, que ganhou força a partir, em especial, da emergência econômica chinesa nos anos 2000. Parte da estratégia de desenvolvimento da China tem sido a de avançar sobre novos mercados, além de se transformar no destino da maior parte das commodities minerais, energéticas e agrícolas do mundo. Mecanismos de cooperação Sul-Sul também têm feito da China um parceiro importante para a Ásia, África e América Latina. O Brasil não é exceção; conta com uma crescente presença de capital chinês controlando importantes ativos nos setores de construção, automobilístico e bancário, mas fundamentalmente nos setores energético (petróleo, gás e hidroeletricidade) e de mineração. A China é o maior destino das exportações brasileiras e um dos maiores investidores e credores do Brasil (Aguiar, 2017AGUIAR, D. A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia brasileira. Rio de Janeiro: Action Aid; Fase, 2017.).

A China é, por sua vez, o país líder no ranking global das emissões de GEE e de metano atualmente advindos, principalmente, dos setores de energia e industrial. Seu maior desafio é a dependência ao carvão. Assim, ao ratificar o acordo de Paris da UNFCCC e um acordo com os Estados Unidos, a China se comprometeu, entre outras coisas, a alcançar a neutralidade de carbono até 2060 através, por exemplo, de investimentos em energias renováveis (Mattos et.al, 2023MATTOS, B.; AMIGO, C.; BOLETTA, C.; PEIXOTO, M. B.; PEREIRA, M. C.; PAPAGIANNIS, P. Ambição climática dos países BRICS. Rio de Janeiro: Plataforma Socioambiental BPC; PUC, 2023.). Buscando garantir “segurança energética” e difundir tecnologia para a energia solar e eólica, o país lidera investimentos em energia renováveis no mundo, contando com empresas como a State Grid e a China Three Gorges (CTG) que têm 48% e 60% dos seus ativos investidos no Brasil, respectivamente. A América Latina e Caribe é o destino de um terço dos investimentos da China em eólica e solar; o Brasil, considerado um país com lacunas e oportunidades no campo das energias renováveis, é um parceiro estratégico (Nunes, 2023NUNES, T.; UNGARETTI, C. R.; MARCO, G.; MENDONÇA, M. A. Financiamentos chineses de projetos de energias renováveis na América Latina: uma análise à luz dos desafios das mudanças climáticas. Boletim de Economia e Política Internacional, n. 35, 2023.). Em termos de eólicas, as empresas chinesas controlam aproximadamente 17% da capacidade total no país, em pelo menos 7 Estados, nas regiões Nordeste e Sul. Além da State Grid e da CGN, atuam também a CTG e SPIC. A State Grid é líder em capacidade de geração eólica, com aproximadamente 1.500 MW, com a maior quantidade de parques eólicos, distribuídos, sobretudo, nos estados do Rio Grande do Norte (RN), Ceará (CE) e Rio Grande do Sul (RS) (Nascimento, 2023 NASCIMENTO, M. L. A corrida pela transição energética: geopolítica da relação sino-brasileira no setor energético e a resistência dos povos tradicionais do litoral cearense. 2023. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe/IPPRI/Unesp. São Paulo, 2023. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/243072.
http://hdl.handle.net/11449/243072...
).

