Open-access “As caravanas”: racismo e novo racismo

“As caravanas”: racism and the new racism

RESUMO

Propõe-se uma leitura de “As Caravanas” de Chico Buarque, que vale por um tratado sobre exclusão social, racismo e islamofobia. Explora-se a ambiguidade da toponímia carioca, vendo nas favelas não apenas palco da letalidade policial, mas autênticos núcleos de cultura negra. Ao mesmo tempo, propõe-se um cotejo com a realidade contemporânea, ancorado em notícias recentes da mídia. À maneira de Antonio Candido, a análise aponta uma clivagem no corpo do poema, que corresponde à clivagem no corpo social deste país que tem a escravatura no cerne de sua formação.

PALAVRAS-CHAVE: Chico Buarque; racismo; islamofobia; escravatura

ABSTRACT

This paper is a reading of “As Caravanas”, a song from Chico Buarque, which is well-nigh a treatise on social exclusion, racism and the islamophobia. It explores the ambiguity of Rio’s toponymy, seeing the favelas not merely as the stage for lethal police incursions, but also as authentic centers of black culture. At the same time, it proposes a comparison with our contemporary reality anchored in recent news. In the manner of Antonio Candido, this analysis identifies a cleavage point in the poem that corresponds to a cleavage in the social body of Brazil rooted in entrenched slavery.

KEYWORDS: Chico Buarque; racism; islamophobia; slavery

A canção “As Caravanas”, de Chico Buarque, do CD de mesmo nome, Caravanas, lançado em 2017, vale por um tratado sobre a questão da escravatura, da exclusão social, do racismo e do “novo racismo”. Vou analisar a letra da canção como um poema, advertindo aos leitores que essa abordagem será sempre faltante, uma vez que letra-e-música formam um todo e que a melodia também é produtora de significado. Em todo caso, sempre se pode fazer um apelo à memória musical do leitor. Eis o texto:

As caravanas (Chico Buarque) 1. É um dia de real grandeza, tudo azul 2. Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos 3. E um sol de torrar os miolos1 4. Quando pinta em Copacabana 5. A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba 6. A caravana do Irajá, o comboio da Penha 7. Não há barreira que retenha esses estranhos 8. Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho 2 9. A caminho do Jardim de Alá 10. É o bicho, é o buchicho, é a charanga 11. Diz que malocam seus facões e adagas 12. Em sungas estufadas e calções disformes 13. É, diz que eles têm picas enormes3 14. E seus sacos são granadas 15. Lá das quebradas da Maré 16. Com negros torsos nus deixam em polvorosa 17. A gente ordeira e virtuosa que apela 18. Pra polícia despachar de volta 4 19. O populacho pra favela 20. Ou pra Benguela, ou pra Guiné 21. Sol, a culpa deve ser do sol 22. Que bate na moleira, o sol 23. Que estoura as veias, o suor 24. Que embaça os olhos e a razão5 25. E essa zoeira dentro da prisão 26. Crioulos empilhados no porão 27. De caravelas no alto mar 28. Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria 29. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia 30. Ou doido sou eu que escuto vozes6 31. Não há gente tão insana 32. Nem caravana do Arará 33. Não há, não há 34. Sol, a culpa deve ser do sol 35. Que bate na moleira, o sol 36. Que estoura as veias, o suor 37. Que embaça os olhos e a razão7 38. E essa zoeira dentro da prisão 39. Crioulos empilhados no porão 40. De caravelas no alto mar 41. Ah, tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria 42. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia 43. Ou doido sou eu que escuto vozes 44. Não há gente tão insana8 45. Nem caravana 46. Nem caravana 47. Nem caravana do Arará

Sabemos que a literatura exerce o poder adâmico, o poder de nomear. Efetivamente, no Gênesis bíblico, Iahweh, depois de criar os animais, conduziu-os a Adão para ver como ele os chamaria. Em O Ser e o Tempo da Poesia, Alfredo Bosi (1977, p. 141) diz que: “O poder de nomear significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la. Esse poder é o fundamento da linguagem, e, por extensão, o fundamento da poesia”.

E de fato o poeta dá nome não mais a seres do Jardim do Éden, mas a emoções, sentimentos, situações existenciais, experiências fundadoras.

