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Hagiografia de uma cortesã: idílio, modo romanesco e legenda em Lucíola, de José de Alencar

Hagiography of a courtesan: Idyll, romance and legend in José de Alencar´s Lucíola

RESUMO

Desde seu lançamento, Lucíola (1862) tem sido objeto de análises que abordam especialmente o paralelo com a A dama das camélias (Alexandre Dumas Filho) e Paulo e Virgínia (Bernardin de St-Pierre). Porém, raramente as questões ali presentes foram tratadas em seu conjunto, de modo a constituírem uma narrativa única e coerente. Pois, a despeito da linguagem erótica dos capítulos iniciais, as imagens idílicas ou “analogia da inocência” (Frye) acabam por sobrepor-se gradualmente na construção de cenas, diálogos e situações, assim como nas remissões à obra de St. Pierre, a Atala (Chateaubriand) e aos idílios de Teócrito. Assim, Lucíola sofre uma modificação crucial em seu mythos, que passa a orbitar em torno do conceito de idílio, não apenas enquanto locus amoenus (Curtius) mas sobretudo no sentido moderno atribuído a ele por Schiller (1800), segundo o qual trata-se de um vir-a-ser que só se realiza plenamente na chave da transcendência. Tal reorientação, da imanência à transcendência, aproxima-o de uma das chamadas “formas simples” (Jolles), que é a legenda cristã. Ao objetificar bem e mal, a legenda culmina na personagem qualitativamente superior do santo, cujos mythos se dão através do “trajeto que conduz à santidade” (Jolles). Discutindo tais premissas teóricas, o artigo propõe que a crítica a Lucíola revelou profunda incompreensão quanto ao papel discursivo de G.M., a digna senhora responsável por publicar as cartas a ela entregues por Paulo, o amante da heroína. G.M. compreende a construção do romance enquanto vita e exemplum - algo que o narrador não chega a entender.

PALAVRAS-CHAVE:
romantismo; romance; José e Alencar; Lucíola; Schiller

ABSTRACT

Since its release, Lucíola (1862) has been the subject of analyses that especially address the parallel with La dame aux camélias (Alexandre Dumas, fils) and Paul et Virginie (Bernardin de St-Pierre). However, rarely have the issues therein been treated as a whole, so as to constitute a single coherent narrative. For, despite the erotic language of the initial chapters, the idyllic images or “analogy of innocence” (Frye) end up gradually overlapping in the construction of scenes, dialogues and situations, as well as in the references to the work of St. Pierre, to Atala (Chateaubriand) and to the idylls of Theocritus. Thus, Lucíola undergoes a crucial modification in its mythos, which comes to orbit around the concept of the idyll, not only as locus amoenus (Curtius) but above all in the modern sense attributed to it by Schiller (1800), according to which it is a coming-to-be which is only fully realised in the key of transcendence. Such a reorientation from immanence to transcendence brings it closer to one of the “simple forms” (Jolles), which is the Christian legend. By objectifying good and evil, the legend culminates in the superior character of the saint, whose mythos takes place through the “path that leads to sanctity” (Jolles). Discussing such premises, the article proposes that the criticism of Lucíola revealed a profound misunderstanding of the discursive role of G.M., the worthy lady responsible for publishing the letters delivered to her by Paulo, the heroine’s lover. G.M. understands the construction of the novel as vita and exemplum - something the narrator fails to grasp.

KEYWORDS:
romanticism; novel; José de Alencar; Lucíola; Schiller

Le moment de la possesion est une crise de l´amour.

(ROUSSEAU, A nova Heloísa, parte 1, carta IX)

Somente minha inocência me sustenta nas infelicidades.

(ROUSSEAU, Devaneios do caminhante solitárioROSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do caminhante solitário. São Paulo: Edipro, 2017., Terceira caminhada, p. 50)

“[...] minha alma [...], liberta desse corpo que a perturba e cega.

(ROUSSEAU, Devaneios do caminhante solitárioROSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do caminhante solitário. São Paulo: Edipro, 2017., Terceira caminhada, p. 51)

O corpo só e corrompido se o coração consentir […] Eis meu corpo, ele estará disposto a toda sorte de suplícios

(VARAZZE, Legenda áurea, Santa Lúcia, p. 79).

Introdução

Muito se exploraram as referências literárias e como elas operam no interior da narrativa de Lucíola, de José de Alencar, desde sua publicação, em 1862 (Nabuco, Távora, Araripe Jr., Motta, Magalhães Jr.), até em estudos acadêmicos mais recentes (Marco, Nitrini, Queiroz, Ribeiro). E o romance de fato responde a essa demanda, percorrido por um vasto número delas em seus 21 capítulos, de Horácio, Ovídio e o Gênesis a Chateaubriand, Balzac e Victor Hugo. As fontes francesas têm primazia sobre as demais e obviamente foram as mais abordadas, em particular A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, e Paulo e Virgínia, de Bernardin de St. Pierre - ambas utilizadas comparativamente para rebaixar a obra de Alencar, de que a troca ferina de artigos reunidos na Polêmica Alencar/Nabuco é exemplar.1 1 No Globo de 31/10/1875, Nabuco afirma que “Lúciola não é senão a Dame aux camélias adaptada ao uso do demi-monde fluminense” (135), ao que Alencar rebate, em 04/11/1875, que “Lucíola, bem longe de ser a imitação da Dame aux camélias, é, ao contrário, sua cabal refutação” (COUTINHO, 1978, p. 150).

A virulência dos ataques ao escritor cearense, acusado de apenas imitar Dumas Filho, talvez tenha deixado à sombra a complexidade intrínseca de suas obras, algo que novas análises vêm procurando reparar.

Dante Moreira Leite é da opinião de que Alencar foi superior a Dumas por fundir na mesma personagem “a virgem pura e a cortesã” (2007LEITE, Dante Moreira. Lucíola: teoria romântica do amor. In: LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. São Paulo: Ed. Unesp, 2007. p. 79-84., p. 81). Valéria de Marco propõe que, embora Lucíola espelhe-se

estruturalmente em A dama das camélias para construir a imagem da cortesã do império [...], do ponto de vista normativo ocorre uma inversão, pois Marguerite domina a inciativa das ações [...]. Alencar chegou à composição de um romance mais complexo que o de Dumas. (MARCO, 1986MARCO, Valéria de. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986., p. 190).

Na mesma linha, Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto aponta que “tal complexidade distancia Alencar e Dumas” (PINTO, 1999PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França. São Paulo: Annablume, 1999. , p. 105), em benefício do brasileiro, enquanto Nitrini afirma de modo taxativo que “Marguerite não tem conflito. [...] Lúcia, ao contrário, é uma personagem complexa” (NITRINI, 1989NITRINI, Sandra Margarida. Lúciola e a Dama das camélias. Travessia, n. 16-17-18, p. 84-97, 1989., p. 89).

Bernardin de Saint-Pierre e Chateaubriand, igualmente mencionados em Lucíola, também têm sido objetos de estudos exaustivos da parte de Moraes Pinto.

Uma dessas referências, porém, tem passado relativamente despercebida nas tantas abordagens de Lucíola. Quando muito, é citada de passagem, embora nos pareça decisiva não apenas pelo que significou para a história da literatura, dada sua antiguidade, mas sobretudo pelo papel aglutinador que estabelece, internamente, com as demais remissões espalhadas ao longo do romance. Trata-se dos Idílios de Teócrito, coleção de poemas escritos no século III a.C. e tidos como iniciadores do gênero pastoral.

Embora Alencar tenha sido um leitor sabidamente compulsivo, nenhum de seus principais biógrafos, como Araripe Jr., Arthur Motta, Raimundo de Menezes e Raymundo Magalhães Jr., menciona a possibilidade de ele haver lido o poeta grego; o próprio escritor, no célebre texto autobiográfico Como e por que sou romancista, não o cita, ainda que mencione uma infinidade de leituras que fizera desde a infância. Sabe-se que até o século XIX as traduções de suas obras para o português eram escassas e parciais,2 2 Ver Nuno Simões Rodrigues, Traduções Portuguesas de Teócrito. Lisboa: Universitária Editora, 2000. Agradeço ao autor a gentileza de me haver disponibilizado sua obra, de difícil acesso no Brasil. mas não se pode afastar a hipótese de que Alencar as tivesse lido, se efetivamente as leu, em francês, como soía ocorrer naquele período da literatura brasileira (Les Idylles de Théocrite, suivie de ses inscriptions, traduites en vers français, par Firmin Didot; Paris, Typographie de Firmin Didot Frères, 1833). Registre-se que as “Éclogas” de Virgílio, diretamente inspiradas no autor grego e também referidas no romance, ganharam tradução aqui através do incansável Odorico Mendes, contudo.

Idílio antigo

Nos Idílios, em particular no de número I, Teócrito apresenta vários dos elementos definidores do gênero, conforme aponta Ernst Robert Curtius: uma “fatia de natureza bela e sombreada”, tendo como cenário mínimo “uma ou várias árvores, uma campina, uma fonte ou um riacho”, a que se podem acrescentar “o canto dos pássaros e flores” e uma “brisa”.3 3 “Une ‘tranche’ de nature belle et ombragée; son décor minimun se compose d´un arbre (ou de plusieurs), d´une prairie et d´une source, ou d´un ruisseau. A cela peuvent s´ajouter le chant des oiseaux et des fleurs. Le comble sera atteint, si l´on y fait intervener la brise.” (CURTIUS, 1956, p. 317). Nesse espaço privilegiado, não existe nem o mal, nem a morte, e a fertilidade viceja. Com Virgílio, a poesia pastoral ganharia um locus específico, a então remota Arcádia, na Grécia, um lugar que seria posteriormente batizado por Isidoro de Sevilha de locus amoenus.

