RESUMO
O objetivo deste trabalho foi aprofundar as marcas e aproximações de uma diretora no processo psicoterápico. Trata-se de um estudo de caso psicodramático utilizando o registro documental de sessões de psicoterapia bipessoal de três pacientes atendidas anteriormente pela primeira autora e os relatos da própria autora sobre suas percepções nos atendimentos. Foram apresentadas reflexões que demonstram resultados positivos sobre as aproximações na relação psicoterapêutica mediante o humor, a poesia e a música como formas de conexão entre psicodramatista e cliente.
PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Psicoterapia; Papel
ABSTRACT
The objective of this work was to deepen the approaches and distances of a director in the psychotherapeutic process. This is a psychodramatic case study that used the documentary record of bipersonal psychotherapy sessions of three patients previously attended by the first author and the author’s own reports about her perceptions in the sessions. Reflections were presented that demonstrate positive results regarding the approaches in the therapeutic relationship, using humor, poetry, and music as means of connection between the psychodramatist and the client.
KEYWORDS
Psychodrama; Psychotherapy; Role
RESUMEN
El objetivo de este trabajo fue profundizar los acercamientos y distancias de una directora en el proceso psicoterapéutico. Se trata de un estudio de caso psicodramático utilizando el registro documental de sesiones de psicoterapia bipersonal de tres pacientes atendidos previamente por la primera autora y los relatos de la propia autora sobre sus percepciones en las sesiones. Se presentaron reflexiones que demuestran resultados positivos en relación a las aproximaciones en la relación terapéutica, utilizando el humor, la poesía y la música como formas de conexión entre el psicodramatista y el cliente.
PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Psicoterapia; Rol
INTRODUÇÃO
O papel de diretores de psicodrama perpassa uma construção constante, na qual somos desafiados ao manejo técnico das questões trazidas por um olhar teórico que seja condizente com nosso método. Aprendemos a importância do aquecimento, para que por meio dele possamos conduzir uma ação dramática na busca de espontaneidade-criatividade para por fim fazer um compartilhamento na perspectiva de acolher quem se abriu conosco. Devemos tentar nos distanciar das nossas conservas culturais, para servir ao outro nas dele. Mas, ao final de uma sessão, é importante nos aproximar novamente para demonstrar nossa humanidade. Será? Seria uma sessão uma viagem com um único destino?
Aproximo-me de Merengué (2001, p. 123)Merengué, D. (2001). O ofício de psicodramatista. In D. Merengué, Inventário de Afetos: inquietações, teorias, psicodramas (pp. 121-123). Ágora., na percepção de que “esse psicodramatista, então, não pode contentar-se com muitas verdades. Apenas algumas, necessárias para a sobrevivência imediata. Mais rico será na medida que conseguir percorrer lugares diversos, caminhar por novos espaços”. Compreendo que essa riqueza se dará à medida que as relações criarem marcas e aproximações, com os protagonistas, grupos, colegas e espaços que ocupamos, contudo essa escolha distancia-se de outros autores, de outros fazeres e de outros psicodramas, em um processo de reconhecimento do eu e do tu, na busca do encontro com o meu psicodrama e das marcas que este pode deixar tanto naqueles que me procuram para acompanhá-los em seus processos quanto em mim mesma.
Este artigo teve o objetivo de aprofundar as marcas e aproximações de uma diretora no processo psicoterápico. Aqui chamo de marcas e aproximações o que entrego de mim e os momentos em que valorizo o que nos vincula enquanto pessoas, não só enquanto psicoterapeuta-paciente ou diretor-protagonista. Os três casos apresentados pretendem ilustrar as possibilidades de aproximação do diretor na relação psicoterapêutica.
De onde partimos?
Alguns conceitos morenianos são itens importantes dessa bagagem teórica e marcas na minha própria construção do papel de psicodramatista. O psicodrama criado por Moreno não foi congelado no tempo; seguiu sendo constituído de diversos psicodramatistas e seus fazeres ao longo dos anos. Entre eles, escolho a definição de Bustos (1999, p. 17)Bustos, D. M. (1999). Novas cenas para o psicodrama: o teste da mirada e outros temas. Ágora.: “Trata-se de uma teoria que tem como ponto inicial o vínculo”, e, por meio dos vínculos, auxiliamos como psicodramatistas a busca pela espontaneidade e criatividade. Esses conceitos foram discutidos no decorrer de todos esses anos, mas baseio-me na espontaneidade como uma condição para a livre-ação (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Pensamento/Cultrix.) e que permite que a criatividade possa se manifestar (Gottlieb, 2009Gottlieb, L. (2009). O potencial psicodramático dos meios de comunicação. Líbero-Ano II.).
Outros dois conceitos morenianos importantes na relação psicoterapêutica são a tele e a transferência. Tele como um fenômeno de interação entre seres humanos, responsável pelo equilíbrio e coesão em uma relação, como um canal de comunicação por meio da complementaridade de papéis (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora.; 2019Perazzo, S. (2019). Ainda e sempre psicodrama (2ª ed.). Ágora.). No que diz respeito à transferência, corroboro também a ideia de Perazzo (2010Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora.; 2019)Perazzo, S. (2019). Ainda e sempre psicodrama (2ª ed.). Ágora. de que não há uma incompatibilidade ou oposição das duas frente ao processo cocriativo. Ou seja, a transferência não é igual a obstrução do processo psicoterapêutico, mas sim pode ser o contrário, “o próprio motor de arranque” (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora., p. 78), o que não invalida a tele nem é incompatível com a cocriação.