Pois bem, o que se nomeia em “As Caravanas” é uma realidade não do indivíduo, mas da sociedade, do corpo social. Aqui, Chico Buarque atinge o nível épico, e com um extraordinário poder de condensação, confirmando o que dizia Pound (2006) - “Poesia é condensação” (Dichtung ist Verdichtung: em alemão, um jogo de palavras).

Logo nos quatro primeiros versos, com a referência a mar e sol e Copacabana, já nos situamos de chofre no Rio de Janeiro. Aliás, a “Real Grandeza” do primeiro verso é uma rua carioca, nas imediações das praias da Zona Sul. E é também uma expressão nobiliárquica, usada para se dirigir à nobreza. Num primeiro nível, a canção vai tratar de “estranhos suburbanos tipo muçulmanos” que descem dos morros, em grupos, para a Zona Sul, para as bandas do “Jardim de Alah”, um parque situado entre os bairros Ipanema e Leblon. Isso vai gerar os “arrastões”, furtos coletivos nas praias nobres, aterrorizando os frequentadores habituais, que passarão a defender seu patrimônio por meio do braço armado da polícia ou de seus seguranças: “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria”, dizem os versos das estrofes 6 e 8. Mas essa canção não é uma crônica carioca, ela vai fundo no ethos do país. Isso numa primeira visada, pois, como se verá mais adiante, irá se sobrepor uma outra questão, que ultrapassa o problema brasileiro.

Aqui no Brasil, o estranho não é de fora, mas de dentro (podendo ser o indígena ou o nordestino pobre nos grandes centros; mas em “As Caravanas”, o foco da exclusão é fundamentalmente o afrodescendente). Há uma referência, no verso 16, a “negros torsos nus”, que “deixam em polvorosa/ a gente ordeira e virtuosa” - inicialmente seria interessante pensar em quais sentidos a gente virtuosa se deixaria ficar em polvorosa diante da nudez dos negros torsos. Mas o mais importante é a sequência da frase. Retomo os versos de 16 a 20:

Com negros torsos nus deixam em polvorosa A gente ordeira e virtuosa que apela Pra polícia despachar de volta O populacho pra favela Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Chegamos assim, no verso 20, inapelavelmente, à fonte, ao núcleo histórico da exclusão social neste país marcado pelo escravismo no cerne de sua formação. Com Benguela e Guiné, remontamos ao ponto inicial da nossa história. E que os versos do refrão (estrofes 5 e 7) só fazem pontuar:

E essa zoeira dentro da prisão Crioulos empilhados no porão De caravelas no alto mar

Recuamos ao tempo do tráfico de escravos, ao Navio Negreiro. E se estabelece uma articulação entre as caravanas e as caravelas.

Agora podemos tratar do título. Caravana vem da palavra árabe “qairauân” = grupo de mercadores ou viajantes que se reúnem para atravessar o deserto. Eram comuns as caravanas com camelos; mas os textos antigos registram também: caravanas de escravos.

Figura 1
Caravana de Escravos na África. Gravura do século XIX. Fonte: Redenbacher, 1890.

Os escravos eram, em geral, aprisionados em pilhagens e guerras locais e vendidos a traficantes, que os juntavam para serem levados ao litoral e daí cruzarem o Atlântico. Mas até se chegar à costa, atravessava-se o deserto com esses homens e mulheres presos com correntes nos pés e ligados uns aos outros com cangas no pescoço. Um grande número morria no caminho, de doenças, fome ou exaustão, antes de chegar ao litoral. E outro tanto morreria no navio negreiro, chamado também navio tumbeiro. Não por acaso, a letra da canção faz um jogo de significantes, CARAVana/CARAVela (um desses achados, em que o autor é mestre), em que cada um dos termos contamina o outro - uma observação que pontuaria a importância de se atentar ao nível melódico da canção foi fornecida pelo próprio Chico Buarque, que declarou (em seu site oficial), que Caravan, de Duke Ellington, estaria aludida na sua melodia.