Transformada em potentíssima metáfora, a Arcádia seria, nas palavras de Françoise Lavocat, “desterritorializada” (LAVOCAT, 2002LAVOCAT, Françoise. Espaces arcadiques: esquisses pour une hydrographie pastorale. Études littéraires, v. 34, n. 1-2, p. 153-167, 2002., p. 153), reformulada indefinidamente e sob inúmeras formas - de Dafne e Cloe (s. II ou III), de Longo, à Arcadia de Sannazaro (1504), à Diana (1559) de Jorge de Montemayor, à La Arcadia de Lope de Vega (1598) até Gessner, Rousseau, Bernardin de St. Pierre e Chateaubriand, cruzando o Atlântico e chegando aos nossos árcades. Tornar-se-ia, na definição de Bruno Snell, a “pátria mental” da literatura.4 4 Lavocat, 2002, p. 153. Para uma notável síntese da apropriação de Teócrito por Virgílio, ver Lavocat, Espaces arcadiques: “Les anciens Grecs n’avaient pas identifié l’Arcadie, la région la plus pauvre, la plus enclavée et sans doute la plus arriérée de la Grèce, comme une contrée idyllique. On estime généralement que ce sont les Bucoliques de Virgile qui ont opéré cette déréalisation ou, en d’autres termes, cette ‘déterritorialisation’ de l’Arcadie: pour reprendre les termes de Bruno Snell (1947), l’Arcadie est devenue une ‘patrie mentale” dans la culture latine et citadine du Ier siècle après Jésus Christ quand s’est estompé l’ancrage référentiel qui était encore le sien chez Théocrite. Il s’agit, au sens propre, d’une opération métaphorique, d’un transfert, puisque l’Arcadie a été transportée ailleurs: à Mantoue par Virgile, puis, à partir de la Renaissance, dans n’importe quel coin d’Europe un peu champêtre, et jusqu’en Amérique” (LAVOCAT, 2002, p. 153).

“Mito fundador da poesia bucólica” (HUNTER, 2008HUNTER, Richard. Introduction. Explanatory notes. In: THEOCRITUS, -. Idylls. Tradução de Anthony Verity. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. VII-XX, 85-114. , p. 16), o idílio I de Teócrito tematiza os sofrimentos do pastor Dafne, que recusa o amor da pastora Cloe para poder escapar à desagregação inerente ao desejo, rebelando-se contra o poder de Eros.5 5 “against the power of eros” (HUNTER, 2008, p. 86). Abandonado pelas Ninfas em seu combate inglório para conter a devastação provocada pelos sentidos, deixa-se afogar no rio.6 6 “Where were you, Nymphs, when Daphnis wasted away, Where were you?” (vs. 66-67) [...] Let/ all things run contrary, since Daphnis is near to death./ Let the pine tree sprout pears, let hounds be torn by stags,/ Let nightingales cry out to howls at the day´s dawn./ Now end, my Muses, end the herdsman´s song/ So he sang and ended. Aphrodite wished to raise him again/ To life, but the thread which the Fates had given him had all/ run out.// Daphnis came to the river, and the waters closed above to the man/ Whom the Muses loved [...]” (THEOCRITUS, 2008, vs. 132-141, p. 4 e 6).

Em um estudo inescapável sobre o tema, Paul Alpers observa como cada autor e cada crítico tenderam a acentuar um aspecto específico desse conjunto de traços comuns da Arcádia, aquilo a que chamou de “anedota [...] representativa”.7 7 “representative [...] anedocte” (ALPERS, 1996, p. 22) A crermos em tal hipótese, a “anedota” predominante em Teócrito é a da supressão do desejo, que, como se pode depreender, organiza toda a estrutura do Idílio I. Tal aspecto do idílio como forma concebida para conter ou suprimir o desejo mostra-se recorrente, de resto, nas inúmeras reapropriações de que foi objeto na segunda metade do século XVIII, como nos casos do suíço Gessner e do francês Marmontel, mas sobretudo com Rousseau - em A nova Heloísa (1761) e nos Devaneios do caminhante solitárioROSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do caminhante solitário. São Paulo: Edipro, 2017. (1782) - assim como na obra muito lida de seu discípulo Bernardin de St. Pierre - Paulo e Virginia (1788) - e em Chateaubriand - na Atala (1801).

Mas se o idílio enquanto supressão do desejo percorre Lucíola como ponto de fuga a que a heroína aspira, a alternativa que o narrador alencariano propõe não é a mesma do pastor Dafne,8 8 O suicídio como forma derradeira de resistência ao império do desejo está sutilmente presente em Lucíola na menção à Safo do escultor Pradier, assim como nas referências a Paul et Virginie e a Atala, no mesmo trecho do romance. mas, sim, a da sublimação.9 9 A título de registro, Araripe Jr. já observara que o Epílogo de O guarani seja, “talvez, o único idílio, em língua portuguesa, que rivalize com a bucólica austral de Saint-Pierre” (ARARIPE JR., 1978, p. 61-62). Sob tal ponto de vista, parece necessário retomar a mais importante apropriação moderna desse conceito, exposta por Friedrich Schiller, na esteira da filosofia idealista alemã, em Poesia ingênua e sentimental (1800). Aqui o idílio sofrerá uma reinterpretação crucial, deixando de ser uma forma entre outras para tornar-se a forma por excelência da literatura moderna.

Idílio moderno

Schiller distingue uma poesia dos tempos antigos, ou “ingênua”, em que ainda não se dera a cisão entre o Eu e o mundo, de uma poesia dos tempos modernos, em que Eu e mundo separaram-se irremediavelmente. Ao poeta desses novos tempos, a que chamou de “sentimental”, restaria apenas restaurar tal unidade perdida por meio da chave da transcendência:

Enquanto meros filhos da natureza, fomos felizes e perfeitos; tornamo-nos livres, e perdemos as duas coisas. Surge daí uma dupla nostalgia, e bastante desigual em relação à natureza: uma nostalgia de sua felicidade e uma nostalgia de sua perfeição. O homem sensível só lamenta a perda da primeira; apenas o homem moral pode entristecer-se pela perda da segunda. (SCHILLER, 1991SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 53).

A nostalgia da “felicidade” e da “perfeição” imanentes, perdidas ao nos desgarrarmos do estado de natureza, levou o filósofo e dramaturgo a criar uma taxonomia que não se ancora nem na cronologia, nem nas regras de gênero. O critério que adota repousa antes sobre “simplesmente a maneira de sentir” (SCHILLER, 1991SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 70),10 10 Alpers acentua justamente esse aspecto na obra de Schiller: “[...] to reject traditional generic categories of poetry and instead to classify all poetries by modes of feeling or perception” (1996, p. 29). em que avulta, como uma espécie de gênero maior sobrepondo-se a todos os outros, a elegia, subdividida, por sua vez, em duas: a elegia propriamente dita e o idílio:

Chamo de elegíaco o poeta se opõe a natureza à arte e o Ideal à realidade, de modo que a exposição dos primeiros predomine e a satisfação com eles se torne sensação preponderante. Como a sátira, esse gênero também abrange duas classes. Ou a natureza e o Ideal são um objeto de tristeza, quando se expõe aquela como perdida e este como inatingível. Ou ambos são um objeto de alegria, se representados como reais. No primeiro caso, tem-se a elegia em significado mais restrito; no segundo, o idílio, em sentido mais amplo. (SCHILLER, 1991SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 69-70).

O mundo físico, enquanto substituto possível da ausência do estado de natureza no mundo fraturado em que está imerso o poeta sentimental, desdobra-se no plano moral, portanto. Tal imbricação entre os planos físico e moral constitui a forma mais acabada por excelência do sentido moderno de “natureza” e de “idílio”: “O poeta elegíaco busca a natureza, porém enquanto Ideia e numa perfeição em que jamais existiu, ainda que a chore como algo passado e agora perdido” (SCHILLER, 1991SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 71).

Se o estado de natureza já não faz mais parte da vida do indivíduo enquanto imanência, será preciso resgatá-la dentro de si, na vivência interior, única e particular, encapsulada em uma época idealizada, que é a infância:

[...] todo homem isolado também possui seu paraíso, sua época de ouro, da qual se lembra com maior ou menor entusiasmo, conforme sua natureza seja mais ou menos poética. A própria experiência oferece, assim, traços suficientes para o quadro de que trata o idílio bucólico. Mas, por isso, este sempre permanece uma bela, arrebatadora ficção. (SCHILLER, 1991SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991., p. 84).

Assim, a passagem da ideia de idílio de Teócrito a Schiller consiste na compreensão essencial da “lacuna entre desejo e possibilidade, posse e perda”.11 11 “the gap between desire and possibility, possession and loss.” (GARBER, 1988, p. 458). É por essa razão que a Poesia ingênua e sentimental deve ser compreendida como “a fundação intelectual de todas as modernas abordagens da pastoral”.12 12 Poesia ingênua e sentimental “constitute the intelectual foundation for all modern approaches to pastoral” (HALPERIN, 1983, p. 43).

Se em Curtius uma imaginada Época de Ouro despontava como a condição incontornável para a caracterização do idílio, a infância da humanidade transforma-se, em Schiller, em experiência única e particular,13 13 [...] “man´s original condition - in the childhood of the individual and historically in ancient Greece - [is] one of unity within himself and with the world around him.” (ALPERS, 1996, p. 28-29). que se cristaliza na imagem inovadora da criança como parte essencial do conceito moderno de idílio.14 14 “Schiller´s model of nature is the child and its maturing (ALPERS, 1996, p. 31). Alpers não se cansa de insistir no lugar central que a obra de Schiller ocupa para a definição moderna de pastoral ao eleger o espaço da interioridade e o tempo da infância como eixos em tornos dos quais ela passa a orbitar: “[Naive and sentimental poetry] provides an anatomy of modern thinking about pastoral and enables us to see connections and implications in a way no later criticismo does. Schiller´s account of pastoral is embedded in a general theory of poetry, and particularly of the nature of modern poetry” (ALPERS, 1996, p. 28). Não é casual que a palavra “criança” surja 10 vezes à medida que Lucíola se aproxima de seu final, quando a linguagem erótica vai gradualmente perdendo relevância.15 15 Tal perspectiva é diferente, por exemplo, da definição célebre de William Empson, segundo a qual o processo de criação da pastoral “consists of putting the simple into complex”. Como nota Alpers, “Empson develops an account of the central and defining simplicity of pastoral not from the natural model of childhood and maturity, but from a basic social situation - the encounter of ‘high’ and ‘low’ persons, the sophisticated and socially privileged confronting [...] the socially and economically humble. Empson´s view that poetry is rhetorical and social - its permanent forces unavoidably mediated by the realities of given societies and historical moments - offers an alternative to Schiller´s view of poetry as psychological and universal” (ALPERS, 1996, p. 37).