Outros conceitos importantes no aspecto vincular na teoria psicodramática são coconsciente e coinconsciente. Ambos ultrapassam os limites do espaço psíquico individual (Knobel, 2011Knobel, A. M. (2011). Coconsciente e coinconsciente em psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 19(2), 139-152.) e superam a visão psicanalítica do inconsciente (Nery, 2014Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas. Ágora.), de forma que estão muito mais ligados ao coletivo do que ao individual. São um conjunto específico de vínculos, produzidos por aqueles que fazem parte dele, que só existem naquela relação, seja ela a dois, seja a três, seja em grupos maiores (Nery, 2014Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas. Ágora.). Assim, compreendo que o coconsciente e o coinconsciente operam na relação do vínculo psicoterápico, constituem um campo co, compartilhado, daquilo que é consciente ou inconsciente entre psicodramatista e paciente ou diretor e protagonista/grupo.
Por fim, o conceito de conserva cultural (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Pensamento/Cultrix.) tem me guiado em algumas reflexões sobre o papel de psicodramatista nos últimos tempos (Vidal, 2021Vidal, G. P. (2021). Conserva cultural: o ciclo sem fim. Revista da Sociedade Portuguesa de Psicodrama, 10(1), 13-22.). Nesse momento compreendo a conserva cultural como a memória de um momento criativo, algo que já foi em algum momento criação, que passa a ser repetido como um padrão (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Pensamento/Cultrix.; Romaña, 2019Romaña, M. A. (2019). Pedagogia psicodramática e educação consciente: mapa de um acionar educativo. Associação Entre Nós.), mas que pode ser positivo ou negativo diante de como nos sentimos em relação a essa memória (Vidal, 2021Vidal, G. P. (2021). Conserva cultural: o ciclo sem fim. Revista da Sociedade Portuguesa de Psicodrama, 10(1), 13-22.).
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso psicodramático utilizando o registro documental de sessões de psicoterapia bipessoal e narrativas autobiográficas da autora após os atendimentos (Souza & Aliança, 2018Souza, F. C. S., & Aliança, P. T. S. S. M. (2018). Da ilusão à sedução: a crise do paradigma dominante e a emergência da pesquisa (auto)biográfica. Conjectura: Filosofia e Educação, 23(3), 561-578. https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.7
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). Os recursos metodológicos do psicodrama foram usados tanto como recursos metodológicos de pesquisa como também de análise das intervenções realizadas (Brito, 2006Brito, V. (2006). Um convite à pesquisa: epistemologia qualitativa e psicodrama. In A. M. Monteiro, D. Merengué & V. Brito (Eds.), Pesquisa qualitativa e psicodrama (pp. 13-56). Ágora.). Como destaca Motta (2011, p. 83)Motta, J. M. C. (2011). Estado da arte na ação dramática. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 82-91). Ágora.:
O método sociopsicodramático de pesquisa qualitativa é, portanto, indutivo, parte do particular para o todo; a teoria vem da prática, emerge dos dados obtidos. É baseado em múltiplas metodologias de ação, (re)visão, construção da narrativa, já que a realidade objetiva jamais pode ser capturada na sua inteireza.
O estudo de caso psicodramático foi realizado por meio dos registros documentais da profissional de psicologia, produzidos conforme orientação do Conselho Federal de Psicologia (2009)Conselho Federal de Psicologia (CFP) (2009). Resolução CFP nº 01/2009: Institui o Código de Ética Profissional do Psicólogo [Documento normativo]. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/04/resolucao2009_01.pdf
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. Nesses registros estão contidos as atividades e o manejo técnico das sessões, além das percepções e impressões subjetivas da profissional.
As participantes do estudo de caso foram três mulheres atendidas em psicoterapia psicodramática bipessoal. O atendimento de duas delas ocorreu de maneira presencial no sul de Santa Catarina e o da outra de forma on-line, pela plataforma Whereby. Foram selecionados apenas os trechos de sessão condizentes com o objetivo geral e alteradas quaisquer informações que poderiam identificar tais mulheres. Foi apresentado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para consentimento com a pesquisa e em conformidade com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e aprovada conforme parecer nº 5.962.750.
A proposta autobiográfica surge em consonância com a perspectiva moreniana de um vínculo que é construído em duas vias (diretor-cliente). Assim, compreender as percepções e os sentimentos do diretor nos momentos de suas escolhas no processo de direção auxilia na compreensão do vínculo. Marques e Satriano (2017, p. 383)Marques, V., & Satriano, C. (2017). Narrativa autobiográfica do próprio pesquisador como fonte e ferramenta de pesquisa. Linhas Críticas, 23(51), 369-386. https://doi.org/10.26512/lc.v23i51.8231
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compreendem que o psicólogo (estendo aqui também a ideia aos psicodramatistas) “tem muito a ganhar no uso da autonarrativa como foco, na sua formação e na sua trajetória profissional”.
Entendo autobiografia como uma “narrativa construída pelo sujeito, com ou sem intervenção direta do pesquisador, o material sobre o qual vai se debruçar” (Souza & Aliança, 2018Souza, F. C. S., & Aliança, P. T. S. S. M. (2018). Da ilusão à sedução: a crise do paradigma dominante e a emergência da pesquisa (auto)biográfica. Conjectura: Filosofia e Educação, 23(3), 561-578. https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.7
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, p. 566) e que essa narração não se refere a uma narração episódica do vivido, mas da construção narrativa do curso temporal das experiências vividas (Melo & Oliveira, 2020Melo, A. M. R. de, & Oliveira, M. G. de (2020). “Eu, leitor de mim”: saberes narrativos e reflexividade autobiográfica no sertão potiguar. Educar em Revista, 36, e75656. https://doi.org/10.1590/0104-4060.75656
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). São muitas as possibilidades de registro na pesquisa autonarrativa. Nesta pesquisa, são trazidos as percepções, os sentimentos e as reações da diretora e psicoterapeuta sobre o momento do vínculo.
