RESUMO
Este trabalho parte do poema “Máquina zero” (2004), presente no livro homônimo de Ricardo Aleixo, e da menção realizada por Nuno Ramos em Junco (2011) ao poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, presente em Claro enigma (1951), para neles analisar a relação com o tópico da “máquina do mundo”. Após breve recuperação dessa temática na tradição, reexaminaremos a articulação entre metafisica e geopolítica que nela há, especialmente a constituição de um Direito público europeu, segundo os termos de Carl Schmitt, para, posteriormente, traçar algumas possibilidades inscritas em suas solicitações pelos poetas contemporâneos. Nossa conclusão é a de que Ricardo Aleixo e Nuno Ramos elaboram, cada um a seu modo - mas ambos com forte inspiração drummondiana -, uma intercessão simétrica entre natureza e cultura, isto é, um Antropoceno outro.
PALAVRAS-CHAVE:
Ricardo Aleixo, Nuno Ramos, máquina do mundo; jus publicum europaeum; Antropoceno
ABSTRACT
The work is based on the poem “Máquina zero” (2004), the present book of the same name by Ricardo Aleixo; and the mention made by Nuno Ramos in Junco (2011) to the poem “Máquina do mundo”, by Carlos Drummond de Andrade, present in Claro enigma (1951), to analyze the relationship with the topic of the “machine of the world”. After briefly recovering this theme in tradition, we will re-examine the articulation between metaphysics and geopolitics within it, especially the constitution of a European public law, according to Carl Schmitt's terms, to later outline some possibilities included in their requests by contemporary poets. Our conclusion is that Ricardo Aleixo and Nuno Ramos elaborate, each in their own way - but both with strong Drummondian inspiration -, a symmetrical intersection between nature and culture, that is, another Anthropocene.
KEYWORDS:
World’s machine; jus publicum europaeum; Antropoceno; Nuno Ramos, Carlos Drummond de Andrade
I
Ao menos em dois momentos muito fecundos, a poesia brasileira contemporânea retoma, de maneira mais ou menos oblíqua, um tópico que possui larga passagem pela tradição lírica ocidental, a saber, o da Máquina do mundo. Um primeiro exemplo seria quando, em 2004, o poeta mineiro Ricardo Aleixo publica o poema “Máquina zero” no livro homônimo, em cuja orelha o escritor Marçal Aquino, ao concluir seu texto, propõe a relação: “usando um combustível aditivado pela ironia e pelo humor, Ricardo Aleixo põe seus engenhos poéticos em funcionamento, para compartilhar conosco suas inquietações e, sobretudo, seu espanto diante de outra máquina”, finaliza, “a máquina do mundo” (Aquino, 2003). O poema que menciona a Máquina, dando título ao livro, trata basicamente de uma perambulação do eu-lírico pela cidade de Berlim, com inúmeros flashes do espaço citadino - crianças turcas trabalhando no comércio informal; o erotismo bataillano de uma garota andando de bicicleta; as lascas do Muro de Berlin sendo vendidas, entre outros -, até que, em determinada altura, depara-se com a “História” (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 11), cena que é procedida pelo advento de uma imagem na qual uma espécie de arame está fincado sobre o globo terrestre, sendo coberto pela inscrição “labiRINTO”. Essa imagem, aliás, seria recorte de uma fotografia maior e que consta na capa de Máquina zero, na qual é possível ver que o referido arame é oriundo de uma máquina de escrever que, por sua vez, abarca, com suas teclas, o Globo - trata-se, como se lê nos créditos do livro, de Scriptura continua, obra volumétrica de Ricardo Aleixo fotografada por Cuia Guimarães e na qual não figura o termo “labiRINTO”. Enfim, voltando ao poema, assim é possível ler em “Máquina zero”:
ue o que preciso, se q
uero mesmo continuar a p
erambular com alguma chance de êxito p
or uma cidade (duas) como Berlim, é
de sapatos de largo fôlego. Caminho (penso e
nquanto caminho), permeável a t
udo: ao frio sol cortante, às crianças t
urcas com seu comércio informal de b
rinquedos usados, à b
eleza sem rumo da adolescente que (longas p
ernas abertas sobre um p
rosaico selim de bicicleta) c
avalga o c
omeço da tarde, aos grafites que “d
ariam belas fotos”, àTopografia do T
error, às ruínas, ao r
asta que me saúda (“R
asta!”) na Wilhelmstrasse, às l
ascas do Muro na vitrine da pequena l
oja, ao a
marelo-zoom do metrô a
pontando na curva a
ntes do teatro, à
História. (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 9-11).