É o caso de voltarmos aos arrastões a que referi anteriormente, essa espécie de caravana invertida, integrada por um “populacho” que quer ir para o Jardim de Alah (com todas as conotações paradisíacas que isso possa ensejar), mas que devia era ser mandado de volta pra favela. Um pouco de contextualização histórica pontual se fará necessário. Os arrastões nas praias cariocas iniciaram-se em 1992, interferindo até na eleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro, possibilitando a vitória de Cesar Maia contra Benedita da Silva, candidatos polares nas propostas de manejo do caso (FRANCISCO, 2003)2. A situação agravou-se com o tempo: por volta de 2015, a polícia carioca passou a intervir, retirando os moradores de favela de dentro dos ônibus que vinham da Zona Norte em direção às praias, mesmo que não tivessem cometido nenhum delito (TORQUATO; CASTILHO, 2021). Em um único dia, foram totalizadas 150 apreensões de menores; e num único ônibus, dos 15 rapazes “apreendidos” (valha o eufemismo!), 14 eram negros (HERINGER; BARROS, 2015). Por fim, as próprias empresas de ônibus alteraram o trajeto dessas linhas, colocando seu ponto final em bairros afastados das praias nobres. De fato, impedia-se o acesso de uma categoria de moradores à sua cidade. Era um tipo de apartheid à brasileira: não, os suburbanos não teriam um “dia de real grandeza”.

Algo que salta aos olhos em “As Caravanas” é a presença muçulmana. Senão, vejamos: mar “turquesa à la Istambul” (com dupla alusão à Turquia, cruzando a expressão “azul turquesa” com o nome da capital, Istambul); suburbanos “tipo muçulmanos”; “Jardim de Alah”; favela do “Arará” (que aparece três vezes na canção). Sabemos que o monte Ararat é, na Bíblia, o maciço onde encalhou a Arca de Noé após o Dilúvio e que é localizado na Armênia.

Mas, além dessa presença ostensiva, há outros elementos que remetem ao mundo islâmico, e que estão quase que criptografados, como é o caso da favela da Chatuba, uma vez que o nome do município onde se situa a favela da Chatuba é ... Mesquita, templo islâmico. Há até uma escola de samba, “Chatuba de Mesquita”. Além disso, se diz que esses suburbanos tipo muçulmanos, cujos sacos são granadas, “malocam seus facões e adagas em sungas estufadas e calções disformes”. Por um lado, a alusão a granadas escondidas nos sacos nos faz inevitavelmente pensar nas guerras santas, nas jihads, no terrorismo fundamentalista, nos homens-bomba. Por outro lado, a referência à sexualidade exacerbada (“Diz que eles têm picas enormes”) ligada à violência também responde ao estereótipo preconceituoso do muçulmano, bem como do africano. E, finalmente, ainda como índice do mundo árabe, há o refrão (estrofes 5 e 7):

Sol, a culpa deve ser do sol Que bate na moleira, o sol Que estoura as veias, o suor Que embaça os olhos e a razão

- que alude ao romance O estrangeiro, de Camus3, em que é narrado o assassinato de um muçulmano, numa praia, na Argélia. O protagonista, que se chama Mersault, é preso e, durante seu julgamento, quando o juiz lhe pergunta o motivo do crime, afirma que agiu assim por conta do sol. Mas antes vem o relato:

[...] atrás de mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente. O árabe não se moveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. [...] A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se-me nas sobrancelhas. [...] ... doía-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele [...] No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás dessa cortina de lágrimas e de sal. [...] Foi então que tudo vacilou. [...] Sacudi o suor e o sol. (CAMUS, 1942, p. 130-131).

Relativamente aos versos “Sol, a culpa deve ser do sol que bate na moleira, o sol”, Chico Buarque, em comunicação pessoal, revelou mais uma alusão, um jogo musical de difícil apreensão mesmo para quem conhece música: a passagem da primeira para a segunda parte da canção se dá com a palavra “sol”, que “cai” nota “sol”.

Significativo também é o trecho do romance em que se narra como foi cometido o crime: na praia deserta, Mersault dispara o revólver, o árabe jaz abatido na areia já com o primeiro tiro, e, diz o protagonista: “Voltei então a disparar mais quatro vezes contra o corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso” (p. 130-131)4. (Seria importante, num parêntesis, relativamente a essa inserção de Camus, falar um pouco da figura de estilo que é a alusão - segundo o Dicionário Caldas Aulete, uma “referência que se faz a alguma pessoa ou coisa sem a mencionar expressamente”, “um dito crítico que só alguns leitores ou ouvintes percebem”. De fato, essa menção indireta tem algo de uma brincadeira: embutido na raiz etimológica de “alusão” (ad-ludere) está o verbo latino ludo (ludere = brincar.)

