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SOCIODRAMA DIALÓGICO: UM ESTUDO PRELIMINAR? UM ENSAIO TEÓRICO?

DIALOGICAL SOCIODRAMA: A PRELIMINARY STUDY? A THEORETICAL ESSAY?

SOCIODRAMA DIALÓGICO: UN ESTUDIO PRELIMINAR? ¿UN ENSAYO TEÓRICO?

RESUMO

Este estudo objetiva definir o sociodrama dialógico e apresentá-lo como uma nova modalidade de intervenção com grupos e famílias. Ou seja, recuperar, correlacionar os marcos históricos e conceituais importantes da socionomia, usualmente conhecida como psicodrama, e as práticas pós-modernas, como o construcionismo social. Essas práticas fazem parte do paradigma sistêmico, e podem-se evidenciar as convergências epistemológicas entre os campos, bem como a fundamentação teórica. Concluíram-se com este estudo ganhos como o compromisso em produzir mudança nos e com os grupos e famílias e a ampla interface de aplicação dessa metodologia emergente.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Sociodrama; Paradigma sistêmico; Construcionismo social

ABSTRACT

This study aimed to define dialogical sociodrama and present it as a new modality of intervention with groups and families, that is, recover and correlate the important historical and conceptual landmarks of socionomy, usually known as psychodrama, and postmodern practices, such as social constructionism. These practices are part of the systemic paradigm, and the epistemological convergences between the fields can be highlighted, as well as the theoretical foundation. This study concluded with gains such as the commitment to producing change in and with groups and families and the broad application interface of this emerging methodology.

KEYWORDS
Psychodrama; Sociodrama; Systemic paradigm; Social constructionism

RESUMEN

Este estudio pretende definir el Sociodrama Dialógico y presentarlo como una nueva modalidad de intervención con grupos y familias. Recuperar y correlacionar los importantes hitos históricos y conceptuales de la Socionomía, habitualmente conocida como Psicodrama, y prácticas posmodernas, como el Construccionismo Social. Estas prácticas forman parte del Paradigma Sistémico y se pueden destacar las convergencias epistemológicas entre los campos, así como la fundamentación teórica. Este estudio concluyó con logros como el compromiso de producir cambios en y con grupos y familias y la amplia interfaz de aplicación de esta metodología emergente.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Sociodrama; Paradigma sistémico; Construccionismo social

INTRODUÇÃO

Este texto teve como objetivo apresentar a interface entre o sociodrama, um importante recurso metodológico para o tratamento dos grupos indicado por Jacob Levy Moreno, e as teorias da pós-modernidade que abarcam as intervenções dialógicas e as conversações como um aporte teórico-metodológico. Essas abordagens buscam compreender a dimensão relacional do ser humano e sua expressão por meio dos papéis sociais. São práticas que envolvem os indivíduos, personagens em interação e a rede social ao seu redor, influenciando e sendo influenciadas ao gerar movimentos em um contexto-sistema.

Na visão sistêmica atual, os participantes de um grupo são entendidos como as relações e suas interseccionalidades. São relações que se organizam em torno das pessoas e de suas convivências, abrangendo elementos que pertencem simultaneamente a dois ou mais conjuntos com importância teórica e metodológica, o sociodrama e o construcionismo social, oferecendo uma nova perspectiva para a prática sociodramática e o diálogo colaborativo.

Ao conjugar a teoria sociodramática com as teorias e epistemologias das últimas décadas, emergem novas metáforas e narrativas relacionadas às práticas terapêuticas e intervenções psicossociais. Essas novas práticas destacam perspectivas relacionais, contextuais, políticas, éticas e de relações de poder, desenhando teorias e formas de intervenção em direção ao novo paradigma.

Nesse panorama de abordagens, o novo paradigma sistêmico, marcado pela instabilidade, intersubjetividade e complexidade, afasta-se do positivismo binário. Esse conjunto de três novos pressupostos, articulados entre si, é considerado um novo paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos, 2002Esteves de Vasconcellos, M. J. (2002). O pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Papirus.).

Os terapeutas e os coordenadores de grupos terapêuticos não são mais os protagonistas. Os participantes de uma intervenção, como uma família, um casal, um grupo ou uma comunidade, assumem cada vez mais seus espaços sociais, suas emoções, suas posições como protagonistas do seu próprio conhecimento e vida. É essencial considerar a conjuntura em que estão situados, permitindo que os protagonistas lidem com suas circunstâncias concretas. Portanto, trata-se de uma nova abordagem, uma roupa nova para práticas antigas.

O sociodrama dialógico possibilita que as pessoas, por meio da ação e das conversas criativas (Marra, 2016Marra, M. M. (2016). Conversas criativas e abuso sexual: uma proposta para o atendimento psicossocial. Ágora.), conheçam suas virtudes pessoais. Essas virtudes aumentam e fortalecem as práticas políticas e éticas para resgatar e estabelecer a autêntica condição de seres humanos. Essas condições humanas estão baseadas em sentimentos, emoções, percepções e inteligência – estados de espontaneidade (Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.) –, tornando as pessoas conscientes de seus papéis sociais e psicodramáticos.