Um sinal da importância da China no setor energético brasileiro é a designação, em maio de 2023, do vice-presidente na State Grid Brazil Holding para o cargo de vice-presidente do Conselho de Administração do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O ONS é responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN), e pelo planejamento da operação dos sistemas isolados do país, sob a fiscalização e regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) (Pinto, 2023PINTO, F. China aumenta controle de energia no Brasil. Amazônia Real, 12 de maio de 2023. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/628682-china-aumenta-controle-da-energia-no-brasil . Acesso em: outubro de 2023.
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/6...
). Isso se insere em uma estratégia de promoção da expansão de corporações chinesas ao redor do mundo. Esse papel da China tem resultado, inclusive, na destruição de florestas, exploração de mão de obra e conflitos com comunidades em países como o Equador, Colômbia e Peru que têm garantido o fornecimento de árvores de balsa, importante fator de produção para as turbinas de geradores eólicos para a China (WRM, 2021WRM. World Rainforest Movement. The Green Paradoxes of an Amazonian Country. WRM Bulletin 256, 9 de junho de 2021. Disponível em: https://old.wrm.org.uy/bulletins/issue-256 /.
https://old.wrm.org.uy/bulletins/issue-2...
). No caso do Brasil, pesquisas desenvolvidas pela Rede Dataluta - Banco de Dados da Luta por Territórios, por exemplo, revelam que entre os anos 2020 e 2022, o investimento estrangeiro no país tem mudado substancialmente para o setor energético, em especial nas eólicas e solar, tendo a China como ator principal. Tal investimento tem alimentado a estrangeirização das terras brasileiras, reforçando, portanto, a corrida por terra (Rede Dataluta, 2023REDE DATALUTA. Banco de Dados da Luta por Territórios. 2022. Disponível em: https://www.fct.unesp.br/#!/pesquisa/dataluta/rede-dataluta/
https://www.fct.unesp.br/#!/pesquisa/dat...
). Estudo realizado pelo Instituto Terramar, sobre as eólicas no Ceará, identifica que em decorrência da transição energética institucionalizada, “a demanda por terra e território incrementa os históricos conflitos fundiários e a especulação imobiliária da região, e protela a regularização de territórios tradicionais” (Faustino; Tupinambá; Meirelles, 2023FAUSTINO, C.; TUPINAMBÁ, S.V.; MEIRELLES, A. Impactos e Danos Socioambientais da Energia Eólica no Ambiente Marinho-Costeiro no Ceará. São Paulo: Instituto Terramar; Fundação Rosa Luxemburgo, 2023. Disponível em: https://rosalux.org.br/impactos-e-danos-socioambientais-da-energia-eolica-no-ambiente-marinho-costeiro-no-ceara /. Acesso em: novembro de 2023.
https://rosalux.org.br/impactos-e-danos-...
, p. 6).

A seguir apresentamos as Tabelas 2 e 3 com informações sobre os projetos da CPFL no Nordeste e no Ceará, destacando a sua extensa atuação.

Tabela 2
Empreendimentos da CPFL Geração no Nordeste
Tabela 3
Empreendimentos da CPFL Geração no Ceará

Além de afetar o território quilombola do Cumbe, a CPFL está também em conflito com a Comunidade pesqueira da Praia do Xavier em decorrência do Parque Eólico Praia Formosa. As denúncias envolvem: (a) privatização de áreas de usos comuns, afetando o direito de transitar pelos territórios; (b) supressão de lagoas de água doce onde se realizava pesca artesanal; (c) geração de temor constante de algum acidente; (d) poluição sonora em decorrência dos aerogeradores (Gadelha et. al., 2018GADELHA, O. R.; SILVA, L. N. A.; ALMEIDA, B. F.; GORAYEB, A. Impacto dos Ruídos de Geradores Eólicos na Comunidade de Xavier, em Camocim, Ceará-Brasil. In: Encontro Nacional de Geó-grafos: “Pensar e Fazer a Geografia brasileira no século XXI: escalas, conflitos socioespaciais e crise estrutural na nova geopolítica mundial”, 19 2018. ., Anais Complementares [...], João Pessoa (PB), 01 a 07 de julho, 2018. Disponível em: https://www.eng2018.agb.org.br/site/anaiscomplementares2?AREA=19#O.
https://www.eng2018.agb.org.br/site/anai...
). No caso do Parque Canoa Quebrada e da subestação, com a qual ele está interligado (Itaiçaba), que juntos ocupam uma área de 24 km, há registros de conflitos com a Comunidade Vila do Estevão e a Comunidade Vila Canoa Quebrada pela sua localização em uma Área de Proteção Ambiental (APA) e Área de Preservação Permanente (APP) (Alcântara; Caúla; Urtiaga, 2015ALCÂNTARA, A. O.; CAÚLA, B. Q.; URTIAGA, M. B. F. A Energia Eólica - Os dois lados da moeda: Análise do Caso de Aracati - Ceará. In: MIRANDA, J. (Coord.). HOLANDA, A.P.A. et al (org.). Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional. v. 3. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015. p. 69-87.).