O segundo caso seria quando, a certa altura de Junco, obra publicada pelo escritor e artista paulista Nuno Ramos em 2011RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras , 2011. - porém, produzida ao longo de 14 anos -, faz-se uma menção a um trecho do poema “A máquina do mundo”, que o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade publica, por sua vez, em Claro enigma, de 1951. Há, aqui, algumas coincidências, pois, assim como no poema de Aleixo, o eu-lírico de Nuno Ramos está perambulando, neste caso e diferentemente, por uma praia. Essa caminhada é matizada não somente por versos livres/brancos, mas, também, por diversas fotografias de autoria de Ramos, ponto comum com a poética de Aleixo, ao qual se soma outro: assim como em Aleixo, a cena de Ramos também sugere um procedimento central, qual seja, a interrupção. Se em Aleixo a intervenção da história com “H” maiúsculo no meio da caminhada abre espaço para a emergência de uma imagem no meio da leitura, no caso de Ramos um apito dizendo “Basta” e “fora daqui” parece bloquear a vagueação, visando expulsar seu protagonista. Não fortuitamente, a interpelação é atribuída a diversas figuras mantenedoras da ordem como um guarda e/ou um juiz. Enfim, lê-se em Junco:
um apito soou na imensa foice
ou praia.
Basta, dizia
Como o de um guarda num campo
de prisioneiros
ou o martelo de um juiz
infeliz
o soco de um idiota
na mesa ou a mijada de um lobo
humano.
Fora daqui, dizia
como se falasse em meu ouvido
ao som de uma lixa
tragada na garganta
A carne
Meiga, a grande boceta
a palavra manteiga
o dado transparente
suspenso, ainda em movimento
sem resultado ou sentença
olha
repara
ausculta
essa riqueza sobrante a toda pérola
essa ciência sublime e formidável
mas hermética
essa total explicação da vida
- tudo se perdeu, bateu
na trave. (Ramos, 2011RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras , 2011., p. 109-110).
Em Aleixo, o aparecimento da História revela um Globo fincado por um arame, mas ao qual se sobrepõe, diferentemente do que se passa com a imagem da capa, o termo “labiRINTO”. Na sequência, dois importantes movimentos nessa que poderia ser entendida como a segunda seção do poema - antecedida pela citada seção caracterizada por estrofes duplas nas quais a última palavra do verso apresenta somente a primeira letra, ficando as demais para o verso seguinte, encenando uma quebra abrupta da palavra e, consequentemente, da leitura; e procedida por uma grande estrofe contínua na última seção. Voltando à segunda seção, o advento da imagem é seguido pela intensificação da perambulação, na qual se desvia da polícia, chegando ao extremo de o eu-lírico se tornar, à moda da prosa de Edgar Allan Poe, invisível em meio à multidão, o que lhe permite, com uma dicção leminskiana1 1 Referimo-nos ao poema “Curitibas”, de Paulo Leminsk. , embora sem seu falocentrismo, conhecer a cidade:
como a sola do meu pé
Espírito e corpo prontos
para evitar
outros humanos polícias
carro ônibus buracos
e dejetos na calçada
incorporo hoje o Sombra amanhã
o Homem In
visível sexta à noite
o perigoso Ninguém
e sigo. (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 11).
Na sequência, temos o advento do labirinto prenunciado pela imagem e, finalmente, espécie de reconhecimento que o poeta realiza de si mesmo:
conheço o labirinto
por pisá-lo
por tê-lo
de cor na ponta dos pés
à maneira também do que
fazem uns poucos
com a bola
num futebol descalço
qualquer. Conheço a
cidade toda (a
mínima dobras retas cada borda
curvas) e nela - à
custa de me
perder - me
reconheço. (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 13).
Assim, passa-se à terceira parte do poema com uma reflexão acerca do fazer poético em meio a qual o eu lírico confessa preferir a “proeza das traças” aos versinhos “bem traçados” (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 13), sérios e assépticos; chegando a termo com uma denúncia acerca da condição do poeta no capitalismo como sorte de prostituição rebaixada, uma vez que, diz com forte dicção satírica, tal artista sequer recebe pelo seu trabalho.