Ao abarcar a dimensão emancipatória que implica na vivência sociodramática dialógica, pode-se considerar essa prática como uma nova categoria epistemológica, visto que não se trata mais de apenas um procedimento com o objetivo de inclusão ou uma ação comum entre os participantes, mas uma construção de conhecimento que possibilita o exercício como agentes multiplicadores e consequentemente a criação de políticas públicas (Marra, Polejack, & Fleury, 2022Marra, M. M., Polejack, L., & Fleury, H. J. (2022). The use psychodrama as a pedagogical strategy for the implementation of public polices in health and e education. In H. J. Fleury, M. M. Marra, & H. H. Hadler (Eds.), Psychodrama in Brazil: contemporary applications in mental health, education, and communities (pp. 273-286). Springer.).

Tanto a teoria sociodramática quanto as intervenções dialógicas estão enraizadas em uma epistemologia reflexiva. Suas bases incluem a espontaneidade-criatividade; a importância do contexto social para o arranjo relacional; a vivência do processo em detrimento do resultado final; o foco na saúde e potência em vez de déficits e doença.

Outros aspectos também se tornam relevantes: ação terapêutica vivida em torno dos componentes do grupo, intermediários do comportamento, por meio de papéis e seus diferenciais individuais; as construções sociais e a linguagem como mediadoras; a criação de diálogos em torno das cenas ou vivências; e o desempenho dos papéis que tornam as experiências concretas.

Não há uma só voz, mas muitas vozes em torno de nossas vivências, do “como se” sociodramático e da conversação criativa, como a relevância do valor e da consciência que o contar histórias desempenha na conexão e organização dos fenômenos sociais, as vozes internas que as narrativas trazem à tona, compatíveis com os recursos do sociodrama. Por fim, mas sem a pretensão de esgotar os múltiplos aspectos, enraizados na epistemologia reflexiva que fundamenta as duas abordagens, aponta-se para a postura do terapeuta ou coordenador do grupo não como especialista, porém cooperativo e atento ao cuidado com o seu cliente durante todo o processo (Marra & Costa, 2018Marra, M. M., & Costa, L. F. (2018). Entre a revelação e o atendimento: família e abuso sexual. Revista Avances en Psicología Latinoamericana, 36(3), 459-475. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.3564
https://doi.org/10.12804/revistas.urosar...
).

A conexão desses elementos forma um portal de sentidos, uma estrutura em construção, permitindo diálogos e ações entre os membros de um grupo, potencializando diferentes vozes e liberando o enclausuramento resultante de concepções totalizantes (Gergen, 2018Gergen, K. J. (2018). Ética relacional na prática terapêutica. In M. A. Grandesso (Ed.), Colaboração e diálogo: aportes teóricos e possibilidades práticas (pp. 189-200). CRV.; Gergen & Gergen, 2010Gergen, K. J., & Gergen, M. (2010). Construcionismo social: um convite ao diálogo. Instituto Noos.) ou conservas culturais (Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.). O resultado é uma oportunidade para buscar novas respostas para antigas situações, reconfigurando o fenômeno social para atender às necessidades dos grupos e das famílias. Por essa reconfiguração, o fenômeno social reorganiza-se e revela-se, dando igualdade de oportunidade a todos.

Ao explorar a epistemologia das duas abordagens e suas influências na construção do sociodrama dialógico, buscou-se uma abordagem integrada e abrangente para a prática terapêutica e psicossocial pela escuta cuidadosa, para obter conhecimento e refletir sobre as concepções e questões da subjetividade dos participantes. O sociodrama dialógico permite a expressão de representantes de diferentes segmentos da sociedade.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi uma revisão de literatura de periódicos científicos de autores reconhecidos no psicodrama e na teoria sistêmica, além da experiência da autora com sociodramas e práticas narrativas. A coleta de dados relacionados à experiência pessoal com sociodramas e práticas narrativas envolveu as seguintes etapas:

  • Reflexão sobre a própria prática como psicodramatista e terapeuta sistêmica, destacando situações específicas em que foram utilizados o sociodrama e as práticas narrativas;

  • Coleta de dados qualitativos por meio de diários de campo, nos quais foram registradas observações e reflexões durante as sessões de trabalho com os grupos.

A análise dos dados coletados da literatura envolveu a síntese das principais contribuições dos autores citados, identificando tendências e aproximações entre as teorias. Os dados da experiência pessoal foram examinados qualitativamente, pela análise de conteúdo, a fim de identificar padrões emergentes relacionados à aplicação das teorias estudadas no atendimento de grupos.

Os resultados da literatura e da análise dos dados da experiência pessoal foram sintetizados e discutidos para fornecer uma visão abrangente das interconexões entre o psicodrama, a teoria sistêmica, ou seja, o sociodrama, e as práticas narrativas. Essa síntese contribuiu para a compreensão de como essas abordagens podem ser integradas de forma eficaz para enriquecer a prática terapêutica com os grupos.

O SOCIODRAMA: CONCEITOS INTEGRADOS PARA UMA ABORDAGEM TRANSFORMADORA

O sociodrama é um paradigma de construção do saber que estabelece uma conexão criativa e corresponsável entre os participantes do grupo. Enfatiza o desenvolvimento humano como reflexo das capacidades de mudar e transformar.