Por fim, a análise dos dados foi realizada com base nos preceitos epistemológicos e teóricos da socionomia ou do psicodrama, criado por Jacob Levy Moreno. O psicodrama pode ser compreendido como um conjunto de métodos, técnicas e procedimentos tanto para descrever como também para vivenciar e interpretar os significados dos fenômenos da vida e relações humanas (Motta, 2011Motta, J. M. C. (2011). Estado da arte na ação dramática. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 82-91). Ágora.).
RELATOS DE CASO E NARRATIVAS DA PSICODRAMATISTA
Os casos apresentados são de três mulheres, com nomes fictícios, acompanhadas em processo psicoterápico pela primeira autora:
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Graça, porque sempre trouxe o riso solto que nos conectou em nossos encontros, de 26 anos, formada em Direito e que trabalhava como residente judicial;
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Ryane, nome da poeta pela qual nós compartilhamos o apreço e que inspirou a sessão descrita nesta pesquisa, de 26 anos, formada em Engenharia e que trabalhava com vendas;
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Carioca, origem geográfica que a conectava diretamente ao samba, de 58 anos, psicóloga clínica.
Graça e suas desgraças
Graça é uma jovem adulta, mora com os pais e a irmã mais nova e costuma dar risada das dificuldades cotidianas que vive. Nas primeiras sessões ela relatou que tem um “humor de quinta série”, característica marcante em suas piadas em todas as sessões. À medida que nosso processo evoluiu, ela apresentou uma de suas dificuldades: a relação com seu corpo. Ela relatou que estava desanimada com a academia, que não se reconhecia mais como era alguns anos antes, dedicada e animada para a perda de peso. Pedi para que ela escolhesse um nome para esse eu de antes, e ela perguntou se poderia ser Graciane. Ao mesmo tempo nossos olhos se encontraram e soltamos risadas, enquanto ela explicava que esse nome foi o apelido que recebeu dos colegas e professores da academia em referência à fisiculturista Graciane Barbosa.
Depois de aquecer Graça no papel de Graciane, questionei a personagem e ela contou que já fora focada nos exercícios e na alimentação buscando esse caráter estético. Perguntei o quanto isso estava próximo ou longe de Graça nos dias atuais, e ela explicou que Graça não queria mais ficar presa ao estético, que estava cansada dessa busca por um corpo irreal. À medida que fazia os questionamentos, percebia que, no papel de Graciane, Graça também era muito cômica, fazia piadas e trocadilhos. Seguindo na mesma perspectiva, usando o humor como recurso, questionei: “Então um tanquinho é uma possibilidade?” No papel, ela respondeu: “Sim, é possível para alguém, mas não sei se para ela”, e começou a rir novamente.
Assim seguiu a sessão. Por fim, pedi que, saindo do papel, ela pudesse concretizar uma forma possível e confortável de colocar esse seu lado Graciane em sua vida. Graça produziu um desenho (Fig. 1), que descreveu como ela mesma, sem comparar-se com outras pessoas, buscando equilíbrio entre corpo, mente e aquilo que é importante para ela. Questionei-a sobre as flores, borboletas e o sol. Ela explicou: “São para demonstrar o equilíbrio e o sol, porque, né, eu sou um sol”, fazendo referência às várias vezes que ela já trouxera esse símbolo em sessão. Confirmei com a cabeça e brinquei: “Claro, quero ser meu brilho próprio”. Ela riu e confirmou. Ao final dessa sessão, compartilhei que também me pego comparando-me com outras pessoas com realidades diferentes e ela me falou que se sentiu bem, que se divertiu muito nas nossas sessões e brincou: “Admite, eu sou a alegria da tua segunda-feira”.
Aproximações com Graça
Desde que Graça chegou até mim, senti seu bom humor como uma forma de conexão dela com o mundo. O jeito irônico, brincalhão, foi para mim a característica mais marcante dela. Ao mesmo tempo que ela foi vinculando-se a mim pelo humor e pelas brincadeiras, no início de nossa sessão, tentei manter uma postura séria, segurando o riso, até perceber que eu não estava sendo eu mesma. Conforme percebi isso, passei a aceitar melhor as piadas e usar também o meu humor em algumas sessões. Produzimos juntas algumas piadas internas como marcas ou conservas que eram retomadas ao longo do processo para relembrar momentos e situações que havíamos trabalhado em sessões anteriores.
Trabalhamos diversos temas pesados nas sessões de Graça, mas sempre permeados pelas piadas dela no fim das sessões ou em algum momento bastante tenso. Decidi que usar o humor era apoiar-me em seu lado saudável, para poder construir e reconstruir outros papéis. Reconheci em Graça o quanto eu havia tentado suprimir o humor do meu papel profissional para ser validada neste e quanto o humor era uma característica importante sobre mim. Aprendi enquanto pessoa a olhar para a vida de uma maneira diferente, mais leve, com o olhar de quem brinca com a própria desgraça, como forma de sobrevivência emocional.