Já no citado escrito de Ramos, a disposição dos termos nos leva a uma confusão entre o eu-lírico e o lobisomem que estava fazendo xixi, o que corrobora certa conformação da narrativa na qual temos, por sua vez, relatos de e sobre alguém que, ao caminhar por uma praia, realiza, basicamente, o luto sobre o cadáver de um cão, assim como dedica pensamentos e versos a um junco, isto é, a um mero pedaço de madeira abandonado na areia, como é possível ler:
é tempo
intervalo
entre duas chuvas.
Espatifado
É como sou, serei:
Pedaço
De sono
Pronto pro assalto. (Ramos, 2011RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras , 2011., p. 73).
A identificação com o animal se dá por ter em comum a ele a morte enquanto único futuro certo. Tal relação se intensifica até o desenvolvimento de certa compaixão pelo bicho morto no asfalto, hipoteticamente vítima de atropelamento:
ganidos ou mexer
o rabo -
cuidado
com carros
matamos
e deixamos
no asfalto. (Ramos, 2011RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras , 2011., p. 110).
O que se prolonga até o momento em que, entre o homem e cão/junco, temos a irrupção de uma profusão de objetos, que faz a citada indiscernibilidade entre lobo e homem ganhar um correlato mais amplo, como se fosse uma entre as várias manifestações de uma intensa interpenetração entre homem e animal/objetos, palavras e coisas; elaboração simbólica e mundo circundante, cultura e natureza.
areia, sargaço, cacos de vidro
mar dos afogados, mas também dos vivos
escuta meu murmúrio no que eu digo
Nunca houve outro sal, e nunca um dia
matou o seu poente, nem a pedra
feita de outra pedra, partiu o mar ao meio.
Assim é a matéria, tem seu frio
e nunca vi um animal mais feio
nem pude ouvir o seu latido.
Por isso durmo e não pergunto
Junto aos juncos. (Ramos, 2011RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras , 2011., p. 11).
Lembrando que, antes de Junco, Ramos realiza a instalação 111, em 1992, e Monólogo para um cachorro morto, em 2005, propondo, entre outros, sorte de ritual de luto e memória aos detentos massacrados no Carandiru, no primeiro caso, e a um cachorro morto achado na beira da estrada, no segundo. Aqui, vamos além da compaixão, avançado em direção a certa interpenetração entre sujeito e objeto do luto, ou seja, a uma associação mais simétrica entre ambos os agentes da relação, como na cena do lobisomem. Na sequência dela, aliás, o texto adquire, com o emprego do itálico, uma voz distinta, através da qual temos notícia de uma “palavra manteiga” que suspende o “dado transparente”, deixando-o sem resultado ou sentença. E, logo, há a citação da décima quarta estrofe do poema de Drummond - que é composto em decassílabos, em remissão a’Os lusíadas (1572CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Prefácio e notas de Hernâni Cidade. São Paulo: Editora Abril, 1982. ), de Luís de Camões, que são dispostos, por sua vez, em estrofes de três versos aludindo, aqui, à terza rima da Commedia, escrita por Dante Alighieri no início do século XIV. No poema de Drummond, entretanto, ela seria incorporada, como diz José Miguel Wisnik (2018, p. 194), ao “verso branco modernista”. Se, em Claro enigma, a Máquina se retrai ao ser recusada pelo eu-lírico após espetacularmente a ele se revelar quando prosaicamente caminhava pela pedregosa estrada de Minas; em Ramos é identificado, diferentemente, uma espécie de fracasso do projeto da Máquina drummondiana, a saber, o da “total explicação da vida”. Já em Aleixo, o que há de imponente e se manifesta, interrompendo o percurso, é a História, que poderia ser lida, então, como metonímia da Máquina. Nesse sentido, vale voltar, rapidamente, à “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade:
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo. (Andrade, 1973ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa .Volume único. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. , p. 272).
Duas breves considerações: quando estamos entre as aspas que indicam que a Máquina está se dirigindo ao eu-lírico, ela é caracterizada como uma total explicação da vida, valendo-se, para tanto, de adjetivos como “sublime” e “formidável”. Fechadas as aspas, seu engenho ganha duas principais atribuições, talvez complementares: a capacidade de dominar os recursos da Terra, as paixões e impulsos; além do ato de engolfar os reinos animal, vegetal e mineral numa “estranha” - nota para a nuance na adjetivação - “ordem geométrica de tudo”. Numa obra recente sobre esse poema, Wisnik dá duas possibilidades para tais dimensões, relacionando a dominação dos recursos à mineração em Itabira, Minas Gerais, cidade em que Drummond nasceu; e, finalmente, o ímpeto de “totalização” ao fato de a Máquina poder ser entendida como uma espécie de precursora do Google Earth (Wisnik, 2018, p. 130). Porém, revisitar a tradição poética na qual se inscreve a Máquina do mundo pode revelar uma conexão ainda mais profunda entre coisa e outra.