Idealizado por Jacob Levy Moreno (1889–1974), o sociodrama revela a importância e a força do protagonismo grupal na transformação da realidade. Trata-se de um método de tratamento dos grupos que favorece o desenvolvimento de papéis, suas funções, ao mesmo tempo que investiga e intervém. Pela investigação, busca conhecer e estimular a espontaneidade e a criatividade nas respostas, afastando-se das conservas culturais que aprisionam e impedem a realização do projeto existencial. A intervenção, por sua vez, contribui para o reconhecimento de valores éticos e sociais e das competências relacionais e culturais (Altinay, 2023Altinay, D. (2023). Sociatry of Moreno: online sociodrama and sociatry for social crises. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, e0523. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.580
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.5...
; Maçaneiro & Almeida, 2019Maçaneiro, A., & Almeida, V. O. (2019). No palco da psicoterapia: um adolescente, seu drama e o Psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 212-219. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190022
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190...
; Cunha & Vieira, 2022Cunha, M. T. A., & Vieira, É. D. (2022). Subcidadania, subjetividade e resistências na pandemia de Covid-19: experiências de jovens periféricos. Revista Brasileira de Psicodrama, 30, e1122. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.496
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.4...
).

O sociodrama é um método valioso da socioterapia, pois integra aspectos sociodinâmicos, sociométricos e sociátricos, que são dimensões da teoria socionômica, e coloca a ação como ferramenta de conhecimento e intervenção, mediada por símbolos e significados culturalmente construídos (Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.). Busca alcançar o significado da realidade e do mundo para o sujeito, considerando-o ator e protagonista de sua própria vivência. A ação incorpora a palavra, o grupo e suas possibilidades socionômicas fundamentais para a investigação grupal (Fleury, Marra & Knobel, 2015Fleury, H. J., Marra, M. M., & Knobel, A. M. (2015). Social Therapy in Brazil. International Journal of Group Psychotherapy, 65(4), 627-635. https://doi.org/10.1521/ijgp.2015.65.4.627
https://doi.org/10.1521/ijgp.2015.65.4.6...
; Silva, 2023Silva, M. C. C. (2023). Psicodrama e imagens simbólicas: autopercepção e criatividade no enfrentamento de conflitos. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, e0823. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.599
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.5...
).

O papel é o aspecto tangível do eu cultural, a experiência interpessoal. Necessita usualmente de dois ou mais indivíduos para ser realizado e organiza-se em duas partes: denominador coletivo e diferencial individual. O denominador coletivo (papel social) justifica-se pelo que já está posto na sociedade vigente, e o diferencial individual (papel psicodramático) diz respeito a como cada pessoa corresponde, ou não, a essas regras e culturas sociais (Moreno, 1959Moreno, J. L. (1959). Fundamentos do psicodrama. Summus.; 2008). Aspectos individuais e coletivos constroem-se em uma realidade histórico-político-social.

A metodologia psicodramática permite compreender a complexidade relacional dos grupos, perceber a singularidade do sujeito, as redes de afeto e a comunicação do grupo. Nas vivências grupais, prevalecem experiências de amor, respeito e cuidado, mas também de agressão, hostilidade e desesperança.

A matriz de ação (Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.), que envolve a aprendizagem relacional e de novos papéis, registra atos e eventos, transformando-os em narrativas que compõem a vida e proporcionam alternativas preferíveis ou discursos dominantes (Gergen & Gergen, 2010Gergen, K. J., & Gergen, M. (2010). Construcionismo social: um convite ao diálogo. Instituto Noos.) capazes de transformar a vida em dificuldades e riscos. O sistema de ação baseia-se em um consenso existente apenas em uma coletividade de atores, trabalhando com potenciais de interação, como a espontaneidade/criatividade.

Espontaneidade e criatividade são fatores impulsionadores do ser humano para a evolução e a ação transformadora das situações, garantindo sua sobrevivência e a construção de relações sociais (Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.). No desempenho dos papéis com base no contexto, concretizam-se a espontaneidade, a criatividade e a criação de vínculos reais, expressando a coexistência, coexperiência e coatuação. O grupo, a família, a comunidade são considerados um sistema relacional imbricado em uma teia na qual são transmitidos as necessidades individuais e coletivas, os significados de cada um no aqui e agora e as exigências sociais.

A socionomia desdobra-se em vários métodos, incluindo o sociodrama. Adota um princípio democrático de igualdade de oportunidades, promovendo a inclusão de todos os participantes e o desenvolvimento da corresponsabilidade diante do que é criado e construído pelo grupo.

A aprendizagem relacional e de novos papéis, a experimentação no lugar do outro, a tomada de decisão conjunta e a criação de modos alternativos de resolução de problemas são os propósitos do sociodrama. O objetivo é modificar o mundo social por meio de experimentos sociais que produzam mudanças, incluindo as pessoas e respeitando suas vivências sócio-históricas (Moreno, 2008Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. Daimon.).

O sociodrama baseado nas ciências humanas tem uma visão de homem e mundo vinculada a suas redes interacionais, e os participantes são chamados a ser protagonistas como ator e autor social espontâneo-criador. Todos os membros do grupo, em forma de representação, exteriorizam suas telerrelações e seus estados coconscientes e coinconscientes.

Esses estados são aqueles que os sujeitos experimentaram e produziram conjuntamente com os membros do grupo ou da família e que agora só poderão ser representados e reproduzidos também de modo conjunto, pois não são propriedade de um único indivíduo (Fleury & Marra, 2022Fleury, H. J., & Marra, M. M. (2022). Theoretical and methodological foudations of socionomy. In H. J. Fleury, M. M. Marra, & H. H. Hadler (Eds.), Psychodrama in Brazil: contemporary applications in mental health, education, and communities (pp. 17-28). Springer.). Essa ação ocorre por intermédio das ferramentas sociodramáticas utilizadas nas intervenções, como cenas, montagens, construção de imagens e jogos psicodramáticos, entre outros recursos, permitindo que os atores narrem suas histórias para aprofundarem suas reflexões.

