Open-access Macroangiopatia diabética coronariana precoce no diabetes do jovem: relato de dois casos

Early-onset diabetic coronary macroangiopathy in young diabetes: two case reports

Resumos

A macroangiopatia é multifatorial. No diabetes melito (DM) é mais grave e está frequentemente relacionada à nefropatia, sendo a principal causa de mortalidade em ambos os tipos de DM. Apesar disso, é pouco estudada no jovem com DM. Apresentamos dois casos de diabéticas jovens com coronariopatia precoce. Caso 1, 40a., branca, DM tipo 2 há 21a., tratada com sulfoniluréias até os 25a., foi insulinizada devido a gestação. Desenvolveu pré-eclâmpsia, porém o parto ocorreu a termo. Permaneceu com macroproteinúria (0,99g/24h), evoluindo para insuficiência renal (clearance 52,7mg/min) (tratamento conservador). Aos 36a., apresentou infarto agudo do miocárdio (IAM). Constatada lesão tri-arterial grave, sofreu revascularização. Caso 2, 34a., negra, DM tipo 1 há 24a., diagnóstico em cetoacidose diabética. Com mau controle metabólico crônico (HbA1c persistentemente acima de 4 pontos percentuais além do limite superior da normalidade), evoluiu com microalbuminúria (0,26g/24h) aos 22a., após gestação. Desenvolveu macroproteinúria (1,7g/24h) após a 2ª. gestação. Aos 31a. iniciou quadro de angina estável. Foi indicada revascularização após cinecoronariografia. Estes dois casos de macroangiopatia em pacientes com DM de diagnóstico na juventude mostram uma rápida progressão no desenvolvimento da coronariopatia, sugerindo uma abordagem multifatorial, agressiva e precoce, independente da sua etiologia.

Diabetes mellitus; Coronariopatia; Síndrome metabólica; Jovem


Macroangiopathy is multifactorial. It is more severe and frequent in association with nephropathy in diabetes mellitus (DM), being the first cause of mortality in both types of DM. Nevertheless, it is poorly understood in young patients. We report on 2 young diabetic patients with early-onset coronary disease. Case 1, 40yo, Caucasian, female, type 2 DM for 21y: treated with sulphonylureas until 25y, she was switched to insulin upon becoming pregnant. Preeclampsia ensued, but no premature delivery occurred. Macroproteinuria remained (0.99g/24h), and she progressed to renal failure (clearance 52.7mg/min) (conservative treatment). At age 36, she had an acute myocardial infarction. Severe tri-arterial disease was diagnosed, and coronary bypass grafting (CABG) performed. Case 2, 34yo, black, female, type 1 DM for 24y: diagnosed by diabetic ketoacidosis. Due to poor metabolic control (HbA1c chronically above 4 points beyond upper limit for normal) she progressed to microalbuminuria (0.26g/24h) at age 22, after pregnancy. Macroproteinuria (1.7g/24h) ensued after a second pregnancy. At 31y, she presented with stable angina. After coronary angiography, CABG was indicated. These two cases of macroangiopathy in patients diagnosed with DM at an early age show acceleration in the development of coronary disease, suggesting aggressive multifactorial approach of related risk factors from the beginning, regardless of its etiology.

Diabetes mellitus; Coronary disease; Metabolic syndrome; Young


APRESENTAÇÃO DE CASOS

Macroangiopatia diabética coronariana precoce no diabetes do jovem: relato de dois casos

Early-onset diabetic coronary macroangiopathy in young diabetes: two case reports

Fernando M.A. Giuffrida; Annunziata Sonia Fusaro; Sergio Atala Dib

Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM), São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernando M.A. Giuffrida Disciplina de Endocrinologia ­ UNIFESP Rua Botucatu 740, 2º andar Cx. postal 20266 04034-970 São Paulo, SP E-mail: fernandogiuffrida@uol.com.br