II
Uma das primeira referências à Máquina do mundo está no capítulo XVII do Livro VI da De Res Publica, de Cícero, escrito entre 54 e 51 a.C. Antes de ser retomada por Camões no canto X d’Os lusíadas, ela, como sinaliza Drummond, serviu também como base para o esquema da viagem de Dante pelos círculos do “Paraíso”, como se lê em sua Commedia. João Adolfo Hansen nos oferece uma descrição da sua composição em Cícero, que da seguinte maneira se articula:
O conjunto do Universo se compõe de nove círculos ou antes de nove esferas, das quais uma, a última, a que compreende todas as outras, é um ser celeste, o Deus supremo, mantendo em exatos limites e contendo todas as outras. É nessa esfera que estão presas as estrelas fixas que evoluem eternamente. Abaixo estão sete esferas cujo movimento é retrógrado, em sentido contrário ao do céu. Uma dessas esferas é ocupada pelo planeta que na Terra se chama Saturno. Depois vem esse astro brilhante que traz saúde e prosperidade para o gênero humano e que se chama Júpiter. Abaixo de Júpiter se vê um clarão vermelho e terrível, que na vossa linguagem chamais de Marte. Mais abaixo ainda e quase no meio, o Sol tem sua esfera, o Sol, chefe, príncipe e regulador dos outros corpos luminosos, alma ordenadora do mundo, tão grande que a tudo ilumina com seus raios. Vênus e Mercúrio formam seu cortejo e, na esfera imediatamente inferior, a Lua, iluminada pelos raios do Sol, realiza sua revolução. Abaixo dela não há nada que não seja mortal e perecível, com exceção das almas que os deuses deram de presente aos homens. Acima da Lua tudo é eterno. Quanto à Terra, que forma a nona esfera no centro do Universo, está imóvel no mais baixo; e o peso faz com que para ela tendam todos os corpos pesados. (Hansen, 2018HANSEN, João Adolfo. Máquina do mundo. Teresa . Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 19, p. 295-314, 2018., p. 296).
É notável como o desenho se encerra na Terra, apenas especificando que, nela, ao contrário do que se passa acima da Lua, tudo é mortal, com a exceção das almas que os deuses emprestam aos homens. Em Dante, o poema herda tal estrutura, a ela somando, como demonstra Ítalo Mauro, a cosmologia de Aristóteles e Ptolomeu “adaptada pela escolástica às Escrituras” (Mauro, 2011, p. 25). Com isso, a Máquina mantém, portanto, a presença das nove orbis, sendo “a última, a que compreende todas as outras (...), Deus supremo” (Mauro, 2011, p. 25), tal como constava em Cícero:
Um corpo gira, no poder de Quem
o ser de tudo que ele abrange jaz.
(…)
assim a Inteligência a sua bondade
por todas as estrelas multiplica,
enquanto gira sobre a sua Unidade. (Dante, 2009DANTE, Alighieri. A divina comédia. Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2009. , p. 505 -506).
No que diz respeito à Terra, pode-se dizer, ainda com Ítalo Mauro, que ela, em Dante, se constitui basicamente por um “hemisfério superior (setentrional) de superfície predominantemente sólida, o único habitado, e que o inferior (austral) seria quase todo marinho, tendo unicamente em seu centro a montanha do Purgatório” (Mauro, 2011, p. 25). Da foz do rio Ganges, na “Índia (ao Oriente), até a nascente do rio Ebro, na Espanha (ao Ocidente)”, completa-se uma trajetória correspondente ao arco descrito pelo Sol, em cujo centro se encontra “a cidade de Jerusalém, à qual correspondia, no polo oposto, a montanha do Purgatório” (Mauro, 2011, p. 25). Nisso reside o passo fundamental de Camões em relação à estrutura da imensa Máquina, pois quando, 250 anos depois, faz a deusa Tétis guiar Vasco da Gama para a ele revelar a elemental Máquina do mundo fabricada pelo saber absoluto - e por isso o termo “máquina”, pois é, na expressão de Hansen, “Universo artificiosamente fabricado pelo engenho de Deus, autor máximo” (Hansen, 2018HANSEN, João Adolfo. Máquina do mundo. Teresa . Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 19, p. 295-314, 2018., p. 296) -, mantém-se a cosmografia ptolomaica, começando pelo Empíreo e, passando do céu das estrelas fixas até à Lua, chega-se à Terra. Aqui, como dizíamos, há uma imensa diferença, um ponto decisivo. Lê-se:
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
Este orbe que primeiro vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança.