O como se é um espaço-tempo em que os atores podem criar suas próprias histórias, fazer suas dramatizações e ações, elaborar no aqui e agora uma realidade suplementar que expressa suas emoções, percepções e pensamentos, sem preocupar-se com os aspectos relacionados aos impasses do certo ou errado. A pessoa vive os efeitos positivos do entendimento do indivíduo, como ser espontâneo e criativo, compreensível na ação e na concretude de suas experiências.

Outra ferramenta importante utilizada é a técnica do duplo, que reativa os iniciadores emocionais que auxiliam na manutenção do tônus da dramatização. Isso possibilita ao ator ser ajudado naquilo que se sente impedido de falar ou expressar pela conversação, propiciando a ele compreender e assimilar por meio das narrativas determinados significados (Wolf et al., 2020Wolf, L. S., Oliveira, E. S., Marra, M. M., & Costa, L. F. (2020). O recurso psicodramático na intervenção com o adulto autor de ofensa sexual. Revista Brasileira de Psicodrama, 24(2), 58-68. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20160020
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).

Tanto o discurso dominante quanto a conserva cultural criam um campo de sentido que organiza a vida das pessoas, uma autoimagem de si mesmo e das suas interações fechadas e reduzidas, impedindo que outras e novas maneiras e disposição da vida sejam ampliadas. Nesse momento, o como se faz com que o participante saia dessa paralisação ajudado pelo seu duplo, podendo movimentar-se em direção a novos rumos e perspectivas (Marra, 2017Marra, M. M. (2017). Diante das violências: abordagem psicodramática. In R. Payá (ed.), Intercâmbio das psicoterapias: como cada abordagem psicoterapêutica compreende os transtornos psiquiátricos (2ª ed., pp. 732-742). Roca.).

A conserva cultural diminui e encurta determinados significados impedindo e dificultando o encontro de novas compreensões e experiências de si mesmo. O discurso dominante ou conserva cultural é a ausência da espontaneidade e da criatividade. A espontaneidade e a criatividade são a construção de realidades alternativas e preferíveis, na busca de um encontro de si mesmo com suas possibilidades e potencialidades de compartilhamento em qualquer contexto.

O método sociodramático mostra que a influência mútua, ou o princípio de interação terapêutica, confirma a interdependência dos indivíduos participantes. Suas capacidades terapêuticas são aproveitadas e desenvolvidas para a construção de um espaço de responsabilidade relacional. Considera-se que a saúde coletiva, ou seja, as forças de cooperação entre as pessoas, é biologicamente mais importante que as forças de destruição (Marra, 2017Marra, M. M. (2017). Diante das violências: abordagem psicodramática. In R. Payá (ed.), Intercâmbio das psicoterapias: como cada abordagem psicoterapêutica compreende os transtornos psiquiátricos (2ª ed., pp. 732-742). Roca.).

Todas essas propriedades do sociodrama são também vivenciadas por meio das conversas criativas (Marra, 2016Marra, M. M. (2016). Conversas criativas e abuso sexual: uma proposta para o atendimento psicossocial. Ágora.) que o grupo é capaz de organizar e criar. É um trabalho de ressonância, uma prática vivida em diferentes contextos que muitas vezes não é nomeada. A escuta consiste em uma ferramenta básica, implica em ouvir a si mesmo. É uma construção social abrindo novos espaços para a compreensão de si mesmo e do outro.

O sociodrama orienta-se por um tema ou uma pergunta curiosa, interessante e aberta que expressa a necessidade do grupo, sendo sempre diferente de uma pergunta confirmadora. Essa pergunta principal acompanha todo o trajeto do sociodrama e se materializa por meio de uma frase, ideia ou significado.

Implica estar preparado, mas não planejado, com um roteiro rígido. Possíveis mudanças na programação ocorrem, pois os movimentos do grupo são determinantes no sentido de sua expressividade, buscando os caminhos que mais assentem às suas necessidades. Os participantes do grupo podem dizer que não é isso do que eles necessitam, e só conheço do que o outro necessita se pergunto.

O coordenador do grupo permanece atento ao que motivou o grupo a se organizar, eleger estar aqui e agora. Quais perguntas são trazidas? Quais perguntas são formuladas pela não existência de um script anterior? As experiências vividas pelo grupo ou família não provêm de uma única pessoa, mas da formulação coletiva que busca significados e saberes no processo de sua interação dialógica.

Uma intervenção sociodramática parte do grupo, de seus conceitos, que respondem às suas perguntas e necessidades. Essa prática deve dialogar com o contexto da vivência das pessoas e com sua ação no mundo, com a realidade sócio-histórica presente naquelas existências.

Não se trabalha com a reparação ou com a cura, mas com a superação, com a ação emancipatória, o processo de conscientização das experiências vividas e sentidas. Significa trabalhar com o processo de agenciar, negociar colaborativamente, dando ao coletivo social o direito de sonhar e refletir, movido pela ética que sustenta suas práticas.

AS CONVERSAS CRIATIVAS: EXPLORANDO O CONSTRUCIONISMO SOCIAL

A conversação é um meio heurístico, uma prática discursiva de negociação de sentido (Anderson, 2019Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV.) com o objetivo de criar uma atividade dialógica e possibilitar a elaboração conjunta de novas histórias de vida.