RESUMO

A macroangiopatia é multifatorial. No diabetes melito (DM) é mais grave e está frequentemente relacionada à nefropatia, sendo a principal causa de mortalidade em ambos os tipos de DM. Apesar disso, é pouco estudada no jovem com DM. Apresentamos dois casos de diabéticas jovens com coronariopatia precoce. Caso 1, 40a., branca, DM tipo 2 há 21a., tratada com sulfoniluréias até os 25a., foi insulinizada devido a gestação. Desenvolveu pré-eclâmpsia, porém o parto ocorreu a termo. Permaneceu com macroproteinúria (0,99g/24h), evoluindo para insuficiência renal (clearance 52,7mg/min) (tratamento conservador). Aos 36a., apresentou infarto agudo do miocárdio (IAM). Constatada lesão tri-arterial grave, sofreu revascularização. Caso 2, 34a., negra, DM tipo 1 há 24a., diagnóstico em cetoacidose diabética. Com mau controle metabólico crônico (HbA1c persistentemente acima de 4 pontos percentuais além do limite superior da normalidade), evoluiu com microalbuminúria (0,26g/24h) aos 22a., após gestação. Desenvolveu macroproteinúria (1,7g/24h) após a 2ª. gestação. Aos 31a. iniciou quadro de angina estável. Foi indicada revascularização após cinecoronariografia. Estes dois casos de macroangiopatia em pacientes com DM de diagnóstico na juventude mostram uma rápida progressão no desenvolvimento da coronariopatia, sugerindo uma abordagem multifatorial, agressiva e precoce, independente da sua etiologia.

Descritores: Diabetes mellitus; Coronariopatia; Síndrome metabólica; Jovem

ABSTRACT

Macroangiopathy is multifactorial. It is more severe and frequent in association with nephropathy in diabetes mellitus (DM), being the first cause of mortality in both types of DM. Nevertheless, it is poorly understood in young patients. We report on 2 young diabetic patients with early-onset coronary disease. Case 1, 40yo, Caucasian, female, type 2 DM for 21y: treated with sulphonylureas until 25y, she was switched to insulin upon becoming pregnant. Preeclampsia ensued, but no premature delivery occurred. Macroproteinuria remained (0.99g/24h), and she progressed to renal failure (clearance 52.7mg/min) (conservative treatment). At age 36, she had an acute myocardial infarction. Severe tri-arterial disease was diagnosed, and coronary bypass grafting (CABG) performed. Case 2, 34yo, black, female, type 1 DM for 24y: diagnosed by diabetic ketoacidosis. Due to poor metabolic control (HbA1c chronically above 4 points beyond upper limit for normal) she progressed to microalbuminuria (0.26g/24h) at age 22, after pregnancy. Macroproteinuria (1.7g/24h) ensued after a second pregnancy. At 31y, she presented with stable angina. After coronary angiography, CABG was indicated. These two cases of macroangiopathy in patients diagnosed with DM at an early age show acceleration in the development of coronary disease, suggesting aggressive multifactorial approach of related risk factors from the beginning, regardless of its etiology.

Keywords: Diabetes mellitus; Coronary disease; Metabolic syndrome; Young

A DOENÇA ARTERIAL CORONÁRIA (DAC) é uma das principais causas de morte na atualidade. Com incidência por volta de 1% ao ano na população geral e prevalência entre 7­9%, foi responsável por cerca de 500.000 óbitos nos EUA em 2002 (1). Tem dentre seus principais fatores de risco o diabetes melito (DM). É a principal causa de morte (65 a 75%) nos dois tipos mais freqüentes de DM, o DM tipo 1 (DM1) e o DM tipo 2 (DM2).

Em pacientes diabéticos, os componentes da Síndrome Metabólica (SM) são, além do próprio DM, os principais fatores de risco para DAC (2). As mudanças no estilo de vida e hábitos alimentares da população têm levado ao aumento generalizado da prevalência de SM. Além disso, a SM é também importante fator de risco para as demais complicações do DM (3).

Esta mudança no perfil da população chama particular atenção na faixa etária mais jovem, conforme demonstrado por recente trabalho de nosso grupo, que mostrou prevalência de SM de 6% em adolescentes com antecedentes familiais de DM2 e de 26,1% nos obesos deste grupo (4). O reflexo destas alterações com relação às doenças como a macroangiopatia coronariana, que incidem classicamente na vida adulta, ainda é pouco estudado. A prevalência de Diabetes Tipo 2 no Jovem (DM2J) e conseqüentemente a de Síndrome Metabólica (SM) vem aumentando nos últimos anos, podendo corresponder em alguns países a até 10% dos casos de diabetes nessa faixa etária (5,6). As conseqüências e evolução do DM2J têm sido muito discutidas. Estudos sugerem que, quanto mais precoce o diagnóstico no DM2 do adulto, mais agressiva a coronariopatia (7). Sabe-se que no adulto o risco de DAC é aumentado antes mesmo do diagnóstico clínico do DM (8), mas não sabemos se a hipótese de origem comum do DM e da DAC no processo inflamatório funcionaria de maneira semelhante na faixa etária mais jovem. Além disso, dados de seguimento a longo prazo em adolescentes são praticamente inexistentes até o momento, por tratar-se de entidade de reconhecimento relativamente recente na prática clínica.