A imagem da criança fornece concretude e materialidade à distância no tempo, localizada em um locus natural ao mesmo tempo geral e específico. Trata-se de uma “geografia temporal” (GARBER, 1988GARBER, Frederick. Pastoral spaces. Texas studies in language and literature, v. 30, n. 3, p. 431-460, 1988., p. 438)16 16 O trecho todo é esclarecedor: “Schiller's way of describing his profound uneasiness with pastoral shows how he thinks of the mode implicitly in terms of a kind of temporal geography. He reads time spatially, with a “then”, “now”, and “later” defining the stages of our condition, with desires behind and before us and with us placed square in the middle, uncertain which way to look. This is one more indication that his sense of the sentimental state, its way of being-in-the-world, is oriented by spaces and placement within those spaces, and that sentimental spaces, in particular the pastoral sort, are defined by gaps and lacunae at every topographical point”) (GARBER, 1988, p. 438-439), que internaliza a própria condição de existência de uma determinada individualidade - ou uma “topografia interna” (“pastoral's inner topography”) (GARBER, 1988, p. 440). , através da qual a paisagem de Niterói - o locus amoenus da heroína - irrompe no horizonte da narrativa como ponto de convergência dessas linhas-de-força: de um determinado tempo, que é o da infância da heroína, e de sua interioridade, na medida que foi nesse espaço-tempo que sua queda, por assim dizer, ainda não ocorrera. Decorre daí a crítica acerba à Dama das camélias por parte da heroína, que a chama de “uma mentira” (p. 125) e de “sacrilégio literário”:

Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se aí um sacrilégio literário. As folhas desse primor da escola realista voaram despedaçadas pelas mãos crispadas de Lúcia, que parecia antes estrangular uma víbora, do que rasgar o livro inocente que tivera a infelicidade de irritar-lhe o humor. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 127).

E, em contrapartida, de seu apreço entusiasmado pelas pastorais.

A leitora de pastorais

O idílio em Lucíola constrói-se pouco a pouco, de maneira subliminar, refratado muitas vezes pela contundência de uma linguagem erótica inédita no romance brasileiro de então, como bem observou Valéria de Marco.17 17 “Ao abrir a alcova, o romance de Alencar abre também um aspecto novo nas estórias das cortesãs: a linguagem erótica. As imagens sexuais dão concretude ao desejo e ao jogo amoroso” (MARCO, 1986, p. 162). Sua representação atingirá o ápice nos capítulos finais,18 18 Nesse ponto, discordamos frontalmente de Nitrini, para quem a diminuição do erotismo enfraquece tanto a narrativa de Alencar quanto sua superioridade sobre a de Dumas: “Com a revelação da verdadeira Lúcia e a perda definitiva, para Paulo, do acesso à alcova da ex-cortesã brasileira, a narrativa, até então mercada por um ritmo nervoso de acontecimentos, entra num clima de tranqüilidade, apesar do desfecho melodramático. E é a partir desse momento que a qualidade literária de Luciola, sem dúvida, superior à do seu modelo, decai muito” (NITRINI, 1989, p. 90). Ao contrário, como se procurará provar aqui, o mythos do romance arma-se para atingir sua máxima inflexão justamente nos capítulos finais. mas tem início já no capítulo II, em que tudo evoca inocência e elevação. O outeiro da Glória, em que está embutido o nome verdadeiro da heroína, conforme descobriremos ao final, serve de cenário à “mimosa aparição”, ressumbrando “laivos de tão ingênua castidade”. Emoldurada pela “lua que vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras”, Lúcia veste um discreto vestido “cinzento com orlas de veludo castanho”, que em nada evoca as roupas insinuantes e de tons quentes que irá trajar em breve. Ao contrário, elas agora atenuam e diluem as linhas do corpo, que, saberemos, são seu ganha-pão e sua moeda de troca nas relações que mantém com a sociedade dos homens. Mas aqui seu corpo é descrito somente em sua metade superior, realçando-se os traços “puros e diáfanos [...], como os tênues vapores da alvorada” (p. 26). Personagem e topônimo evocam a cerimônia sacra que se desenrola ali, no espaço elevado, diante do qual, do outro lado da baía de Guanabara, desenrola-se a paisagem da Niterói de sua infância.

Apesar do desencanto de Paulo após saber tratar-se de uma famosa cortesã - “Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 26) -, algo o inquieta, tirando-o do “meu natural”:

A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e impudente; o contraste inexplicável da palavra e da fisionomia, junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam sem querer. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 28).

Na mesma noite, já em casa “entre o sono e a vigília”, o tempo e o espaço passados irrompem com força através da perfeita “reminiscência” de “como a vira da primeira vez” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 28):

Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, e ávidos ambos de conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das Mangueiras, quando, voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão que brincava com um leque de penas escarlates. Havia nessa atitude cheia de abandono muita graça; mas graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro com ares altivos decididos, que afetam certas mulheres à moda. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 28-29).

“Encantadora menina”, “atitude cheia de abandono”, “graça simples, correta e harmoniosa”: a primeira impressão do narrador, similar à da primeira vez que a vira, combina elevação da figura e influxo purificador da natureza:

Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob o céu azul da corte. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 29).

A primeira troca de olhares preserva a elevação da cena:

No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos negros brilhava de viço e juventude, não me pude conter de admiração. Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a minha voz habituada às fortes vibrações nas conversas à tolda do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração, minha voz excedeu-se:

- Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso! (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 29).

A reação de Lúcia é condizente com o clima de pureza: “Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas, tinha feito parar o carro. A moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça para olhar-me, e sorriu” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 29).

No entanto, ao restituir à menina o leque que caíra acidentalmente do carro, um elemento novo e desestabilizador surge para macular a cena idílica:

Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta dos dedos presos na luva de pelica. Bem vê que tive razão assegurando-lhe que não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me com um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:

- Esta moça não é feliz!

- Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz!

Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não a atirou com desprezo para longe de si?

É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que eu encontrara na Glória. Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 29-30).

A heroína interpreta de maneira grave um gesto aparentemente banal de galanteria - “apertei-lhe a ponta dos dedos” -, pois ele pressupõe, aos seus olhos, o conhecimento, por parte de moço, da vida de cortesã que ela efetivamente levava na capital. Disso resulta o sorriso que “desta vez foi tão melancólico”, pois subentende o reconhecimento de sua real situação social aos olhos do moço gentil. Embora nada efetivamente se passe de decisivo para o andamento do enredo, trata-se de uma cena de profunda penetração psicológica e exemplo de “microrrealismo psicológico” - para tomarmos de empréstimo a expressão cunhada por Eugênio Gomes a propósito da obra de Machado de Assis.

Talvez seja necessário um parêntese para esclarecer que não se pretende equiparar aqui um e outro escritor no que diz respeito à densidade psicológica de suas respectivas produções, mas sim de refutar uma tese ainda geralmente aceita de que os romances de Alencar carecem de agudeza psicológica, como afirmaram desde cedo Araripe Jr. e Arthur Motta. Se o primeiro considerava que a heroína beirava a ninfomania, o segundo foi ainda mais duro:

A psicologia de Lúcia é falsa, pois não se compreende a dualidade desse caráter incongruente. [...] “não é portanto, humana a figura de Lúcia e mesmo para os que sustentam a verosimilhança das mais extravagantes concepções, deve-se objectar que a exterioridade da vida de Lúcia não corresponde ao estado d'alma de Maria da Gloria. Luciola não passa de uma phantasia do romancista brasileiro, que nunca revelou qualidades de psicólogo. (MOTTA, 1921MOTTA, Arthur. José de Alencar (o escritor e o político): sua vida e sua obra. Rio: Briguiet, 1921., p. 82-83).

Se de um lado persiste a polarização entre um Machado “analista” e um Alencar “paisagista” - de “paisagismo eloquente” e “exuberante” (FREYRE, 1987FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar. In: FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. Rio: Nova Fronteira, 1987. p. 119-140. , p. 120 e 123, respectivamente) -, Antonio Candido, por outro lado, considera Lucíola o “mais profundo de seus livros” graças justamente a sua capacidade de investigação do “processo psíquico” (CANDIDO, 1975CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Tomo 2. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiais, 1975., p. 229) da heroína: “A sua arte literária é, portanto, mais consciente e bem armada do que suporíamos à primeira vista e, sua imaginação, é contrabalançada por “boa reflexão crítica” (CANDIDO, 1975CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Tomo 2. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiais, 1975., p. 235).

Tal aspecto pode ser rastreado na percepção das passagens do idílio para o erotismo e desse para o idílio. Assim, se no tempo evocado do primeiro encontro, a impressão do narrador ainda se mantém singela - pois ignora a vida da menina que tinha diante de si -, pouco depois, ao voltar ao tempo presente da noite em que se dera o encontro na Glória, sua reflexão a posteriori sobre esse primeiro encontro revela-se cruel, comparando-a a uma “brilhante parasita” e a um “torpe inseto”.

Nessa cena complexa, o olhar de encantamento que ergue o casal às alturas é quase imediatamente rebaixado pelo discreto contato corporal insinuado pelo narrador. Ainda que sutil e filtrado pela suavidade da textura da pelica da luva, é o tato - e não mais o espiritualizado olhar - que passa a imperar, isso é, o mesmo sentido que traz para o centro da relação do casal o corpo enquanto mais-valia, enquanto exclusivo veículo de prazer aos olhos da sociedade e fonte de ganhos materiais (saberemos mais adiante, porém, que a protagonista dispõe de razões muito mais nobres para a instrumentalização de seu corpo).

Essa passagem crucial, em que talvez pela primeira vez Lúcia não tenha sido identificada como cortesã desde que se tornara uma, irá calar fundo dentro de si. É o que deixa subentendido a Paulo quando este volta a procurá-la, já mais que prevenido por Sá de que a corte a alguém como Lúcia se faz através de “uma pulseira de brilhantes ou abrindo-lhe um crédito na Wallerstein” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 36). Diz ela ao amado:

- [...] creio que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.

- Por que motivo entoa fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei?

- Por quê?... Queria ver uma cousa. [...] Queria ver ainda se lembrava de nosso primeiro encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 36).

Procurando seduzi-la, responde Paulo:

- Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!

- Como daquela vez não me verá mais nunca!

- O que lhe falta?

- Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! Disse ela com voz pungida pela dor íntima.

Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram proferidas. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 38).

A profunda decepção e a melancolia da heroína revertem-se na linguagem erótica virulenta, beirando a animalização, que se segue à cena idílica: lábios “túmidos dos desejos”, “narinas que tremiam”, “ondulações felinas”, “tremor espasmódico” (p. 41), culminando em “delírio, convulsão de prazer” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 42).