O construcionismo social apresenta-se como uma referência, uma proposta filosófica para articular e validar os recursos conversacionais. As narrativas convertem-se em uma estratégia metodológica para organização de significados com a perspectiva de dar sentido ao mundo interno das pessoas (Gergen, 2019Gergen, K. J. (2019). Conhecimento social: de segurar espelhos a criar futuros. In M. A. Grandesso (Ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 71-92). CRV.).

Bruner (1991)Bruner, J. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 18(1), 1-21. e Gergen (2019)Gergen, K. J. (2019). Conhecimento social: de segurar espelhos a criar futuros. In M. A. Grandesso (Ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 71-92). CRV. definiram a narrativa como uma nova possibilidade de discurso, uma nova perspectiva de abarcar a própria ação e envolver-se nela. A narrativa pessoal pode levar à respectiva emancipação, uma vez que, ao narrar suas histórias, ensaia mudanças positivas e mais compreensivas.

Assim, os atendimentos dos grupos passam a ser um campo de práticas, com ferramentas e instrumentos, por meio das conversas criativas (Marra, 2016Marra, M. M. (2016). Conversas criativas e abuso sexual: uma proposta para o atendimento psicossocial. Ágora.), uma investigação dialógica que destaca a narrativa como um processo em construção, um espaço conversacional (Anderson, 2019Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV.; Marra, Omer & Costa, 2015Marra, M. M., Omer, H., & Costa, L. F. (2015). Cuidado vigilante: diálogo construtivo e responsabilidade relacional em contexto de violência familiar. Nova Perspectiva Sistêmica, 24(52), 77-91.) no qual terapeuta e cliente podem organizar suas experiências mediante novas narrativas e significados para suas histórias. O narrador tem uma escuta ativa para si mesmo, sendo então sua própria audiência. Esse arranjo permite-lhe novas formas de organizar sua identidade, o que produz transformação (Costa & Marra, 2019Costa, L. F., & Marra, M. M. (2019). Impasses na atuação psicossocial com violência e as contribuições do construcionismo social. In M. A. Grandesso (Ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 237-253). CRV.).

As conversas criativas promovem o aquecimento do grupo, quer seja inespecífico, quer seja específico (etapas da sessão de sociodrama), por trazer histórias que fazem sentido, mas que precisam ser mais exploradas e conhecidas. Podem-se narrar histórias por movimentos corporais, desenhos, cenas, montagens e tantos outros modos que se complementam.

Narrativas são as histórias que servem de recursos comunitários ou ações sociais que as pessoas utilizam para experimentarem novos arranjos de sua própria identidade. São a prática de uma construção significativa do self, da identidade e da realidade. O mundo das narrativas é acessado quando se conectam as ações aos seus significados e aos seus sentidos, o que chamamos de conversas criativas, e estas “fazem mediação entre o mundo canônico e o mundo mais idiossincrático das crenças, desejos e esperanças” (Bruner, 1991Bruner, J. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 18(1), 1-21., p. 53).

A ausência de sentidos nas histórias vividas leva a uma cisão da realidade, pois as vozes internas das personagens da história não existem. As narrativas de cada participante do grupo não são constructos intrapsíquicos encapsulados em contraposição ao self narrador (Anderson, 2019Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV.), mas brotam da relação entre as pessoas que compõem os grupos ou os mais diversos sistemas. Desse ponto de vista, o self narrador surge do universo intersubjetivo por meio das conversações e das histórias narradas, nas dramatizações, nos jogos dramáticos, nas montagens e imagens plásticas pelos outros ou por nós mesmos a nosso respeito.

Segundo Anderson (2019)Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV., o diálogo é o ponto central na hermenêutica, na construção social e nas filosofias pós-modernas. Na antiga sociedade grega, o diálogo referia-se a dia (através) e logos (palavra), havendo uma troca social e geração de significado e entendimento pela palavra.

Por intermédio da palavra, constrói-se um significado; a ênfase está no “fazer com o outro”, construir discussões, imagens, cenas, dramatizar o vivido e narrado que foi reorganizado em conjunto. A investigação é mútua e compartilhada, um diálogo generativo. O diálogo acontece em um espaço que também pode ser metafórico (construir uma cena que expressa o seu diálogo com seu pai).

Com base nesse ponto, os significados estão inerentes a esse diálogo-imagem. O diálogo é sempre uma atividade relacional e colaborativa, precisando de duas pessoas ou mais, sintonizadas e comprometidas no exercício de seus papéis, para promover mudanças e transformação. Essa linguagem em ação, eminentemente dialógica, é produzida no interstício entre o eu e o outro (Bakhtin, 1981Bakhtin, M. (1981). The dialogic imagination. University of Texas Press.).

Ao narrar as histórias, as pessoas elegem o que querem contar como mais importante e também selecionam o que querem contar para aquela determinada pessoa. Essas premissas são elementos importantes para valorar aspectos de sua trajetória de vida (Gergen, 2018Gergen, K. J. (2018). Ética relacional na prática terapêutica. In M. A. Grandesso (Ed.), Colaboração e diálogo: aportes teóricos e possibilidades práticas (pp. 189-200). CRV.). O processo conversacional ajuda na mudança do comportamento para o significado, dando mais sentidos ao que é expresso e vivido.

Quando se utiliza a ação (imagem, dramatização, jogos dramáticos), é dada voz às personagens no como se. O conteúdo da conversação é o veículo da imaginação livre e do processo, permitindo um compartilhamento e a ampliação de perspectivas e ressonâncias, e por isso não há o certo nem o errado. Recordar essas histórias remete a questões pessoais que estão conectadas pelas ressonâncias do grupo.