O Parque Bons Ventos, hoje da CPFL, invadiu os campos de dunas da comunidade do Cumbe, que, além de ser repositório de águas, é local onde foram encontradas 41 peças arqueológicas (Jucá; Betim, 2021JUCÁ, B.; BETIM, F. Os ventos da economia verde não sopram para o Quilombo do Cumbe. El País, Brasil, 20 de novembro de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-20/os-ventos-da-economia-verde-nao-sopram-para-o-quilombo-do-cumbe.html.
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11...
). Em seu depoimento, Rocha (2022ROCHA, C. R. Sessão IX - Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re)existências. Apresentação durante Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78SbY . Acesso em: abril de 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78...
a) afirma: “eu digo que a gente tem um museu a céu aberto; são mais de 60 sítios arqueológicos nessas dunas pois as primeiras ocupações foram os indígenas”. Entre os demais impactos, citam-se a poluição sonora e visual, a rachadura nas casas devido ao trânsito de caminhões, a colisão de aves nas hélices das turbinas, o comprometimento da reprodução das tartarugas devido à luz emitida pelas torres, a privatização do espaço, o descarte impróprio de materiais e a divisão da comunidade com a narrativa de progresso e geração de emprego. “É uma coisa desumana”, afirmou Rocha (2022bROCHA, C. R. Sessão IX - Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re)existências. Apresentação durante Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78SbY . Acesso em: abril de 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78...
).

E aí você percebe também a chegada da eólica dentro do território: e aí tudo era muito assustador, tudo era muito grande, tudo era muito impactado, era de uma forma muito gigante. A gente não entendia, aquilo era como se você tivesse num filme onde tinha muitos robôs gigantes destruindo uma comunidade que ela não sabia nem como fazer uma defesa, como ela se cuidar diante daquilo que tava [sic] acontecendo ali. E aí a gente vendo que tava [sic] sendo recuado, que nossa comunidade tava [sic] ali espremida. Porque na área de manguezais onde a minha relação, essa que eu tinha com manguezal, ela era totalmente de muito cuidado, e aí do mesmo jeito o território do outro lado, que era área de duna, das lagoas, da praia (Rocha, 2022bROCHA, C. R. Sessão IX - Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re)existências. Apresentação durante Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78SbY . Acesso em: abril de 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=ESPPgZ78...
).

É tudo muito grande. Um bicho, uma coisa pavorosa que gerou acidente de trânsito; as crianças não iam mais para a escola sozinhas; trouxe bares e com isso bebida, mulheres e crianças vulneráveis, expostas à exploração sexual; muita poeira gerando problemas respiratórios; problemas psicológicos. É invasivo, gera destruição das dunas, pois rasga de fora para dentro, enterrando nossas lagoas, nossos centros arqueológicos (Rocha, 2022aROCHA, C. R. A Comunidade Quilombola do Cumbe e o Avanços do Capitalismo: o caso da energia eólica. Entrevista concedida aos participantes do Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 15 de agosto 2022a.).

Dada a configuração sociodemográfica e cultural das populações afetadas, o caso do quilombo do Cumbe evoca situações de racismo ambiental, em que os efeitos danosos dos projetos de investimento recaem de forma mais que proporcional sobre populações não brancas, localizadas na fronteira de expansão do extrativismo (Passos, 2021PASSOS, R. Como o racismo ambiental afeta a vida das pessoas negras e indígenas. Conectas, 2021. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/entrevista-como-o-racismo-ambiental-afeta-a-vida-das-pessoas-negras-e-indigenas /. Acesso em: março de 2023.
https://www.conectas.org/noticias/entrev...
). Ou seja, como em outros grandes projetos convencionais de desenvolvimento, também com as eólicas, é o caso do Cumbe, ocorrem transformações territoriais que expulsam populações inteiras de seus locais de produção e reprodução ou torna seus modos de vida inviáveis. Apesar de seus frutos serem consumidos em outros lugares, tais projetos não são neutros em relação ao espaço que ocupam; são instrumentos ativos de reordenamento territorial. O Nordeste e a Amazônia, onde grande parte destes projetos estão localizados, continuam sendo inseridos de forma subordinada ao projeto hegemônico nacional e internacional (Vainer; Araujo, 1992; Almeida, 2010).

