Resumos
Relatamos um caso de meningite por Streptococcus pyogenes em menina de 18 dias de vida, com evolução complicada por trombose de seio sagital. São discutidos alguns aspectos da patogênese, tratamento e seguimento da doença. Frente ao aumento mundial das infecções estreptocócicas graves nos últimos 10 anos, é provável que a meningite neonatal por Streptococcus pyogenes se torne mais frequente no futuro, sendo importante estar alerta para o diagnóstico precoce e as possíveis complicações dessa infecção potencialmente letal.
meningite bacteriana; recém-nascido; Streptococcus do grupo A; trombose venosa; seio sagital
We report a case of Streptococcus pyogenes meningitis in a 18 days year-old-girl with clinical course complicated by sagittal sinus thrombosis. Some aspects of the pathogenesis, treatment and follow-up of the disease are discussed. The world increase of serious streptococcal infections in the last 10 years, probably will become neonatal Streptococcus pyogenes meningitis more frequent in the future and it is important to be alert for the precocious diagnosis and the possible complications of that potentially lethal infection.
bacterial meningitis; newborn; group A Streptococcus; venous thombosis; sagittal sinus
MENINGITE NEONATAL POR STREPTOCOCCUS PYOGENES E TROMBOSE DE SEIO SAGITAL
RELATO DE CASO
VERA LÚCIA JORNADA KREBS*, LUCIANA NAVARRETTI CHIEFFI**, MARIA ESTHER JURFEST RIVERO CECCON***, EDNA MARIA DE ALBUQUERQUE DINIZ****, RUBENS FEFERBAUM*****, CARLOS AUGUSTO TAKEUCHI******, MARIA JOAQUINA MARQUES-DIAS*******, JORGE DAVID AIVAZOGLOU CARNEIRO********, FLÁVIO ADOLFO COSTA VAZ*********
RESUMO - Relatamos um caso de meningite por Streptococcus pyogenes em menina de 18 dias de vida, com evolução complicada por trombose de seio sagital. São discutidos alguns aspectos da patogênese, tratamento e seguimento da doença. Frente ao aumento mundial das infecções estreptocócicas graves nos últimos 10 anos, é provável que a meningite neonatal por Streptococcus pyogenes se torne mais frequente no futuro, sendo importante estar alerta para o diagnóstico precoce e as possíveis complicações dessa infecção potencialmente letal.
PALAVRAS-CHAVE: meningite bacteriana, recém-nascido, Streptococcus do grupo A, trombose venosa, seio sagital.
Neonatal Streptococcus pyogenes meningitis and sagittal sinus thrombosis: case report
ABSTRACT - We report a case of Streptococcus pyogenes meningitis in a 18 days year-old-girl with clinical course complicated by sagittal sinus thrombosis. Some aspects of the pathogenesis, treatment and follow-up of the disease are discussed. The world increase of serious streptococcal infections in the last 10 years, probably will become neonatal Streptococcus pyogenes meningitis more frequent in the future and it is important to be alert for the precocious diagnosis and the possible complications of that potentially lethal infection.
KEY WORDS: bacterial meningitis, newborn, group A Streptococcus, venous thombosis, sagittal sinus.
O Streptococcus do grupo A (Streptococcus pyogenes) constitui etiologia pouco frequente de meningite, ocorrendo em 0,2% dos casos da doença em crianças e adultos1. Analisando retrospectivamente 1100 crianças admitidas com meningite bacteriana durante um período de 15 anos (1966-1981), Murphy 2 relatou este agente etiológico em apenas 0,5% dos casos. A partir de meados da década de 80 começaram a surgir alguns estudos mostrando o aumento da frequência das infecções graves por Streptococcus A3-6. Este fato foi atribuído à maior virulência da bactéria, especialmente das cepas M1, M3 e M187,8. Apesar da sensibilidade à penicilina, esta infecção frequentemente evolui desfavoravelmente, com elevada mortalidade.
Embora no período neonatal a infecção do sistema nervoso central (SNC) raramente seja causada pelo Streptococcus A, o comportamento atual da bactéria mostra a necessidade de considerar este agente etiológico. O objetivo do presente estudo é relatar um caso de meningite neonatal por Streptococcus A, com evolução complicada por distúrbios do sódio sérico e trombose de seio sagital, chamando a atenção para a possibilidade de ocorrência desta infecção potencialmente letal em recém-nascidos.