O processo reflexivo pode ser operacionalizado de várias formas: múltiplas vozes, realidades múltiplas, nas quais o participante tem o privilégio de escolher em qual quer se engajar ou se não tem nada a acrescentar: “Posso lhe dizer uma coisa que imagino que sua mãe diria?”. Podem-se utilizar as conversas internas: chamar outra voz para conversar (duplo, técnica sociodramática).

A variação no processo de construção e mudança das narrativas, de seus significados e sentidos possibilita mudança social, uma vez que a pessoa passa a interagir de modo diferente com seus pares. Os espaços de conversação são inclusivos e implicados nas diferenças culturais e ideológicas, que geram práticas mais contextuais e criativas (Marra, 2020Marra, M. M. (2020). Vigilant care: constructive dialogues and relational responsibility in violent contexts. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(3), 212-223. https://doi.org/10.15329/2318-0498.21131
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).

Para o desenvolvimento e suporte das conversas criativas que estão no guarda-chuva do construcionismo social, tem-se as práticas colaborativas, as teorias narrativas e os processos reflexivos, entre outros (Marra, 2014Marra, M. M. (2014). El construccionismo social como abordaje teórico para la comprensión del abuso sexual. Revista de Psicología, 32(2), 219-242. https://doi.org/10.18800/psico.201402.002
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). Essas práticas têm a perspectiva de negociação de sentido, do respeito e da legitimação das pessoas em suas narrativas, que também podem ser vividas pela inversão de papéis e espelho (técnicas do sociodrama).

Narrar experiências e contar histórias auxiliadas pela ação, pelos jogos dramáticos ou por outros recursos sociodramáticos pode superar dificuldades, pois é uma forma de revisitar outras histórias cheias de sofrimentos, ou não, e assim transformar um discurso negativo, estagnado, em outras narrações, com edições inovadoras e chances de um novo começo (White, 2012White, M. (2012). Mapas da prática narrativa. Pacartes.).

Contar histórias possibilita a configuração de uma nova forma de estar no mundo (espontaneidade – uma nova resposta para situações novas ou velhas), de tal sorte que nunca se conta uma mesma história da mesma maneira. Introduzem-se novos elementos, reinventam-se novas estruturas da história com base em novos contextos, situações e percursos de vida (Gergen, 2018Gergen, K. J. (2018). Ética relacional na prática terapêutica. In M. A. Grandesso (Ed.), Colaboração e diálogo: aportes teóricos e possibilidades práticas (pp. 189-200). CRV.; 2019Gergen, K. J. (2019). Conhecimento social: de segurar espelhos a criar futuros. In M. A. Grandesso (Ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 71-92). CRV.).

Adentrar no campo das narrativas do grupo, ou das famílias e casais, requer do profissional que ele reflita de forma compromissada sobre os sentidos construídos pelos membros do grupo ou da comunidade e juntamente com o grupo elabore os significados socialmente construídos, que agora são o legado do grupo.

Resumidamente, as conversas criativas no contexto do construcionismo social são uma poderosa ferramenta para criar um diálogo e elaborar novas histórias de vida. Elas permitem a negociação de significados, a ressignificação de narrativas pessoais e a construção de sentidos em conjunto com outras pessoas.

As narrativas contadas por intermédio de cenas, imagens, desenhos etc. são fundamentais nesse processo, pois trazem à tona a diversidade de significados compartilhados e vividos pelas pessoas nos grupos e sistemas sociais. Essas práticas colaborativas e reflexivas propiciam uma transformação social e um entendimento mais profundo do mundo interno e das experiências individuais e coletivas.

SOCIODRAMA DIALÓGICO: DEFINIÇÃO, INTEGRAÇÃO DE CONCEITOS COMUNS E AÇÃO PRÁTICA

O sociodrama dialógico é um modo de estar no mundo. É busca de conhecimento pela conversa-ação, pela intervenção para transformar, um processo reflexivo de múltiplas vozes. Como fazer pontes? Construir espaços? Os sonhos e propósitos ajudam a transformar as ações? Não há interação instrutiva em que um ensina e o outro aprende.

É uma prática psicopedagógica de trabalho com grupos, casais e famílias que facilita a aprendizagem e vivência de um papel, de uma ideia, de um conceito, trazendo novos significados e sentidos de pertencimento e respostas às perguntas dos participantes por intermédio da conversação e da vivência sociopedagógica. Essa prática voltada menos para a explicação e mais para a transformação recusa a visão de mundo que justifica o raciocínio explicativo-causal.

Metodologia que também possui uma lente para sistemas abertos, não fidelizada às práticas ditatoriais, ajustadoras, reducionistas, mas uma prática que quer dialogar com a comunidade e que procura erradicar a política corretiva (Costa & Lordello, 2019Costa, P. H. A., & Lordello, S. R. (2019). Psicologia e realidade brasileira: notas preliminares para uma práxis psicossocial. In C. Antloga, K. T. Brasil, S. R. Lordello, M. Neubern, & E. Queiroz (Eds.), Psicologia clínica e cultura contemporânea (v. 4, pp. 37-52). Technopolitik.).

O sociodrama dialógico visto dessa perspectiva é considerado uma prática na promoção da participação social, uma prática nova com base em conceitos e epistemologias já propostos desde Jacob Levy Moreno e no construcionismo social, incluindo o pensamento sistêmico. Trata-se de uma nova concepção, ação e intervenção aplicada no trabalho de transformação da coletividade, das mais diferentes populações, contextos e narrativas.