O ápice dessa linguagem se dá pouco depois, ao longo dos capítulos VI, VII e VIII, na célebre passagem em que se descreve a orgia promovida por Sá em sua chácara nos arrabaldes da cidade. No apogeu de sua performance de messalina, Lúcia é renegada por Paulo e, perturbada, escapa do salão fechado, desprovido de janelas e revestido de quadros de temática erótica, e irrompe no jardim contíguo. Realizada no espaço distante e asfixiante da alcova e dominada tanto pela linguagem quanto pelas representações pictóricas de exacerbado erotismo, a orgia promovida por Sá coloca-se nas antípodas da festa pública e religiosa descrita no Outeiro da Glória - em lugar aberto e elevado, tendo ao fundo e acima a natureza como cenário. Ambas as festas orbitam em torno da heroína - santificada em uma, decaída em outra.

Lucíola, muito mais do que as matrizes francesas com as quais é habitualmente comparada, opera uma aproximação entre dois gêneros que se mantinham apartados: aquele de corte realista, que encontramos em A dama das camélias, e o romance pastoral, de Paulo e Virgínia. À medida que a narrativa avança, este último passa a ganhar terreno.

O espaço e o tempo idílicos são evocados uma vez mais através da rememoração comum do Recife, terra natal de Paulo e cidade que Lúcia conheceu brevemente em uma escala de retorno de uma viagem à Europa. Não apenas a cidade é a mesma, mas o topônimo também. Se o incidente ocorrido com a carruagem de Lúcia se deu na rua das Mangueiras, no Rio, são uma vez mais essas árvores que dão início à rememoração idílica na distante capital pernambucana: “Que passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras que bordam as margens do rio” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 34). As árvores emolduram o locus amoenus que vai se desenhando:

Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranqüila e sossegada que se devia viver naquele retiro. Lembrei-me de minha casa, e das tardes em que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe e minha irmã. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 34-35).

A remissão ao espaço e tempo passados, cristalizados na imagem idílica das “mangueiras” - rua e natureza -, será evocada uma vez mais no capítulo XII, justaposta a sua condição social rebaixada:

Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã desprezível que se balançava lubricitante no seu novo carro, insultando com o luxo desmedido as senhoras honestas que passavam a pé, sabe de que me lembrei? Não foi da ceia em casa de Sá, nem do mês que acabava de passar; foi unicamente da suave aparição da rua das Mangueiras no dia da minha chegada. São extravagâncias da memória. Quem conhece o fio misterioso que leva o pensamento através do labirinto do passado a uma lembrança remota? (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 106-107).

Gradualmente, a heroína e, em menor grau, Paulo, vão acercando-se daquela condição que Schiller identificou como essencial ao idílio - a infância - em paralelo a uma promessa de reinício em estado de pureza, acolhidos ambos pela natureza:

- Tu és uma criança! Não tens culpa do que fizeste! [...]

Fomos através das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de jasmineiros em flor.

- Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve nunca! Esses, acredite, são puros! (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 73).

Mais adiante, acentua-se a aproximação de Lúcia com a imagem da criança, ainda que o narrador veja nisso uma fragilidade: ela comete “travessura de criança” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 78), “saltando como uma louquinha”, comporta-se “como a criança traquinas” que faz jus, ainda aos olhos de Paulo, ao “ralho paterno” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 79). Por fim, ele próprio se sente arrebatado pela ideia de pureza ligada à infância, resgatado, então, da esfera do desejo e da linguagem erótica: “[acabei] tornando-me criança como ela” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 82).

À medida que a narrativa avança em direção ao fim, o convívio entre eles passa a ser o de “dois bons amigos” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 132). O desejo da posse carnal é aos poucos expulso do relacionamento, ainda que Paulo, que não é o móvel de tal transformação, mas apenas seu objeto, se aflija: “À medida que eu sentia essa criatura desapegar-se de mim, agarrava-me a ela com a ânsia do náufrago” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 137).

As leituras de ambos acompanham a mutação. Lúcia não lê mais A dama das camélias, mas, sim, Paulo e Virgínia, e Paulo deixa de lado o vulcânico Ernani, da ópera inspirada na peça de Victor Hugo, por Atala, de Chateaubriand. Por sua vez, “Lúcia estava mudada” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 142), ocupando aposentos simples e trajando roupas singelas. A imagem da criança como aspiração surge com mais insistência: “Ah, meu tempo de menina!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 147), “Sou uma criança!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 149) e “Quem me fez menina assim? [...] É preciso que eu brinque...” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 173).

Não é casual que Paulo e Virgínia se torne um paradigma de leitura para ela, pois lhe oferece “ações infantis” e “paixões doces e moderadas” -19 19 “Comme le veut la tradition pastoralle depuis Longus, l´action met en jeu des actions enfantines, amours d´abord purement fraternelles, ou du moins que les protagonistes perçoivent comme telles”; [...] “passions douces et modérées” (RACAULT, 1986, p. 186). ou, nas palavras de Sainte-Beuve, uma “inocente e poética infância”.20 20 “l´innocente et poétique enfance” (SAINTE-BEUVE, 1951, p. 118). A própria heroína parece intuir a proximidade entre a pastoral de St.-Pierre e sua infância:

Quando eu lia a descrição das duas cabanas e a infância dos amantes, Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio. [...] De repente, a voz desatou num suspiro: - Ah! meu tempo de menina! Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 147).

Encontram-se igualmente aí outros elementos da pastoral de St-Pierre: o distanciamento espacial, que recupera a inocência de um tempo original, as inúmeras referências literárias antigas, atribuindo ao romance uma dignidade literária tomada de empréstimo da tradição, e o gosto pelo “tableau”, que se cristaliza nas cenas da evocação das mangueiras do Recife e nas cenas finais passadas em Niterói.

Essencial na pastoral desde Teócrito, presente também em Paulo e Virgínia, e igualmente importante no romance de Alencar é a supressão do trabalho ou, o que é mais importante, do tipo de trabalho relacionado à heroína. Essa sabe ser compreendida pela sociedade unicamente através de seu ofício, que é o de trabalhar com o próprio corpo, enquanto oferta - do ponto de vista de quem irá consumi-lo - e enquanto sacrifício - do ponto de vista daquela que o vende. Nesse sentido, a imobilidade espacial inerente ao idílio neutraliza um aspecto definidor do ofício da cortesã, que é o livre trânsito da mercadoria - no caso, o próprio corpo, que necessita circular e ser exibido para despertar o desejo nos espaços em que pode ser potencialmente consumido. É significativo que, quando o ato de trabalhar em Lucíola passa a ser explicitamente relacionado à heroína, refira-se a sua vida pós-cortesã e diga respeito provavelmente à costura, ofício humilde, mas digno em termos sociais.

Por fim, irrompe a festa campestre de inspiração teocritiana, de profundas ressonâncias idílicas, em que predominam o espaço aberto, porém familiar, a santificação, mas em meio à natureza, e a consagração do amor, embora não sensualizado. Ali passa a predominar, na economia narrativa do romance, a personagem infantil, que já vinha povoando ostensivamente as reminiscências, os diálogos e leituras do herói e da heroína. No espaço harmonioso da praia de São Domingos, em Niterói, que remete ao tempo perdido da infância feliz, a heroína apresenta a Paulo e ao leitor sua irmã, Ana, a jovem de 12 anos que projeta em um futuro harmônico a inocência de que, um dia, Lúcia já desfrutara:

Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 169).

Ana é “o retrato de Lúcia”, pois representa tanto a vida pura que ela própria vivera antes da queda quanto aquela a que aspira viver. Assim como em Paulo e Virgínia, o par central desfruta de uma existência em que mundo individual e natureza convivem em harmonia. Tal mundo sem fissuras não irá perdurar no romance de St. Pierre, pois as convenções sociais irromperão de forma abrupta por meio da carta da tia de Virginie, do mesmo modo como em Lucíola a queda se dará através da aparição de Couto - “Não toques em cousa que pertença a essa mulher! É uma perdida!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 174). Tanto no romance francês quanto no de Alencar, a superação da ruptura se dará no plano da transcendência, enquanto “busca espiritual ou mística de ordem puramente individual”,21 21 “Recherche spiritualiste ou mystique d´ordre purement individuel, conformément à un schéma assez analogue à celui que Jean Starobinski a mis em évidence dans les derniers livres de La Nouvelle Heloïse.” (RACAULT, 1986, p. 200). como também ocorre no grande inspirador de St. Pierre, que é A nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau.

A aguda compreensão do lugar que ocupa na sociedade reafirma-se mais uma vez: “Veja! A lama deste tanque é meu corpo; enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 157). Seu corpo e o desejo que a ele está ligado torna-se um obstáculo intransponível, uma “carne rebelde”, como também o fora para a Julie de A nova Heloísa:

Mas o que eu não posso, é separar-me deste corpo! (1951, p. 148) [...] Mas horrível era quando nos braços de um homem este corpo sem alma despertava pelos sentidos [..] Queria resistir e não podia! Queria matar-me trucidando a carne rebelde! [...] Passado esse suplício, restava uma vaga sensação de dor, e um rancor profundo pelo ente miserável que me arrancara o prazer das entranhas convulsas! (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 167).

Se a harmonia que o idílio pressupõe só pode ocorrer, assim como na formulação schilleriana, através da transcendência, em Lucíola o mundo sem desejo a que aspira o idílio teocritiano ocorre somente por acidente ou por engano - ou seja, nas passagens em que a profissão da heroína ainda permanece ignorada por Paulo. Por engano: na cena inicial passada no outeiro da Glória, em que Paulo se encanta com a visão santificada da heroína, logo desfeita por Sá. Por acidente: na cena da evocação do loucus amoenus à sombra dos manguezais do Recife após o primeiro encontro, na rua das Mangueiras, no Rio.

Inocência e degradação, alma e corpo, alto e baixo: o idílio surge no modo romanesco sempre junto de sua contraparte, uma solidariedade que, de resto, já fora apontada por dois teóricos centrais do século XX.