Apesar de produzirem tais efeitos, no contexto da transição energética, as empresas ainda se beneficiam de projetos de compensação. No caso da energia, os Certificados de Energia Renovável (CER), conhecidos pelo nome de International REC Standard (I-REC), vêm sendo crescentemente utilizados como forma de compensar as emissões. Por meio dos CERs, as empresas recebem energia da forma tradicional e adquirem o volume de energia renovável equivalente ao consumo por meio de certificados. O investimento é então contabilizado nas metas de redução de emissões ou “metas de sustentabilidade” permitindo a compensação das emissões indiretas de GEE, no caso de empresas brasileiras, no âmbito do Programa Brasileiro GHG Protocolo. Levantamento do Instituto Totum (2021)INSTITUTO TOTUM. Renováveis em Alta: Brasil vê disparar busca por certificado de energia limpa. Instituto Totum Newsletter, n. 23, 12 de maio de 2021. Disponível em: https://institutototum.com.br/emkt/newsletter-23/Instituto-Totum-23.html . Acesso em: abril de 2023.
https://institutototum.com.br/emkt/newsl...
, responsável por certificar as usinas no Brasil, revela que o número total de emissão de I-RECs no Brasil mais que dobrou de 2020 para 2021, de 4 milhões de certificados para mais de 9 milhões. A principal fonte geradora de certificados no país, em 2021, foi a eólica, seguida da hídrica e da biomassa. O Brasil é o país do mundo que tinha, naquele ano, mais usinas cadastradas para emissão dos certificados, 266 empreendimentos e mais de 33 mil megawatts de capacidade instalada de energia limpa e renovável certificada. A CPFL Soluções, empresa da CPFL Energia, adquiriu mais de 98 mil CERs. De acordo com o Vice-Presidente Jurídico e de Relações Institucionais da CPFL, “o certificado verde permite às empresas comprovarem seu comprometimento com ações concretas de redução de emissões. É uma forma de demonstrar o alinhamento da organização com uma forma de gestão mais responsável, o que acaba impactando no valor da marca. A empresa também está envolvida no mercado de carbono com projetos registrados no mercado regulado e voluntário.” (CPFL Energia, 2021CPFL ENERGIA. Certificado de energia limpa ajuda empresas a reduzir suas emissões. 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/patrocinado/cpfl-energia/noticia/2021/11/11/certificado-de-energia-limpa-ajuda-empresas-a-reduzir-suas-emissoes.ghtml . Acesso em: janeiro de 2023.
https://valor.globo.com/patrocinado/cpfl...
).

Isso significa que, apesar dos conflitos com comunidades, além dos lucros das eólicas, a CPFL ainda ganha créditos de carbono e capital reputacional por se afirmar como “carbono neutro”. Ao mesmo tempo, a corporação compradora do crédito, que pode ser uma petroleira, compra o direito de continuar emitindo e poluindo, utilizando os créditos para atingir as suas metas de redução de emissões. Em julho de 2023, a Petrobras comprou créditos da CPFL contribuindo ao seu Fundo de Descarbonização (Gandra, 2023GANDRA, A. Certificação garante que Petrobras só usa energia renovável. Agência Brasil, 02 de julho de 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-07/certificacao-garante-que-petrobras-so-usa-energia-renovavel . Acesso em: outubro de 2023.
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). Os certificados tendem a ser adquiridos de projetos implementados no Sul Global, para compensar as emissões de corporações do Norte, mas também do Sul.