E com essa alusão a O Estrangeiro (o título é significativo), no centro da canção, verifica-se um ponto de inflexão no texto. A partir daqui, o tom vai mudar totalmente. Mas antes de examinarmos a inflexão, teremos de pensar no porquê da reiterada presença muçulmana nesse texto. Vamos lá.

Sabemos que a escravidão existe na humanidade desde sempre, e que ela está presente em culturas tão díspares quanto a babilônica ou a romana, a dos povos pré-colombianos ou a dos egípcios, etc. (GOMES, 2019, p. 25). Mas, não por acaso, um dos capítulos de A Escravidão (Volume 1), de Laurentino Gomes, intitula-se: “Sob o nome de Alá”. E assim ele se inicia:

Praticadas por todas as civilizações desde os primórdios da história humana, o uso de mão de obra cativa ganhou fôlego renovado a partir do século VII, com a expansão do Islã. Iniciou-se ali um choque de culturas e religiões - que ainda hoje se observa em várias regiões do planeta - cujo resultado seria a escravização de milhões e milhões de pessoas ao longo do milênio seguinte (p. 77).

A isso se segue uma afirmação contundente: “A Escravidão foi a base da expansão do Islã” (p. 77). De fato, os islamitas capturavam e eram capturados, sempre houve escravizados, de ambos os lados. Para cá também vieram negros islâmicos; aliás, como diz Lídice Meyer Pinto Ribeiro (2011, p. 41), “o islamismo foi trazido ao Brasil no final do século XVIII pelos escravos oriundos das regiões islamizadas da África”. Eles foram levados sobretudo para a Bahia e ficaram conhecidos como os “malês” - de cultura em geral muito superior à dos colonos brancos. Segundo Roger Bastide (1971), eles influenciaram o candomblé baiano - deles vem, por exemplo, o uso de túnicas, turbantes e roupas brancas, substituindo o colorido das vestes africanas. Em 1836, com a revolta dos malês, na Bahia, muitos dos negros, devolvidos a seus donos, foram vendidos para o Rio de Janeiro. João do Rio (2006) atesta, em 1904, no Rio de Janeiro, um Islã misturado ao Candomblé, efetivando-se uma fusão com crenças animistas e fetichistas dos demais escravizados. Mas isso ainda não justifica a presença muçulmana nessa canção que fala de racismo.

É que - como eu já tinha referido - aqui irá se sobrepor um outro problema. No mundo inteiro, agudizada pela questão das migrações, dos êxodos por fome ou perseguição política, assiste-se a uma maré crescente de xenofobia, soprada pelos ventos da Direita. Instaura-se a “crise dos refugiados”. E esse Outro temido e demonizado, que facilmente terá sua imagem sobreposta à de um terrorista, pondo em polvorosa a “gente ordeira e virtuosa”, esse Outro, em termos mundiais, é privilegiadamente o muçulmano, mesmo que ele esteja fugindo do extremismo. De fato, a islamofobia é um dado significativo da época contemporânea, despertando velhos preconceitos, reativando velhas figurações desse Oriente feroz, em seus confrontos com o Ocidente (SAÏD, 2018). Há vinte anos, no dia 11 de setembro de 2001, aconteceram os atentados às torres gêmeas de Nova York, que colocaram o Islã em evidência, reforçando o estereótipo do muçulmano como inimigo do mundo ocidental. A Europa tem sofrido múltiplos ataques terroristas; e agora com o avanço do Taleban no Afeganistão e a tomada de Cabul, e com o Estado Islâmico, isso só tende a se agravar.

Desde as últimas décadas, ao abrirmos o jornal, nos acostumamos a ver barcos clandestinos apinhados de muçulmanos, barcos que naufragam antes de conseguirem aportar em terras europeias, tornando-se, literalmente, barcos tumbeiros.

Num recorte do jornal Folha de São Paulo (“Europa captura 5.800 imigrantes em dois dias”), de 4 de maio de 2015, sobre os migrantes do Mediterrâneo, lê-se: “Travessia precária é procurada por número crescente de africanos e árabes que fogem de conflitos e da pobreza”. A foto é de uma frágil embarcação, quase uma canoa, atulhada de migrantes: uma possível versão do binômio caravanas/caravelas. De fato, como dizem os versos 7 e 8 da canção, “Não há barreira que contenha esses estranhos / suburbanos tipo muçulmanos”.