De quem não há no mundo semelhança.
(...)
Vês Europa cristã, mais alta e clara
Que as outras em polícia e fortaleza;
Vês África, dos bens do mundo avara,
Inculta e toda cheia de bruteza,
Co’o cabo que até’qui se vos negara,
Que assentou para o Austro a Natureza;
Olha essa terra toda, que se habita
Dessa gente sem lei, quase infinita
(...)
Vês neste grão terreno os diferentes
Nomes de mil nações nunca sabidas:
Os Laos, em terra e número potentes;
Avás, Bramás, por serras tão compridas.
Vê nos remotos montes outras gentes,
Que Gueos se chamam, de selvagens vidas;
Humana carne comem, mas a sua
Pintam com ferro ardente (usança crua!). (Camões, 1982CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Prefácio e notas de Hernâni Cidade. São Paulo: Editora Abril, 1982. , p. 374-377).
Tétis descreve a Vasco da Gama a Europa qualificada como “cristã”, “mais alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza”, passando, logo, à África, por sua vez, “avara / inculta e toda cheia de bruteza”, na qual há, finalmente, uma gente “sem lei”. Em seguida, descreve-se o sul da Ásia e seus diversos povos que “Humana carne comem” em suas selvagens vidas. Segundo a leitura de João Adolfo Hansen, com isso se alegoriza o “contato extático” dos portugueses com “o princípio metafísico, o Bem para além do movimento aparente das esferas”, assim como se “fundamenta o domínio físico do mar e das novas terras da África, Ásia e América como domínio teológico político da monarquia católica portuguesa sobre regiões e religiões gentias e infiéis, divinizando”, finalmente, “a história de Portugal.” (Hansen, 2018HANSEN, João Adolfo. Máquina do mundo. Teresa . Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 19, p. 295-314, 2018., p. 300) Ou seja, a metafísica é, na verdade, geopolítica, história, enfim, empresa colonial. E poderíamos ir muito além.
Enquanto visão da totalidade de Gaia - ou da medida em que o Globo terrestre se torna objeto redutível e totalizável pelo olhar humano, tal como temos no Google Earth -, a Máquina do mundo camoniana poderia encenar aquilo que o jurista colaboracionista Carl Schimitt chamou de um Direito público europeu, isto é, de uma nova lei das gentes que se angariou a partir da conquista dos mares e que produziu, por sua vez, uma “consciência global dos povos europeus [que] aprendeu e mediu a Terra” (Schimitt, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Tradução de Alexandre Franco de Sá; Bernardo Ferreira; José Maria Arruda; Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. , p. 39): “durante milênios, a humanidade possuiu uma imagem mítica, mas nenhuma experiência científica da Terra como um todo” e tampouco, continua Schimitt, “podia haver um jus gentium (direito das gentes) que abarcasse a Terra e a humanidade” (Schimitt, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Tradução de Alexandre Franco de Sá; Bernardo Ferreira; José Maria Arruda; Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. , p. 39). Com as navegações, surge “o primeiro nomos da Terra, que consistia em uma determinada relação entre a ordem espacial da terra firme e a ordem espacial do mar livre, e foi, durante quatrocentos anos, portador de um direito das gentes eurocêntrico, o jus publicum europæum” (Schimitt, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Tradução de Alexandre Franco de Sá; Bernardo Ferreira; José Maria Arruda; Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. , p. 47), iniciado pelos portugueses mas levado a cabo, segundo a perspectiva do jurista, pela Inglaterra - o que a permitiu, séculos depois, realizar a Revolução Industrial.