Além do envolvimento no mercado de carbono, no contexto das metas de descarbonização, a CPFL (2022), em seu novo Plano ESG para 2030, prevê investimentos de aproximadamente R$ 40 milhões para o hidrogênio verde. De acordo com a empresa, “uma vez que o hidrogênio verde não emite gases poluentes durante os processos de combustão e produção, além de ser inesgotável, esse pode ser considerado um dos combustíveis do futuro” (CPFL, 2023CPFL ENERGIA. Conheça o Plano ESG 2030 da CPFL Energia. CPFL, 2023. Disponível em: https://cpflsolucoes.com.br/plano-esg-2030-cpfl/.
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).

Conforme pergunta uma moradora do Cumbe (Rocha, 2022aROCHA, C. R. A Comunidade Quilombola do Cumbe e o Avanços do Capitalismo: o caso da energia eólica. Entrevista concedida aos participantes do Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 15 de agosto 2022a.), “para quem e para onde vai essa energia?”.

Dizem que a energia eólica é uma energia renovável, uma energia limpa. São muito bonitas as falas sobre essa energia renovável. E ao me deparar com essa energia, eu me assusto demais da forma que essa energia chega, e aí diante de muito desconhecimento que eu tenho de outras energias, eu fico me imaginando: se a energia limpa causou tudo isso em nossas vidas imagino como são as sujas, né? Porque eles vêm com esse discurso, dessa energia limpa, dessa energia renovável e o quanto nossas vidas não importam para eles, como se a gente não fosse impactada. Para falar a verdade muitos nem consideram que tem comunidade ali naquele território e passam por cima como um trator nas nossas vidas (Rocha, 2022aROCHA, C. R. A Comunidade Quilombola do Cumbe e o Avanços do Capitalismo: o caso da energia eólica. Entrevista concedida aos participantes do Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 15 de agosto 2022a.).

Diversos/as autores/as (Pirani, 2021PIRANI, S. How energy was commodified, and how it could be decommodified. People and Nature, 2021. Disponível em: https://peopleandnature.wordpress.com/site-contents/how-energy-was-commodified-and-how-it-could-be-decommodified /. Acesso em: março de 2023.
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; Bertinat; Chemes; Arelovich, 2014BERTINAT, P.; CHEMES, J.; ARELOVICH, L. Aportes para pensar el cambio del sistema energético. ¿Cambio de matriz o cambio de sistema?. Ecuador Debate, n. 92, 2014, p. 85-10.) argumentam que a fonte do problema da produção e distribuição de energia está na sua mercantilização. Sem dúvida o processo de mercantilização transformou a forma como pensamos a energia. Nos referimos à energia como um produto que pode ser comprado e vendido, ocultando o processo de sua mercantilização e as relações socioecológicas que subentendem a sua produção, apropriação, distribuição e uso. Os questionamentos sobre a distribuição desigual das estruturas de produção, distribuição e utilização da energia, por sua vez, não têm sido suficientes para evitar as ambiguidades da apropriação do debate sobre transição energética pelas corporações (Lohmann, 2021LOHMANN, L. And if energy itself is unjust?. A response by Larry Lohmann to the article “How Energy was Commodified, and How it Could be Decommodified”. People and Nature. 2021. Disponível em: https://peopleandnature.wordpress.com/2021/12/17/and-if-energy-itself-is-unjust /. Acesso em: março de 2023.
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). Essa ausência de questionamentos mais profundos, como ocorreu e ainda ocorre com a ideia do desenvolvimento e do extrativismo, ou nas palavras de Grosfoguel (2016), do extrativismo epistêmico e ontológico que constroem as bases para o extrativismo econômico, permite que “a transição energética continue sendo uma ameaça e uma força alienante, um princípio do domínio colonial para milhões de pessoas” (Lohmann, 2023LOHMANN, L. Provincializing Energy Transitions. The Corner House, 2023. Disponível em: https://www.thecornerhouse.org.uk/resource/provincializing-energy-transitions /. Acesso em: abril de 2023.
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, p. 3).