Ryane, o eu na poesia
Ryane buscou a psicoterapia na busca por si mesma, relatando estar estagnada na vida, sem saber para onde ir nem como iniciar nenhum movimento. Mulher sem propósito, sem um porquê, vivendo um dia de cada vez não por escolha, mas pela pouca capacidade de criar em seu momento de vida. Ao longo de nossas sessões, Ryane deu-se conta de que estava em um episódio de desânimo e desmotivação.
Em determinado momento do processo, ela descobriu meu carinho pela poetisa Ryane Leão (não era um segredo, fazia parte das minhas redes sociais). Essa descoberta foi disparadora para que ela trouxesse um dos livros da autora (Leão, 2019Leão, R. (2019). Jamais peço desculpas por me derramar. Planeta Estratégia.) e me apresentasse três poemas que a descrevem bem.
À medida que lia para mim cada um dos poemas, pedi que identificasse que parte de si encontrava naquela escrita, na busca pelo processo de reconhecimento do eu por meio dessa identificação. Assim, ela selecionou um trecho de cada poema. O primeiro ela chama de o eu na terapia: “Eu não quero fingir/que sou inquebrável/desde quando se fortalecer/ não cair?/conhecer as ladeiras/nem sempre evita/que a gente escorregue por lá/e se estabaque com a cara no chão/e tudo bem, tudo bem errar” (Leão, 2019Leão, R. (2019). Jamais peço desculpas por me derramar. Planeta Estratégia., p. 17). Nesse poema, Ryane reconhece-se como uma pessoa que abriu os olhos para coisas difíceis na terapia. Fiz o duplo alguém vulnerável, que se machucou. Ela confirmou e continuou explicando que é alguém aceitando olhar para essas dores.
O segundo poema é sobre o eu que busco ser (Leão, 2019Leão, R. (2019). Jamais peço desculpas por me derramar. Planeta Estratégia., p. 40) e fala sobre o processo de vencer lutas enquanto mulher, sobreviver a depressão, as imposições sociais sobre o papel da mulher e acerca de um processo de cura das dores nesse papel. Ryane explicou-me que quer chegar a esse lugar, de alguém que olha para trás e vê um processo de superação.
O último poema Ryane leu e depois repetiu para mim o trecho: “Estou triste, tinha esquecido” (Leão, 2019Leão, R. (2019). Jamais peço desculpas por me derramar. Planeta Estratégia., p. 75). Ela explicou-me que esse é o eu nos dias atuais, o eu que vive o dia a dia, percebe o incômodo do desânimo e da tristeza, mas ainda não consegue nomeá-lo totalmente, lidar com ele em sua imensidão.
Ao final da sessão, perguntei como Ryane se sentia, e ela explicou que era como se conseguisse se perceber na escrita da autora. Compartilhei que também sentia isso com essa autora, que ela escreve muito bem e que é como se falasse de mim. Perguntei se ela já escrevera em algum momento. Ela pensou e respondeu que sim, que costumava escrever algumas coisas, mas foi parando com o tempo, sem motivo, simplesmente parou, como todas as outras coisas com que foi desanimando. À medida que falava isso, percebi que seu tom de voz mudou ao dizer que talvez voltaria a tentar escrever, talvez.
Aproximações com Ryane
Quando conheci Ryane, senti-a perdida, como uma criança indefesa, não só pelo discurso que ela trazia, mas pela sensação de alguém que queria um direcionamento, como se quisesse de mim uma resposta do que fazer com a própria vida. Ao mesmo tempo, conseguia imaginar uma mulher cheia de energia e potência. Eu me sentia também perdida nessa época em pontos da minha vida pessoal, pouco criativa em relação aos caminhos que queria ou poderia trilhar, e dividir essa época com Ryane foi difícil em alguns momentos; compartilhei esses sentimentos com ela para que não ficassem apenas na minha mente.
Antes da sessão relatada, eu estava sentindo Ryane cada vez mais distante, como se ela evitasse olhar para o que estava aparente, seus sintomas deprimidos. Por isso, eu me sentia falhando enquanto psicoterapeuta e psicodramatista; tentava caminhos criativos conforme o que ela trazia, mas sentia também que nada conseguíamos. Quando ela me falou que havia descoberto que eu também gostava da autora do livro que trouxe, confesso que me assustei. Foi a primeira vez que me dei conta de que havia pacientes que acompanhavam meu Instagram pessoal, embora sabia que eles estavam ali. Apesar disso, possibilitei-me ouvir os poemas como se os estivesse ouvindo pela primeira vez, compreendendo a atitude dela como um ato criativo.
Nessa sessão, vi a potência, a animação com que Ryane me contou que gostava da mesma poetisa que eu, a mudança no tom de voz ao ler os poemas e as pausas nos momentos perfeitos para dar intensidade à leitura. Ao longo dessa sessão, vi a menina indefesa transformando-se em uma mulher segurando a própria história. Fiquei emocionada com essa mudança. Viver essa sessão foi importante tanto para Ryane quanto para mim. Ao mesmo tempo que a poesia nos aproximou enquanto duas mulheres que sentem angústias semelhantes, foi possível despertar a criatividade em nós duas, pois também me senti mais criativa ao conseguir explorar a poesia na sessão de uma forma diferente da que eu estava acostumada até o momento e de entrar em contato com sentimentos sobre ser mulher que havia tentado distanciar.