Logo, esse mapa mundi camoniano, versificado e refinadamente matizado encerra, desde sempre, como dito, uma geopolítica, o que seria ironizado, por exemplo, pelo escritor uruguaio Joaquín Torres Garcia na famosa ilustração América invertida, de 1935 - basta pensar, nesse sentido, que o Meridiano de Greenwich, que divide o mundo entre Ocidente e Oriente, parte de uma propriedade da família real inglesa, isto é, trata-se de uma demarcação arbitrária, mero reflexo de relações e forças políticas. Notamos, além disso, que o momento histórico descrito no poema de Camões corresponde àquilo que Karl Marx, no fatídico capítulo vinte e quatro do primeiro livro d’O capital, designou como acumulação primitiva, fundamental para a formação do capitalismo - “capitalismo monárquico da dinastia de Avis”, segundo a expressão de João Adolfo Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. Anchieta: poesia em tupi e produção da alma. In: ABDALA , JR. Benjamin; CARA, Salete de Almeida. (org.). Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. v. 1, p. 11-26., p.18), ou a “máquina mercante” (1990, p. 333), que Gregório de Matos, como um nobre do século XVII, objetava. Poderíamos observar na Máquina do mundo camoniana, finalmente, um terceiro aspecto: cientistas contemporâneos como Luciano (2015LUCIANO, Dana. The inhuman anthropocene. Blog Avidly, 22 mar. 2015. Disponível em: http://avidly.lareviewofbooks.org/2015/03/22/the-inhuman-anthropocene/ . Acesso em: 16/07/2024.
http://avidly.lareviewofbooks.org/2015/0...
), Crutzen e Stoermer (2000CRUTZEN, Paul; STOERMER, Eugene. The Anthropocene. IGBP Newsletter, v. 41, 2000.) e Lewis e Maslin (2015LEWIS, Simon; MASLIN, Mark A. Defining the Anthropocene. Nature, v. 519, 2015.), ao tentar propor o ponto inicial do Antropoceno, isto é, o momento no qual as ações humanas passaram a ser decisivas para as regulações termodinâmicas do planeta Terra - ponto este intitulado Golden spike -, sugeriram uma Orbis spike, isto é: que, antes mesmo da Revolução Industrial inglesa, teriam sido as navegações de “descoberta” do novo mundo o ponto decisivo para a constituição de uma nova era geológica da Terra fundamentada na ação humana da qual, agora, sentimos as consequências nefastas e catastróficas.
III
Levando em conta que a História interrompe o eu-lírico de Aleixo justamente quando ele caminha pelas ruas da capital da Alemanha, poderíamos seguir os desdobramentos da Máquina do mundo de Camões até a Conferência de Berlim, realizada entre 1884 e 1885, quando a África foi “dividida” pelas potências europeias, dando sequência a uma corrida que culminaria nas duas grandes guerras mundiais - como citamos Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Tradução de Alexandre Franco de Sá; Bernardo Ferreira; José Maria Arruda; Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. ), é importante lembrarmos que o nazifascismo pode ser entendido como o momento no qual a Europa aplica no interior do seu território políticas que eram antes destinadas às colônias. Além disso, notamos que a Máquina do mundo de Aleixo é uma máquina de escrever que engolfa o Globo, o que nos lembra que o caráter supostamente ágrafo dos povos originários foi utilizado como justificativa para sua dominação - na literatura teríamos como exemplo o “Sermão da Epifania” (1662) (Vieira, 2001VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Tomo 2. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra , 2001.), de Padre Antônio Vieira, que também teria recorrido, um pouco antes, à estrutura da Máquina do Mundo no Sermão “Nossa Senhora do Ó” (1640) (Vieira, 2014VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Tomo 1. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2014. ). Sem esquecer, finalmente, que a forma representativa da burguesia, qual seja, o romance, seria, segundo Walter Benjamin num ensaio de 1936 acerca do narrador, consequência da invenção da imprensa, que torna o graphos sorte de mediação universal da narrativa em detrimento da oralidade.