Grande parte do debate sobre “transição justa” tem apontado para a configuração do que o pensamento crítico associa ao paradoxo de um “colonialismo justo” (Lohmann, 2023LOHMANN, L. Provincializing Energy Transitions. The Corner House, 2023. Disponível em: https://www.thecornerhouse.org.uk/resource/provincializing-energy-transitions /. Acesso em: abril de 2023.
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) que pretende subordinar a transição energética à lógica das plantations e do capitalismo extrativista, tendo por base os dispositivos coloniais de uma determinada governamentalidade. Ou seja, dispositivos de poder como decisões regulamentares, leis, medidas administrativas ou enunciados científicos que são mobilizados por uma “arte de governar” as condutas. A geopolítica do conhecimento, específica ao que Ulloa (2014ULLOA, A. Diferencias de género y etnicidad en las políticas globales-nacionales-locales de cambio climático. Crítica y Emancipación. Revista Latinoamericana en Ciencias Sociales, v. 6, n. 12, 2014. p. 227-294.) chama de ecogovernamentalidade climática, seria portadora de uma determinada racionalidade inscrita em um conhecimento dominante, determinado por especialistas de universidades, instituições e programas de países do Norte que estabeleceriam o problema e o modo de resolvê-lo. Através desta racionalidade, a natureza “climatizada” vem justificando políticas fundadas em processos econômicos, como os da criação de mercadorias, serviços ambientais e novas tecnologias. Tal articulação entre a ciência do clima e as políticas têm naturalizado as desigualdades, sejam elas Norte-Sul, de gênero ou de raça e etnia, ao mesmo tempo em que desconhece outras maneiras de se produzir conhecimento. A percepção crítica de uma hierarquização do conhecimento é compartilhada pelas mulheres do Cumbe, que apontam a desconsideração dos saberes dos povos tradicionais, suas concepções em torno da natureza e do clima. Para elas, por exemplo, a empresa CPFL não só não está preocupada com a visão de natureza e de energia que as mulheres quilombolas do Cumbe têm, como ocultam sua existência e sua perspectiva segundo a qual elas “cuidam do território porque ele cuida da gente” (Rocha, 2022aROCHA, C. R. A Comunidade Quilombola do Cumbe e o Avanços do Capitalismo: o caso da energia eólica. Entrevista concedida aos participantes do Curso de Extensão Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra. Fundação Rosa Luxemburgo e CPDA/UFRRJ, 15 de agosto 2022a.).

4. Considerações finais

Nesse artigo procuramos expor criticamente os usos da noção de transição energética prevalecentes na perspectiva de corporações extrativistas, governos e agências internacionais. O discurso da redução de emissões por via de novas tecnologias é posto aqui em contraste com as observações empíricas de um parque eólico, cuja atividade é apresentada como parte da futura produção de hidrogênio verde no Brasil. Fundamentado em uma ecogovernamentalidade climática global, o debate climático tem implicado em uma intensificação de projetos das chamadas energias renováveis, verdes e/ou limpas, como a produção de hidrogênio verde. O perfil técnico de tais estratégias se sustenta numa produção de conhecimento especializado, cujas enunciações naturalizam e reforçam valores culturais dominantes, narrativas corporativas e governamentais baseadas em linguagens neutras e globais “de conteúdo vazio, mas com funções concretas” (Ulloa, 2021ULLOA, A. Transformaciones radicales socioambientales frente a la destrucción renovada y verde, La Guajira, Colombia. Revista de Geografía Norte Grande, n. 80, p. 13-34, 2021. Doi: 10.4067/S0718-34022021000300013
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). No caso do conflito envolvendo a Comunidade Quilombola do Cumbe no Ceará e a empresa CPFL Renováveis, o uso corporativo da noção de transição energética tem gerado a privatização dos territórios e degradação ambiental, reafirmando desigualdades raciais e de gênero. Os efeitos territoriais e socioculturais deste projeto não diferem, pois, daqueles do extrativismo “convencional”, ao afetar de forma danosa, sobretudo, comunidades e povos tradicionais, indígenas, quilombolas e camponeses.