Idílio e modo romanesco

Bakhtin, ao estudar as matrizes do romanesco, definiu o “tipo idílico de restauração do complexo antigo e do tempo folclórico”, em que se dá a materialização de um “cantinho concretamente situado no espaço, onde viveram os pais e os avós, e onde viverão os filhos e os netos”. De fato, a preservação de um tempo familiar a partir de um locus específico é o que parece ocorrer nos capítulos finais de Lucíola, onde o “pequeno mundo limitado no espaço [que] se auto-satisfaz” (BAKHTIN, 1993BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 3. ed. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 1993., p. 333) ressurge aos olhos da heroína ao visitar a casa em que nascera, em Niterói. A temporalidade, ao emergir a partir da representação de um espaço específico, estabelece uma relação solidária entre tempo e espaço - o “cronotopo”. Um mundo assim implica “a criação do ritmo cíclico do tempo” estreitamente ligado às condições essenciais da existência, tecidas em torno da célula básica da família. A esse tempo que recusa as demandas da história, da sociedade, da política e - no caso de específico da heroína de Alencar - do desejo vem aliar-se a natureza, que se funde com a vida humana (ver: BAKHTIN, 1993BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 3. ed. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 1993., p. 334).

Ligada a tal ideia de vida enquanto reiteração de um mundo de essencialidades desponta a criança, justamente entendida, em um tal idílio de caráter familiar, como “uma sublimação do ato sexual e da concepção” (BAKHTIN, 1993BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 3. ed. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 1993., p. 335), que, como se viu, é o caminho que a heroína de Alencar percorre no romance. O idílio busca proteger o indivíduo da complexidade do mundo, estabelecendo uma relação de “contiguidade contrastada” em relação ao espaço exterior.22 22 “contiguïté contrastée” (PEYRACHE-LEBORGNE, 1997, p. 167). Não se trata de simplesmente negar o espaço exterior, mas sim construir um mundo próprio, “fechado, imutável e em miniatura”,23 23 “clos, immuable et miniaturisé” (PEYRACHE-LEBORGNE, 1997, p. 167). Agradeço a autora por haver disponibilizado seu texto. que lhe fica à margem.

Se Bakhtin identifica no idílio uma das matrizes do romanesco, Northrop Frye irá além, elevando-o a sua celula mater24 24 “Not all continue the Romantic tradition as frankly and grandly as Northrop Frye, who assimilates pastoral to the mode of romance.” (ALPERS, 1996, p. 36). e enfatizando a mesma “anedota” que dá norte à obra de Schiller, isto é, a infância:

[…] it is easy to see in the atomized society of romance a regression to the childlike, if regression is the right word. Children, who are entitled to live on the labor of others, are the only genuine aristocrats; and while they are traditionally in the age of innocence, their behavior is often more openly demonic than that of adults. (FRYE, 2004aFRYE, Northrop. Notebooks on romance. Organização de Michael Dolzani. Toronto: Toronto University Press, 2004a., p. 261).

O crítico canadense, contudo, opera duas importantes reorientações quanto ao vetor idealista da Poesia ingênua e sentimental. Em primeiro lugar, identifica no idílio não apenas uma “era da inocência” associada à “infância”, mas a uma infância particular ancorada em uma determinada experiência. Em segundo lugar, ao vincular o idílio a uma vivência específica, e não genérica, Frye o aproxima do modo romanesco, na medida em que é inerente a este estar “mais próximo do sonho de satisfação do desejo”, de onde decorre sua “qualidade perenemente infantil” (FRYE, 2014FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Marcus de Martini. São Paulo: É Realizações, 2014., p. 325-326).

Assim, o idílio opera dentro do modo romanesco como uma possibilidade de restauração da identidade perdida perseguida pelo herói ou pela heroína: “[…] the question is how much one can lose of one´s ‘property’, that is, of one´s self, without losing one´s identity as well” (FRYE, 2004bFRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 257). Trata-se da questão que jaz no cerne de O livro de Jó, isso é, a imposição de “uma ordem ou harmonia sobre o caos”.25 25 “In the Christian myth the centre of gravity is the Incarnation, the descent of an imposed harmony or order on chaos, in descent; in ascent, the Ressurrection.” (FRYE, 2004, p. 258).

Para Frye, Jó encarna a quintessência do romanesco, por haver sido expulso de “um mundo protegido por Deus” para então ser resgatado de volta para o mundo elevado, onde reina a harmonia.26 26 “The archetype of romance is The Book of Job: Job is plunged from a divinely protected world to a demonically controlled one, and is then delivered.” (FRYE, 2004, p. 208). Em sua “forma processual e sequencial” (FRYE, 2014FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Marcus de Martini. São Paulo: É Realizações, 2014., p. 326), a típica narrativa romanesca começa no alto, mergulha nas profundezas e volta ao topo, estruturando-se em “formato de U” (FRYE, 2004bFRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 232). Em sua descida, o herói deixa no caminho partes de sua identidade, até resgatá-las ao final.27 27 “The journey starts at the top, descends to the bottom, and comes back to its startling point. The descent is a progressive loss of parts of one´s identity.” (FRYE, 2004, p. 257).

Trata-se do mesmo molde narrativo subjacente à trajetória da heroína do romance de Alencar, em que a criança é arrastada para um mundo degradado por circunstâncias alheias a sua vontade, obrigada a sacrificar sua inocência em prol da vida de seus familiares, para, então, resgatar a pureza perdida. O fracasso dessa tentativa em Lucíola - pois ela morrerá - explica-se pela impossibilidade com a qual se defronta a poesia dos tempos modernos ou “sentimental” em restaurar um mundo de essencialidades de que o idílio, enquanto variante da elegia segundo Schiller, é símbolo.

Se a narrativa bíblica pressupõe a restauração da ordem sobre o caos, a ascensão de Maria da Glória também o pressupõe, mas enquanto sublimação, pois na vida imanente ela não conseguirá reverter o estigma que carrega perante a sociedade. O tempo passado é o da infância de Maria da Glória; e o tempo futuro é o da projeção em Ana, pura e inocente criança que resgatará, à sua revelia, a vida vivida em pecado da irmã. Livrar-se de seu corpo ou torná-lo invisível aos olhos do mundo significa suprimir o obstáculo que impede o acesso ao estado de inocência original, ou à “posse imediata da verdade” como característica do “estado de infância” (STAROBINSKI, 1991STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras , 1991., p. 38); isto é, alcançar um mundo sem mediação ou “obstáculo” onde impera a “transparência”, projetado em “um futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem mais perfeita” (STAROBINSKI, 1991STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras , 1991., p. 37).

Parece ser exatamente isso o que Julie, nessa obra tão fundamental para a relação entre idílio e modo romanesco que é A nova Heloísa, explicita a seu amante: “Meu coração muito terno precisa do amor, [mas] meus sentidos não têm necessidade alguma de amante; [...] os encantos da união dos corações vêm juntar-se para nós aos da inocência!”.28 28 “Mon coeur trop tendre a besoin d´amour [mais] mes sens n´ont aucun besoin d´amant”; [...] les charmes de l´union des coeurs se joignent pour nous à ceux de l´innocence.” (ROUSSEAU, 1993, pt I, carta IX, t. I, p. 95).

Quando o obstáculo reaparece em toda a sua virulência e “o presente se torna um lugar de exílio”, resta ao indivíduo morrer enquanto “única distensão possível” - como em Rousseau, mas igualmente em St. Pierre e Alencar:

Na nostalgia elegíaca, o ser descobre que uma parte essencial dele mesmo pertence a um mundo desaparecido. Ele se sente fascinado pelo que foi; mas nem o presente, nem o passado podem oferecer um apoio real. O passado não é por isso menos findo, o presente se torna um lugar de exílio”. [...] Morrer representa a única distensão possível: Julie morrerá feliz, liberta da necessidade de agir, descobrindo na alegria que, doravante, já não tem de realizar o esforço que a lei do dever lhe impunha (STAROBINSKI, 1991STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras , 1991., p. 101).29 29 A morte, como afirmou argutamente Jean Fabre sobre Paul et Virginie, irrompe nesses três romances “comme une sanction, comme le châtiment d´une faute originale qu´aucune vertu ni aucun refuge ne permettent d´éluder, comme un scandale pour l´esprit; mais aussi comme une tentation, comme une promesse, comme une harmonie où se résout toute dissonance, comme l´accord finalement révélé entre la volupté et la purété” (FABRE, 1980, p. 172).

A persistência de Maria da Glória em resgatar sua inocência - sua verdadeira “identidade” - dá a dimensão da dignidade de que é feita. Assim como Jó, ela desperta em nós a grandeza humana e nos leva a nos perguntarmos, na esteira de Frye ao investigar o modo romanesco, “quanto pode um homem perder do que tinha sem que isso afete o que seja?” (FRYE, 2004bFRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 234). Essa trajetória de uma dada individualidade em busca de sua redenção emula em vários aspectos uma das chamadas “formas simples” tão essenciais para a construção e disseminação do ethos cristão, que é a legenda.

A constituição de uma vita

Por trás da máscara de cortesã que Lúcia carrega ao longo da narrativa e que as circunstâncias lhe impuseram, esconde-se o sentido de sacrifício que acompanhou todos os seus atos.30 30 Em importante artigo, Bosi detecta a “existência de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar” (BOSI, 1995, p. 179) como forma de resolver contradições na história do país. Mas em Lucíola não ocorrem “os signos da convulsão dos elementos naturais” (BOSI, 1995, p. 186), como o crítico aponta no epílogo de O guarani. Mesmo o pior deles, que é a prostituição, está marcado pela exclusiva preocupação em salvar a família da miséria e da morte durante a epidemia “da febre amarela em 1850”,31 31 “Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci.” (ALENCAR, 1951, p. 163). que resultou em sua expulsão de casa paterna. Igualmente, ao longo de sua relação com Paulo, irá assumir-se culpada para que possa preservar a dignidade do amado aos olhos da sociedade que ele tanto valoriza - “Será feita a sua vontade! Terei amantes!” (p. 105); e talvez naquele que seja o ato supremo do sentido de seu sacrifício, irá seguir em sua profissão para proporcionar à Ana a melhor criação possível; mesmo a recusa em assumir-se como irmã, revela sua preocupação exclusiva em não macular a vida da criança com sua conduta socialmente condenável.

Renúncia e sacrifício são, pois, conceitos-chave para entender a conduta da heroína: renuncia a sua própria vida para sacrificar-se ora pelos pais, ora por Paulo, ora pela irmã. Sob tal aspecto, sua existência pode ser compreendida como a atualização secular da legenda cristã ao descrever o caminho de um mortal e pecador em direção à santificação. Como observa André Jolles em Formas simples, “o santo permite ver-nos nitidamente o que desejamos fazer, aprender e ser no caminho da virtude; ele próprio é o caminho que conduz à virtude e podemos então segui-lo” (JOLLES, 1976JOLLES, André. Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976., p. 39). De fato, a partir do capítulo XVI, avolumam-se os exemplos de virtude da heroína, e a linguagem deixa de ser erótica para afinar-se não somente com o idílio, como visto, mas com a legenda:

[Lúcia] continuava absorta no seu êxtase religioso [...]. És sagrada para mim; sagrada pelo martírio que te causei; sagrada pelas lágrimas que derramamos juntos. A tua beleza já não tem influência sobre os meus sentidos. Posso te ver agora impunemente. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 153, itálicos nossos).