É concebido como um trabalho de natureza relacional com a finalidade de promover mudanças interpsíquicas. Propõe o desafio de criar um sistema de relações entre sujeito e realidade. Busca entender os acontecimentos em relação aos contextos em que ocorrem. Considera que o conhecimento é construído num espaço consensual de intersubjetividade e que as intervenções surgem das conversações e/ou das ações entre os membros do grupo.

Essa prática procura pela ação e pelas conversas criativas espaços e tempos não articulados, significados ainda não revelados, lacunas e contradições nas histórias narradas pelos participantes do grupo. Consiste em um lugar de escuta ativa e dirige-se também para os marcos que estão ausentes na fala, mas implícitos no texto. Nesse sentido, podemos pensar que essa prática busca os significados mediante a construção de imagens e a dramatização, oportunizando que a pessoa ressignifique suas experiências por intermédio de imagens concretas e das conversas criativas.

A escuta do coordenador do grupo e de cada participante está atrelada à compreensão do significado da vida da pessoa e da reorganização de fatos e de conceitos misturados em diferentes momentos da vida que aparelham as histórias dominantes, deixando sentidos diminuídos e difíceis de superar (Marra, 2020Marra, M. M. (2020). Vigilant care: constructive dialogues and relational responsibility in violent contexts. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(3), 212-223. https://doi.org/10.15329/2318-0498.21131
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). A ideia é aproximar o mais possível as experiências das pessoas e juntos construir outros contornos, cores e nuanças.

Estudar a linguagem é entendê-la como ação, pensar a linguagem em ação. Dialogar é criar contextos de oportunidades, que nascem sempre de uma boa conversa. A linguagem é algo que se realiza de forma conjunta e relacional. Consiste em uma semente que se multiplica, congrega a diversidade e descobre a estrutura interna dos significados, aproximando as pessoas e construindo histórias compartilhadas.

Agregar um sentido ao outro é mais que a soma das partes. Não existem verdades a serem verificadas, mas sim significados relevantes para as pessoas, os nomeados diálogos internos (Anderson, 2019Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV.). As conversas criativas estabelecidas no sociodrama dialógico questionam a ordem estabelecida e ficam vigilantes às palavras, já que todas as palavras têm poder político, abandonando as ideias de proficiência.

Essa prática está mais orientada para a superação dos participantes, para o conhecimento de suas competências, e não para sua recuperação, e permanece menos focada na sintomatologia nosográfica e nos déficits, atuando mais nas relações e na potencialidade inerentes à vida dos participantes, nos seus objetivos, na sua orientação, na sua força futura. Sabe-se que a vida não é resultado, e sim um processo, uma superação das vivências sociais, coconstrução da dignidade nos relacionamentos.

Ao criar cidadania, a dignidade acompanha e fomenta condições e contextos para ajudar as pessoas a navegarem nos sistemas e subsistemas tão complexos, e muitas vezes fragmentados, para daí construírem, com otimismo e empoderamento pessoal, cidadãos que formam cidadãos. Encontrar a dignidade como ser humano é fazer um caminho entre o alto da montanha e os vales e, assim, contribuir para uma sociedade mais humana, responsável e justa.

É também efetivar o direito de inclusão social e combater as micro e macroagressões, estar com as pessoas e ajudá-las a se engajarem em seus processos de construção e responsabilização relacional, sobre suas próprias histórias. Segundo Gergen e Gergen (2010)Gergen, K. J., & Gergen, M. (2010). Construcionismo social: um convite ao diálogo. Instituto Noos., as pessoas são as histórias que contam de si mesmas. Nossas histórias são parte intrínseca de nossas vidas e transportam-nos para mudanças e transformações.

O sociodramatista dialógico simboliza aquela pessoa com capacidade de formar alianças com várias outras de diferentes contextos, relacionar-se com o diferente e a diversidade, ser criativo, espontâneo, com competência e aptidões dialógicas, saber que a colaboração é um diálogo negociado, uma ética relacional que corresponde ao coletivo, entre o eu e o outro. Não se propõe a encontrar soluções para os problemas, mas sim problematizar os fenômenos. Problematizar é encontrar uma narrativa mais densa, diferentes posturas, polifonia, complexificar o olhar desde diferentes lugares, incluir o não dito. Propõe-se, então, a criar um espaço e facilitar um processo para estabelecer uma conversação (conversa + ação criativa), diálogos relacionais colaborativos. As preocupações tornam-se públicas, e permite-se falar do lugar no qual se está.

O processo de eleição do tema a ser trabalhado também é público. As pessoas convertem-se em socioconversacionistas, oferecendo uma oportunidade de olhar algo por meio do outro e ver de maneira diferente daquela que viram anteriormente. Todos esses aspectos são mais importantes que métodos e técnicas que propagam o autoconhecimento de fora para dentro (Anderson, 2019Anderson, H. (2019). Prática colaborativa-dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In M. A. Grandesso (ed.), Construcionismo social e práticas colaborativo-dialógicas: contextos de ações transformadoras (pp. 259-270). CRV.; Grandesso, 2018Grandesso, M. A. (2018). A poética da conversação terapêutica. In. M. A. Grandesso (Ed.), Colaboração e diálogo: aportes teóricos e possibilidades práticas (pp. 149-166). CRV.).