Carioca, o samba como conselho
Carioca é uma mulher que procurou a psicoterapia comigo em uma experiência de câncer de mama. Nosso vínculo enquanto psicoterapeuta e cliente durou cerca de dois anos e meio com alguns intervalos, em virtude de um episódio de Covid-19, no qual ela viveu uma experiência traumática de complicações de saúde. Ao longo desse tempo, trabalhamos diversas temáticas, grande parte delas se relacionava ao que ela descrevera como o motivo de ter me procurado: “Eu queria uma terapeuta jovem, nova”, porque Carioca contava que buscava novas formas de olhar o mundo e sua própria história depois de muitas vivências pesadas e difíceis.
Carioca iniciou essa sessão contando-me sobre seu pote (objeto que havíamos criado na sessão anterior na realidade suplementar colocando as coisas que a preenchiam). Ela me explicou que o pote estava cheio agora, mas de coisas pesadas. Pediu que eu pegasse o objeto (no como se) e fosse enchendo-o. Ela trouxe coisas como o aumento de casos de Covid-19, o relatório judicial de um caso que fez como psicóloga e que a fez lembrar de questões pessoais, o medo de os pacientes desistirem dos processos por causa do aumento de casos de Covid-19, entre outras várias coisas que ressaltam sua insegurança. Pedi que ela olhasse e percebesse um sentimento comum, ela falou do medo e dessa não suficiência, de achar que não conseguiria.
Na sequência, resgatamos sua história tentando lembrar as sagas de medo e coragem que ela vivera de forma a criar referências sobre seu potencial criativo em cada uma dessas situações. As situações que ela trouxe em relação à sua vivência com o câncer, o momento que teve Covid-19, as histórias de dificuldade na juventude são alguns dos exemplos que ela apontou como medos que foram se tornando histórias. Depois de colocarmos essas coisas no como se, questionei-a sobre o que a auxiliou durante esses medos. Ela pensou e respondeu que foram principalmente o marido e a mãe, mas também as demais pessoas que estiveram ao seu lado. Fiz o duplo: “Minhas relações me ajudaram a enfrentar o medo”, e ela confirmou.
Ao terminarmos a sessão, já beirando o limite do nosso tempo, Carioca disse-me que ainda se sentia angustiada. Ficamos em silêncio alguns minutos e devolvi a ela algo que me veio à mente, um trecho da música “Conselho”, de Almir Guineto. Ela se identificou e começou a cantar:
Pra que se lamentar/Se em sua vida pode encontrar/Quem te ame com toda força e ardor?/Assim sucumbirá a dor (tem que lutar)/Tem que lutar, não se abater/E só se entregar a quem te merecer/Não estou dando nem vendendo/Como o ditado diz/O meu conselho é pra te ver feliz.
Depois que terminou de cantar, pareceu mais tranquila e disse que logo voltaria a Carioca corajosa, personagem que já havíamos trabalhado em outros momentos e que percebia como seu lado que enfrenta as adversidades da vida.
Aproximações com Carioca
Quando a conheci, Carioca encantou-me, pois, apesar de uma história sofrida, era uma mulher sorridente e bem-humorada. Mesmo em meio às adversidades do passado e do presente, nossas sessões também foram marcadas por risadas e música. Ela e eu compartilhamos o gosto pelo samba de raiz, e em diversos momentos isso nos conectou. Foram muitas as sessões em que lembrei alguma música e esta serviu como disparador para um aquecimento ou mesmo como compartilhamento diante da falta de palavras.
Carioca inspirou-me muito como cliente, mas acima de tudo como mulher. Sua história de luta e superação me marcou de forma que me auxiliou a perceber questões pessoais, mas principalmente a usar a arte, nesse caso a música, para trazer os sentimentos à tona. Por algumas vezes, travei em nossas sessões, pois estive com ela em momentos muito difíceis de sua história. Fui sincera dizendo que não sabia o que dizer sobre aquilo, mas o que me vinha era a música. Algo nos conectava, e, sempre que eu trouxe uma música, um samba de raiz todas as vezes, ela sabia cantá-la quase que por completo. Cantávamos juntas, emocionávamo-nos, e a partir disso as sessões fluíam. Ao mesmo tempo que o samba resgatava Carioca das dores que ela trazia em nossos encontros, também me resgatava do sentimento de impotência que tive em alguns momentos.
Sinto também que estar com Carioca me ajudou como mulher. O fato de uma mulher com uma vivência tão intensa, também psicóloga e com anos de experiência confiar sua história a mim me mudou muito. Assim, da mesma maneira que ela sentiu a necessidade de alguém mais jovem no papel de sua psicoterapeuta, eu também cresci muito ao ser psicoterapeuta de uma mulher mais experiente.
DISCUSSÃO
Esse psicodramatista, então, não pode contentar-se com muitas verdades. Apenas algumas, necessárias para a sobrevivência imediata. Mais rico será na medida em que conseguir percorrer lugares diversos, caminhar por novos espaços. Essa mescla, miragem de informações, território de ficção-que-pode-ser-real é a meta
(Merengué, 2001Merengué, D. (2001). O ofício de psicodramatista. In D. Merengué, Inventário de Afetos: inquietações, teorias, psicodramas (pp. 121-123). Ágora., p. 123).
A arte sempre esteve presente em minha vida e não há possibilidade de ficar distante dos meus atendimentos, já que faz parte de mim. Por isso, a interlocução entre psicodrama e arte me faz muito sentido ao discutir os casos relatados. Compreendo meu trabalho como psicoterapeuta como o de uma viajante conduzida por um guia (o cliente), mas que tem seus próprios medos e potencialidades. Ao mesmo tempo que ajudo no processo de construção de realidades dos que me procuram, construo as minhas próprias nos meus diversos papéis.