Quanto ao Diabetes Tipo 1 (DM1), por sua vez, sabe-se que a DAC ocorre freqüentemente antes dos 30 anos (9,10), fato cada vez mais relevante devido ao aumento da sobrevida do DM1 no que se refere às outras complicações. É bem conhecida a correlação do controle glicêmico a longo prazo com a incidência e evolução de complicações microvasculares. Sabe-se que estas dependem do tempo de diagnóstico do DM e do grau de hiperglicemia (11-13). No caso da macroangiopatia, os mecanismos não estão bem esclarecidos. Existem estudos mostrando que fatores relacionados à SM (9), mas não à glicemia, são preditores de coronariopatia neste tipo de DM. Estudos a longo prazo demonstram realmente uma relação mais nítida entre controle intensivo e microangiopatia (11). Entretanto, a hiperglicemia também tem uma contribuição importante para o desenvolvimento da macroangiopatia (14).

Há descrição de casos de DM2 no jovem e de DM1 de longa duração nos quais ocorrem fatores relacionados à hiperglicemia crônica e características da SM com potencial para desenvolvimento de macroangiopatia precoce (antes dos 55 anos) (15).

Neste relato, apresentamos duas pacientes que possuem em comum o aparecimento do DM em idade jovem, mau controle crônico da hiperglicemia, desenvolvimento de nefropatia e coronariopatia graves.

RELATOS DE CASO

Caso 1

Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 40 anos, com diagnóstico de DM aos 19 anos devido a quadro clínico de polidipsia e poliúria. Não houve perda de peso ou qualquer outro sintoma. A paciente apresentava sobrepeso desde a adolescência. Não possuía história familial de diabetes, porém apresentava antecedentes de hipertensão arterial e coronariopatia. Relatava uso intermitente de clorpropamida desde os 19. Primeira gestação aos 24 anos, interrompida por aborto espontâneo com 14 semanas. Não há informações sobre o tratamento neste período. Nova gestação aos 25 anos, quando houve interrupção da clorpropamida e introdução de terapia com insulina. Nesta ocasião foi encaminhada ao nosso serviço com 11 semanas de gestação.

Na avaliação inicial a paciente apresentava IMC de 29,8kg/m2 (29,3 pré-gestacional), pressão arterial de 130 x 80mmHg e hemoglobina A1C de 8% (normal 6,3­8,6). Evoluiu sem intercorrências até a 17ª semana, quando foi constatada proteinúria de 0,72g em 24 horas. A mesma apresentou discreto declínio com 20 semanas (0,46g/24h). Entretanto, na 34ª semana iniciou-se quadro de hipertensão arterial e toxemia gravídica leve. Fundo de olho durante a gestação: engurgitamento venoso, esclerose discreta de artérias, ausência de cruzamentos arterio-venosos patológicos; retinas com cicatriz de coriorretinite macular em olho direito, sem alterações em olho esquerdo. Parto cesáreo com 38 semanas (RN= 3.200g, Apgar 7/9). O ganho total de peso na gestação foi de 11,5kg. Foi realizada laqueadura após o parto.

Após o parto, foi re-introduzido hipoglicemiante oral. Houve persistência da macroproteinúria (tabela 1), bem como da hipertensão arterial. A proteinúria evoluiu para níveis nefróticos 4 anos depois (12 anos de evolução do DM). Com 16 anos de evolução, devido à evolução da nefropatia, foi introduzida insulina noturna combinada com sulfoniluréia. Apesar da insuficiência renal, optou-se pelo tratamento combinado devido ao bom controle e à ausência de hipoglicemia. A evolução laboratorial da função renal encontra-se representada nos gráficos.