RELATO DO CASO
LTR, sexo feminino, 18 dias de vida, com história de febre, gemência e vômitos há 1 dia. Há 3 dias diminuição da aceitação alimentar. Mãe com 17 anos, sem patologias, primigesta, gestação de termo, bolsa rota 5 h antes do parto, parto forceps, peso ao nascimento de 2630 g, chorou logo ao nascer. Recebeu alta do berçário com 48 h de vida. Alimentação: leite materno. Exame físico: peso 2680 g, frequência cardíaca 60 batimentos/min, frequência respiratória 68 movimentos/min, temperatura axilar 39,3ºC, perímetro cefálico 33 cm. Regular estado geral, gemente, hipoativa. Fontanela bregmática 4x3 cm, discretamente abaulada, pupilas isocóricas, fotorreagentes, estrabismo divergente em olho esquerdo (E). Orofaringe sem alterações, obstrução nasal, pulmões com murmúrio vesicular presente bilateralmente, sem ruídos adventícios. Sistema cárdio-circulatório: bulhas rítmicas, sem sopros. Abdome globoso, hiperemia de cicatriz umbilical, fígado a 1,5 cm da reborda costal, baço não palpável. Exame neurológico: tremores de extremidades, reflexos arcaicos presentes. Exames complementares - Hemograma: hemoglobina 11,6 g/dl, hematócrito 33%, 7600 leucócitos/mm3 (1% bastonetes, 78% segmentados, 14% linfócitos, 2% linfócitos atípicos), plaquetas 346000/mm3. Glicemia 72 mg/dl. Exame do líquido cefalorraqueano (LCR): aspecto turvo, 800 hemácias/mm3, 4550 células/mm3 (10% linfócitos, 82% reticulomonócitos e 8% neutrófilos), glicose 8 mg/dl, proteína 630 mg/dl. Iniciado tratamento com penicilina, ceftriaxone e dexametasona.
No mesmo dia, evoluiu com piora do estrabismo, ptose à E com anisocoria e diminuição do reflexo fotomotor. Tomografia de crânio (TC): normal. No 2ºdia de internação, apresentou crises convulsivas, sendo instituída ventilação mecânica e tratamento com fenobarbital. No 3o dia de internação ainda mantinha crises convulsivas, sendo necessário introduzir difenil-hidantoína e midazolam endovenoso contínuo. O eletrencefalograma (EEG) evidenciou atividade epileptiforme multifocal, com surtos de supressão síncronos e assíncronos, com duração de 2 a 3 segundos intercalada com atividade lenta, constituída sobretudo por ondas teta e associada a atividade rápida, de menor amplitude e duração, frontal E, centro-temporal E, fronto-central direita (D) e nos quadrantes posteriores ora à D ora à E. No mesmo dia apresentou ganho de peso, sódio sérico de 116 mEq/l, uréia e creatinina séricas normais e densidade urinária de 1020. Realizada hipótese diagnóstica de síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético e iniciada restrição hídrica, com normalização do sódio sérico após 72 h. A cultura do LCR obtido à admissão mostrou crescimento de Streptococcus pyogenes. No 8o dia de internação apresentava melhora do nível de consciência, sendo extubado, porém voltou a apresentar febre, com hemocultura positiva para Staphylococcus epidermidis. Introduzida vancomicina e mantida penicilina e ceftriaxone. No 9o dia apresentou sódio sérico de 158mEq/l, sem sintomas de hipernatremia. A TC sem contraste mostrou áreas espontaneamente hiperdensas na topografia dos seios venosos de drenagem; no exame com contraste estas áreas apresentavam enchimento parcial de contraste, sendo notada falha central. Com este resultado da tomografia foi realizado o diagnóstico de trombose de seio sagital. Foi aumentada a oferta hídrica e iniciada heparinização. Os níveis séricos de sódio mostraram diminuição gradual, com normalização após 72 h (144 mEq/l), e a anticoagulação foi mantida com heparina na dose de 32 U/Kg/hora via endovenosa contínua e dicumarínico na dose de 0,2 mg/Kg por via oral, uma vez ao dia, durante 8 e 28 dias, respectivamente. Apesar da melhora clínica apresentava picos febris diários até o 21o dia de internação, com 2 hemoculturas positivas para Pseudomonas aeruginosa, sendo introduzido imipenem. Recebeu penicilina cristalina durante 39 dias, ceftriaxona 12 dias, vancomicina 10 dias e imipenem durante 23 dias.
À alta, no 52°dia de internação, mostrava perímetro cefálico de 35cm e hipertonia nos 4 membros. No retorno ambulatorial aos 4 meses de idade, mantinha o perímetro cefálico de 35 cm (abaixo do percentil 2,5), com nistagmo, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e EEG mostrando assimetria discreta da atividade de base com presença de contingente de ondas lentas, irregulares, no hemisfério cerebral E. Nesta ocasião foi realizado coagulograma e dosagens séricas de Proteína C, Proteína S e Antitrombina III, com resultados normais.