Entendo a condução no psicodrama como uma pesquisa-intervenção. Por isso, corroboro Motta (2011, p. 83)Motta, J. M. C. (2011). Estado da arte na ação dramática. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 82-91). Ágora.: “Pesquisar é, inicialmente, aceitar que é necessário aprender a perguntar”. Pela ação de perguntar, compreendo que um psicodramatista, ao mesmo tempo que descobre sobre a pessoa à sua frente, está também intervindo, gerando reflexões e sentimentos no mundo interno desse outro. Mas também cabe a reflexão sobre o fato de que não há neutralidade nesse processo (Motta, 2011Motta, J. M. C. (2011). Estado da arte na ação dramática. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 82-91). Ágora.), visto que uma pesquisa também contém os pesquisadores e subjetividades que se comunicam, e por meio dessa relação se buscam a espontaneidade e a criatividade que permitem a criação de respostas.
O humor, a poesia e a música estão presentes nos casos relatados como conservas culturais partilhadas por psicoterapeuta e cliente. Compreendo que algumas conservas culturais são identitárias (Vidal, 2021Vidal, G. P. (2021). Conserva cultural: o ciclo sem fim. Revista da Sociedade Portuguesa de Psicodrama, 10(1), 13-22.) e, por essa razão, nos ajudam nos processos de reconhecimento e também de espontaneidade para a criação de conservas culturais que combinem melhor com as situações vividas naquele momento. Nesse sentido, em cada um dos casos relatados, utilizei conservas culturais que tínhamos em comum para aproximar e consolidar o vínculo. Ao mesmo tempo, a conserva também serviu de base para o processo de criação posterior, buscando provocar um processo de espontaneidade criadora (Menegazzo et al., 2019Menegazzo, C. M., Tomasini, M. A., & Zureti, M. M. (2019). Dicionário de psicodrama e sociodrama. Ágora.).
No caso de Graça, utilizar o humor como recurso possibilitou que temas pesados ficassem mais leves em alguns momentos, de forma que ela conseguisse expressar-se do seu próprio jeito. Algo semelhante ao que Moreno entendia como de caráter ético, uma escuta respeitosa que coloque como referência principal os sentimentos e as preferências pessoais das pessoas na busca por resolver suas questões (Aguiar, 2011Aguiar, M. (2011). Psicodrama: ética, estética e terapêutica. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 56-66). Ágora.). Se para Graça o humor era uma forma de enfrentamento, por que não utilizá-lo no trabalho de seus conflitos?
Essa compreensão como descrita não foi simples. Inicialmente, existia a conserva no papel de diretora de que o humor era uma forma de evitar alguns conteúdos, que deveria investigar o que estava por trás do riso. Após a percepção de que o riso entrava na cena como um modo de estar no mundo, como característica da personalidade e do jeito de agir de Graça, foi possível lidar com ele de forma mais tranquila. Para Contro (2020, p. 74)Contro, L. (2020). Nós e nossos personagens: histórias terapêuticas. Ágora., “toda expressão, verbal ou não, da parte do cliente que entra na sala e começa uma sessão merece que estejamos atentos”. Todas as cenas carregam revelações de valores, de verdades conhecidas e daquelas que se busca renovar (Motta, 2011Motta, J. M. C. (2011). Estado da arte na ação dramática. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 82-91). Ágora.). Por isso, usar dessas percepções determina algo como foco e deixa outras coisas à sombra. Se tivesse insistido em colocar o riso como o fenômeno a ser observado, algo que fiz no começo, talvez não me vinculasse positivamente com Graça, de maneira que ela conseguisse trazer suas questões.
Ser psicoterapeuta e psicodramatista não é tarefa fácil. Pelo contrário, como afirma Contro (2023, p. 15)Contro, L. (2023). Palavras inquietantes: páginas literárias e terapêuticas. Zagodoni., “trabalhamos lendo o outro, para que ele aprenda a se ler, traduzindo o outro, para que ele aprenda a se traduzir. Desdobramos o outro em outros para que ele se perceba nos muitos que é”. Assim, ser psicodramatista para mim é uma mescla entre conhecimento e desconhecimento, saber o suficiente para estar em relação e poder coconstruir com a pessoa ou grupo, mas também estar pronto ao não saber, pelo mesmo motivo.
Auxiliar Ryane no processo de reconhecimento de si mesma por meio de poemas dos quais eu também gostava foi uma surpresa. Usar poemas como iniciadores para o aquecimento (Almeida, 2021Almeida, W. C. (2021). Técnica dos iniciadores In R. F. Monteiro (Ed.), Técnicas fundamentais do psicodrama (pp. 31-42). Ágora.) foi uma possibilidade para que Ryane conseguisse compreender como se sentia, e poder partilhar isso de forma indireta comigo, quando ela trouxe os poemas demarcando que temos o gosto pela mesma autora, uma maneira de encontrar conexões entre mim e ela. A poesia tornou-se um recurso criativo que ajudou tanto Ryane quanto a mim a perceber novos caminhos para o processo psicoterapêutico dela e sobre a pluralidade em ser mulher.
No caso de Carioca, a utilização da música foi como a de um objeto que pudesse intermediar a relação no momento. Uggioni e Castro (2020)Uggioni, E. S., & Castro, A. (2020). A percepção de psicodramatistas sobre a utilização de música como objeto intermediário em psicoterapia. Perspectivas em Psicologia, 24(2), 254-283. https://doi.org/10.14393/PPv24n2a2020-58543
https://doi.org/10.14393/PPv24n2a2020-58...
compreendem que a música enquanto um objeto intermediário pode auxiliar o paciente a falar de si, além de que a música aparece na pesquisa das autoras com psicodramatistas como uma forma de acesso ao mundo interno dos pacientes. Porém, no caso de Carioca, a música foi trazida pela diretora, em uma função de espelho1
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Técnica psicodramática que se relaciona a repetir gestos, movimentos ou cenas para que a pessoa possa observar a si mesma (Moreno, 1975).