Ao recordar-se das terríveis circunstâncias que a levaram à prostituição, considera que “o sacrifício devia se consumar, porque não tive mão que me amparasse” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 165) e, assim como Jó, parece vislumbrar em sua trajetória uma provação divina - “Deus quis que eu carregasse só a minha cruz” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 166). O sofrimento atroz que sua vida - ou vita, para utilizarmos o termo da hagiografia - lhe impôs é apenas uma etapa a ser cumprida no caminho da redenção: “Devia resgatar pela dor a felicidade que pela dor havia perdido” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 167).

Sua essência, entretanto, permanece imaculada; sua identidade, ou seu ethos, resiste, inviolável:

Contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima, sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam” [...] Aquele esquecimento profundo, aquela alheação absoluta do espírito que eu sentira da primeira vez, continou sempre. Era a tal ponto que depois não me lembrava de cousa alguma; fazia-se como que uma interrupção, um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me chamava ao meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava, separava-me de mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã sem pudor e sem consciência, que eu desprezava, com uma cousa sórdida e abjeta. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 166-167).

O espaço altera-se igualmente, não apenas pela mudança para a Niterói da infância, já antevista na cena da festa da Glória no capítulo II, mas pela singeleza da nova casa:

O seu quarto de dormir já não era o mesmo; notei logo a mudança completa dos móveis. Uma saleta cor-de-rosa esteirada, uma cama de ferro, uma banquinha de cabeceira, algumas cadeiras e um crucifixo de marfim compunham esse aposento de extrema simplicidade e nudez” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 148)

[...] - Quando entro aqui, sacudo no limiar da porta, como os viajantes, a poeira do caminho; e Deus me recebe (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 149)

[...] - Foi nesta casa que eu nasci, disse ela. [...] Quando venho aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha infância tão feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta praia. O senhor estava perto de mim. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 156).

No espaço restaurado e agora apaziguado, instaura-se uma nova relação com o amado, que deixa de ser bilateral para, pela primeira vez, enlaçar três seres ligados exclusivamente pelo afeto. Uma trindade, constituída em comunhão com a paisagem natural:

Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa d´água, ou até os Dous Irmãos, gozar das frecuras das árvores e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra mão livre a Ana (p. 169) [...] Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores, das estrelas (p. 170) [...] Quero uni-la [Ana] ao santo consórcio de nossas almas. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 184).

Por fim, no último parágrafo dá-se o ciclo final da narrativa de constituição de uma vita, que é a relíquia, ou aquilo que permanece no mundo imanente como prova inelutável da santidade: o “objeto - a que vulgarmente se dá o nome de relíquia - [que] está incumbido de representar o santo em sua ausência” (JOLLES, 1976JOLLES, André. Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976., p. 37): “Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o nosso espírito” [...] talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada da seiva e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 190).

Em uma das passagens mais belas de todo o romance, o mythos aproxima-se do fim - “Chama-me Maria [...]. Vem ver-me à tarde. À hora da Ave-Maria” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 169) - e o processo hagiográfico se completa através da assunção da heroína: “Vivo já no céu [...], nesta carne que já morreu” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 182).

G.M. sobre M.G.: o exemplum

Talvez seja esse árduo caminho que Maria da Glória palmilha - a partir do sacrifício, da renúncia e em busca da redenção - que a respeitável senhora a quem Paulo confiou as cartas em que resume sua história com a heroína, deseja que os seus leitores retenham. G.M. exerce um importante papel discursivo na medida em que chama a atenção, em seu breve texto inicial dirigido “Ao autor”, não para o risco da degradação a que uma mulher pode ser submetida na sociedade, mas justamente para o fenômeno oposto e complementar, que é o da abnegação e da elevação cristalizada na trajetória da heroína. Ao acentuar a parte derradeira desse caminho, e não apenas o apelo carnal que a cortesã desperta nos personagens masculinos, G.M. reatualiza o sentido de exemplum da legenda cristã, que significa “aquilo que deve ser lido” (FRANCO JR., 2003FRANCO JR., Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras , 2003. p. 11-25., p. 12), pois diz respeito a algo de inquestionável valor moral e pedagógico32 32 Esse papel de G.M. para a articulação discursiva do romance me parece fundamental e muito mais importante do que somente uma estratégia de Alencar para disfarçar sua autoria, como propõe Luis Filipe Ribeiro; para ele, G.M. opera apenas como parte de um “jogo de cena construído por Alencar, para esquivar-se da responsabilidade da autoria de uma estória que poderia gerar melindres comprometedores para sua carreira de escritor” (RIBEIRO, 1996, p. 88). .

Paulo, enquanto missivista que de fato experienciou a relação com a heroína, parece não ter compreendido inteiramente o sentido do sacrifício subjacente a todos os seus atos, algo que apenas intui: “Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 190, grifos nossos).

“Creio que não o consegui”: a confissão de Paulo na última página reconhece na trança dos cabelos a presença de uma relíquia, mas não parece capaz de atribuir sentido a tal sinal, uma incompreensão que ele reitera em outras passagens: “ninguém a compreende” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 46), “incompreensível mulher” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 74) e “como explicar essa rápida e extraordinária mudança? [...] Compreenda, se pode” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 93). A própria heroína dá-se conta da dificuldade que o personagem enfrenta: “não compreendes, Paulo?” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 173), “é difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 80).

Mesmo nas páginas finais, quando parecem evidentes os sinais de redenção da heroína, Paulo titubeia ao atender aos apelos da amada - “Chama-me Maria!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 169). Irá nomeá-la assim somente nos diálogos que mantiverem, mas, ao dirigir-se a G.M., permanecerá tratando-a por Lúcia - e não só em Lucíola, mas também no texto de abertura do romance seguinte, Diva - “A G.M.” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 193) -, onde continuará a referir-se a ela como Lúcia.

A resistência na forma de tratamento sugere fortemente, no nível da elocução, que Paulo não consegue compreender a real extensão da tarefa hercúlea empreendida pela heroína para restaurar seu nome e sua identidade. Permanece preso ao epíteto adotado de “Lúcia”, que remete à condição de que ela busca desprender-se: “Lúcia (quero chamá-la assim ainda, porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo)” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 169).

Embora vislumbre nela algo mais do que a cortesã, Paulo não escapa da mesma polarização partilhada por seus amigos, pois a heroína permanece para ele um ser insistentemente contraditório: “Quantas vezes [...] não pensava comigo: ‘Esta mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!’” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 173). Mesmo nas cenas finais, é ainda tomado de ciúme, desta vez de Jacinto: “Não havia dúvida possível; as provas da infâmia eram evidentes” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 159).

A resistência do amado em vê-la com outros olhos - “A mulher de quem duvidou já não existe, morreu!” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 162) - representa um motivo de aflição para Maria da Glória, que, em um lamento desesperado de profundas ressonâncias rousseaunianas, faz ecoar a súplica de Julie a seu amado Saint-Preux: “Salva-me, Paulo! Salva-me de ti! Salva-me de mim mesma!...”.33 33 A título de comparação, leia-se o trecho da carta IV de Julie, parte 1: “[...] pour me garantir de ma perte, ton doit être mon unique defenseur contre toi; [...] tu protégeras ma personne contre mon propre coeur. Tes vertus sont le dernier refuge de mon inocence” (ROUSSEAU, 1993, p. 83).

Na legenda cristã, Santa Lúcia responde a Pascásio, que ameaça violá-la caso se recuse a “sacrificar aos ídolos” pagãos: “O corpo só é corrompido se o coração consentir, porque se você me fizer violentar, será contra minha vontade, e ganharei a coroa da castidade” (VARAZZE, 2003VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras , 2003., p. 79)

Incapaz de interpretar a heroína e sua trajetória sob tal prisma, Paulo delegará a G.M. essa tarefa. E ela de fato o fará, ao resgatar no mythos da cortesã o exemplum da legenda cristã. Onde a sociedade ficcional do romance, eminentemente masculina, vê apenas a satisfação do desejo, G.M., uma mulher, vê renúncia, sacrifício e redenção.

A melhor crítica a Lucíola tendeu a sobrepor as posturas éticas de Paulo e G.M., vendo uma como extensão da outra.34 34 Leia-se, por exemplo, esta passagem do estudo de Valéria de Marco: “A confissão de Paulo [diferentemente da de A dama das camélias e Manon Lescaut] nasce da necessidade de explicar uma postura ética e pretende caracterizar-se não como purgação do sofrimento, mas sim como processo de análise e conhecimento da mulher prostituta e de suas relações amorosas” [...] Através da análise do passado, Paulo constrói a narração que, para ele, é a forma de partilhar com o leitor as dificuldades do processo de apreensão e explicação da realidade” (MARCO, 1986, p. 153). A senhora de “cabelos brancos” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 24), porém, olha em conjunto os manuscritos que lhe foram entregues, extraindo deles uma narrativa, um mythos, de modo a poder atribuir-lhe sentido. Se de fato não vivenciou aquilo que lhe é contado, ela dispõe da grande vantagem de não estar imersa na sensibilidade da personagem e em seus pré-conceitos, que, como vimos, estão orientados pelos valores masculinos que o cercam. Como lembra a heroína em uma contundente passagem, estendendo sua condição individual à situação do próprio gênero feminino, ela nada mais é do que “pasto” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 58), a “presa” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 61) dos homens.

G.M. busca enfatizar não situações de prazer e gozo de que a linguagem erótica é um índice, mas, antes, inserir tais situações em um todo maior, no mythos de que elas fazem parte - ou o romance que estamos lendo. Oferece ao leitor, portanto, a possibilidade de uma interpretação ampla da narrativa, vista em conjunto: o “caminho” agreste da heroína, semeado de “urzes”, ao final do qual ele encontrará uma “musa cristã”. Tal como deve ser a narrativa da vita de um santo, assim é, para G.M., a narrativa da vita da heroína:

Não será a imaginação verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d´alma?” [...] A sua história não tem pretensões a vestal. É musa cristã: vai trilhando o pó com os olhos no céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a virtude. (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 21).