Um outro recorte do mesmo jornal, de 22 de abril de 2015, estampa o mesmo drama: “Nigeriano sobreviveu a desastre em navio que faz a rota entre África e Europa e perdeu seus dois filhos”

Efetivamente, cresce o que os historiadores chamam de “o novo racismo” (SIQUEIRA; LIMA; MAGALHÃES, 2018). Xenofobia vem do grego: xenos = estrangeiro e fobia = medo. E como diz a letra de “As Caravanas”, em enxuta síntese, “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. De fato, o medo engendra a raiva, que gera a covardia.

Dito isso, vamos retornar ao Brasil: há de se estudar a escravidão para se entender esse país e, quem sabe, mudar alguma coisa: ela plasmou o povo que somos. O Brasil é o maior território escravista do Ocidente. Sozinho, recebeu 40% dos milhões de africanos embarcados à força para o continente americano - o que significa que para cá vieram quase 5 milhões de africanos. O auge desse desenraizamento humano, segundo Laurentino Gomes (2021), ocorreu do início do século XVIII até meados do século XIX. Mas o que é fundamental é que a escravidão não é um fato do passado, ela vige no presente.

Chico Buarque diz isso tudo em “As Caravanas”, não num discurso conceitual, mas - sem falar na música, que, como eu disse, é produtora de significado - utilizando uma linguagem imagética e recursos que nos atingem também sensorialmente. Aliás, Hegel diz que “Poesia é o luzir sensível da ideia”.

* * *

Voltemos ao texto da canção, às três primeiras estrofes, com foco nas favelas que aqui comparecem. Segundo a declaração, no Correio Braziliense de 14 de maio de 2008, do Ministro da Igualdade Racial do Governo Lula, Edson Santos, num 13 de maio de 2008, quando se fazia memória dos 120 anos da assinatura da Leia Áurea, que abolira a escravidão no Brasil, em 1888, “O negro deixou a senzala para morar na favela” (SANTOS, 2008).

Pois bem, nas favelas citadas na canção verifica-se uma constante que as unifica num doloroso denominador comum: elas foram (e são) espaços de operações policiais sangrentas - como a Favela de Chatuba, que se tornou famosa em 2012, quando lá houve uma chacina de seis jovens. Algumas continuarão apresentando, em anos posteriores à produção de “As Caravanas”, índices crescentes de letalidade nas incursões policiais - o que significa que isso diz respeito a algo estrutural e que estamos no meio de um processo. A situação dos morros é extremamente complexa, com problemas de drogas, de tráfico, de milícias... tudo coroado pelo extermínio da população negra por parte de agentes públicos5. Segundo um dos líderes comunitários de Jacarezinho, Rumba Gabriel, “a polícia passou a desempenhar o papel dos Capitães do Mato, prendendo os negros” (apud REIS, 2020).

Estatísticas macabras dizem que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Essa é uma das constatações do relatório final da CPI do Senado, do ano de 2016, sobre o Assassinato de Jovens no Brasil (COLABORADOR JBr, 2016). Segundo a Carta Capital, o Atlas da Violência 2021, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em 31 de agosto de 2021, assinala que, em 2019, o risco de uma pessoa negra ser assassinada foi 2,6 vezes maior do que o de um não negro. Negros representam 75,7% das vítimas de homicídio no país (XAVIER, 2019). No entanto, nem é preciso frequentar as estatísticas: jornais ou noticiários de TV evidenciam que essa desproporção tem aumentado nos últimos tempos. Esses assassinatos são perpetrados não apenas pela polícia, mas por seguranças particulares6.

Os exemplos seriam infindos - os que refiro agora, particularmente nas notas de rodapé, posteriores à canção “As Caravanas”, são fatos traumáticos que ficaram impactados na memória, à guisa de ilustração de casos em que pulsa nos justiceiros a ancestralidade da Casa Grande. E há também os linchamentos virtuais nas redes sociais.

Voltemos às favelas cariocas, que comparecem em “As Caravanas” e das quais ressaltei o fato de serem palcos frequentes de operações policiais. Mas há outro importante denominador comum entre elas: as favelas são núcleos de resistência de cultura negra da mais alta qualidade. Trata-se aqui do caso, para falarmos nos termos de Alfredo Bosi (2002, p. 259), num texto em que trata do poeta negro Cruz e Souza, do “excluído enquanto sujeito do processo simbólico”, do excluído enquanto ator cultural.