, possibilitando que a diretora mostrasse a ela o que estava percebendo pelo que era trazido em cena.
O elo formado com Graça quando validei seu humor e continuei usando-o, com Ryane pela iniciativa dela de trazer poemas de uma autora que encantava a ambas e com Carioca quando cantávamos músicas marcantes para aquele momento foi na tentativa da construção de um vínculo télico, de buscar estar com essas três mulheres de uma forma pura, de deixar que elas dirigissem suas sessões, mas não me abster de ser humana diante delas. Assim, com base nesses casos, pode-se compreender ter ocorrido reciprocidade télica (Naffah Neto, 1979Naffah Neto, A. (1979). Psicodrama: descolonizando o imaginário. Brasiliense.), característica comum de uma experiência de encontro, um momento no qual existe uma sensibilidade que une as individualidades. Esse movimento télico é algo que facilita o aquecimento e só é possível mediante um movimento espontâneo e criativo de ambas as partes, buscando uma forma específica daquela relação de estar junto.
Na sessão com Ryane e com Carioca, compreendo que as etapas psicodramáticas não delimitadas podiam confundir a leitura. Nesse sentido, quando Ryane trouxe seu próprio livro, com as páginas marcadas com orelhas, ela se aqueceu para a ação. Quando usou o poema como forma de reconhecimento do eu, utilizou uma conserva para identificar-se e com base nesta exploramos de que eu estávamos falando, eis a nossa ação. Por fim, compartilhamos como nos sentíamos com a leitura dos poemas e com as temáticas lidas. As etapas2 2 Na teoria psicodramática se propõem geralmente três etapas clássicas em uma direção: aquecimento, dramatização e compartilhamento. são um modelo-guia, mas, se trabalhamos com uma perspectiva processual e temos paciência, por vezes uma sessão pode ser exclusiva de uma das etapas, e esse processo como um todo pode levar várias sessões (Khouri, 2022Khouri, G. S. (2022). Manejo clínico na psicoterapia psicodramática bipessoal. Aruá Edições.). Compreendo nessa mesma perspectiva que o aquecimento pode iniciar-se fora da sessão, quando a paciente descobre meu gosto pela mesma poetisa e se lembra da própria identificação com os poemas.
Na mesma medida, usar a música com Carioca foi também uma possibilidade de compartilhamento da diretora. Entende-se que o processo de compartilhamento não necessariamente está apenas ao final da sessão, assim como relatado por Contro (2020)Contro, L. (2020). Nós e nossos personagens: histórias terapêuticas. Ágora., mas num movimento de trazer ao outro uma parte de si que demonstre o que se leva daquele momento e que esteja em virtude do cliente e do vínculo. O compartilhamento ou comentários, como chama Naffah Neto (1979)Naffah Neto, A. (1979). Psicodrama: descolonizando o imaginário. Brasiliense., é um momento em que é demarcada a relação entre o contexto dramático e o contexto social, como a ação vivida reverbera nas situações reais da vida da pessoa.
Compreendo a etapa da dramatização como sinônimo de ação. Assim, utilizar o verbal como reconhecimento e a nível simbólico é uma forma de ação. Nesse sentido, a fala consiste em um dos elementos da ação (Nery, 2014Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas. Ágora.), e por meio dela podemos perceber papéis latentes, a psicodinâmica e as lógicas afetivas de conduta e intervir neles, usando duplos, espelho e outras técnicas psicodramáticas. Assim, “os vínculos estão na ação da fala, na fala da ação, na palavra-ação ou na ação-palavra (um todo indissociável)” (Nery, 2014Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas. Ágora., p. 218). A ação é primordial na perspectiva psicodramática e pode ocorrer mesmo que duas pessoas (ou um grupo) permaneçam sentadas durante toda uma sessão. “O diálogo estabelecido é sempre considerado uma forma de agir” (Contro, 2011Contro, L. (2011). Diálogos entre campos disciplinares: psicodrama e análise institucional. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 46-55). São Paulo: Ágora., p. 50).
Se o psicodrama é “uma forma de intervenção na realidade, que busca investigá-la para melhor conhecê-la, ao mesmo tempo, promover nela transformações, suposta e pretensamente para melhor” (Aguiar, 2011Aguiar, M. (2011). Psicodrama: ética, estética e terapêutica. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 56-66). Ágora., p. 58), posso crer que essa intervenção vai depender de que realidade partimos. Assim, essa realidade é permeada também pelo que é produzido no vínculo psicoterapêutico, tanto no coconsciente como no coinconsciente. Escolho partir da realidade daqueles que me procuram, mas sem anular-me nesse processo, visto que a percepção do diretor é importante na relação psicoterapêutica desenvolvida. “A melhor alternativa inclui, necessariamente, os objetivos da ação – e não o agir sem pensar” (Aguiar, 2011Aguiar, M. (2011). Psicodrama: ética, estética e terapêutica. In J. M. C. Motta & L. F. Alves (Eds.), Psicodrama: ciência e arte (pp. 56-66). Ágora., p. 64). Assim, utilizar a liberdade e os recursos – materiais ou comportamentais – do diretor como um lócus para a criação.