Foi G.M. quem deu à história que o leitor tem diante dos olhos o metafórico título de Lucíola, nome do pequeno animal cujo brilho intermitente se irradia em meio à escuridão. Paulo, atraído, assim como seus amigos, pelas sombras em que a heroína está imersa, mal vislumbra a luz que dela emana: “Ainda hoje não posso compreender que força misteriosa me obrigou a respeitar um dia inteiro essa mulher, que eu possuíra, e ainda apertava nos meus braços” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 150).

G.M., ao contrário, identifica não somente as sombras, mas também a luz, mesmo que intermitente: [...] a mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d´alma” (1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 21). Se para ele a heroína é feita de contradições insolúveis, para G.M. ela é circunstancialmente rebaixada, episodicamente imersa na escuridão, mas essencialmente elevada. Lúcia afinal, como a legenda não nos deixa esquecer, “vem de lux, ‘luz’ [...]; Lúcia também pode vir de lucís vía, ‘caminho da luz’. (VARAZZE, 2003VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras , 2003., p. 77).

Sob tal ponto de vista, o mythos do romance intitulado Lucíola assemelha-se à trajetória ou à peregrinação de um determinado indivíduo rumo à redenção, que, assim como na legenda cristã, procura “refazer todo o trajeto que conduz à santidade” (JOLLESJOLLES, André. Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976., p. 40) - o caminho da luz. Tal trajetória pode ser rastreada também no plano da linguagem, pois se a heroína é em princípio apresentada como “cortesã depravada” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 80), “desprezível” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 106), marcada por um forte traço de “animalidade” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 113), passará, nos momentos finais, pelo “martírio”, o “êxtase religioso” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 153), o “sacrifício” (ALENCAR, 1951, p. 165), a expiação (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 167) até chegar à redenção, por meio da qual procurará resgatar sua identidade: a “menina de quinze anos, pura e cândida” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 154). Ao reaver seu nome,35 35 “Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes [...] Morri pois para o mundo para o mundo e para minha família.” (ALENCAR, 1951, p. 166). é a própria identidade que recupera; como Frye observou com agudeza, “a perda e a reobtenção da identidade”36 36 “loss and regaining of identity” (FRYE, 2006, p. 14). está no centro do modo romanesco.

Paulo permanece obstinado pelo corpo e pelos sentidos que orbitam em torno de si. Seu discurso sobre Lúcia é o discurso sobre o corpo de Lúcia, o que explica por qual motivo, ao dirigir-se a G.M., resiste em chamá-la de Maria. Ao deter-se sobre o corpo, o discurso de Paulo não consegue dominar o conjunto do sistema simbólico do mythos - algo que G.M., ela sim, conseguirá. Quando a heroína sai em busca de sua identidade perdida, que tem a ver com o idílio e não com a vida da cortesã, o discurso do narrador revela-se impotente para acompanhá-la.

É para suprir tal lacuna de sentido do discurso de Paulo que existe G.M. Ela redime a heroína, através da visada interpretativa do conjunto de sua vita. E, ao fazê-lo, obtém um segundo efeito, que é o de reinstalar a heroína em um lugar socialmente respeitável. Pois, embora mulher, G.M. faz parte da mesma engrenagem social e cultural que busca estabilizar as relações constituídas, o mesmo mecanismo de que Paulo também faz parte. Sofrimento e martírio - o exemplum, enfim - legitimam a heroína no campo da transcendência para reafirmar aquilo de imanente que subjaz a toda a construção dessa narrativa: o status quo.

G.M., por fim, parece claro, espelha a heroína em seu nome e sua identidade restauradas: M.G., Maria da Glória. É possível mesmo supor que Maria da Glória estabeleça uma leitura a contrapelo da heroína de Dumas não apenas no tocante ao enredo - pois condena veementemente as atitudes de sua congênere francesa, como se viu - mas também no dispositivo discursivo: M.G. também são as iniciais de Marguerite Gautier, a dama das camélias.

Conclusão

Para além da abordagem crua que tanto fascinou a crítica, marcada pelas representações de uma situação social específica e por uma linguagem erótica então inovadoras no cenário do romance brasileiro de então, Lucíola articula-se a uma vasta e longeva tradição, que remonta ao idílio enquanto gênero, em Teócrito e Virgílio, mas também enquanto ideal. Schiller irá reorientar o idílio por meio da imagem da criança, que passa a se afigurar como predisposição e destinação, como se pode ver nas ficções de Bernardin de St. Pierre e de Rousseau. Forma central da literatura, o idílio reside também no centro da forma romanesca enquanto elemento central da narrativa em U a que se referiu Frye, atualizada na forma da legenda.

Se a fortuna crítica do romance, assim como o próprio herói, parece ter se deixado fascinar pelo canto da sereia da linguagem erótica e do apelo das circunstâncias históricas, que de fato existem, a heroína, porém, segue nos lembrando de sua dimensão muito mais complexa, a de um mundo “nunca antes vislumbrado ou imaginado”,37 37 “Their world is the first fully fictional world in Western literature [...] Their appeal lies instead in fiction’s ability to reveal to us a world that we have not encountered or imagined before.” (PAYNE, 2006, p. 1). como lembra Mark Payne em um estudo renovador sobre os idílios teocritianos. Não custa insistir que a heroína de Lucíola já se dera conta disso: “Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 188).