DISCUSSÃO
Em 1966, Dillon9 descreveu um recém-nascido com meningite por Streptococcus A, destacando a importância do reconhecimento rápido e tratamento adequado dessa patologia. Desde então surgiram alguns relatos de casos, frequentemente incluídos em casuísticas que analisaram também crianças maiores.Wheeler et al.10 analisando as infecções graves por Streptococcus A em crianças, no período de 1980 a 1990, relataram 33 casos, que incluíam 5 recém-nascidos com sepse, sendo apenas 1 com meningite. Chow & Muder11, em relato de 2 pacientes adultos com meningite por Streptococcus A e revisão da literatura abrangendo um período de 10 anos, mostraram 21 casos, com 13 crianças, entre as quais havia 1 neonato. De acordo com Volpe12, considerando em conjunto o Streptococcus não pertencente ao grupo B e o Staphylococcus sp., estes agentes etiológicos são responsáveis por 7% dos casos de meningite bacteriana neonatal.
Em berçários, o Streptococcus pyogenes pode causar surtos de infecção, que frequentemente não são detectados, pois os sintomas e sinais clínicos manifestam-se após a alta hospitalar. As principais formas de introdução da bactéria são a presença do microorganismo no trato respiratório ou infecções de pele em membros da equipe hospitalar, ou a colonização do trato respiratório ou vaginal materno, com transmissão do Streptococcus A ao filho recém-nascido, e deste para outros neonatos. O cordão umbilical parece ser o principal sítio de colonização, podendo haver transmissão da bactéria através das mãos de pessoas contaminadas13. Uma vez introduzido no berçário o Streptococcus A pode ser transmitido de uma criança para outra durante longos períodos de tempo, com poucas manifestações clínicas.
Embora o Streptococcus A frequentemente colonize a orofaringe em indivíduos assintomáticos, particularmente crianças, não costuma invadir diretamente o SNC. A meningite geralmente ocorre associada a outro sítio infectado, como otite média aguda, faringite e infecções da pele 2,14. No recém-nascido a onfalite constitui a infecção primária mais comum4, sendo relatada por Dillon9 em 1 neonato que apresentou meningite. Outras infecções, como cisto gengival 2 e corioamnionite7 também têm sido relatadas. Em nossa paciente a presença de hiperemia na cicatriz umbilical no exame físico à admissão, sugere que tenha apresentado onfalite. A partir deste foco inicial provavelmente ocorreu bacteremia e infecção do SNC. A ocorrência de trombose pode ser relacionada às alterações hidro-eletrolíticas observadas nos primeiros dias de internação. Inicialmente, devido à presença de hiponatremia e hipótese diagnóstica de síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético, foi realizada restrição hídrica. A baixa oferta de água resultou em elevação do nível de Na sérico (158 mEq/L), com o aparecimento de desidratação hipernatrêmica. Sabe-se que a hipernatremia pode provocar alterações importantes no SNC, especialmente em neonatos15. O aumento da osmolaridade sérica pode levar à tração vascular com hemorragia e trombose. Este foi o provável mecanismo fisiopatológico que levou à trombose de seio sagital em nossa paciente. O estudo da coagulação mostrou-se normal, permitindo excluir causas hematológicas como responsáveis pelo quadro. Na literatura consultada por nós não registramos a ocorrência desta complicação entre os pacientes com meningite por Streptococcus A.
O aparecimento de microcefalia e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor no seguimento da nossa paciente está de acordo com outros autores, que mostram freqüência elevada de sequelas na meningite por Streptococcus A. Chow & Muder11, em revisão da literatura no período de 1981 a 1991, incluindo 13 crianças e 8 adultos, relataram letalidade global de 5%, e sequelas em 46% das crianças que faziam parte da casuística. Os autores observaram hidrocefalia, cisto porencefálico, hemianopsia bilateral, deficiência visual, deficiência auditiva, deficiência mental e dificuldades na aprendizagem.
Em consonância com Wilschanski e col.6, Fetter e col.7 e Chow & Muder11, concluimos que, frente ao aumento mundial do número das infecções graves por Streptococcus A em crianças, é muito provável que a meningite neonatal por esta bactéria passe a ocorrer com maior frequência, sendo importante estar alerta para o diagnóstico precoce e as complicações da doença.
Dra. Vera Lúcia Jornada Krebs - Rua Cristiano Viana 450/122 - 05411-000 São Paulo SP - Brasil. Fax 011 284 9704.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Nov 2000 -
Data do Fascículo
Dez 1998