Nos três casos trazidos, as construções compartilhadas entre psicodramatista e clientes constituem trocas que geram construções para ambos os lados. Quando Graça trouxe o riso para a sessão, possibilitei-me desfazer-me da conserva de que o riso poderia ser apenas uma defesa da minha própria rigidez no papel de psicoterapeuta e usá-lo como recurso, como uma conserva que auxiliava nas sessões. Quando Ryane trouxe a poesia que descobriu via rede social de que eu gostava, precisei retirar minhas armaduras do meu papel de mulher forte para me permitir viver com ela o de mulher em sofrimento. Quando Carioca me procurou por querer uma psicoterapeuta jovem, acabei descobrindo que talvez eu era quem precisasse de uma paciente com mais experiência de vida e de psicologia para me sentir mais forte em meu papel de psicoterapeuta e de mulher. O coconsciente e o coinconsciente em cada um desses vínculos foram permeados por uma construção de busca de possibilidades criativas, nas quais ambas podíamos falar e ouvir, dar e também receber.
Pelos encontros com essas três mulheres, tive a possibilidade de construir conservas culturais (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Pensamento/Cultrix.) sobre meu papel como psicodramatista e também como mulher. Graça possibilitou-me usar mais do riso também no meu papel profissional, algo de que me privei pela conserva de que não seria levada a sério. Ryane auxiliou-me a me sentir também uma mulher e diretora de psicodrama mais criativa e entregue enquanto ser humano, não só como profissional. Carioca ajudou-me a sentir-me mais potente enquanto psicoterapeuta com sua confiança em mim, apesar de ser muito mais experiente do que eu nesse mesmo papel, além de partilhar comigo vivências que auxiliaram a reconhecer adversidades e potências no papel de mulher.
Utilizar o psicodrama como método (e como perspectiva de vida) compreende que as histórias que os clientes e grupos nos trazem, a forma como o fazem e como vamos recebê-las como analistas, do que tem espaço ou não em uma cena ou simplesmente como outro ser humano com potências e fragilidades fazem parte do processo de criação. Ser psicodramatista é valorizar as pessoas no processo de ação de (re)viver, (re)pensar, (res)sentir e assim (re)criar no espaço compartilhado com diretor e/ou grupo, com a inteireza de quem essas pessoas são e de quem somos enquanto humanos no papel de diretores de psicodrama.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aproximar é verbo, relata uma ação. A proposta de pensar nas aproximações do diretor no processo psicoterápico me surgiu da angústia do distanciamento. Foram muitos os momentos em que precisei me aproximar da pessoa que me procurava como psicoterapeuta para poder de fato compreendê-la. Entendo que a aproximação do diretor perpassa também cuidados, mas que somos humanos e por isso aquela pessoa nos procura.
Assim, foi a humanidade que me uniu a essas três mulheres. As conservas culturais que elas traziam, a falta de respostas espontâneas e criativas e a busca que fizemos juntas na realidade suplementar e no vínculo fizeram com que encontrássemos também conservas que nos potencializaram: o humor, a poesia e a música.
Compreendo que usar o humor, a música, a poesia ou outra forma de conexão humana no processo psicoterapêutico pode possibilitar essa aproximação em momentos nos quais apenas o manejo técnico não é suficiente para possibilitar o acolhimento ou a ação espontânea. Assim, usamos a parte saudável para acessar o sofrimento diante de nós. Compartilhamos humanidades.
Acredito que, depois que nos apropriamos de uma teoria, ela passa a fazer também parte de quem somos. Pensar o psicodrama como teoria não só da prática psicoterápica, mas da prática relacional de nosso dia a dia, me faz perceber o quanto essas humanidades se aproximam em muitos momentos. Conceitos como o coconsciente e o coinconsciente são importantes para compreendermos que muitas questões são divididas em um aspecto vincular com nossos pacientes. Quando dividimos uma característica pessoal ou conservas que fazem parte do nosso dia a dia, como gostos e preferências em comum, por exemplo, criamos ali um elo que está implícito na relação, mesmo que não tenhamos dimensão exata dele.
Não podemos invalidar que nos dias atuais os clientes que nos procuram como psicoterapeutas podem acessar nossas redes sociais, ter relações em comum de alguma forma ou mesmo cruzar conosco em alguns espaços e, por isso, descobrem coisas sobre nós. Há um motivo na escolha, no critério sociométrico, que conecta essas pessoas aos psicoterapeutas que escolhem. São esses elementos que podem nos aproximar ou mesmo nos distanciar, podem travar ou destravar um processo psicoterapêutico, dependendo da forma como são usados e trabalhados nesse vínculo. Um verdadeiro encontro precisa de pelos menos dois eus para acontecer.
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Técnica psicodramática que se relaciona a repetir gestos, movimentos ou cenas para que a pessoa possa observar a si mesma (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Pensamento/Cultrix.).
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Na teoria psicodramática se propõem geralmente três etapas clássicas em uma direção: aquecimento, dramatização e compartilhamento.
AGRADECIMENTOS
Às três mulheres que me permitiram dividir trechos de nossas trocas neste artigo e que representam outras pessoas que também acompanho. A importância de vocês na psicóloga e na pessoa que me construo a cada dia é gigante. Agradeço a Lúcio a partilha, orientação e companhia neste escrito e a Viver Mais Psicologia, na pessoa de Viviane, por ser minha casa em minha formação como psicodramatista.
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FINANCIAMENTO
Não aplicável.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Não aplicável.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
08 Out 2023 -
Aceito
12 Jan 2024