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  • SAINTE-BEUVE, Charles. Portraits littéraires Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard , 1951.
  • SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.
  • STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras , 1991.
  • THEOCRITUS, -. Idylls Tradução de Anthony Verity. Oxford: Oxford University Press , 2008. p. VII-XX, 85-114.
  • VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras , 2003.
  • 1
    No Globo de 31/10/1875, Nabuco afirma que “Lúciola não é senão a Dame aux camélias adaptada ao uso do demi-monde fluminense” (135), ao que Alencar rebate, em 04/11/1875, que “Lucíola, bem longe de ser a imitação da Dame aux camélias, é, ao contrário, sua cabal refutação” (COUTINHO, 1978COUTINHO, Afrânio (org.). A polêmica Alencar/Nabuco. Brasília/Rio: Ed. da Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro, 1978., p. 150).
  • 2
    Ver Nuno Simões Rodrigues, Traduções Portuguesas de Teócrito. Lisboa: Universitária Editora, 2000. Agradeço ao autor a gentileza de me haver disponibilizado sua obra, de difícil acesso no Brasil.
  • 3
    “Une ‘tranche’ de nature belle et ombragée; son décor minimun se compose d´un arbre (ou de plusieurs), d´une prairie et d´une source, ou d´un ruisseau. A cela peuvent s´ajouter le chant des oiseaux et des fleurs. Le comble sera atteint, si l´on y fait intervener la brise.” (CURTIUS, 1956CURTIUS, Ernest Robert. La littérature européenne et le Moyen Âge latin. Tradução de Jean Bréjoux. Paris: Presses Universitaires de France, 1956., p. 317).
  • 4
    Lavocat, 2002LAVOCAT, Françoise. Espaces arcadiques: esquisses pour une hydrographie pastorale. Études littéraires, v. 34, n. 1-2, p. 153-167, 2002., p. 153. Para uma notável síntese da apropriação de Teócrito por Virgílio, ver Lavocat, Espaces arcadiques: “Les anciens Grecs n’avaient pas identifié l’Arcadie, la région la plus pauvre, la plus enclavée et sans doute la plus arriérée de la Grèce, comme une contrée idyllique. On estime généralement que ce sont les Bucoliques de Virgile qui ont opéré cette déréalisation ou, en d’autres termes, cette ‘déterritorialisation’ de l’Arcadie: pour reprendre les termes de Bruno Snell (1947), l’Arcadie est devenue une ‘patrie mentale” dans la culture latine et citadine du Ier siècle après Jésus Christ quand s’est estompé l’ancrage référentiel qui était encore le sien chez Théocrite. Il s’agit, au sens propre, d’une opération métaphorique, d’un transfert, puisque l’Arcadie a été transportée ailleurs: à Mantoue par Virgile, puis, à partir de la Renaissance, dans n’importe quel coin d’Europe un peu champêtre, et jusqu’en Amérique” (LAVOCAT, 2002LAVOCAT, Françoise. Espaces arcadiques: esquisses pour une hydrographie pastorale. Études littéraires, v. 34, n. 1-2, p. 153-167, 2002., p. 153).
  • 5
    “against the power of eros” (HUNTER, 2008HUNTER, Richard. Introduction. Explanatory notes. In: THEOCRITUS, -. Idylls. Tradução de Anthony Verity. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. VII-XX, 85-114. , p. 86).
  • 6
    “Where were you, Nymphs, when Daphnis wasted away, Where were you?” (vs. 66-67) [...] Let/ all things run contrary, since Daphnis is near to death./ Let the pine tree sprout pears, let hounds be torn by stags,/ Let nightingales cry out to howls at the day´s dawn./ Now end, my Muses, end the herdsman´s song/ So he sang and ended. Aphrodite wished to raise him again/ To life, but the thread which the Fates had given him had all/ run out.// Daphnis came to the river, and the waters closed above to the man/ Whom the Muses loved [...]” (THEOCRITUS, 2008THEOCRITUS, -. Idylls. Tradução de Anthony Verity. Oxford: Oxford University Press , 2008. p. VII-XX, 85-114., vs. 132-141, p. 4 e 6).
  • 7
    “representative [...] anedocte” (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 22)
  • 8
    O suicídio como forma derradeira de resistência ao império do desejo está sutilmente presente em Lucíola na menção à Safo do escultor Pradier, assim como nas referências a Paul et Virginie e a Atala, no mesmo trecho do romance.
  • 9
    A título de registro, Araripe Jr. já observara que o Epílogo de O guarani seja, “talvez, o único idílio, em língua portuguesa, que rivalize com a bucólica austral de Saint-Pierre” (ARARIPE JR., 1978ARARIPE JR, Tristão. Sob o signo de Alencar. In: BOSI, Alfredo (org.). Araripe Jr.: teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1978. p. 1-101. , p. 61-62).
  • 10
    Alpers acentua justamente esse aspecto na obra de Schiller: “[...] to reject traditional generic categories of poetry and instead to classify all poetries by modes of feeling or perception” (1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 29).
  • 11
    “the gap between desire and possibility, possession and loss.” (GARBER, 1988GARBER, Frederick. Pastoral spaces. Texas studies in language and literature, v. 30, n. 3, p. 431-460, 1988., p. 458).
  • 12
    Poesia ingênua e sentimental “constitute the intelectual foundation for all modern approaches to pastoral” (HALPERIN, 1983HALPERIN, David M. Before pastoral: Theocritus and the ancient tradition of bucolic poetry. New Haven: Yale University Press, 1983., p. 43).
  • 13
    [...] “man´s original condition - in the childhood of the individual and historically in ancient Greece - [is] one of unity within himself and with the world around him.” (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 28-29).
  • 14
    “Schiller´s model of nature is the child and its maturing (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 31). Alpers não se cansa de insistir no lugar central que a obra de Schiller ocupa para a definição moderna de pastoral ao eleger o espaço da interioridade e o tempo da infância como eixos em tornos dos quais ela passa a orbitar: “[Naive and sentimental poetry] provides an anatomy of modern thinking about pastoral and enables us to see connections and implications in a way no later criticismo does. Schiller´s account of pastoral is embedded in a general theory of poetry, and particularly of the nature of modern poetry” (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 28).
  • 15
    Tal perspectiva é diferente, por exemplo, da definição célebre de William Empson, segundo a qual o processo de criação da pastoral “consists of putting the simple into complex”. Como nota Alpers, “Empson develops an account of the central and defining simplicity of pastoral not from the natural model of childhood and maturity, but from a basic social situation - the encounter of ‘high’ and ‘low’ persons, the sophisticated and socially privileged confronting [...] the socially and economically humble. Empson´s view that poetry is rhetorical and social - its permanent forces unavoidably mediated by the realities of given societies and historical moments - offers an alternative to Schiller´s view of poetry as psychological and universal” (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 37).
  • 16
    O trecho todo é esclarecedor: “Schiller's way of describing his profound uneasiness with pastoral shows how he thinks of the mode implicitly in terms of a kind of temporal geography. He reads time spatially, with a “then”, “now”, and “later” defining the stages of our condition, with desires behind and before us and with us placed square in the middle, uncertain which way to look. This is one more indication that his sense of the sentimental state, its way of being-in-the-world, is oriented by spaces and placement within those spaces, and that sentimental spaces, in particular the pastoral sort, are defined by gaps and lacunae at every topographical point”) (GARBER, 1988GARBER, Frederick. Pastoral spaces. Texas studies in language and literature, v. 30, n. 3, p. 431-460, 1988., p. 438-439), que internaliza a própria condição de existência de uma determinada individualidade - ou uma “topografia interna” (“pastoral's inner topography”) (GARBER, 1988GARBER, Frederick. Pastoral spaces. Texas studies in language and literature, v. 30, n. 3, p. 431-460, 1988., p. 440).
  • 17
    “Ao abrir a alcova, o romance de Alencar abre também um aspecto novo nas estórias das cortesãs: a linguagem erótica. As imagens sexuais dão concretude ao desejo e ao jogo amoroso” (MARCO, 1986MARCO, Valéria de. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986., p. 162).
  • 18
    Nesse ponto, discordamos frontalmente de Nitrini, para quem a diminuição do erotismo enfraquece tanto a narrativa de Alencar quanto sua superioridade sobre a de Dumas: “Com a revelação da verdadeira Lúcia e a perda definitiva, para Paulo, do acesso à alcova da ex-cortesã brasileira, a narrativa, até então mercada por um ritmo nervoso de acontecimentos, entra num clima de tranqüilidade, apesar do desfecho melodramático. E é a partir desse momento que a qualidade literária de Luciola, sem dúvida, superior à do seu modelo, decai muito” (NITRINI, 1989NITRINI, Sandra Margarida. Lúciola e a Dama das camélias. Travessia, n. 16-17-18, p. 84-97, 1989., p. 90). Ao contrário, como se procurará provar aqui, o mythos do romance arma-se para atingir sua máxima inflexão justamente nos capítulos finais.
  • 19
    “Comme le veut la tradition pastoralle depuis Longus, l´action met en jeu des actions enfantines, amours d´abord purement fraternelles, ou du moins que les protagonistes perçoivent comme telles”; [...] “passions douces et modérées” (RACAULT, 1986RACAULT, Jean-Michel. Pastorale et roman dans Paul e Virginie. In: RACAULT, Jean-Michel (org.). Études sur Paul et Virginie. Paris: Didier/Publication de l´Université de la Réunion, 1986. p. 177-200., p. 186).
  • 20
    “l´innocente et poétique enfance” (SAINTE-BEUVE, 1951SAINTE-BEUVE, Charles. Portraits littéraires. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard , 1951. , p. 118).
  • 21
    “Recherche spiritualiste ou mystique d´ordre purement individuel, conformément à un schéma assez analogue à celui que Jean Starobinski a mis em évidence dans les derniers livres de La Nouvelle Heloïse.” (RACAULT, 1986RACAULT, Jean-Michel. Pastorale et roman dans Paul e Virginie. In: RACAULT, Jean-Michel (org.). Études sur Paul et Virginie. Paris: Didier/Publication de l´Université de la Réunion, 1986. p. 177-200., p. 200).
  • 22
    “contiguïté contrastée” (PEYRACHE-LEBORGNE, 1997PEYRACHE-LEBORGNE, Dominique. Roman historique et roman-idylle chez Dickens et Hugo. Rivista di letterature moderne e comparate, v. 50, n. 2, p. 163-183, 1997., p. 167).
  • 23
    “clos, immuable et miniaturisé” (PEYRACHE-LEBORGNE, 1997PEYRACHE-LEBORGNE, Dominique. Roman historique et roman-idylle chez Dickens et Hugo. Rivista di letterature moderne e comparate, v. 50, n. 2, p. 163-183, 1997., p. 167). Agradeço a autora por haver disponibilizado seu texto.
  • 24
    “Not all continue the Romantic tradition as frankly and grandly as Northrop Frye, who assimilates pastoral to the mode of romance.” (ALPERS, 1996ALPERS, Paul. What is pastoral? Chicago: University of Chicago Press, 1996., p. 36).
  • 25
    “In the Christian myth the centre of gravity is the Incarnation, the descent of an imposed harmony or order on chaos, in descent; in ascent, the Ressurrection.” (FRYE, 2004FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 258).
  • 26
    “The archetype of romance is The Book of Job: Job is plunged from a divinely protected world to a demonically controlled one, and is then delivered.” (FRYE, 2004FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 208).
  • 27
    “The journey starts at the top, descends to the bottom, and comes back to its startling point. The descent is a progressive loss of parts of one´s identity.” (FRYE, 2004FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004b., p. 257).
  • 28
    “Mon coeur trop tendre a besoin d´amour [mais] mes sens n´ont aucun besoin d´amant”; [...] les charmes de l´union des coeurs se joignent pour nous à ceux de l´innocence.” (ROUSSEAU, 1993ROUSSEAU, Jean-Jacques. La Nouvelle Heloïse I. Édition Henri Coulet. Paris: Gallimard, 1993., pt I, carta IX, t. I, p. 95).
  • 29
    A morte, como afirmou argutamente Jean Fabre sobre Paul et Virginie, irrompe nesses três romances “comme une sanction, comme le châtiment d´une faute originale qu´aucune vertu ni aucun refuge ne permettent d´éluder, comme un scandale pour l´esprit; mais aussi comme une tentation, comme une promesse, comme une harmonie où se résout toute dissonance, comme l´accord finalement révélé entre la volupté et la purété” (FABRE, 1980FABRE, Jean. Paul et Virginie, pastorale. In: FABRE, Jean. Lumières et Romantisme: energie et nostalgie de Rousseau à Mickievicz. Paris: Klincksieck, 1980. p. 166-199. , p. 172).
  • 30
    Em importante artigo, Bosi detecta a “existência de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar” (BOSI, 1995BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. In: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 176-193., p. 179) como forma de resolver contradições na história do país. Mas em Lucíola não ocorrem “os signos da convulsão dos elementos naturais” (BOSI, 1995BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. In: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 176-193., p. 186), como o crítico aponta no epílogo de O guarani.
  • 31
    “Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci.” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 163).
  • 32
    Esse papel de G.M. para a articulação discursiva do romance me parece fundamental e muito mais importante do que somente uma estratégia de Alencar para disfarçar sua autoria, como propõe Luis Filipe Ribeiro; para ele, G.M. opera apenas como parte de um “jogo de cena construído por Alencar, para esquivar-se da responsabilidade da autoria de uma estória que poderia gerar melindres comprometedores para sua carreira de escritor” (RIBEIRO, 1996RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Rio: Eduff, 1996., p. 88).
  • 33
    A título de comparação, leia-se o trecho da carta IV de Julie, parte 1: “[...] pour me garantir de ma perte, ton doit être mon unique defenseur contre toi; [...] tu protégeras ma personne contre mon propre coeur. Tes vertus sont le dernier refuge de mon inocence” (ROUSSEAU, 1993ROUSSEAU, Jean-Jacques. La Nouvelle Heloïse I. Édition Henri Coulet. Paris: Gallimard, 1993., p. 83).
  • 34
    Leia-se, por exemplo, esta passagem do estudo de Valéria de Marco: “A confissão de Paulo [diferentemente da de A dama das camélias e Manon Lescaut] nasce da necessidade de explicar uma postura ética e pretende caracterizar-se não como purgação do sofrimento, mas sim como processo de análise e conhecimento da mulher prostituta e de suas relações amorosas” [...] Através da análise do passado, Paulo constrói a narração que, para ele, é a forma de partilhar com o leitor as dificuldades do processo de apreensão e explicação da realidade” (MARCO, 1986MARCO, Valéria de. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986., p. 153).
  • 35
    “Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes [...] Morri pois para o mundo para o mundo e para minha família.” (ALENCAR, 1951ALENCAR, José de. Lucíola/Diva. Rio: José Olympio, 1951., p. 166).
  • 36
    “loss and regaining of identity” (FRYE, 2006FRYE, Northrop. The secular scripture and other writings on critical theory: 1976-1991. Organizes Joseph Adamson and Jean Wilson. Toronto: University of Toronto Press, 2006., p. 14).
  • 37
    “Their world is the first fully fictional world in Western literature [...] Their appeal lies instead in fiction’s ability to reveal to us a world that we have not encountered or imagined before.” (PAYNE, 2006PAYNE, Mark. Theocritus and the invention of fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2006., p. 1).

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
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