Esses aspectos buscam as particularidades em vez das generalidades e, ao identificarem e desenvolverem eventos, aclaram os sistemas e os processos grupais. Propiciam uma interação direta e aberta entre os membros do grupo, e o resultado emerge durante o processo. A autoria é compartilhada, e nesse momento se redefine a captura do fenômeno social ao ser revelado e o grupo se auto-organiza.

As modificações ocorrem na estrutura do grupo, e é possível maior conhecimento e integração de seus membros. Outro importante aspecto do trabalho realizado em grupo é o momento no qual um aprende com o outro e os pares podem se ver no comportamento do outro e compreender que não estão sozinhos nesses dilemas. Por fim, outro aspecto não menos importante são a conversação sobre o ciclo de vida dos participantes e os padrões repetitivos de funcionamento, vistos mediante a transgeracionalidade (McGoldrick & Shibusawa, 2016McGoldrick, M., & Shibusawa, T. (2016). O ciclo vital familiar. In F. Walsh (Ed.), Processos normativos da família: diversidade e complexidade (4ª ed., pp. 375-398). Artmed.).

O sociodrama dialógico movimenta-se na direção dos direitos humanos e da dignidade, trabalhando para superar práticas desumanas e conservadoras que podem impedir o desenvolvimento da espontaneidade e restringir os sentidos e significados das famílias e grupos. Propõe a formação de cidadãos engajados na sociedade, desenvolvendo sua autonomia pessoal, política, ética para se tornarem agentes multiplicadores de mudanças, coparticipantes e coautores das transformações (Marra et al., 2022Marra, M. M., Polejack, L., & Fleury, H. J. (2022). The use psychodrama as a pedagogical strategy for the implementation of public polices in health and e education. In H. J. Fleury, M. M. Marra, & H. H. Hadler (Eds.), Psychodrama in Brazil: contemporary applications in mental health, education, and communities (pp. 273-286). Springer.).

Essa prática tem o objetivo de desenvolver o papel político dos participantes, uma tensão saudável no sentido de possibilitá-los a dizer alguma coisa sobre si e o mundo onde se situa, permitindo desenvolver uma identidade cultural, pela concretização da ação e pela conversação criativa. Forma pessoas para a cidadania, desenvolve uma autonomia necessária dos pontos de vista pessoal, político, ético e epistemológico, socializando os saberes de cada um para todos e, assim, transformando-se em agentes multiplicadores, agentes sociais de mudanças (Freire, 1999Freire, P. (1999). Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra.; Marra, 2020Marra, M. M. (2020). Vigilant care: constructive dialogues and relational responsibility in violent contexts. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(3), 212-223. https://doi.org/10.15329/2318-0498.21131
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; Moreno, 1972Moreno, J. L. (1972). Psicodrama. Cultrix.) que resgatam e estabelecem a autêntica condição de seres humanos.

CONCLUSÃO

O uso do sociodrama dialógico na prática profissional tem sido um modo de descobrir maneiras e possibilidades dessa metodologia potente para o trabalho em grupo. Tem-se defrontado cada vez mais com temas muitas vezes de difícil inclusão, dada a diversidade de formas de pensar, ser e viver dos grupos e famílias e de expressividade dos sentimentos, dos sofrimentos vividos por essas populações e da dificuldade de pertencimento grupal.

Aproveitar essa metodologia com os alunos em sala de aula, no atendimento psicossocial com as famílias em situação de vulnerabilidade, abuso sexual e maus-tratos, tem sido inovador. Seu uso na prática clínica ou em outros tipos de grupo, por exemplo sobre a questão climática e global; a Amazônia e a dimensão humana da floresta; as questões de assédio sexual e moral no mundo corporativo, tem sido um modo de descobrir e aprimorar cada vez mais essa prática, como uma gestação de novas metodologias psicossocioeducacionais.

Três são as perspectivas que necessitam ser consideradas: como essa prática pode contribuir para a mobilização, a organização e o desenvolvimento dos mais diferentes grupos; apontar consequentemente alternativas concretas de uma participação social; e deixar indicadores importantes para os seguidores de Moreno e do construcionismo social.

Como se colocar, encontrar seu lugar e ter uma representatividade que traga satisfação a suas relações? O sociodrama dialógico possibilita-nos investigar os diferentes arranjos relacionais por meio das conversas criativas e da ação, recursos que organizam essas conversações aproximando os membros dos grupos e das famílias dos diversos temas relacionados e suas configurações.

Finalmente, este é um estudo preliminar e necessita aventurar-se, pelo registro/pela escrita sobre a metodologia que dá sustentação a essa proposta, além de apontar conceitos para investigações mais profundas. Por ser o sociodrama dialógico uma abordagem emergente, ainda há muito a ser explorado e pesquisado acerca de sua aplicação e eficácia em diferentes contextos.

As pessoas encontram saídas para suas dificuldades e constroem novas possibilidades de divergir. A perspectiva é transformar as questões grupais, comunitárias e sociais em práticas sociais, as crises em alternativas, e reconhecer que resoluções estão presentes em todos os níveis da natureza, que o contexto dos acontecimentos são complexidades organizadas, vividas intersubjetivamente, e produtoras de conhecimento

(Marra, 2004Marra, M. M. (2004). O agente social que transforma: o sociodrama na organização de grupos. Ágora., p. 28).

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no presente estudo.

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Editado por

Editora de seção: Oriana Hadler https://orcid.org/0000-0001-9736-2224

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2023
  • Aceito
    11 Out 2023
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