Não por acaso, grandes nomes da música brasileira nasceram ou se criaram nessas favelas.7 Tomemos Irajá: Dolores Duran cantava nas festas de Irajá, onde, por sinal, nasceram Zé Keti e Zeca Pagodinho; Nei Lopes gravou o “Samba de Irajá”, que ele canta junto com Chico Buarque, num CD de 20158.

Falando da Favela da Penha, originada do “Quilombo da Penha” (mas creio que se possa ampliar essa observação para outras favelas), William Reis (2020) diz que a herança do quilombo se mantém viva “no samba, no funk, na estética negra reproduzida nos salões de beleza, no futebol e na militância”. E também na capoeira, como um legado cultural, acrescentará ele mais adiante.

Bezerra da Silva, que transitou por Jacarezinho (chamada de quilombo urbano) e demais morros, especialmente o do Cantagalo, utiliza o samba para tematizar as questões sociais, e tem um disco com o título de Justiça Social, de 1987. Dois anos depois, por sinal, ele gravaria a canção “É o Bicho É o Bicho”9 (citada no verso dez de “As Caravanas”), em que um tiro pega um mané do morro.

Quanto à favela da Maré, que comparece por último na canção: foi lá que nasceu e atuou Marielle Franco. Eleita vereadora pelo PSOL, ela criou (junto com Renata de Souza, que também se tornaria deputada pelo mesmo partido) o bloco de Carnaval “Se benze que dá”, na Maré. Sua campanha teve o slogan #MulheRaça, indiciando o tipo de luta política que ela se dispunha a travar. Vítima de um atentado no dia 14 de março de 2018, foi assassinada no carro junto com o seu motorista, Anderson Gomes, ao voltar da roda de conversa “Jovens negras movendo as estruturas”, na Casa das Pretas, espaço coletivo de mulheres negras da Lapa (VAZ e col., 2021). Atente-se para o nome da roda de conversa: “Jovens negras movendo as estruturas”.

Portanto: resistência cultural, resistência política e assassinatos estão amalgamados.

E a favela de Caxangá, citada no verso cinco? Caxangá: esse termo acorda nas nossas cabeças a canção infantil, ou melhor, o jogo infantil cantado, acompanhando uma coreografia com as mãos: “Escravos de Jó/ Jogavam Caxangá/ Tira, põe, deixa ficar ...” (Não por acaso, Escravos).

Aliás, uma leitura ou escuta um pouquinho mais atenta dessa canção revela o trabalho extraordinário de adequação da toponímia à temática dominante, que é a questão da escravatura. E observamos, atuante, o mecanismo da condensação e uma utilização competentíssima da ambiguidade. (Por sinal, na teoria literária isso pode ser chamado de “polivalência do signo poético”).

***

Por fim, quero enfocar a estrutura de “As Caravanas”. Eu tinha dito que a alusão ao romance O Estrangeiro, de Camus, é um ponto de inflexão na canção. A primeira parte do texto (até o vigésimo verso) diz respeito a uma realidade tensionada, conflagrada, que revela um conflito do presente. Mas a partir da quinta estrofe, que se situa no meio da canção - e que, como eu disse, alude ao assassinato de um muçulmano -, há uma clivagem no corpo do poema, o estilo muda, o tom se altera.

Com efeito, a razão começa a bascular. Não se enxerga aquilo que está diante dos olhos, que, junto com a razão, estão embaçados, como diz o verso 24, no centro exato do poema. Nas últimas estrofes, aparecem os termos “zoeira”, “doido”, “insana”; a expressão “Ou doido sou eu que escuto vozes” (versos 30/43). Esquizofrenia? Ou se poderia pensar que essas vozes escutadas seriam as “Vozes d’África”10, do poema de Castro Alves?

Na sequência, o que vai dominar é a denegação. “Não há gente tão insana/ Nem caravana/ Nem caravana/ Nem caravana do Arará”. Ao final, num crescendo, insiste-se em negar. É uma denegação por parte do brasileiro comum, mas é também uma denegação institucional11, que beira a insanidade. Verifica-se uma ruptura do tecido social desse povo, que tanto individual quanto coletivamente e institucionalmente, não se dá conta de sua origem e não presta contas à sua história.

