EDITORIAL
Hepatite C: tratamento revisitado
A revision of hepatitis C treatment
Descritores: Hepatite C crônica. Interferons. Ribavirina.
Headings: Chronic hepatitis C. Interferons. Ribavirin.
A hepatite pelo vírus C (HVC) representa hoje um desafio mundial em saúde pública. Estima-se uma prevalência mundial em torno de 3%, destacando-se como a principal causa de hepatite crônica e doença hepática avançada. Desde a identificação do vírus da hepatite C (VHC) por CHOO et al.(2), em 1989, novos métodos diagnósticos permitiram redução da transmissão transfusional do vírus, embora as outras vias de contágio mantenham altos índices de prevalência. A estimativa americana é da ocorrência de 40.000 novos casos a cada ano naquele país, que poderão estar associados a quase 10.000 óbitos/ano. Menos de 20% dos pacientes infectados têm eliminação espontânea do vírus, restando à maioria uma doença hepática crônica silenciosa, que pode ter como evento final a cirrose e/ou hepatocarcinoma.
O conhecimento científico do tratamento dos pacientes infectados pelo VHC avançou muito nos últimos anos. A primeira descrição deste tratamento com interferon (IFN) em monoterapia foi em 1986(7), anterior à introdução da ribavirina. A utilização do IFN isoladamente induzia à negativação do RNA do HCV sérico e normalização da ALT em 40% a 60% dos pacientes, porém a maioria desses apresentava recrudescência da infecção após a interrupção do tratamento, atingindo resposta virológica sustentada em apenas 10% a 20% dos pacientes(11, 12). A ribavirina é um análogo nucleosídio sintético com potencial ação antiviral e imunomodulatória. Sua utilização em monoterapia produz redução temporária da ALT, mas sem modificação da viremia do VHC, seu papel no tratamento da hepatite C foi claramente demonstrado em associação ao IFN, elevando as taxas de resposta virológica sustentada (RVS).
O avanço recente mais importante na terapia foi o surgimento do IFN conjugado ao polietilenoglicol, INF peguilado-alfa-2A (40 Kd) e IFN peguilado-alfa-2B (12 Kd), base do tratamento atual. Esta conjugação resulta em modificações importantes no seu metabolismo e excreção, mantendo níveis séricos da droga elevados por 5 a 8 dias, permitindo, assim, aplicações semanais e, além disso, mostrando resultados terapêuticos mais favoráveis. Os estudos controlados randomizados de eficácia com monoterapia com IFN peguilado mostraram resultados superiores ao IFN convencional(5, 9, 13). Dois grandes ensaios clínicos randomizados examinaram a eficácia do tratamento com IFN peguilado associado à ribavirina(3, 10). De forma geral, esta combinação foi superior ao INF convencional mais ribavirina, com resposta virológica sustentada em torno de 45% para o genótipo 1, porém sem diferença estatística quando selecionados pacientes com genótipos 2 ou 3 que tiveram RVS maiores que 75%. Há que se ressaltar, entretanto, que os resultados obtidos por "trials" clínicos controlados que validam a eficácia dos tratamentos atuais podem não se reproduzir na prática clínica de forma tão eficaz. A resposta aos tratamentos aplicados na "vida real" enfrenta dificuldades como a ocorrência de pacientes menos selecionados e, portanto, com maior número de co-morbidades, seguimento médico irregular e limitações de ordem econômica para aquisição de drogas e realização de exames.
O estudo realizado por ACRAS et al.(1), publicado nesta edição dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA, expressa a importância do fornecimento de INF e ribavirina através do Ministério da Saúde e expõe dificuldades. A hipótese é se as diversas combinações terapêuticas originadas pela compra de IFN e ribavirina de diferentes indústrias farmacêuticas pelo Estado poderiam interferir negativamente nos resultados terapêuticos. O estudo analisa 87 pacientes com hepatite C crônica atendidos na Universidade Federal do Paraná, que receberam tratamento com IFN convencional e ribavirina, fornecidos através do Ministério da Saúde, e mostra taxa global de RVS próxima de 30%, semelhante à literatura internacional(8), ainda que estudos mais recentes tenham atingido valores próximos de 40%(3, 10). Os dados mostrados dão subsídios aos esforços do Governo em fornecer o tratamento da hepatite C gratuitamente. Pacientes com resposta virológica sustentada podem ter redução da fibrose hepática, do risco de evolução para cirrose hepática e hepatocarcinoma.
A questão levantada pelos autores sobre a interferência da utilização de INF de diferentes procedências na eficácia da terapia é relevante e merece análise ampla e pormenorizada. Seus resultados não podem ser extrapolados para o resto do país, haja vista que a compra do INF pode ter diferentes fornecedores de Estado para Estado. Estudos preliminares realizados no Brasil de retratamento com INF peguilado associado à ribavirina em pacientes tratados previamente com INF convencional + ribavirina mostraram taxas de negativação do VHC viral próximas de 80% e resposta virológica sustentada de 51% para indivíduos previamente recidivantes(6, 12). Estes bons resultados de retratamento obtidos com INF peguilado + ribavirina poderiam ter sido influenciados pela origem do INF convencional utilizado no Brasil? Neste momento não existem respostas definitivas, além da experiência obtida por ACRAS et al.(1); são necessários, então, estudos com casuísticas maiores no país, controlando fatores como genótipo do VHC, procedência do IFN durante tratamento e análise individualizada da eficácia do IFN procedente de diferentes fontes utilizados no Brasil.
Desde 2002 o Ministério da Saúde tornou disponível também o IFN peguilado para pacientes com genótipo 1, excetuando-se aqueles com tratamento prévio com INF + ribavirina, monoterapia com INF peguilado ou monoterapia com INF, sem resposta virológica ou bioquímica. Considerando os genótipos 2 e 3, o INF convencional ainda participa em grande parte dos tratamentos empregados no país, e o conhecimento detalhado da sua eficácia nas condições da prática clínica diária são necessárias para o aprimoramento dos resultados obtidos com os recursos empregados pelo Governo.
Rinaldo Focaccia Siciliano* * Unidade de Avaliação e Controle de Infecção Hospitalar do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo InCor-HC-FMUSP.
Marcos Boulos** ** Disciplina de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da FMUSP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Out 2004 -
Data do Fascículo
Mar 2004