Em Nuno Ramos, o projeto da Máquina do mundo, o “dado transparente”, a codificação e exploração do mineral, vegetal e animal, isto é, do planeta, “bate na trave”, é suspensa pela “palavra manteiga”. Se o advento da Máquina se dá após a voz autoritária expulsar o lobisomem/eu-lírico, é como se, ao se interromper o projeto da Máquina, esse tipo de indicernibilidade entre homem e animal, essa relação mais simétrica, se estendesse aos demais objetos, como o citado junco, produzindo aquilo que o crítico Gabriel Giorgi chamou, valendo-se de uma expressão do próprio Nuno Ramos, de um “grande chão” para o qual tudo converge: corpos, troncos e restos. Se Giorgi lê esse “grande chão” que realiza a obra de Ramos como a proposição de uma geologia não humana, não oriunda de nossa comum divisão entre natureza e cultura, mas que indica, antes, tempos heterogêneos, poderíamos propor, por nossa vez, que, em Junco, isso se deve a uma postura crítica em relação ao projeto dessa Máquina do mundo que acabamos de descrever, sendo essa, por fim, a possível razão da citação de Ramos ao poema de Drummond. Ora, se o Antropoceno é o resultado de uma espécie de metástase originada pela empresa colonial que culmina no modo de produção capitalista que suga, por sua vez, a Terra até sua destruição - sendo a grande Máquina sua insígnia -, Ramos, ao considerar um junco ou um cachorro, não ensaia uma Terra idílica, uma natureza adâmica, mas um Antropoceno outro, isto é, como dito, uma outra forma de relação entre homem e mundo circundante:
Ao mesmo tempo, o momento em que os seres humanos são pensados como agentes geológicos não diz respeito apenas ao impacto da atividade humana no planeta; implica também um descentramento profundo e sistemático do humano, na medida em que os tempos, as escalas e as forças desse cosmos alterado - que durante pelo menos dois séculos estiveram contidos na noção moderna de “Natureza” - emergem no “interior” do que é propriamente humano: no domínio do corpo, de suas relações com outros corpos, da materialidade que nos constitui como seres vivos. Pensar-nos como agentes geológicos implica nos ver refletidos em temporalidades que são minerais, materiais e biológicas e que não cabem - ou se deixam absorver - pelas cronologias, calendários ou modulações da narração que fez do sujeito humano sua suposição inabalável e a estrutura primária da inteligibilidade - isto é, o humanismo que durante séculos definiu a própria forma do tempo. (Giorgi, 2017GIORGI, Gabriel. O Chão é a Grande Pregunta’: Non-Human Temporalities in Nuno Ramos. Journal of Lusophone Studies. v. 2. n. 2, 2017, p. 87, tradução minha).
Mas, se a Máquina é de inspiração drummondiana, esse Antropoceno outro que se engendra a partir de sua crítica também não o seria? Afinal, essa relação com o junco não poderia ser compreendida de maneira simples como forma de dar ênfase às coisas, como Drummond reclamava em “A flor a náusea”, de A rosa do povo (1945)? Problema, aliás, reafirmado nesse mesmo livro quando se reincide numa crítica à modernidade como mundo “enfastiado / que já não crê em bichos / e duvida das coisas” (Andrade, 1973ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa .Volume único. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. , p. 168) - notando que o poeta fala sempre em coisas, não em objetos -, justamente num poema em que o humano é descentrado ao se disfarçar em “Elefante” cuja forma, por sua vez, alude a “um mundo mais poético / onde o amor reagrupa / as formas naturais” (Andrade, 1973ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa .Volume único. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. , p. 115) - precisamente as formas engolfadas pela estranha ordem geométrica de tudo. Talvez o tom de Drummond seja mais melancólico se pensarmos que a aparição da Máquina no poema “Elegia 1938”, de Sentimento do mundo (1940), levava o leitor à impotência ao se ver condenado a aceitar “a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan” (Andrade, 1973ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa .Volume único. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. , p. 115). Por outro lado, ainda que melancólico, o eu-lírico que topa com “A máquina do mundo” em Claro enigma continua a caminhada, assim como, anteriormente, José, diante da destruição completa do seu mundo frente a qual restava apenas a pergunta “e agora?”, continuava, inquebrantável, a marchar, mesmo sem saber para onde.
E mais: no ano de publicação de Claro enigma, Drummond, após visitar um terreiro, publica, no jornal Correio da manhã, a crônica “O zombeteiro Exu”, na qual, pelo viés da religião de matriz africana, retoma a atenção à galhofa. Ora, para zerar a Máquina, escapando de suas atualizações no presente, como poderiam ser lidas as figuras do policial ou do beletrista, Aleixo, além da drummondiana flânerie, emula Gregório de Matos trocando, no entanto, a função moralizante da sátira barroca pela crítica, como temos no poema “Língua párea”, que, pelo nome, ironiza a expressão “língua pátria”. Além de reforçar a dimensão oral da linguagem com o trocadilho, tornando-a irredutível “aos caracteres gutemberguianos da letra impressa” (2009, p. 45), como lembrou Prisca Augustoni, o poema se propõe a ridicularizar o racismo presente na tradução de um provérbio inglês por um poeta brasileiro publicada na Folha de São Paulo em 2002. E notamos que antes, em 1996ALEIXO, Ricardo; PEREIRA, Edimilson. A roda do mundo. Com Edimilson de Almeida Pereira . Belo Horizonte: Mazza Edições, 1996. , em parceria Edimilson de Almeida Pereira, Aleixo publicava A roda do mundo - assim como Nuno Ramos, em 2008RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008., publicaria o livro Ó, dedicado à figura das orbes, dos círculos -, no qual a seção intitulada orikis, que assina, é aberta com a saudação aos orixás que evoca, primeiramente, Exu, “capaz de ardis, / controlador de caminhos” (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 31) e se conclui com Oxalá, cuja “faina no mundo não finda” (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 43). Tal característica corrobora a epígrafe retirada de um cântico do candomblé, segundo a qual “a roda do mundo é grande / mas a de Oxalá é maior” (Aleixo, 2004ALEIXO, Ricardo. Máquina zero. Belo Horizonte: Scriptum, 2004. , p. 30). Se a roda do beletrista ou da polícia são grandes, a do poeta crítico, que inventa um labirinto para si para se tornar incapturável e invisível, é maior. E nesta roda, como Aleixo demarcará no poema “Como realmente é”, de Máquina zero, estariam Oswald de Andrade e, especialmente, Carlos Drummond de Andrade.