Eu tinha falado anteriormente em clivagem no texto da canção “As Caravanas”. No âmbito da mineralogia, “clivagem” é a propriedade que têm certos minerais, certos cristais, de se fragmentarem segundo sua estrutura, segundo um determinado plano regido pela sua estrutura. Pois bem, uma clivagem está presente na sociedade brasileira, estruturada nessa relação senhor-escravo.

E aqui vem um último topos em que eu gostaria de insistir: o fato de essa clivagem no corpo do poema corresponder à clivagem no corpo da nação. Estamos vendo nesse texto, concretizada, aquela ideia de Antonio Candido que diz respeito às relações entre literatura e sociedade. Trata-se do postulado do “externo” que se torna “interno”. Aquilo que está no nível externo, quer dizer, o social, tornou-se interno, elemento integrante da estrutura da obra (CANDIDO, 1973, p. 4).

Estigmatizados pelo nosso passado escravocrata, nos recusamos a enxergar a situação presente, olhos e razão embaçados. No entanto, a coisa vige no presente, e o que não é enxergado é atuado. O verso “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria” diz respeito tanto aos castigos corporais da época da escravidão quanto aos linchamentos e assassinatos de hoje. A “zoeira na prisão” remete aos navios negreiros, mas a contiguidade com “crioulos empilhados” diz respeito ao sistema prisional brasileiro da atualidade12. Mais uma vez, condensação, ambiguidade e genialidade. Faltou dizer que a reprodução de um dado fundamental da sociedade no nível formal de uma obra, na sua estrutura, acontece nos grandes textos, dos grandes autores.

Observe-se que vários dos comentários referenciados nas notas de rodapé dizem respeito a fatos que aconteceram também posteriormente à produção de “As Caravanas” - o que vem a comprovar, reitero, o quanto essa canção nomeia uma realidade brasileira estrutural em processo, que se iniciou no passado, vem se desdobrando e ganhando escala no presente e desgraçadamente se ampliará no futuro se não houver uma ação efetiva.

Uma observação final: a Poesia-Resistência desse “poeta social” de poderosa coerência que é Chico Buarque acontece num encontro - que é a sua marca - de uma postura ética com uma esplêndida elaboração estética.

Agradecimentos

*Agradeço a Cleusa Maria Conte Machado a competente ajuda na normatização das Referências.