Em maio de 2000 (aos 36 anos, com 18 anos de evolução da doença), a paciente apresentou Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) não-Q. Na ocasião foi realizada cinecoronariografia, que revelou doença tri-arterial grave, com oclusão de artérias descendente anterior (DA), circunflexa (Cx), coronária direita (CD) e marginal (Mg). Foi realizada revascularização do miocárdio 4 semanas após o IAM, com pontes de artéria mamária direita (MD) para DA, mamária esquerda (ME) para Mg esquerda e safena (Sf) para CD. Sete meses após a revascularização, houve novo episódio de Angina Instável (AI) (dezembro de 2000). Nova cinecoronariografia mostrou tronco de coronária esquerda com 70% de obstrução em terço distal (figura A); Cx com 60% de obstrução no óstio e ocluída em terço proximal (figura B); DA com 80% de obstrução no óstio e ocluída no terço médio, emitindo 1º ramo diagonal com obstrução de 60% no óstio (figura C); CD ocluída em terço inicial (figura D); ponte de MD para Cx pérvia e sem lesões; ME para Mg ocluída na anastomose (figura E); Sf para CD pérvia sem lesões, artéria nativa com ateromatose difusa gravemente obstrutiva (figura F); ventriculografia esquerda normal. Não foi indicada nova intervenção e a paciente permaneceu em tratamento clínico. Spect miocárdico realizado 3 meses após o episódio de AI demonstrou ausência de sinais cintilográficos de isquemia. A conduta conservadora foi mantida e a paciente permanece até o momento em classe funcional 1.



Na última avaliação (fevereiro de 2004), a paciente apresentava sintomas de neuropatia periférica. Pesava na ocasião 87,9kg, com IMC 34,3kg/m2. A circunferência abdominal era de 103cm. Sua pressão arterial era de 130 x 80mmHg (em posição supina e ortostática) e sua freqüência cardíaca de 80 batimentos por minuto. Apresentava retinopatia pré-proliferativa moderada à fundoscopia. Encontrava-se em uso das seguintes medicações: glibenclamida 10mg, Insulina NPH 16U à noite, enalapril 20mg, propranolol 40mg, sinvastatina 20mg e AAS 200mg. Perfil lipídico: HDL 40mg/dl, LDL 82mg/dl e triglicérides 235mg/dl. Nesta ocasião foi suspenso o tratamento com sulfoniluréia e iniciada insulinização plena.

Caso 2

Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 32 anos, apresentando DM tipo 1 com 22 anos de evolução. A paciente apresentou-se aos 10 anos de idade ao setor de emergência com quadro de poliúria, polidipsia e perda de peso há 1 semana. O exame físico mostrava desidratação e hálito cetônico, sem outras alterações. Os exames laboratoriais demonstravam cetoacidose diabética grave (glicemia 336mg/dL, pH 6,96; HCO3 4,4mEq/L, BE< -22, Na 131mEq/L, K 4,3mEq/L, cetonúria ++++/4+) e infecção urinária (leucocitúria > 1000000 células/cm3). A paciente recebeu tratamento convencional (hidratação, correção de distúrbios hidroeletrolíticos, antibioticoterapia e insulina), recebendo alta após 19 dias de internação.

Permaneceu em uso de uma dose diária de Insulina NPH, evoluindo com mau controle metabólico durante os anos subseqüentes (conforme demonstram os valores de hemoglobina A1c na tabela 1). Apresentou telarca e pubarca aos 11 anos. Apresentava história familial de DM. Sua mãe apresentou diagnóstico aos 30 anos e sua tia materna aos 37. Ambas já eram falecidas quando do diagnóstico da paciente, sendo que a única característica clínica disponível era o uso de insulina pela mãe. Apresentava também história familial de hipertensão arterial (avós materna e paterna).

Teve acompanhamento irregular nos anos seguintes, retornando aos 22 anos, gestante. Apresentou parto prematuro (aproximadamente 30 semanas) com natimorto de 1.140g. Na época desenvolveu hipertensão arterial e microalbuminúria, encontrando-se desde o parto em uso intermitente de IECA. Nova gestação aos 25 anos resultou em aborto espontâneo no 4º mês. Aos 26 anos (após 16 anos de evolução e as 2 gestações), desenvolveu macroproteinúria (1,7g/24h) (tabela 1). Um ano depois, aos 27 anos, apresentou nova gestação, interrompida na 29ª semana (parto cesáreo, RN= 1.100g, Apgar 9/9).

Permaneceu em acompanhamento irregular fora de nosso serviço durante 2 anos. Retornou referindo retinopatia em tratamento (fotocoagulação). Foram constatados neuropatia autonômica na forma de hipotensão postural e hipotiroidismo primário (TSH 10,2mU/L, valor de normalidade 0,3 a 5,0; anticorpos anti-tiroidianos positivos), sendo iniciada reposição com levotiroxina.

Aos 31 anos de idade (21 de evolução) iniciou quadro clinico de insuficiência coronária (angina estável), sendo indicada cinecoronariografia, que mostrou as seguintes alterações: DA ocluída em 1/3 proximal-médio, 1º e 2º ramos diagonais com lesão ostial > 70%; ventrículo esquerdo com hipocinesia anterior leve, porém força contrátil globalmente preservada. Com este resultado, foi submetida posteriormente à revascularização, com implantação de pontes de MD para DA e Sf para diagonais. Em sua última avaliação, encontrava-se assintomática. Pesava 62,9kg (IMC 27,2kg/m2) e sua circunferência abdominal era de 84cm.

DISCUSSÃO

O diabetes tipo 1 está associado a um risco aumentado de doença coronária, sendo que alguns estudos demonstram correlação mais forte da macroangiopatia com marcadores da SM do que com a hiperglicemia em si (9,10). De acordo com um estudo europeu (EURODIAB) (10), no sexo feminino os principais fatores predisponentes são: idade, pressão arterial sistólica, triglicérides de jejum, albuminúria e retinopatia. A albuminúria é um importante preditor de coronariopatia em ambos os sexos no DM1. Entretanto, ainda há controvérsias sobre o significado da albuminúria simplesmente como sinal de nefropatia ou marcador de disfunção endotelial (16).

Apesar dos fatores não relacionados à glicemia, não podemos deixar de considerar o papel desta na patogênese da macroangiopatia, pois existem evidências na literatura sobre efeito do mau controle metabólico na doença coronária (14).

Estas evidências, porém, descrevem pacientes acima de 40 anos, tornando imprecisa sua extrapolação deste dado para diabéticos do tipo 1 ainda em idade jovem. Dados sobre seguimento em longo prazo de diabéticos tipo 2 jovens, por sua vez, são praticamente inexistentes na literatura.

Neste relato temos 2 casos de diabetes de etiologias provavelmente diferentes (tipo 1 e tipo 2), que apresentaram em comum mau controle glicêmico crônico (HbA1c > 4 pontos percentuais acima do limite superior), nefropatia clínica e quadro de coronariopatia aterosclerótica precoce e acelerada. Comparando os níveis de HDL-colesterol, podemos notar que são piores na paciente com DM1, que apresentou níveis sempre abaixo de 50mg/dl, freqüentemente na faixa dos 30mg/dl; a paciente com DM2 apresentou valores em torno de 50mg/dl. O LDL-colesterol foi mais alto na paciente com DM2 (média 137,5mg/ dL), permanecendo acima de 100mg/dl durante a maioria do tempo em ambas. Estas alterações acompanharam-se de hipertrigliceridemia apenas na paciente com DM2, o que poderia sugerir um maior grau de resistência à insulina (RI) (tabela 1).

É importante ressaltar que a utilização de características clínicas no diagnóstico de RI apresenta certas limitações no que se refere a diferenças entre diversos grupos. Sabe-se que em crianças, por exemplo, a hipertrigliceridemia se relaciona à RI, analogamente ao DM2 do adulto. Já o HDL relaciona-se melhor à insulinopenia (17,18). Outro estudo em diabéticos do tipo 1, através de um escore para RI validado pelo Clamp Euglicêmico Hiperinsulinêmico, descreve como melhores preditores de RI a razão cintura/ quadril elevada, presença de hipertensão arterial, níveis de HbA1c e história familial de DM2 (19).

Utilizando os critérios diagnósticos da OMS e do ATPIII-NCEP para SM em adultos (20,21), podemos notar que as duas pacientes possuem SM de acordo com ambos, mesmo não considerando a albuminúria. De acordo com o critério da OMS, a paciente com DM2 apresenta obesidade, hipertensão arterial e triglicérides acima de 150mg/dl. A paciente com DM1 apresenta hipertensão arterial e HDL< 35mg/ dl. Pelo critério do ATPIII, a paciente com DM2 apresenta circunferência abdominal > 88cm, hipertensão, triglicérides > 150mg/dl e HDL< 50mg/dl. A paciente com DM1, hipertensão e HDL< 50mg/dl. Esta comparação mostra que a presença de obesidade central, atualmente o ponto inicial na classificação da SM, está ausente na paciente com DM1 (22).

O efeito da gestação na evolução das complicações crônicas do diabetes ainda não está completamente esclarecido. Ambas as pacientes passaram por gestações durante sua evolução. Apesar de alguns estudos sugerirem um papel da gestação na piora das complicações microvasculares em DM1, o sub-estudo de gestantes do Diabetes Control and Complications Trial (23) mostrou aumento de incidência de retinopatia em gestantes comparado às não-gestantes, porém este foi transitório e perdeu seu efeito no seguimento em longo prazo. A albuminúria apresentou flutuação de seus valores dentro da faixa de normalidade, também sem efeito no seguimento de longo prazo.

Nas pacientes aqui relatadas, a avaliação do efeito da gestação fica prejudicada pelo grau de microangiopatia que estas apresentavam já no período pré-gestacional. Por outro lado, é inegável a contribuição do mau controle glicêmico nas complicações obstétricas (aborto, óbito neonatal, pré-eclâmpsia e baixo peso ao nascer).

Com relação à macroangiopatia diabética, sabemos que difere da aterosclerose não-diabética tanto do ponto vista fisiopatológico quanto clínico. O endotélio de pacientes diabéticos apresenta menor produção de Óxido Nítrico (NO), tanto pela hiperglicemia como por RI ao nível das células endoteliais, além de aumento na produção de vasoconstritores como a endotelina-1. Anormalidades em células musculares lisas e na função plaquetária também contribuem para estas diferenças (24). Clinicamente, a macroangiopatia diabética apresenta-se mais agressiva em diversos sítios. A doença arterial periférica tende a ser mais distal em diabéticos (distribuição poplíteo-tibial), limitando as possibilidades de revascularização, levando, por sua vez, a doença mais sintomática e maior incidência de amputação (25), enquanto que a não-diabética tem uma distribuição predominantemente aorto-femoral.

A aterosclerose coronária é mais grave em diabéticos e apresenta mais frequentemente necessidade de revascularização (25). A revascularização percutânea apresenta piores resultados que a revascularização cirúrgica devido ao maior risco de re-estenose e eventos adversos em pacientes com DM (26,27). O tipo de DM não tem influenciado na escolha da modalidade de intervenção na doença coronária.

Concluindo, apresentamos dois casos de diabetes com diagnóstico na juventude, cursando com macroangiopatia precoce e tendo em comum hiperglicemia crônica, hipertensão arterial, dislipidemia, sobrepeso e nefropatia.

A rápida progressão da macroangiopatia sugere que uma abordagem multifatorial, direcionada ao controle glicêmico, da hipertensão arterial e dos lípides, e ao uso de antiagregante plaquetário, deva ser realizada de forma agressiva e precoce no paciente diabético jovem, independentemente da etiologia de seu diabetes. Entretanto, segundo as evidências existentes até o momento, os valores do controle de cada um desses parâmetros para prevenir o desenvolvimento da coronariopatia ainda precisam ser determinados. Estudos prospectivos nesta faixa etária ainda são necessários para responder a esta questão.

22. http://www.kenes.com/prediabetes/summary_prediabetes_april14.asp (acessado em 10/05/2005)

23. The Diabetes Control and Complications Trial Research Group. Effect of pregnancy on microvascular complications in the Diabetes Control and Complications Trial. Diabetes Care 2000;23:1084-91.

28. http://www.kidney.org/kls/professionals/gfr_calculator.cfm (acessado em 19/06/05)

Recebido em 04/11/04

Revisado em 29/06/05

Aceito em 31/10/05

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  • Endereço para correspondência:
    Fernando M.A. Giuffrida
    Disciplina de Endocrinologia ­ UNIFESP
    Rua Botucatu 740, 2º andar
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Recebido
      04 Nov 2004
    • Revisado
      29 Jun 2005
    • Aceito
      31 Out 2005
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