A partir da emergência dessa outra orbe, que é tanto uma paideuma quanto a formulação de um mundo porvir, de um Antropoceno outro, uma contra-scriptura na qual os poetas das traças estão ao lado dos orixás, que poderíamos ler certo descentramento do humano, para falar com Giorgi, que há em Trívio (Aleixo, 2002ALEIXO, Ricardo. Trívio. Belo Horizonte: Scriptum , 2002.), livro que precede Máquina zero. Um exemplo seria o poema “A água e os sonhos”, no qual o corpo humano preso a um junco flutua nas águas do rio; outro, o poema “Humano”, no qual se ironiza a possibilidade de quanto mais normal for o humano mais próximo ele pode estar da bestialidade, uma vez que a própria norma é violenta e racista. Aliás, no livro que se sucede a Máquina zero, qual seja, Modelos vivos (Aleixo, 2010ALEIXO, Ricardo. Modelos vivos. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. ), evoca-se, num poema dedicado à antropóloga Donna Haraway, justamente Gaia para se encerrar num elogio à metamorfose; assim como no poema “Convivo muito bem com os cães da rua”, desse mesmo livro, à modo do “Elefante”, de Drummond, ou da homenagem ao cão elaborada por Ramos, a simpatia pelo animal - poderíamos dizer: considerá-lo com ênfase, ou crer nele -, também um cão de rua, gera uma situação paradoxal: no primeiro momento, permite ao eu-lírico dialogar com um cão cuja existência, num segundo momento, passa, junto à rua na qual vive, a ter aspecto ilusório, sofrendo, portanto, espécie de processo de desnaturalização ou de rarefação. Como se a matéria, a saber, cão e rua, abandonasse de forma radical, para falar com Giorgi, o registro humano, ao passo que, noutra mão, selasse uma inverossímil comunicação, uma solidária amizade, na qual ambos têm a capacidade de sorrir e, no limite, de se cumprimentar, alçando a linguagem. O que gera, finalmente, uma outra articulação entre cultura e natureza, ou melhor, um aceno, que seja, a um Antropoceno outro. Escreve Ricardo Aleixo:
Me apraz o velho e o bom modo de vida
que os faz, sem ter do que cuidar na vida,
medir distâncias de uma a outra rua.
Comparto com os cães o ar da rua.
Se um deles me dirige um riso cardo,
como quem dissesse “E aí, Ricardo?”,
respondo-lhe: “Olá, irmão!” E a rua,
que até há pouco era só mais uma rua
por onde vadiavam um cão e um bardo
(cada um caçando, do seu jeito, a vida),
me obriga a distinguir, nela, o que é a vida
real do que será, quem sabe, um tardo
sinal do quão são irreais o cão e a rua. (Aleixo, 2010ALEIXO, Ricardo. Modelos vivos. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. , p. 67).
Referências
- ALEIXO, Ricardo. Máquina zero Belo Horizonte: Scriptum, 2004.
- ALEIXO, Ricardo. Modelos vivos Belo Horizonte: Crisálida, 2010.
- ALEIXO, Ricardo. Trívio Belo Horizonte: Scriptum , 2002.
- ALEIXO, Ricardo; PEREIRA, Edimilson. A roda do mundo. Com Edimilson de Almeida Pereira . Belo Horizonte: Mazza Edições, 1996.
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- VIEIRA, Padre Antônio. Sermões Tomo 1. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2014.
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Referimo-nos ao poema “Curitibas”, de Paulo Leminsk.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Dez 2023 -
Aceito
30 Maio 2024