Os conflitos provocados pela construção de parques eólicos e a especulação em torno à produção de hidrogênio verde mostram a necessidade não só de questionar a fonte ou a tecnologia utilizada na produção de energia, mas também os processos sociais de produção, apropriação e utilização de energia. Representantes de comunidades rurais e de regiões costeiras afetadas por projetos de energia eólica afirmam que, para a energia ser renovável, não basta a sua fonte ser renovável, se, ao mesmo tempo, a construção e implementação de suas infraestruturas fragmentam e/ou destroem territórios (Furtado; Paim, 2020FURTADO, F.; PAIM, E. A noção de energia renovável e conflitos e resistências desde as comunidades. In: Encontro Anual da Anpocs, 44., 2020 . GT10 - Conflitos e desastres ambientais: colonialidade, desregulação e lutas por territórios e existências. 2020. Disponível em: https://encurtador.com.br/tzCRZ.
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; Furtado, 2021aFURTADO, F. Energia Renovável em Comunidades: conflitos e resistências. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2021a.; Faustino; Tupinambá; Meirelles, 2023FAUSTINO, C.; TUPINAMBÁ, S.V.; MEIRELLES, A. Impactos e Danos Socioambientais da Energia Eólica no Ambiente Marinho-Costeiro no Ceará. São Paulo: Instituto Terramar; Fundação Rosa Luxemburgo, 2023. Disponível em: https://rosalux.org.br/impactos-e-danos-socioambientais-da-energia-eolica-no-ambiente-marinho-costeiro-no-ceara /. Acesso em: novembro de 2023.
https://rosalux.org.br/impactos-e-danos-...
). Alegam igualmente ser preciso redefinir a forma como percebemos a energia e explicitar quem se beneficia das políticas elaboradas para sua geração.

As tecnologias, políticas e projetos que têm sido justificados por instituições multilaterais e grandes corporações como meios de enfrentamento das mudanças climáticas podem ser entendidos como momentos da implementação da lógica da modernização ecológica, uma resposta político-administrativa que tem por base a suposição de que a crise ecológica pode ser superada através da inovação tecnológica e processual, de instrumentos de mercado, da colaboração e construção de consenso; um ecoconsenso tecnogerencial “que sustenta que precisamos mudar radicalmente, mas dentro dos contornos do estado da situação atual […] para que nada tenha que realmente mudar” (Swyngedouw, 2013 SWYNGEDOUW, E. The Non-political Politics of Climate Change. ACME: An International Ejournal for Critical Geographies. v. 12, n. 1, 2013. p. 1-8., p. 3).

O foco das políticas climáticas em noções como “baixo carbono”, “neutro em carbono”, “emissões líquidas zero” faz parte de um processo de transição entre o conhecido consenso das commodities e o que se vem chamando de “consenso da descarbonização”, que busca assegurar estrategicamente continuidade à lógica extrativa (Bringel; Svampa, 2023BRINGEL, B.; SVAMPA, M. Do “Consenso das Commodities” ao “Consenso da Descarbonização”. Nueva Sociedade, n. 306, 2023. Disponível em: https://nuso.org/articulo/306-del-consenso-de-los-commodities-al-consenso-de-la-descarbonizacion/.
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). São obscurecidos os conflitos, os desastres ambientais e sociais e as responsabilidades associadas à atuação das corporações do petróleo, da mineração e do agronegócio, afirmando-se a possibilidade de se compensar seus danos históricos ou de comprar direitos de poluir através do mercado de carbono. As compensações, por seu lado, frequentemente implicam a ampliação da apropriação privada de territórios, como o mostram as reações e resistências das mulheres marisqueiras do Território Quilombola do Cumbe.

Referências

  • 1
    Agradecemos o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Fundação Rosa Luxemburgo.
  • 2
    Os referidos cursos foram promovidos pela Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2023
  • Aceito
    15 Nov 2023
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