REFERÊNCIAS

  • 2
    . A indicação do texto de Dalmir Francisco me foi dada por Teófilo Cavalcanti, a quem agradeço pela leitura crítica desta minha análise de “As caravanas”.
  • 3
    . A identificação da presença do romance O estrangeiro na letra de “As caravanas” foi feita pela própria assessoria de Chico Buarque, em seu site, por ocasião do lançamento do CD.
  • 4
    . Mersault disparou quatro vezes contra o corpo inerte, não mais de 80 vezes, como aconteceu no caso de Evaldo Rosa dos Santos, o músico negro que, considerado suspeito de um assalto, ao passar pela Estrada do Camboatá, Rio de Janeiro, dirigindo-se com a família a um chá de bebê, foi alvejado por doze soldados do Exército, no dia 7 de abril de 2019 (portanto, após a produção de “As Caravanas”). Perícia posterior, da Polícia Militar Judiciária, fez subir o número de projéteis a inacreditáveis 257 tiros de fuzil, dos quais 62 perfuraram o automóvel. [https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/08/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml]. Ver também: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/11/politica/1557530968_201479.html]
  • 5
    . Como é o caso recente da favela do Jacarezinho, que em 6 de maio de 2021 - portanto quase quatro anos após o lançamento de “As Caravanas” - foi cenário da maior chacina policial da história, com um saldo de 29 mortos (sendo um deles, policial). O presidente da República “parabenizou” a operação e lamentou a morte de um dos policiais. O vice-presidente se pronunciou: “Tudo bandido”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chacina_do_Jacarezinho. Acesso em maio de 2021. Ver também https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/maioria-dos-mortos-na-chacina-do-jacarezinho-nao-era-suspeita-em-investigacao-que-motivou-a-acao-policial.html
  • 6
    . É o caso da empresa Vector Segurança Patrimonial Ltda., do Supermercado Carrefour, em Porto Alegre, cujos terceirizados surraram e asfixiaram até a morte João Alberto Silveira Freitas, o Beto, na véspera do Dia da Consciência Negra do ano de 2020. (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/homem-negro-morre-apos-ser-espancado-por-segurancas-do-carrefour-em-porto-alegre.shtml (20/11/2020). Mas houve também o caso do adolescente negro que foi amarrado despido, chicoteado e torturado porque roubara uma barra de chocolate num supermercado da Vila Joaniza de São Paulo, em 2 de setembro de 2019. (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/adolescente-e-despido-amordacado-e-chicoteado-por-furtar-chocolate.shtml). O que marcou esse fato especificamente foi a reação de apoio nas redes sociais, por parte da gente ordeira e virtuosa, aos agressores, pois um deles, provavelmente para se vangloriar do feito, fez circular um curto vídeo da tortura, que viralizou.
  • 7
    . Para uma abordagem das complexas relações entre o samba e o “morro”, ver Jost, 2015.
  • 8
    . É interessante lembrar que na região de Irajá havia, no fim do século XVIII, 13 engenhos, todos com mão de obra escrava (IRAJÁ, 2021).
  • 9
    . “É o Bicho É o Bicho”, composição de Adezonilton e Simões PQD, gravada por Bezerra da Silva em 1989: “É o bicho, é o bicho/É o bicho, é o bicho, malandragem/É o bicho, é o bicho/Eu falei que é o bicho /No silêncio da noite um tiro ecoou/Formando na área o maior reboliço/A moçada gritava que o bicho pegou/O mané de boresta na boca do lixo”.
  • 10
    . Deus! ó Deus! onde está que não respondes?/ Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes/ Embuçado nos céus?/ Há dois mil anos te mandei meu grito/ Que embalde desde então corre o infinito.../ Onde estás, Senhor Deus? [...] Hoje em meu sangue a América se nutre/ Condor que transformara-se em abutre/ Ave da escravidão/ Ela juntou-se às mais... irmã traidora/ Qual de José os vis irmãos outrora/ Venderam seu irmão./ Basta, Senhor! De teu potente braço/ Role através dos astros e do espaço/ Perdão p’ra os crimes meus! /Há dois mil anos eu soluço um grito/... escuta o brado meu lá no infinito/ Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... (Castro ALVES , . Vozes d´África, 1868
  • 11
    . Jair Messias Bolsonaro, ainda como candidato em campanha para as eleições presidenciais de 2018, expôs como uma de suas plataformas de governo o não reconhecimento de terras quilombolas, ocasião em que disse que os ex-escravos pesavam arrobas e que não serviam nem para procriar. (https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-e-acusado-de-racismo-por-frase-em-palestra-na-hebraica/). Foi eleito presidente da República. Depois, nomeou para presidir a Fundação Zumbi dos Palmares um indivíduo que declarou que a escravidão foi benéfica para os negros, eles é que se vitimizam. Reações provocadas por essa declaração levaram a um afastamento na cúpula da Fundação, mas logo Sérgio Camargo foi reconduzido ao cargo, de onde continua a atacar a figura de Zumbi, pregando que o movimento negro deve ser extinto, e defendendo a tese de que não há racismo no Brasil. (https://www.brasildefato.com.br/2020/06/03/presidente-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de-escoria-maldita).
  • 12
    . Em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Hoje, de cada três presos, dois são negros. [Cf 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública: divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 19 de outubro de 2020). Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/racismo-estrutural-proporcao-de-negros-nas-prisoes-cresce-14-em-15-anos-enquanto-a-de-brancos-cai-19-9vye3v6x
  • MENESES, Adélia Bezerra de
    . “As caravanas”: racismo e novo racismo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 80, p. 18-32, dez. 2021.
  • ADELIA BEZERRA DE MENESES
    é ex-docente e atual professora colaboradora voluntária do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DTLLC/FFLCH/USP), professora aposentada do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (DTL/IEL/Unicamp), pesquisadora do CNPq e autora de, entre outros, Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque (Ateliê, 2003) e Militância cultural: a Maria Antônia nos anos 60 (Com-Arte, 2014). adeliabm@terra.com.br https://orcid.org/0000-0002-0906-8680

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2021
  • Aceito
    05 Nov 2021
location_on
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro